sábado, 27 de abril de 2019

"A Better Tomorrow" (China, 1986): O grande diretor John Woo inicia a sua caminhada ao topo neste impressionante, violento e lírico filme de ação!


Sinopse: Sung Tse-Ho (Ti Lung) e Kit (Leslie Cheung) são dois irmãos numa encruzilhada. No início do filme, Kit acaba de se formar como policial da força de combate ao crime em Hong Kong, e sonha em se tornar superintendente. Ele vive o melhor período de sua vida, pois conta com o suporte e apoio do irmão mais velho, Sung, com o amor do velho pai enfermo e o carinho de sua doce namorada Jackie (Emily Chu). Embora sempre presente na vida do irmão mais jovem, Sung mantém oculto seu trabalho como um gângster membro da Tríade chinesa. O pai doente sabe da vida secreta do filho mais velho, e mesmo conhecendo o orgulho do gângster pelo fato de o irmão ser um incorruptível homem da lei, lembra-o de quando ambos eram crianças e brincavam de polícia v. bandido: ninguém acabava se machucando, mas então tudo era brincadeira. O pai não quer que acabem brigando na vida real. Sung se sente muito dividido e cheio de remorsos. No dia a dia, ele performa operações ilegais envolvendo a distribuição de notas falsas, ao lado do melhor amigo, o bem humorado e honrado Mark Go (Chow Yun-Fat). No sindicato, ambos são tratados com veneração, e os desdobramentos parecem indicar que, chegada a hora da sucessão, um dos dois ocupará o lugar de chefe da Tríade. Com irreverência, Sung e Mark acolhem o novato desajeitado Shing, um principiante no mundo do crime, e seguem desempenhando as tarefas do sindicato no dia a dia. Ambos se conduzem com estilo, vestindo elegantes casacos e óculos pretos, e inspirando respeito por onde passam. Compreensivelmente, Shing impressiona-se com glamour da máfia, e fica deslumbrado em se tornar um gângster capaz de inspirar temor e reverência. Ele terá a oportunidade de provar seu valor quando, ao invés de Mark como de costume, Sung levar Shing para um trabalho em Taipei, no dia seguinte, uma espécie de "prova de fogo" para o neófito. O trabalho em Taipei se prova uma verdadeira cilada, e depois de uma intensa troca de tiros da qual Sung e Shing escapam por pouco com suas vidas, Sung baleado inclusive, os bandidos responsáveis pela emboscada despacham um assassino para a casa do pai de Sung & Kit para usá-lo como barganha, caso Sung seja preso e acabe tentado a falar tudo o que sabe para entregar a turma inteira à polícia. O pai reage e luta com o vilão. Kit chega a tempo de se deparar com a confusão e ajudar o idoso, mas o velhinho acaba morrendo. Da pior maneira, Kit, um rapaz honesto e obediente às leis, descobre que o irmão fazia parte da Tríade e atraíra para dentro de casa complicações que resultaram na morte do amado pai. Em Taipei, o acuado Sung prefere se entregar à polícia, que montou um cerco na área. Assim, ele dá ao colega Shing a oportunidade de se evadir por outra direção sem ser capturado. Mark vem a ler sobre o ocorrido no dia seguinte, ao comprar o jornal. Entristecido pelo querido parceiro, resolve se vingar. Aprende que o responsável pela emboscada fora o sobrinho do outro chefão de Hong Kong: o rapaz se juntara a uma gangue menor de Hong Kong e passara a perna no tio, fingindo-se soldados do grupo numa transação legítima, quando, na verdade, armavam o golpe o tempo inteiro. Como a honra vale ouro para os verdadeiros homens da Tríade, o chefão passa a Mark todos os dados de que ele precisa para acertar as contas com o sobrinho traidor, e oferece armas & homens. Numa sequência empolgante muito reveladora da habilidade do diretor John Woo em arquitetar cenas estilísticas de ação, Mark "se mistura" aos presentes no restaurante com uma garota de programa até chegar à mesa onde o sobrinho traidor e sua turma jantam. Mark abre fogo e executa os vilões, porém leva um tiro na perna durante a fuga. Os anos, então, se passam muito rapidamente, e vemos como Kit se torna um dos melhores policiais da força de Hong Kong. Sung cumpre a pena com resignação, e ao ser posto em liberdade, deixa a cadeia obstinado em fazer as pazes com o irmão e viver uma existência limpa como motorista de táxi. Durante aquele tempo, Mark, outrora um respeitado membro da Tríade, virou um humilde cuidador de carros, por conta da perna deficiente, e ninguém o respeita mais. Shing, a quem conhecemos como um inocente aprendiz, ascendeu ao topo da organização; agora, é o impiedoso chefão. Sung procura o velho amigo Mark, e eles ajudam um ao outro no longo processo de reabilitação, longe das garras da Tríade. Simultaneamente, Sung batalha para conquistar o perdão do ainda ressentido irmão. Quando Shing passa a armar um plano maquiavélico para trazer Sung de volta ao mundo do crime, os três sabem que precisam unir forças para derrubar o verdadeiro vilão.
