domingo, 7 de abril de 2013

Dear Zachary: a letter to a son about his father (2008) - As pessoas que partem, e as que ficam para contar a estória.


Olá, pessoal. Antes de apresentar a resenha de hoje, deixem-me reassegurar que este blog, apesar do nome, não se resume exclusivamente a filmes de horror. Aqui, já tratei de todas as espécies de filmes, então o termo “Melhores Filmes de Horror” não deve ser interpretado ao pé da letra. Talvez eu o tenha intitulado desta forma pois, de fato, o horror é meu gênero de preferência, no entanto, o amor pelo cinema não se limita a categorizações. Eu creio que o que todos os filmes sobre os quais falei tiveram em comum foi a capacidade de evocar reações e sentimentos, ousar, arriscar, deixar-me pensativo, acordado à noite sem conseguir adormecer tão fácil, absorvendo o que acabei de testemunhar. E, amigos, foi neste quesito - acordado à noite sem conseguir pegar no sono, absorvendo o significado do que acabei de assistir - que Dear Zachary: A Letter to a Son about his Father causou-me o impacto que poucos filmes foram capazes de infligir. Por poucas vezes, filmes ou livros foram capazes de me deixar metido em introspecção, assombrado por tudo o que vi ou li. Este documentário, contudo, me fez pensar não apenas nos fatos assombrosos apresentados, como também em minha própria vida. Já passando a vista sobre a premissa da fita, este documentário promete fortes emoções: depois que um jovem médico perde a vida tragicamente, o seu melhor amigo empreende uma verdadeira cruzada pelos Estados Unidos, Canadá e Inglaterra, para reunir reminiscências dos amigos e familiares do doutor e registrá-las em filme. O seu objetivo é produzir um documentário sobre o amigo, para que seu filho recém-nascido, que infelizmente jamais poderá conhecer o pai, o faça indiretamente, através deste trabalho cinematográfico.

Parece uma estória já muito bem contada em outros grandes filmes românticos do passado. Neste momento, me vem à lembrança Minha Vida, o filme de 1993 estrelado por Michael Keaton. Há dois diferenciais para Dear Zachary: primeiro, não há atores interpretando diálogos escritos por roteiristas, somos apresentados a um drama da vida real; segundo, há muito mais sobre este caso, sob a superfície das aparências, que os amigos possam imaginar ou antever. O que eu ainda não contei sobre Dear Zachary representa o diferencial devastador que faz deste recente caso um dos mais tristes, trágicos e contundentes de que eu tenha memória. Na execução, o diretor Kurt Kuenne é competentíssimo – ele dirige, edita, conduz as entrevistas, narra e compõe a trilha de Dear Zachary, e o seu domínio e talento sobre todos estes diferentes ofícios de um documentário imprimem ao trabalho a carga emocional e a quentura que faltam aos filmes de grande estúdio. Nenhum outro cineasta ou roteirista seria capaz de bolar uma trama tão imprevisível e assombrosa, pela simples razão de que nada é mais grandioso (ou inesperado) do que a vida real. O trunfo de Kuenne fundamenta-se no fato de que não se comporta como um narrador distante ou impessoal. Como amigo de infância do médico assassinado, os sentimentos pessoais estão fortemente atrelados à forma como revisita o caso, e é pela força de seu enorme coração que nos tornamos igualmente íntimos dos fatos e dos personagens ao longo da jornada.

Gostaria de pedir a quem prefere assistir a filmes sem de coisa alguma saber acerca da trama que deixe de ler a minha resenha a partir deste parágrafo. Para os colegas de quem eu me despeço, reforço a minha recomendação para que procurem por este filme. O DVD pode ser comprado na Amazon. Parte do dinheiro da compra destina-se à Bolsa de Estudos para o curso de Medicina criada a partir dos eventos abordados no disco, voltada a pessoas carentes. Para os colegas que não têm recursos para comprar o disco, sítios de hospedagem de vídeos o oferecem integralmente, acompanhado por legendas em português. O rápido acesso ao filme permite-me assegurar que os amigos guardam a obrigação moral de assistir a Dear Zachary, vocês se beneficiarão da experiência, e carregarão valiosas lições para suas vidas pessoais.

