segunda-feira, 24 de janeiro de 2022

Hellraiser 2 - Renascido das Trevas (Hellbound: Hellraiser 2, Inglaterra, 1988) - Da primeira vez, Clive Barker nos convidou a explorar os limites. Desta vez, ele nos levará além!

Alguns anos após o fim da Primeira Grande Guerra, um capitão do Império Britânico põe as mãos em uma caixa conhecida como "configuração do lamento". Reza a lenda que, se manipulado da maneira correta, o quebra-cabeça abriria o portal para a dimensão dos cenobitas, seres ambíguos e misteriosos, mestres supremos  de prazeres e experiências sensoriais extraordinárias, para além da capacidade humana de compreensão. O capitão trabalha na resolução do cubo e invoca os cenobitas. As experiências que lhe oferecem, todavia, não correspondem `a sua ideia de prazer. Arrastado para uma dimensão de humilhação, dor e desespero, ele deixa a vida que conhece, e é transformado pelo encontro, tornando-se semelhante a seus algozes, e o novo guardião da caixa.

Quase cem anos mais tarde, o filme retoma o enredo do primeiro "Hellraiser". Kirsty (Ashley Laurence) desperta de seu torpor em um hospital psiquiátrico, onde é questionada sobre os inexplicáveis acontecimentos na casa da Lodovico Street, envolvendo a morte do pai e da madrasta Julia (Clare Higgins). Assistida pelo diretor do hospital Dr. Channard (Kenneth Cranham) e o seu assistente Dr. Kyle MacCrae (William Hope), Kirsty insiste que destruam o colchão onde o corpo da madrasta esfaqueada foi encontrado. Channard assegura a Kirsty que o pior já passou, que cuidará bem dela, e que não há mais nada a temer. Kyle se afeiçoa à novata quase instantaneamente, e se torna seu aliado. Intrigado pelas súplicas de Kirsty, Channard pede aos policiais que lhe franqueiem acesso à cena do crime e ao material encontrado no local dos homicídios.

Uma noite, ao perambular pela ala dos internos, Kirsty tem a atenção capturada por uma garota loira sentada solitariamente no assoalho do quarto, compenetrada com a resolução de um quebra-cabeça. Ela se chama Tiffany (Imogen Boorman) e, segundo Kyle, mora no hospital desde a primeira infância. Tiffany é autista, não fala, e seu passatempo foca-se na manipulação de quebra-cabeças, o que o faz como ninguém. Kirsty acena para a menina, tentando estabelecer contato, mas a garota permanece indiferente, trancada no próprio mutismo. Naquela noite, Kirsty tem um terrível pesadelo, onde enxerga uma figura decrépita escrevendo "Ajude-me, estou no inferno", com as pontas dos dedos sangrentos, no azulejo branco do banheiro. Na manhã seguinte, fala sobre a visita sobrenatural a Kyle que, embora inicialmente cético, crê que parte da história fantástica guarde certa verossimilhança. Kirsty definitivamente acredita no que diz. Channard visita a paciente, e, com riqueza de detalhes, ela lhes conta sobre o tio Frank, o cubo que liberta as criaturas conhecidas como cenobitas, e o romance extraconjugal envolvendo a madrasta e o cunhado, segredo macabro que levou Julia a seduzir e assassinar homens para que o amante pudesse se alimentar, e seu corpo decrépito recuperar a forma, antes que os cenobitas dessem pela sua ausência do lado de lá da Cisão e retornassem para levá-lo ao inferno.

Quando Kyle acidentalmente escuta a Channard ao telefone, em conversa com o investigador do caso, pedindo para que encaminhe o colchão ensanguentado para sua residência, o jovem psiquiatra passa a suspeitar do comportamento do mestre. Impressionado com as histórias de Kirsty sobre cenobitas, o médico sorrateiramente invade a casa de Channard para averiguações. Certo de que o psiquiatra não se encontra, o rapaz bisbilhota o gabinete e encontra provas incriminadoras, mais graves do que teria suposto. Para sua surpresa, põe as mãos em gravuras, artigos científicos, artefatos e mapas que o levam a crer que Channard manteve uma parte importante de sua vida em segredo: ele é obcecado por teosofia e ocultismo, e não apenas conhece rumores sobre a referida caixa, vem estudando uma forma de abrir o portal para a dimensão dos cenobitas. Na escrivaninha, sob dumas de vidro, Kyle encontra várias configurações semelhantes à da história de Kirsty. Channard retorna para casa, trazendo consigo, numa camisa de força, um instável e perigoso paciente esquizofrênico. Em seus delírios, ele enxerga insertos por todo o corpo. Kyle se esconde por trás da cortina para não ser flagrado.