Resenha: Por um período relevante, o diretor John Woo foi um dos cineastas mais admirados da Sétima Arte, tendo sido convidado a reger projetos impressionantes, realizados dentro do sistema dos grandes estúdios, sucessos de bilheteria que, paradoxalmente, viam a liberdade criativa do cineasta recrudescer à medida que o escopo das produções se elastecia. Para muitos, o nome do diretor é imediatamente recordado pelos sucessos filmados em Hollywood - "O Alvo", "Broken Arrow", "A Outra Face", "Missão Impossível 2" e "O Pagamento" - mas o alcance dessas ambiciosas produções acabaram por diluir o seu melhor período, anterior à vinda aos Estados Unidos. Na época do lançamento na China, "A Better Tomorrow" foi catapultado à estratosfera das bilheterias, um honorável recorde que só alguns anos mais tarde seria quebrado. Para se ter uma ideia do fenômeno popular de "A Better Tomorrow", os óculos escuros Ray-Ban usados pelo ator Chow Yun-Fat tiveram seus estoques esgotados semanas após a estreia. Os jovens não só adotavam os óculos, como também coadjuvavam o estilo com o longo trench coat e o detalhe do palito de fósforo no canto da boca. Embora extremamente bem-sucedida, a experiência também trouxe dores de cabeça a Tsui Hark, produtor, e o diretor Woo, pois parte da imprensa os acusou de, com o filme, glamorizarem a temerária vida da máfia chinesa, conhecida como Tríade. Ainda que sob percalços, "A Better Tomorrow" emblematizou o começo da maturidade de Woo enquanto cineasta, visto que deixava a ação pela ação para rodar obras cujas tramas se aproximavam dos ambiciosos dramas dirigidos pelo norte-americano Martin Scorsese no período mais cultuado de sua filmografia. A partir de "A Better Tomorrow", Woo, um artesão da violência, preocupou-se em ir além do puro espetáculo visual, explorando o drama interior de seus heróis, usualmente homens violentos regidos por um rígido código de honra. Seus protagonistas podiam agir passional e violentamente, mas sempre faziam escolhas baseados em valores transcendentes ao ego, desde o nobre remorso do assassino profissional de "The Killer" ao carinho do tira Tequila por sua ex-mulher em "Hard Boiled". Em "A Better Tomorrow", John Woo sublinha a ação e pirotecnia com o drama de dois irmãos em lados opostos da lei. Do puro, belo amor fraterno, belissimamente rendido pelo sensível cineasta, ele encontra o fio narrativo apropriado para uma tocante jornada rumo à redenção. Quem assistir a "A Better Tomorrow" esperando ação encontrará algo mais recompensador, pois Woo imbui a trama de ímpar profundidade humana. O filme traz consigo uma poderosa bagagem asiática, entretanto o núcleo dramático, a busca pela redenção, soará familiar a qualquer cristão. Com uma trilha sonora simultaneamente comovente e eletrizante a dar um ar romântico aos procedimentos, "A Better Tomorrow" se destaca como uma produção realmente à parte, com a qual o diretor John Woo ensaia as características responsáveis pela sua identidade como poeta visual da violência.