Kurt Kuenne e Andrew Bagby cresceram como melhores amigos em San José, California. Desde garoto, Kuenne amava filmes e queria se tornar diretor de cinema. Bagby aparecia como ator em todas as suas produções amadoras!À medida que foram crescendo, e os filmes se tornaram mais polidos e bem acabados, Bagby chegou a investir dinheiro da poupança reservada para o curso de Medicina nas produções do amigo Kurt. Os pais de Andrew, David & Kate, cheios de vida e jovens de espírito, são vistos pelos amigos do filho como queridas figuras paternas. David & Kate chegam a participar dos filmes caseiros de Kurt, ao lado de Andrew, em papéis menores e hilários. Não há dúvidas de que Andrew é um ser humano muito especial de invejável sensibilidade, abençoado por pais de caráter e amigos verdadeiros. Quando chega o tempo para a faculdade de Medicina, depois do traumático término de uma relação amorosa, Bagby vai fazer residência em Newfoundland, Canadá, onde conhece a Doutora Shirley Turner, treze anos mais velha que Andrew, duas vezes divorciada e mãe de três filhos de pais diferentes. David, Kate e os amigos não têm uma boa primeira impressão da nova namorada do jovem médico. Algo em seu comportamento possessivo – e o rancor de Shirley pela primeira namorada do rapaz – chama a atenção das pessoas mais próximas, que lhe transmitem as suas preocupações. O médico não dá muita atenção aos conselhos. Turner muda-se para Council Bluffs, Iowa, enquanto Bagby começa a trabalhar com Medicina familiar na pacata cidadezinha de Latrobe, na Pennsylvania. O seu sonho é se tornar o Doutor da Cidade, conhecer a todos, e viver uma existência pacata e feliz. Por volta de novembro de 2001, a relação entre Andrew e Shirley começa a efetivamente desmoronar. Depois de terminar o namoro com Shirley no restaurante do aeroporto, e colocá-la no voo de volta a Iowa, Bagby é despertado na manhã seguinte pelos chamados da campainha – depois de chegar a Iowa, Shirley alugou um carro e dirigiu o caminho inteiro de volta para Latrobe, obstinada em se reconciliar com o rapaz. Andrew conversa com o amigo Clark sobre a situação, e lhe diz que Turner quer encontrá-lo no parque para discutir a relação. Clark pede a Andrew que não compareça ao encontro, ou ao menos não aceite encontrá-la em um lugar ermo. Andrew não dá muita importância aos conselhos do colega, e vai ao encontro da médica. Clark e Andrew haviam combinado de se encontrar mais tarde na casa de Clark. Andrew ficou de levar cervejas e contar sobre o encontro com Shirley. As horas se passam, e o médico não aparece conforme combinado. Na manhã seguinte, Bagby também não comparece ao Hospital, e Clark imediatamente tem a forte impressão de que algo muito ruim aconteceu no parque. Não demora à polícia aparecer no hospital para reportar que o corpo do médico foi encontrado com cinco tiros em uma estrada abandonada do parque. Clark declara aos oficiais “E vocês não precisam procurar muito por suspeitos. A ex-namorada esteve na cidade, ontem à noite, e encontrou-se com o Andrew”. Quando a investigação policial se volta sobre Shirley, a médica foge para o Canadá, para Newfoundland. Em meio a toda a confusão, Kuenne revisita os filmes que fez com os companheiros, na adolescência, e lhe ocorre a ideia de rodar um documentário sobre a vida do médico assassinado.