Estupefato, Kyle assiste clandestinamente a Channard desatar a camisa de força, entregar ao esquizofrênico uma navalha afiada e acomodá-lo no colchão ensanguentado onde Julia fora esfaqueada. Enlouquecido por alucinações de insetos cavando a carne, ele começa a deslizar a lâmina pelos braços, pernas, virilha, pescoço e tronco, na tentativa desesperada de se livrar de larvas que, na verdade, não estão ali. A cada passagem da navalha, jorros de sangue espirram e melam o colchão. Mesmo se vazando na hemorragia, a força da loucura o mantém se flagelando em um frenesi furioso e incomum. Subitamente, braços pronunciam-se para fora do colchão e o seguram por trás; depois, são pernas que se cruzam ao redor do quadril da vítima. Finalmente, o rosto de Julia emerge do colchão. Graças ao material orgânico derramado pelo paciente de Channard, Julia volta à vida como uma primitiva criatura. Como uma parasita, ela se adere ao louco que, por um breve momento, parece recuperar a lucidez. Quando se vê nos braços da monstruosidade, o instinto de sobrevivência é mais poderoso que a loucura, e o homem passa a lutar para fugir dos braços de Julia. Extremamente vulnerável, ele ainda ensaia passos em direção às cortinas, mas quando está para puxá-la, Julia consegue segurá-lo pelos tornozelos e trazê-lo de volta ao chão. Depois que cai, acabam-se as esperanças: ela rapidamente consegue escalar as costas do homem e dominá-lo, acoplando-se à vítima como uma mochila. Julia enfia os dedos na nuca da presa, ferindo-o de morte, e começa a se alimentar dos nutrientes. Enquanto esse bizarro processo de luta/nutrição/morte acontece, Kyle consegue vencer a inércia e fugir pela janela.

Fascinado pelo testemunho em primeira pessoa do fenômeno sobrenatural, não custa a Channard se apaixonar pela sedutora Julia. Ele enfaixa o corpo para proteger os músculos viscosos e terminações nervosas da exposição, e passa a trazer os loucos mais severos para que ela siga se nutrindo e, aos poucos, estabilize a cicatrização e recupere a pele, nos moldes do ocorrido a Frank no filme anterior, "Hellraiser". Além dos jogos de sedução de Julia, o que atrai o psiquiatra à volátil aliança é a obsessão por realidades desconhecidas. Durante parte da vida adulta, escutara histórias sobre a Ordem do Gash, os cenobitas, as experiências incomparáveis oferecidas aos corajosos; no entanto, jamais tivera uma prova concreta da existência de semelhante lugar, vez que as pessoas que supostamente teriam feito contato haviam deixado o mundo sem deixar vestígios. Ele sabe que, com a ajuda de Julia, poderá finalmente cruzar a fronteira entre o mundo conhecido e uma versão redesenhada da existência, onde dor equivale a prazer, e vice-versa. Kyle procura Kirsty e lhe conta que agora acredita na história. Confessa o que viu com os próprios olhos: Channard coleciona caixas, e usou o colchão para trazer a madrasta de volta. Kirsty resolve deixar o hospital para confrontar Channard. Ela acredita que o pai, morto no primeiro filme por Julia e Frank, precisa de sua ajuda, perdido em uma dimensão que só pode ser alcançada através da manipulação do cubo. Kyle suplica a Kirsty para não ir sozinha, e se oferece para acompanhá-la. Inicialmente, ela recusa, pois não quer que o médico se arrisque por um problema que não lhe diz respeito, mas diante da insistência do amigo, acaba aceitando o apoio.