Ti Lung e Leslie Cheung estrelam o filme como os dois irmãos em lados distintos, e se destacam como atores magistrais, cada um por motivos especiais. Lung encarna o paradigma do anti-herói clássico de uma obra-prima do mestre. Como um gângster, Lung, no papel de Sung Tse-Ho, sabe que para sobreviver no submundo do crime precisa atirar primeiro e não se permitir emoções como compaixão. Ao mesmo tempo, o semblante triste denuncia a preocupação com o futuro do irmão Kit, a quem ama e deseja uma vida distinta da sua, e a fidelidade ao velho amigo Mark, por cuja deficiência se julga responsável. Mesmo na luta pela sobrevivência no submundo à margem da lei, Sung age como um homem íntegro obediente a um código moral, e por seus valores paga um alto preço, conforme vemos durante a emboscada da polícia, quando sacrifica a liberdade e se entrega de modo a dar ao colega Shing, que anos mais tarde o trairá, uma chance de escapar do cerco. Leslie Cheung dá vida a Kit, e confere ao personagem a energia e suavidade arrogante dos jovens, ainda desconhecedores dos muitos tons regedores da dinâmica do mundo. Conhecemo-o como um cadete idealista, testemunhamos a evolução como tira, e culminamos com o seu perfeito desenvolvimento quando, ao fim, perdoa o irmão e o aceita pelo que é, ao perceber as próprias falhas e o fato de, no mundo, a verdade nem sempre vir em preto e branco. Lamentavelmente, o ator Cheung, uma alma gentil e atormentada, cometeria suicídio em 2003, após muitos anos de uma batalha perdida para a terrível enfermidade da depressão. Chow Yun-Fat se consagraria como o ator preferido de Woo, inaugurando uma parceria semelhante a de Martin Scorsese & Robert De Niro. Quando foi escalado para o vital papel de Mark, Yun-Fat encarou o convite como uma bênção, afinal vinha de uma sequência de fracassos e trabalhos inexpressíveis. "A Better Tomorrow" salvou sua carreira e o estabeleceu como um astro do mercado asiático. Mark serve de estepe aos dois irmãos, contudo, mesmo como coadjuvante, praticamente "rouba" os holofotes dos dois protagonistas, conduzindo-se com a elegância & letalidade de uma pantera, tal qual na cena onde caminha abraçado a uma garota de programa, ambos aos beijos, abraços e gargalhadas, ao longo de um corredor de restaurante, e vai aproveitando a encenação para ir depositando pistolas automáticas carregadas nos vasos de flores, numa brilhante estratégia de escapada a preceder o ataque aos bandidos à mesa. Ele desempenhou o trabalho com um charme tal que, mesmo morrendo ao fim, os produtores deram um jeitinho de trazê-lo de volta em "A Better Tomorrow 2" como Ken, o irmão gêmeo de Mark. Quando Ken morreu no desfecho da segunda parte, os caras, determinados a trazerem-no de volta, trataram de bolar uma prequel, uma trama passada antes dos eventos do primeiro filme, qualquer coisa para justificar a contribuição do carismático astro! John Woo dirigiu o segundo, e Tsui Hark, outro habilidoso artífice da ação, comandou o terceiro, ambos ótimos filmes, mas muito diferentes.
Em "A Better Tomorrow", pinçamos as qualidades responsáveis por terem feito de Woo um dos diretores instantaneamente reconhecidos em termos de visual & estilo. Woo encontrou a identidade ao balancear a ação cinética, tão própria dos asiáticos, com a poesia do enquadramento das imagens. Para sintetizar magia, estetizou os tiroteios e a violência com tomadas em câmera lenta, reminiscentes das obras-primas de Sam Peckinpah. A redução proposital da velocidade, a aplicação de zoom e os movimentos inesperados de câmera instilaram no seu olhar uma conotação lírica & shakespeariana, e, a partir de "A Better Tomorrow", com muita razão, as pessoas passaram a esperar de cada novo trabalho seu uma festança aos olhos. Ele não desapontou, atingindo o ápice criativo com o melhor filme de ação do século XX, "Hard Boiled", lançado no Brasil como "Fervura Máxima", uma ópera de tiroteios, traições e duelos de homens com duas pistolas nas mãos! Após "Fervura Máxima", Woo seria assediado por Hollywood, interessada em importar o talento do chinês. O intercâmbio se realizaria em 1993, com "O Alvo" ("Hard Target"), estrelado