Em Newfoundland, Shirley revela que está grávida do bebê de Andrew. O burocrático processo de extradição tem seu trâmite iniciado, e na mesma época ela dá à luz um bebê a quem chama de Zachary. Os pais de Andrew usam todas as economias e se mudam para o Canadá para se aproximar do nenê – a última parte viva do filho assassinado – e lutar pela custódia, enquanto esperam que Shirley seja extraditada para os Estados Unidos, para julgamento e cumprimento da pena. Os advogados de Shirley, fazendo ardiloso uso do sistema judiciário canadense falho e retrógrado, conseguem seguidamente entravar o avanço das discussões sobre a extradição. Quando no curso do processo a corte julga que há evidências muito fortes que ligam Shirley ao assassinato de Andrew, ela é encarcerada, e ao casal é garantida a custódia do bebê. As motivações de Kuenne, como cineasta, sofrem uma transformação. Inicialmente, pensara rodar o filme como homenagem ao amigo morto, porém compreende que o material representa a única maneira de a criança conhecer quem foi o pai, e todas as vidas que tocou com sua personalidade generosa, extrovertida e bondosa. Kuenne viaja pelos Estados Unidos reencontrando amigos da época do colégio, filmando entrevistas. A jornada o leva à Inglaterra, onde roda os depoimentos de familiares do rapaz (Kate é britânica, então Andrew cresceu entre tios e primos na Inglaterra, por parte de mãe, e nos Estados Unidos por parte de pai). Kuenne chega a visitar Newfoundland, Canadá, em julho de 2003, e conhece o bebê, que está sob os cuidados dos avós.

Encarcerada, Shirley redige uma carta para o Juiz da corte, que a orienta a fazer o apelo para deixar o cárcere, o que vai de encontro a todas as recomendações éticas. Turner é posteriormente posta em liberdade pela canetada de uma juíza de Newfoundland, que - contrária a todas as recomendações face a personalidade agressiva da ré, que inclusive tem um histórico de ameaças a ex-namorados – acredita que a mesma não impõe risco algum à sociedade, vez que o crime, embora violentíssimo, foi “específico em natureza”. Turner retoma a vida e recupera a custódia de Zachary. Devastados, os avós precisam aceitar os termos da assassina para continuarem a ver o neto. Em nome do amor incondicional pelo bebezinho, os velhos se sujeitam a humilhações e até mesmo a conviver com a assassina na esperança de que quando da extradição e julgamento final de Shirley nos Estados Unidos ganharão a guarda definitiva do bebê. Lamentavelmente, as esperanças são rechaçadas, quando, em agosto de 2003, Turner comete suicídio, saltando de um píer abraçada ao bebê. Os familiares e amigos dos Bagby saem chocados de toda a situação, destroçados pela tragédia. A lerdeza da Justiça canadense e a falta de discernimento de seus julgadores coadjuvaram Shirley em sua missão de arruinar a vida de David & Kate por duas imperdoáveis vezes; a primeira, assassinando Andrew, a segunda, cometendo suicídio e levando o bebê inocente junto.

Revoltados com o sistema legal canadense, David & Kate encontram a inspiração para continuar lutando, arregimentando uma campanha voltada à conscientização dos cidadãos sobre a necessidade de reforma das leis sobre fiança do Canadá, a que os avós culpam, em última análise, pela morte do bebezinho. Sensibilizado pelo caso, o Ministro da Justiça aprofunda-se nos eventos do caso Bagby, e posteriormente produz um relatório onde declina que a morte de Zachary poderia ter sido plenamente evitada, não fossem as leis excessivamente lenientes a criminosos e o senso de julgamento inadequado dos principais magistrados envolvidos no caso. O psiquiatra de Shirley Turner é levado a julgamento pelo conselho de ética e condenado por conduta imprópria (ele recomendara que a paciente fosse posta em liberdade, tendo inclusive depositado o valor da fiança), enquanto que a diretora da agência do bem-estar infantil de Newfoundland renuncia ao cargo. David Bagby escreve um livro sobre a experiência, e logo se torna best-seller.