Kirsty e Kyle aguardam no bosque pela saída de Channard. Quando o veem deixando o lugar, o casal invade a residência. No gabinete, Kirsty surpreende-se ao encontrar diferentes versões do cubo sob dumas de vidro. Kyle pede a Kirsty para não tocar nos objetos até que investigue cada cômodo, a fim de se assegurar de que a monstruosidade que vira anteriormente não se encontra por perto. Ele sobe as escadas e, ao hesitar diante da porta do sótão, justamente o cômodo onde Julia consumiu os pacientes, tem uma surpresa. Ao se virar, toma um susto ao dar de cara com uma mulher parada atrás de si. Imediatamente, ela ergue um dedo silenciador na frente dos lábios, sinalizando para que não levante a voz. Evidentemente, trata-se de Julia, sua pele quase regenerada, mas o jovem psiquiatra não desconfia disso. Kyle não compreende que a atraente mulher é a monstruosidade que consumiu o homem da navalha, e não entende o risco. Julia consegue acalmá-lo, e diz que também "não sabe" se a criatura se encontra por ali. Obviamente, Kyle não pensa muito a respeito da estranha clandestina. Talvez pelo seu ponto de vista, a visitante lhe tenha parecido uma secretária pessoal, ou mesmo uma amante do discreto chefe. Kyle entra no sótão, e se depara com a brutal cena de corpos sugados e secos, cascas penduradas pelos pulsos, por todos os lados. Assim que entra, Julia o segue e fecha a porta para se ver a sós com o visitante. Somente quando se dá pelo barulho da porta e compreende que está sozinho no sótão com a estranha, é que ele entende o ardil. Julia aproxima-se e parece intentar confortá-lo. Ela abre os braços para o médico, oferecendo consolo, e ele o acata. Kyle não enxerga a parte superior das costas de Julia, que pelo ponto de vista da câmera está ensanguentada: ali, a pele não foi remendada. Uma vez nos braços de Julia, tudo acontece rapidamente. Ela escolhe não perder tempo, e já para incapacitá-lo, insere os dedos na nuca do jovem psiquiatra, um método bastante similar ao usado para imobilizar e drenar a vítima no colchão (no filme anterior, vemos Frank usar a mesma técnica em pelo menos duas cenas). Julia segue a traição beijando-o apaixonadamente, o que serve para sufocar os gritos de dor. No andar inferior, no escritório de Channard, Kirsty põe as mãos em um álbum de recortes, recheado de esboços de diferentes configurações do lamento, e um retrato em preto e branco muito antigo de quem parece ser um altivo capitão do império britânico, na época da Primeira Grande Guerra. Ela vê a semelhança entre o elegante e imponente estranho e o Cabeça de Pregos, o cenobita líder do quarteto que a aterrorizou no primeiro filme. Enquanto Kirsty examina as evidências, continua alheia ao lento e sofrido drama a se desenrolar no sótão, Kyle sendo morto por Julia. A câmera passeia em torno do casal, e nos revela que as costas de Julia agora estão quase regeneradas nas bordas, a casca crescendo sobre os músculos. Kyle está incapacitado e bastante ferido, pondo sangue pelo nariz e pelos ouvidos, um caroço enorme dependurado do pescoço, provavelmente um gânglio podre. Ele não consegue reagir ou escapar, Julia é muito mais forte, e está matando-o pelo beijo, drenando seus nutrientes para completar a cicatrização. Durante o processo, há um som horroroso semelhante à sucção de um líquido viscoso, pontuado por gemidos de protesto e dor. Tendo drenado o possível do organismo do médico, Julia finalmente o solta, e Kyle desliza vagarosamente ao chão, tendo perdido os sentidos. Com o estampido provocado pela queda do corpo pesado contra o assoalho, Kirsty recorda-se do companheiro, e chama pelo seu nome. Como não há resposta, deixa o álbum para investigar.

Kirsty encontra a fileira de cadáveres amarrados e, mais à frente, o corpo de Kyle, em avançada decomposição. Julia aparece para a enteada. Há um princípio de confronto que não leva a lugar algum para a moça, pois a madrasta a derrota com um tapa que a põe para dormir. Neste ínterim, Channard retorna à sua casa, acompanhado de Tiffany. A ideia de Channard gira em torno de se servir do incomum talento da menina autista para a correta solução da configuração do lamento, de modo a abrir o cisma que os levará à dimensão de Leviatã, o "Deus da carne, da fome e do desejo", nos termos da própria Julia. Ela ainda alerta que há tempo de desistir, caso ele não se sinta emocionalmente pronto para tão profunda experiência, mas Channard lhe assegura que por toda a vida desejou explorar sensações e prazeres que pelos outros jamais seriam conhecidos. O psiquiatra explica a Julia que entende os riscos envolvidos em tamanho passo, e afaga o rosto da amante com candura. Tiffany põe as mãos na caixa e seus dedos começam a passear habilidosamente sobre a superfície laqueada. A cada movimento acertado dos polegares, a sala parece responder com vibrações de energia, prestes a liberar a passagem para os cenobitas. Subitamente, a invocação tem sucesso, e os limites entre nosso mundo e o da realidade dos cenobitas se confundem, mesclando-se. As paredes se abrem e os cenobitas fazem a transição. Para mais além, há o cinzento e infinito labirinto, uma espécie de coliseu frio e sombrio sobre o qual reina Leviatã, um Deus cuja forma é a de um gigantesco paralelepípedo em constante estado de suspensão e giro sobre o próprio eixo. Quando a cenobita fêmea ergue a faca para trucidar Tiffany, o Cabeça de Pregos surge e interfere. "Não são mãos que nos chamam, e sim desejo", ele contemporiza, referindo-se a Julia e Channard, ambos os verdadeiros responsáveis pela invocação, que já adentraram no labirinto para exploração. Deixada em paz pelos cenobitas, Tiffanny também atravessa o portal. Entra em uma versão pervertida de parque de diversões, com estranhas maluquices saídas de uma "bad trip" de ácido, entre elas um bebê gigantesco que costura a própria boca. Nos espelhos mágicos, enxerga distintos momentos de sua vida pretérita, até então bloqueados pela memória. Quando esteve no hospital psiquiátrico pela primeira vez, ela assistiu a Channard dando cabo da mãe para se apoderar de sua pessoa e assumir sua tutela, justamente para, anos depois, fazer uso de seu dom quando a oportunidade para atravessar o portal finalmente se assomasse.