por Jean Claude Van Damme, então um nome em ascensão. Os desconhecedores da filmografia de Woo tiveram a oportunidade de descobrir o talento do cineasta com "O Alvo", uma superprodução de enorme visibilidade. Já ali, todavia, pronunciava-se o problema que viria a assolar os dez anos nos quais dirigiria em Hollywood: por reger filmes de estúdio, Woo também precisava lidar com os massivos egos de estrelas internacionais, vaidosas demais para permitirem que o estilo do cineasta ofuscasse suas presenças. Não obstante excepcional, "O Alvo" esgotou o cineasta emocionalmente, cortesia das constantes discussões com Van Damme, mas Woo sagrou-se vencedor, imprimindo ao filme a sua marca autoral. A experiência seria diferente com "Missão Impossível 2", seu primeiro grande desapontamento com o sistema de trabalho dos super estúdios. Quando o astro Tom Cruise inaugurara a franquia em 1996 com o primeiro "Missão Impossível", ninguém sabia se a série daria certo. Para a cadeira de diretor, foi escalado um dos maiores virtuosos do suspense moderno, Brian De Palma, com quem o astro Tom Cruise protagonizaria discussões pelo efetivo controle da caríssima produção. De Palma ganhou o duelo de vaidades, dirigiu o filme à sua maneira, e o resultado foi uma das maiores bilheterias de todos os tempos. Quando Woo se apresentou no set de "Missão Impossível 2", o equilíbrio de forças era distinto, e Tom Cruise tinha detrás de si o estrondoso sucesso do primeiro filme para dar as cartas. Woo lutou para emprestar ao projeto sua visão, mas ao bater de frente com as opiniões do ator principal, sem o mesmo poder de barganha, acabou derrotado. Lançado para absoluto sucesso no competitivo verão de 2000, "Missão Impossível 2" consolidou o nome de Tom Cruise como herói de filmes de ação, porém quem se recordava de John Woo pelos filmes rodados em Hong Kong décadas atrás não mais reconhecia na tela a típica paixão poética. Sua direção passava a impressão de lassidão, quiçá frouxa e quase automática. Três anos depois, ao comandar a ficção-científica "O Pagamento", encabeçada por outro astro, Ben Affleck, Woo viveria o mesmo drama ao ter a liberdade criativa tolhida em nome das vaidades do elenco de estrelas. Em 2003, a experiência de John Woo no Ocidente somava quase uma década. Não apenas o brilho do diretor se dissipara: genericamente, os filmes de ação haviam sofrido uma guinada a partir de "Matrix", de 1999, e o público, ao menos em sua maioria, não mais nutria interesse por diretores de visão, afinal o espetáculo, e não as personalidades, havia passado a ser tudo. Não somente Woo amargaria essa realidade; visionários um dia tidos como os maiores agora também agonizavam e se viam obrigados a comandar projetos menores, como o finlandês Renny Harlin. Depois de o ter importado, Hollywood não sinalizava que daria a John Woo a tão sonhada liberdade criativa de antigamente, e ele regressou para a China.
De volta a sua terra, Woo reencontrou o prumo. O cineasta retomou a liberdade a partir da qual poderia reaver as melhores qualidades responsáveis pela sua marcante filmografia no período pré-Hollywood. A partir de 2008, com "A Batalha dos 3 Reinos", ressurgiria como o familiar, maravilhoso virtuoso de "A Better Tomorrow", num impressionante processo de retomada artística das origens. Na China, dirigiria um de seus trabalhos mais excitantes: para os fãs, "Manhunt", de 2017, encapsularia o John Woo vintage, onde as excentricidades mais malucas e maravilhosas se viriam reunidas num pacote só, anos-luz à frente das superproduções de Hollywood. Sem estrelas de cinema para azucrinarem-no, com "Manhunt", Woo fielmente dirigiu um projeto nascido de suas visões e crenças, e os fãs reagiram com gratidão por tê-lo de volta. Hoje, tantos anos mais tarde da passagem pelos Estados Unidos, Woo se recorda do período sem nenhum tipo de mágoa. Ele fala sobre como se sentiu enaltecido com os projetos que chegavam à sua escrivaninha, e com especial apreço se recorda de como ficou lisonjeado quando os criadores de James Bond o convidaram pessoalmente para reger "007 contra Golden Eye": ele não topou, mas apreciou o convite! Mais