Profundamente transtornado pelos acontecimentos, Kuenne considera abandonar a ideia de terminar o documentário. Pensara em produzir o documentário para que o bebê conhecesse o pai, agora não lhe parece existir motivo para prosseguir, não com Zachary morto. Até que as suas motivações mudam por uma última vez, quando Kurt entende que agora que não há mais criança, a razão para não desistir de seu trabalho reside justamente nas duas pessoas mais corajosas e incríveis que conheceu, David & Kate Bagby. O amor ao netinho - posto à prova de fogo da luta pela guarda da criança e a escolha de seguirem enfrentando o sistema judiciário para a mudança das leis excessivamente benevolentes a criminosos – o inspira de tal maneira que o cineasta encontra fôlego extra para retomar o material, terminá-lo e dedicá-lo aos pais de Andrew. O filme conclui com os amigos e familiares dos Bagby, reunidos, agradecendo pelo rapaz extraordinário que haviam colocado no mundo, falando sobre o quanto haviam aprendido e mesmo levado parte de todo aquele marcante caso para as suas vidas pessoais.

Após a experiência do filme, procurei por pessoas que o haviam visto. Queria saber o que tinham a dizer, e se Dear Zachary os havia tocado da mesma maneira devastadora que me fizera repensar a vida. Muito apreciei a opinião de um rapaz que disse algo nas linhas de que Dear Zachary trouxe para fora muitas emoções, algumas que até mesmo desconhecia. O filme o pôs em contato com sua melhor parte, com sensibilidades que até então julgou não possuir. Achei uma forma extraordinária de colocar o filme em palavras, porque foi exatamente desta maneira que o documentário me moveu. Há mais reviravoltas e suspense neste documentário que um diretor como Brian De Palma poderia imaginar. A força ímpar dos extraordinários eventos aqui descritos, potencializada por eficaz edição e memorável trilha sonora, torna Dear Zachary um dos filmes mais emocionalmente exaustivos já vistos. Apesar de documentário, Dear Zachary funciona a nível de montanha russa sentimental. Todas as emoções concebíveis que existam bem guardadas dentro de vocês encontrarão vazão, uma vez que confiram a saga dos Bagby: felicidade ao acompanhar trechos dos filmes caseiros de Kurt, os amigos se formando e celebrando, no ápice de suas vidas, com tudo pela frente, raiva pela maneira como Shirley usa da boa fé de Andrew para atrai-lo ao parque para matá-lo, tristeza pela dor que veio depois, os sonhos que os pais tinham alimentado para o futuro do filho médico arruinados, descrença no sistema judiciário canadense que parece desencorajador para as pessoas decentes, com toda a leniência exacerbada para com criminosos, esperança renovada, quando do nascimento de Zachary, o doce bebezinho que também significa a última parte viva do Doutor Andrew, a tábua de salvação a que os avós se apegam para sublimar a dor, e finalmente, otimismo pelo ser humano, ao final, onde os Bagby compreendem que em razão de seu caráter e dignidade acabaram por se tornar figuras paternas aos olhos dos amigos do filho assassinado, todos terminando como uma grande família.

Eu lamentei profundamente pelos destinos de Andrew e o filho Zachary, ambos vítimas da própria doçura e inocência, desconhecedores das maldades do mundo. Andrew parecia o tipo de cara que poucos têm a oportunidade de conhecer: generoso, bem humorado, atencioso, humano e caloroso para com os pacientes, e fiel aos amigos. Havia tantas coisas que queria fazer com a vida, mas então, por ignorância, pela desavisada e excessiva confiança, cometeu o erro de se envolver com uma pessoa perigosa, alheio às consequências. Foi o otimismo incondicional pelo ser humano que representou a morte prematura. Não faltaram amigos para tentar abrir os olhos de Andrew. Quando o amigo Clark diz ao médico que se uma ex-namorada aparecesse sem sobreaviso na porta de sua casa de madrugada chamaria imediatamente a Polícia e jamais a encontraria a sós, aos olhos de Bagby, soa exagerado, mas eis a diferença entre Andrew e Clark: este é atento à realidade e protegido contra as malícias de terceiros, aquele confiava cegamente em todas as pessoas e pagou um preço caríssimo. Já Zachary sequer teve a oportunidade de compreender as contradições da vida. Em sua mente inocente, talvez nem tenha contemplado o fim da própria vida. A mãe deveria representar segurança e amor, porém tudo acabou na noite gelada em que saltou do píer contra os rochedos à beira do Atlântico. Disso, extraímos a lição – é importante esforçar-se para enxergar o mundo sob a ótica otimista, e tomar as pessoas pelo que têm de melhor, no entanto, uma pequena dose de cautela quanto a aqueles que permitimos entrar em nossas vidas parece imprescindível.