No sótão, Kirsty lentamente recupera os sentidos, e percebe que a passagem entre os dois mundos foi escancarada. Percorrendo os corredores do labirinto, acaba reencontrando os cenobitas. Kirsty explica ao Cabeça de Pregos que está atrás do pai, mas este lhe responde que Larry não se encontra ali. Cabeça de Pregos avisa que sua paciência se esgotou, e que o que realmente deseja é provar sua carne, porém como no labirinto terão a eternidade para "brincar", incentiva a visitante a explorar o lugar um pouco mais. Enquanto isso, Julia e Channard caminham por uma das incontáveis pontes sobre o emaranhado de túneis. O psiquiatra conclui que não estava psicologicamente preparado para revelações tão poderosas, e começa a entrar em pânico. Julia diz que aquela é uma viagem só de ida, lembrando-o de que quando lhe perguntara se tinha certeza do que queria, ele respondera afirmativamente. Quando um dos fachos de luz emitidos pela onipresente forma geométrica o atinge em cheio na cara, Channard é invadido por horrorosas recordações de sua adolescência, que nos mostram que desde cedo vinha alimentando uma obsessão por teosofia e ocultismo. Julia o conduz a uma câmara de transformação, e antes que ele possa fugir, é aprisionado por uma parafernália de tentáculos. Ele será transformado em cenobita.

Kirsty reencontra Tiffany, e explica à menina que somente pelo trabalho em equipe conseguirão sair vivas do lugar. As duas partem labirinto adentro em busca do pai. O que encontram é uma passagem que as leva a uma "cela individual", um espaço emblemático do inferno particular de Frank. O tio de Kirsty admite que não fora o pai quem lhe pedira socorro nos sonhos, mas o próprio Frank, que o fizera para atraí-la ao labirinto. Frank habita uma morada composta por fornos crematórios adornados por lençóis brancos que se movem sinuosamente, revelando as formas das costas atraentes de mulheres no ato do sexo. Uma vez que os lençóis são puxados, todavia, não há nada ali. É o castigo de Frank: ele, que sempre procurara prazeres sem limites e em razão do hedonismo fora parar no labirinto, está sentenciado a passar a eternidade desejando amantes para satisfazer a libido, tendo apenas fantasmas para lhe fazer companhia. No meio da comoção, Julia chega à morada de Frank e arranca o coração do amante, uma vingança pelo seu assassinato no filme anterior. As duas meninas aproveitam o reencontro dos amantes para fugir.

Elas se metem em um túnel de vento e por pouco não perdem o equilíbrio. Julia aparece um pouco atrás, também se segurando como pode às paredes para não ser arrebatada pela corrente. A inocente Tiffany vê que Julia está a um sopro de ser arrastada e se apieda. Estende a mão para a vilã, sob os protestos de Kirsty. A moça suplica para que a amiga não lhe dê ouvidos. Julia se segura a Tiffany, porém as costas, ainda não firmemente coladas após a drenagem de Kyle, rasgam, como se um zíper de vestido tivesse sido puxado. Aos berros, Julia tem o corpo extirpado da casca que foi a pele, engolida pelo túnel de vento. As meninas desbravam os túneis até finalmente encontrarem o caminho que as leva de volta ao mundo. No hospital, descobrem que o portal entre as duas realidades não foi selado. As bizarrices da dimensão de Leviatã "resvalaram" para o lado de cá. Aventurando-se pelo hospital psiquiátrico, as meninas encontram os pacientes massacrados. Subitamente, Dr. Channard, agora renascido como um poderoso cenobita, atravessa majestosamente as cortinas da janela do jardim principal, suspenso por um perene e enorme tentáculo preso ao crânio, triunfante no uso dos novos poderes. Kirsty conclui que para selarem o portal, precisarão regressar ao labirinto e usar a configuração do lamento para "fechar" o Leviatã.