amadurecido, Woo transmite a sapiência de um homem cujo melhor projeto encontra-se a alguns anos no futuro. De várias maneiras, a saga do diretor nos convida a pensar na realidade de muitos outros artistas de abençoadas visões. Eu poderia citar o sr. José Padilha, o elogiado cineasta responsável por "Tropa de Elite 1&2", entre outros premiados trabalhos no cinema & TV. A energia exibida em "Tropa de Elite" valeu ao sr. Padilha o convite para comandar o aguardadíssimo remake de "RoboCop", um projeto que durante a concepção passou pelos gabinetes de cineastas respeitados, como Darren Aronofsky. Lançado em 2013, o remake de "RoboCop" se destacou como um filme muito bom e antenado `as revisões narrativas demandadas pela adaptação de algo originalmente concebido em 1987. Ocorre-me, porém, a impressão de que sr. Padilha não chegou a entregar o produto originalmente desenhado pela sua privilegiada mente. É muito possível que o cineasta tenha reservado a "RoboCop" sacadas geniais, todavia, ao apresentá-las ao estúdio na pré-produção, precisou suportar as interferências dos produtores responsáveis pelo dinheiro da feitura da produção. Possivelmente temerosos com os dividendos financeiros, os executivos devem ter limitado o leque de escolhas de um cineasta interessado em realizar seu melhor filme. Semelhante impasse ocorreu a outro consagrado diretor brasileiro, sr. Walter Salles, cujo portfólio chamara a atenção dos grandes estúdios, interessados em tê-lo a bordo de um grande projeto. Pelo sistema de Hollywood, o brasileiro rodou "Água Negra", refilmagem de um celebrado filme de horror japonês, realocado para os Estados Unidos, e produzido em 2005, na esteira do absurdo sucesso de "O Chamado". A misteriosa história de fantasma, sobre uma mãe falível empenhada em cuidar da filha, ambas habitando um apartamento de um condomínio onde, alguns anos antes, uma pobre garotinha vítima de abusos desaparecera misteriosamente, foi reimaginada para a realidade & tensões ocidentais pelo sensível Salles. Em que pese as qualidades, "Água Negra" não chega a criativamente decolar, destino do qual se infere uma interferência do estúdio no processo de filmagens. Da experiência, certamente uma das melhores recompensas do sr. Salles deve ter sido dirigir a talentosíssima atriz Jennifer Connelly, a estrela do projeto. Ela, inclusive, vocalizou satisfação com o trabalho do sr. Salles e fez votos de participar de outros projetos seus. Enfim, voltando ao cineasta objeto da resenha, John Woo, as últimas movimentações de sua carreira apontam a felicidade de um homem novamente detentor de um eixo criativo e em pleno controle de sua capacidade para escolhas artísticas, hoje temperadas por maturidade, e bem-assessoradas pelo respaldo dos chineses à sua autoridade.
Os cinéfilos ainda alheios `as origens de John Woo ficarão felizes em saber que todas as principais produções do período pré-Hollywood podem hoje ser facilmente encontradas em DVD por um valor quase irrisório diante de sua relevância histórica. Lançado com todas as honras em DVD, "A Better Tomorrow" teve imagem & som restaurados graças a um empenhado processo de transferência. Curiosamente, o DVD não foi o primeiro contato dos fãs brasileiros com a obra, afinal, em 1994, a Flashstar o lançara em fita de vídeo com o título "Alvo Duplo", para "surfar na crista da onda" do então recente sucesso de "O Alvo", com Van Damme. Se você estiver interessado em iniciar estudos da carreira de Woo pelo seu melhor trabalho, "Fervura Máxima", eu recomendaria "A Better Tomorrow" como mais apropriado ponto de partida. Aqui, encontrarão interessantíssimos esboços das técnicas que ele lapidaria nos anos seguintes, tanto dramática quanto esteticamente. Em termos de recursos dramáticos, Woo trata os vilões com seu familiar apreço por antagonistas. O grande público se recordará do franzino, memorável Lance Henricksen no papel do vilão Emile Fouchon, de "O Alvo": magérrimo, intelectualizado e entusiasta pianista, ele portava uma super pistola e se movia com uma desenvoltura capaz de intimidar o musculoso herói vivido por Van Damme. O carinho de Woo ao retratar a extravagância dos vilões