O filme não acrescenta muito sobre Shirley. A natureza de seus problemas psiquiátricos jamais é abordada. Apenas resta claro que Andrew Bagby não foi a primeira vítima de suas obsessões. Existia um histórico de queixas por parte de ex-parceiros da médica, que davam conta de seu desequilíbrio e possessividade. Este histórico torna a escolha da juíza de assinar a libertação temporária da ré ainda mais incompreensível e absurda. Tenho lido algumas opiniões de pessoas que criticam o filme pela abordagem quanto à Shirley, sem empatia alguma para com a assassina e sua condição psiquiátrica, a questão de o diretor não vasculhar o passado para buscar respostas para suas inomináveis ações no presente. Respeitando a opinião dos colegas, discordo veementemente deste tipo de posicionamento, por duas razões: primeiro, o próprio nome do filme e a identidade do diretor – amigo íntimo de longa data do médico assassinado – bastam para que compreendamos que o trabalho goza de um cunho pessoal, realizado por um rapaz devastado pela saudade, que tinha muito carinho pela vítima, e que queria deixar ao bebê reminiscências sobre a extraordinária pessoa que o pai fora, é lógico que jamais evocaria empatia pela assassina; segundo, em que pese o horror das adversidades psiquiátricas de Shirley, toda a solidariedade que eu poderia nutrir pela mulher foi por água abaixo a partir do momento em que ela descarregou o revólver contra o ex-namorado em um parque assustadoramente deserto, em uma noite gelada.

Talvez, a maneira mais imparcial de se recontar os eventos do caso Bagby consista em um filme com artistas representando os papéis, e um tempo de duração maior, a ponto de comportar as mais importantes reviravoltas do caso, e, se possível, abordar as origens da assassina. Até porque o documentário é tão perfeitamente executado, parece infinitamente mais apavorante e comovente do que os suspenses produzidos em estúdio. Cinematograficamente, a linguagem guarda certas semelhanças aos grandes filmes. A trilha sonora, um dos pontos fortes, evoca, por exemplo, os melhores momentos do maestro Ennio Morricone. A triste, nostálgica melodia de Dear Zachary sugere profunda semelhança com uma inesquecível composição de Morricone chamada All the Friends da trilha sonora do filme Mission to Mars. Acredito que um novo filme com atores jamais traria a mesma força que o documentário, contudo poderia ter um brilho próprio e mérito, permitiria que mais pessoas conhecessem o caso, e proporia fundamental discussão sobre o desserviço que o sistema judiciário presta aos cidadãos de bem, que se veem de mãos atadas. Um cineasta como Brian De Palma me pareceria a escolha mais acertada para o material. Ao conhecer Dave & Kate, não tive como deixar de pensar em Clint Eastwood, com toda a dignidade e autoridade, no papel de Dave, o cidadão de bem, simples, humilde e valente, em sua luta quixotesca contra uma Justiça obtusa que se presta primordialmente a inflamar a vaidade de juízes prepotentes, orgulhosos e dissociados do meio em que vivem.