Quando retornam ao labirinto, as meninas dão com o quarteto de cenobitas liderado por Cabeça de Pregos, que reafirma o interesse pelos seus corpos e não por habilidades de barganha. Kirsty usa como trunfo a fotografia do coronel do império britânico, colhida no álbum de Channard. Ela pede a Cabeça de Pregos para escutá-la uma última vez, e o cenobita concorda. Kirsty repassa a fotografia e o Cabeça de Pregos pergunta se se trata de um outro fugitivo do quarteto, talvez alguém como Frank. A moça explica que a pessoa na foto é o próprio Cabeça de Pregos. O cenobita reage com confusão, pego de surpresa. Kirsty lhe conta que o homem se chama Elliot Spencer, capitão condecorado do império britânico. Por alguma razão, a caixa chegara às mãos daquele homem, Spencer, após a carnificina da guerra. Abri-la foi o ato que o condenara, e a partir do qual deixara a humanidade para trás, para se tornar no que era hoje. Ela insiste que aquele homem da foto e Cabeça de Pregos são a mesma pessoa. A cenobita fêmea se cansa da história, e ergue a faca, mas Cabeça de Pregos a impede de machucá-las. Ele murmura pesarosamente que consegue se recordar. Kirsty se dirige aos demais, implorando para que se esforcem para lembrar. Pelas expressões compungidas nas suas caras, os cenobitas parecem acatar momentaneamente a própria humanidade, e abaixam as armas. Channard surge em meio a escuridão para finalmente arrebatar as meninas, mas então o quarteto, que acaba de se recordar de suas origens, passa para o lado do Bem. Em um discreto e comovente momento, Kirsty troca sorrisos de gratidão com Cabeça de Pregos, que parece satisfeito por ter redescoberto sua verdadeira natureza. Os cenobitas se redimem, enfrentando o poderoso Channard e dando às meninas tempo para chegarem à ponte para terminar de anular Leviatã com a configuração do lamento. Enfraquecidos pela revelação de seus passados, os cenobitas não são páreos para habilidades do inimigo, que os mata facilmente.

O tentáculo preso à cabeça confere a Channard autonomia de voo acima do labirinto. Sobre a ponte, bem diante de Leviatã, Channard aterroriza Tiffany com tentáculos brotando das palmas das mãos. Ele a conduz a uma armadilha, à mesma câmara de transformação onde se tornara cenobita. Quando se põe a um passo da câmara, uma figura surge e segura a menina por trás. Trata-se de Julia. Bastante feliz por revê-la, Channard esquece a garota, e os dois trocam um beijo apaixonado. Julia põe as mãos sobre os ombros de Tiffany e a força a se abaixar. O que Julia está tentando fazer é tirá-la do campo de visão da criatura para salvá-la.

Julia distrai o monstro, e Tiffany recupera a configuração do lamento. Eficazmente manipulada, a caixinha começa a emitir raios que surtem efeito sobre a forma geométrica. Leviatã começa a se desmontar em giros e a perder o controle sobre seu próprio universo. Assustado, Channard vence a inércia causada pela sedução de Julia, e volta a focar a atenção em Tiffany. Channard não quer perder tempo com distrações, e parte para o ataque final. Arremessando os tentáculos contra os pés da menina, o monstro erra o golpe e as lâminas acabam prendendo-se na ponte. Sem controle, Leviatã puxa a tromba conectada à cabeça de Channard, que a seu turno vê-se preso à ponte pelos tentáculos fincados no chão. A força fenomenal do paralelepípedo em suspensão acaba por alavancar a tromba para cima, levando consigo a parte superior da cabeça de Channard.

O corpo de Channard despenca no abismo. Terrificada com a espetacular visão, Tiffany perde o equilíbrio e, por pouco, não cai junto. Ela não conseguirá se segurar por muito tempo. Tudo estaria perdido, não fosse por Julia. A vilã surge na beirada e oferece a mão. Tiffany hesita, mas escolhe aceitar a mão. Julia começa a puxá-la para cima, mas então, na altura do ombro, a pele parece se destacar, e começa a deslizar sobre os músculos. Julia completara o restante da regeneração ao esvaziar Kyle, mas as feridas não se moldaram perfeitamente. Por um momento, a salvação parece impossível, mas Julia consegue terminar de puxá-la com o braço bom. Acuada, Tiffany não consegue entender por que a vilã se esforçou tanto para salvar sua vida, porém Kirsty arranca o rosto de Julia: não fora Julia quem a salvara, e sim Kirsty, que vestira a pele da madrasta para enganar Channard. As duas se abraçam, vitoriosas. Agora que Leviatã se meteu em um processo de autodestruição, as meninas precisam correr para chegarem a tempo na fenda que culmina na passagem para o mundo real. No último segundo, Kirsty e Tiffany conseguem atravessar o portal, e o cisma é definitivamente encerrado, separando as duas dimensões. Kirsty e Tiffany partem juntas pelo corredor do amplo e geométrico jardim do hospital psiquiátrico, deixando o assombroso hospício para trás, após a aventura de suas vidas. O hospital é fechado, e a casa de Channard, cenário de tantos homicídios, interditada. Em um dos quartos do lugar, porém, ainda resta o colchão por onde Julia voltou, e pelo qual, um dia, poderá ressurgir.