como criaturas maiores que a vida, todavia, inicia-se muito antes, em 1986, com "A Better Tomorrow", onde o vilão Shing, interpretado por Waise Lee, corrobora a assertiva. Na primeira parte do filme, o jeito amador e atrapalhado nos convida a enxergá-lo com a benevolência e bom humor reservados aos principiantes, mas, com o desenvolvimento da trama, aprendemos como o poder, uma fraqueza tão corruptível, transforma até mesmo ingênuos em monstros. Shing é um homem corrompido pelo poder, pois tendo sido salvo por Sung no começo da trama, ao invés de usar o sacrifício do colega para se tornar um ser humano melhor, deixa o ego tomar conta e permite-se galgar implacavelmente degraus cada vez maiores dentro do sindicato do crime, até se tornar o Senhor da Tríade. Esteticamente, "A Better Tomorrow" turbina a violência ao revesti-la com uma melancólica beleza, como se os duelos se dessem consoante coreografias milenares de uma dança secreta, protagonizada em tiroteios de tirar o fôlego. Como um todo, o cinema asiático costuma impressionar pelos exuberantes espetáculos de lutas. Eu nunca gostei de artes marciais, com a exceção talvez do pugilismo por causa dos grandes boxeadores do passado, mas admiro os atores e atrizes que performam tais modalidades perante as câmeras, mesmo sob riscos à saúde. Muitas atrizes sofrem sérios reveses ao desempenharem proezas, como a inglesa Kate Beckinsale, que em um dos filmes sobre vampiros v. lobisomens causou em si mesma uma hérnia, salvo engano umbilical, por causa de um salto e um chute acrobático realizados sem o devido preparo. Artistas de cinema ganham bons salários, mas sofrem no corpo as demandas exigidas pelo processo de filmagem! Ninguém realiza tão bem os saltos e movimentos como os chineses. John Woo adaptou as proezas das artes marciais, reciclando-as nos duelos à pistola, e em invés de a saltos e super golpes, direcionou seu olhar poético à acrobática troca de fogo.
Muitos cineastas confessam a influência de John Woo em seus trabalhos, e devem as carreiras ao peculiar modo do artista chinês ao retratar a ação. O ótimo Isaac Florentine temperou suas duas melhores obras, "Ninja 1&2", com pitadas estilísticas claramente emprestadas de Woo. Exaustivamente copiado, o diretor perdura numa classe só sua, e em especial para as pessoas que foram adolescentes nos anos 90, seu trabalho conserva um doce chamado nostálgico, convite a uma época mais simples. A meu ver, John Woo faz parte de um seleto grupo de cineastas e artistas por quem reservei muito apreço enquanto crescia. Aos quinze anos, recheava as paredes do quarto com pôsteres de todos aqueles filmes e estrelas. Claro, na época, tentava substituir um enorme vazio interior com aquelas imagens fantásticas, mas então não sabia que um mero minuto de eucaristia teria me dado tudo o que os filmes jamais conseguiriam. De qualquer modo, por todas essas obras de arte do cinema, eu sempre terei singelo carinho, e se o texto levar meia dúzia de leitores a conhecerem a filmografia de John Woo, terei retribuído o mestre do cinema por todo o bem que me fez, em particular. Eu me recordo de 1995, quando "Fervura Máxima" foi trazido aos cinemas brasileiros com quatro anos de atraso (afinal, foi filmado em 1991) e exibido no circuito de arte: eu tinha quinze anos, minha mãe levara a mim e a um grande amigo para vermos o filme, e assistir à obra-prima de John Woo na tela grande, naquela noite distante de 1995, foi uma experiência mágica, até agora muito fresca na minha memória. Mesmo hoje, quando passo pelo espaço no shopping onde existia o cinema onde vimos o filme, arrepio-me ao me recordar das pessoas em suas poltronas assistindo ao espetáculo eletrizadas. Quando criança, eu sonhava em ser cineasta, e queria me tornar uma espécie de John Woo. Aqui, ao examinar quão pouco se sabe da vida na adolescência, descrevo meus sentimentos com uma fala do sr. Clint Eastwood, em "As Pontes de Madison". O sr. Eastwood afirma: "Os velhos sonhos foram bons sonhos. Eles não se realizaram, mas foi bom tê-los". E então: o que você está esperando para procurar ainda hoje a obra de John Woo, o maestro do balé da violência?