Embora parte deste documentário debruce-se sobre os últimos anos da residência de Andrew, o relacionamento conturbado com Shirley e o homicídio, é inevitável que com o decorrer da trama, o foco recaia sobre David & Kate Bagby. A vida deste casal é uma inspiração por si. A forma como se conheceram – ela, uma jovem enfermeira britânica de férias nos Estados Unidos, e ele, um oficial norte-americano da Marinha de licença - a aventura que foram os primeiros anos de casamento, a maneira como tentaram inicialmente sem sucesso conceber um filho, e quase chegaram a desistir, até Kate finalmente engravidar, todos estes elementos mágicos compõem um lindo caso de amor da vida real, atualmente cada vez mais raro, encontrado quase que unicamente em produções de cinema fantasiosas tais como Diário de uma Paixão ou Para Sempre. Como é refrescante assistir a um amor tão incondicional, e, melhor ainda, real!Pequenos detalhes sobre o casal, como por exemplo o fato de aparecerem nos filmes caseiros que Kurt fazia quando garoto, dizem-me tanto sobre que tipo de pessoa são!Parece fácil compreender por que mesmo após a morte de Andrew, o filho único, David & Kate não se sentem sozinhos. Os velhos assumiram autoridade paterna aos olhos do restante da turma de Andrew. Quando os vejo em pequenos papéis nos filmes caseiros de Kurt, o detalhe me revela o quanto o casal participava não apenas da vida do filho, como também da dos outros meninos. Algo na maneira com que os dois se conduziram ao longo dos anos, talvez a dignidade, a classe, fez com que eu me sentisse muito pequeno, ao final da fita. Quando vejo o bom humor e a coragem de ambos, e compreendo o quanto são tão melhores do que eu jamais poderia imaginar, sinto que é por causa de gente como Dave & Kate que eu deveria me esmerar para me aperfeiçoar enquanto ser humano. São tantas as pessoas que os enaltecem, nos últimos cinco minutos de filme, os mais comoventes, que eu me perguntei como seria possível que alguém tivesse tantos amigos verdadeiros assim, mas então me lembrei de algo que os dois reúnem, e eu ainda não alcancei: a dignidade a toda prova, a honra, a coragem com que lutam pelo que acreditam e a maneira como por toda a vida se portaram de forma gentil e digna para com os semelhantes, o cuidado com que protegeram os aliados. Foi o melhor proveito que tirei do filme: a vontade de melhorar, de ao menos me aproximar de um ideal alcançado pelos Bagby, por mais que o mundo desencoraje altruísmo, por mais que varra para sob o tapete os valores verdadeiramente importantes da vida. Mais importante que a estória que deixamos para trás, são as valorosas pessoas que ficam para contá-la.

Para finalizar, eu gostaria de recomendar um filme similar a Dear Zachary, igualmente impactante e memorável, chamado O Segredo do Lago Mungo. A grande diferença entre os dois é que Dear Zachary é um documentário autêntico, real, enquanto O Segredo do Lago Mungo, apesar do formato documental, cujo estilo muito lembra os episódios especiais do extinto Linha Direta, é de mentirinha, ou melhor, pode ser rotulado como o que as pessoas costumaram chamar de mockumentary (criado no formato documentário, todavia, na verdade, uma obra fictícia, com artistas interpretando papéis). Em comum, o impacto psicológico das duas obras é devastador. O Segredo do Lago Mungo versa sobre o drama de uma família australiana lutando para sobreviver ao luto, depois da morte da filha, afogada na represa da cidade. Ocorre que o irmão começa a deixar câmeras ligadas pela casa, capturando estranhas manifestações de poltergeist que parecem sinalizar que o espírito da menina não encontrou paz. A forma como O Segredo do Lago Mungo é contado (entrevistas & reconstituições) torna a experiência tão assustadoramente real que não se pode assistir ao filme sem que os cabelos da nuca deixem de eriçar. Ainda em comum, por sob a superfície dos eventos tétricos e pavorosos, a quentura humana eventualmente emerge mesmo em meio à dor, ensinando-nos muito sobre a frágil condição humana e a tenuidade da vida.
Todos os direitos autorais pertencentes a Oscilloscope Laboratories. O uso do trailer é para efeito meramente ilustrativo da resenha. 

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