Essa fantástica sequência de 1988 foi um feito monumental: ela deu prosseguimento a um dos filmes de horror mais importantes do século XX, "Hellraiser", e, respeitando as quatro linhas traçadas pelo antecessor, levou a estória a uma arrojada direção, ampliando a mitologia da qual o primeiro oferece somente um vislumbre. Enquanto grandes clássicos se viram em dificuldade quando se tentou dar continuidade à saga, "Hellraiser" teve, na sua continuação imediata, o melhor representante do espírito e das intenções de Clive Barker, o enfant terrible britânico que, com muita folga, foi um dos cinco melhores escritores do século passado. Nenhum outro autor chegou perto do tipo de horror sobre o qual o sr. Barker escreveu tão bem, justamente por guardar tão íntima relação com as experiências de vida. Barker escreveu o livro "The Hellbound Heart" e, insatisfeito com versões cinematográficas de suas estórias (mais especificamente dois contos da coletânea "Books of Blood"), resolveu que, no caso de "The Hellbound Heart", encarregar-se-ia de transpor os conceitos da obra literária para a tela". O resultado foi "Hellraiser", um dos filmes mais influentes do gênero, cujo impacto deixou um frutífero legado, lamentavelmente desgastado em razão da incapacidade de outros artistas e criadores de conteúdo ao lidarem com um material tão volátil e à frente de seu tempo. Dentre tantas sequências, pode-se seguramente afirmar que "Hellraiser 2" foi a única obediente aos cânones das ideias de Barker. Ao passo que a série foi se tornando algo distinto com o passar do tempo, as duas primeiras produções, rodadas na Inglaterra, preservaram as difíceis, intrincadas visões de Clive Barker sobre desejos, amores não correspondidos, sofrimento psicológico, a busca por algo para além da mundana existência terrena e, finalmente, prazer pela dor.

Como costumava ocorrer com as continuações de filmes nos anos 80, "Hellraiser 2" abre com uma montagem dos principais momentos do filme anterior, para aqueles que não o viram. O recurso funciona, pois o segmento estabelece a força de caráter e o passado de determinados personagens, a ponto de não haver uma impressão de descontinuidade para quem será apresentado à saga a partir do segundo filme. Conhecer o filme original de Barker, entretanto, seria imprescindível, assim como me parece razoável ler e estudar a fonte literária, "The Hellbound Heart". Hoje, enquanto escrevo a resenha, digna de nota é a editora Darkside, pois foi pelo refinado faro de seus editores que as principais obras de Barker ganharam vida nova no mercado editorial brasileiro. Pela Darkside, os senhores encontrarão os dois primeiros volumes da coletânea "Livros de Sangue" e "The Hellbound Heart", lançado sob o título "Hellraiser: Renascido do Inferno". Curto e de fácil leitura, eu recomendaria a análise da obra, e somente depois a experiência cinematográfica: essa forma de conhecer o material deixará a experiência completa e proveitosa. Foi no romance onde Barker nos apresentou a ideia do cubo, a "configuração do lamento", um dispositivo por meio do qual, observadas as demandas de circunstância e ritual, seria possível ao indivíduo responsável pela manipulação a abertura momentânea de uma dimensão de prazeres sensoriais desconhecidos pela humanidade. Frank foi o homem responsável pelo feito, um aventureiro descrito como um hedonista dedicado unicamente a satisfazer sua sede por conhecimento. Na estória, Barker descreve como "foi em Dusseldorf, para onde contrabandeara um pouco de heroína, que tornou a ouvir falar da caixa de Lemarchand. Sua curiosidade voltou a ser aguçada, mas, desta vez, ele seguiu a história até a fonte. O nome do homem era Kircher, embora provavelmente ele tivesse mais uma dúzia de outros. Sim, o alemão podia confirmar a existência da caixa e, sim, podia dar um jeito para que Frank a tivesse. O preço? Pequenos favores aqui e ali. Nada excepcional. Frank fez os favores, lavou as mãos e exigiu o pagamento. Kircher dera instruções sobre qual era a melhor maneira de quebrar o selo do dispositivo de Lemarchand, instruções que em parte eram pragmáticas, em parte metafísicas. Ele disse que resolver o enigma era como viajar ou algo mais ou menos assim. Aparentemente, a caixa não era apenas o mapa da estrada, mas a própria estrada em si. Aquele novo vício o curou rapidamente das drogas e do álcool. Talvez houvessem outras maneiras de fazer o mundo se curvar e enquadrar no formato dos seus sonhos. Ele voltou para a casa na Lodovico Street, para a casa vazia onde, agora, se encontrava prisioneiro por trás das paredes, e se preparou - conforme Kircher detalhara - para o desafio de resolver a Configuração de Lemarchand. Ele nunca estivera tão abstêmio na vida, nem tão focado num só objetivo. Nos dias que antecederam o massacre da caixa, ele levou uma vida que teria feito inveja a um santo, focando todas as energias na cerimônia por vir. Ele fora arrogante na forma com que negociara com a Ordem de Gash, percebia isso agora; mas havia em todos os lugares - naquele mundo e fora dele - forças que encorajaram tal arrogância, porque eles barganhavam com ela. Aquilo por si só não o teria desfeito. Não, seu erro de verdade tinha sido a ingenuidade de acreditar que a sua definição de prazer era a mesma dos Cenobitas. Da forma como foi, eles trouxeram sofrimento incalculável. Eles o inundaram com tanta sensualidade que sua mente oscilou entre a loucura, então, o iniciaram em experiências que faziam seus nervos convulsionarem só de lembrar. Eles chamavam aquilo de prazer e, talvez, estivessem falando sério. Talvez, não. Era impossível de saber ao certo em se tratando deles, que eram tão irremediavelmente ambíguos. Eles não reconheciam os princípios de recompensa e punição pelos quais Frank esperava obter algum respiro das torturas, nem se sentiam tocados pelos apelos dele por misericórdia. Ele tentara aquilo, durante as semanas e meses que separavam a resolução da caixa do dia de hoje. Não havia compaixão daquele lado da Cisão; havia apenas o pranto e as gargalhadas. Às vezes, lágrimas de alegria (por uma hora sem pavor, ou até o tempo de um respiro), lágrimas que vinham como um paradoxo diante de um novo horror, elaborado pelo Engenheiro para gerar aflição. Mas havia ainda outra sofisticação na tortura, concebida por uma mente que compreendia totalmente a natureza do sofrimento. Os prisioneiros eram capazes de ver o mundo onde outrora viveram. Seus locais de descanso - quando não estavam submetidos ao prazer - permitiam ver as próprias locações onde no passado tinham trabalhado na Configuração que os levara até ali. No caso de Frank, no quarto do andar de cima do número 55 da Lodovico Street. Durante a maior parte do ano, tinha sido uma vista escura: ninguém havia entrado na casa. Então, eles chegaram. Rory e a adorável Julia. E a esperança retornou...".

O trecho destacado de "The Hellbound Heart", ilustra o destino de Frank nas mãos dos cenobitas, o que põe em movimento a engrenagem da trama, pois mudam-se para a casa o irmão Rory e a esposa Julia, e um segredo sórdido entre Frank e Julia precipita os explosivos eventos que trarão os cenobitas no seu encalço. Estabelece-se, desde o início, o fato de Julia sentir-se aprisionada; a mudança para a casa apenas piora o azedume, afinal se ela já se sente dividida por ter se casado com um homem a quem não ama mais, habitar a propriedade reacende recordações do cunhado Frank, verdadeiro motivo de seu luto. No começo, na época em que nutrira afeto pelo esposo, ficara fascinada com os relatos de Rory sobre a "ovelha negra". Ao invés de antipatizar-se com a sua pessoa, as histórias acabaram por instilar em seu ser uma esquisita curiosidade pelo rapaz. A dois dias do casamento, Frank apareceu na porta de casa para se apresentar e conhecer a noiva. A atração, forte demais para se resistir, verteu-se em um encontro sexual intenso e escuso marcado por toda a violência e a tristeza de um estupro, conforme escreve Barker. Depois do sexo, Frank partiu sem informar o paradeiro, deixando o coração de Julia em pedaços. Ela nunca mais o esqueceu, e o casamento, que já começara errado, seguiu fenecendo, numa anticlimática passagem de anos que levara consigo a vivacidade, a parte da mulher adúltera desejosa de uma grande aventura, um grande amor, antes que o tempo tivesse dado cabo de seu auge físico e poder de barganha. Depois que o casal regressa para a propriedade, Frank, cujo destino permanece um mistério para a família, enxerga uma oportunidade de fugir do jugo dos cenobitas. A chance perfeita se assoma quando o irmão se corta durante a mudança, espirrando sangue sobre as tábuas do sótão onde Frank fora trucidado pelas criaturas. O material lhe dá forças para ensaiar uma aparição à Julia, em uma das visitas da cunhada ao sótão. Frank consegue refrear o horror inicial da amante, e se identifica. Custa a ela associar a monstruosidade à pessoa de Frank, mas assim que entende o ocorrido, ela se voluntaria a ajudá-lo, seduzindo homens e os levando ao sótão sob o pretexto de sexo, apenas para matá-los e fornecer os corpos ao amante. Cegamente apaixonada, ela vira uma assassina, enquanto o marido de nada suspeita. Quando a melhor amiga de Rory, Kirsty, passa a suspeitar de algo sinistro, a trama vira uma corrida contra o tempo, pois Frank sabe que, cedo ou tarde, os cenobitas darão pela sua ausência, e não medirão esforços para capturá-lo de volta à sua dimensão de dor e sofrimento.

A adaptação cinematográfica modifica certos elementos da fonte literária; entretanto, o miolo permanece sincero aos conceitos de Barker. Quem começar a análise pelo livro e depois partir para o filme notará a principal alteração: no livro, a personagem Kirsty é uma colega de trabalho que, por Rory, nutre um amor não correspondido; no filme, trata-se da filha do primeiro casamento de Larry (que, aqui, não se chama Rory). A versão do cinema fez de Pinhead, o líder dos cenobitas, um ícone, cuja perturbadora imagem adornou pôsteres ao redor do mundo; todavia, na estória, o personagem é descrito como uma figura feminina (sua voz "a de uma garota excitada"). A cena de abertura, na obra escrita, revolve a invocação dos cenobitas por Frank, que àquela altura supõe, erroneamente, que os "prazeres sem limites" conferem com as idealizações da sua libido. Dadas as limitações técnicas, Barker, como diretor, deparou-se com dificuldades para trazer à vida sua imaginação fértil, motivo pelo qual se compreende sua opção por filmar o primeiro encontro de Frank com os cenobitas sob um ponto de vista mais misterioso e discreto. Ainda assim, é uma sequência poderosa, com ganchos surgindo da caixa para despedaçá-lo. No frigir dos ovos, o autor precisou condensar, em menos de um minuto, aquilo que, no livro, dura muitas páginas. O sr. Barker descreve o esforço de Frank para montar a configuração e o encontro: "Encorajado pelo sucesso, Frank continuou a trabalhar na caixa fervorosamente, encontrando com rapidez novos alinhamentos das aberturas estriadas e cavilhas lubrificadas, as quais, por sua vez, revelavam ainda mais meandros. E, a cada nova solução - a cada meia torção ou puxada - outro elemento melódico era trazido em cena, de modo que o tom era contraposto e desenvolvido, até a tônica inicial se perder em meio à ornamentação. A certa altura dos esforços dele, o sino começara a tocar - um dobre constante e sombrio. Ele não escutou, ao menos, não conscientemente. Mas, quando o enigma estava quase concluído - as entranhas espelhadas da caixa desnudadas - ele percebeu que seu estômago se agitara tão violentamente ao som do sino, que este poderia estar tocando por metade da vida. Frank olhou para seu trabalho. Por alguns momentos, supôs que o barulho estivesse vindo de algum lugar na rua, lá fora, mas dispensou a proposição rapidamente. Já era quase meia-noite quando começara a mexer na caixa do fabricante de pássaros; muitas horas haviam se passado desde então - horas que ele nem ao menos se lembraria de terem transcorrido, se não fosse pela evidência marcada em seu relógio. Não havia igreja na cidade, por mais desesperada que estivesse por fiéis, que tocaria um sino de convocação àquela hora. Não. O som vinha de um local bem mais distante, atravessando a mesma porta (embora invisível) que a caixa milagrosa de Lemarchand fora criada para abrir. Tudo o que Kircher, que lhe vendera a caixa, prometeu, era verdade! Ele estava no limiar de um novo mundo, uma província infinitamente distante do quarto onde se sentava. Infinitamente distante, e de repente tão próxima. O pensamento fez sua respiração acelerar. Ele antecipara aquele momento com enorme sutileza, planejando aquele despedaçar do véu com toda a sagacidade que possuía. Em poucos momentos, eles estariam ali - aqueles que Kircher chamou de Cenobitas, teólogos da Ordem de Gash. Trazidos dos seus experimentos nos recessos mais altos do prazer para expor suas mentes eternas a um mundo de chuva e fracasso. Ele tinha trabalhado incessantemente na semana anterior na preparação do quarto para eles. As tábuas nuas do assoalho haviam sido meticulosamente esfregadas e cobertas de pétalas. Na parede a oeste ele montara uma espécie de altar para eles, decorando com o tipo de oferendas apaziguadoras que Kircher assegurara que estimularia o lado bom deles: ossos, bombons, agulhas. Um jarro com sua urina - fruto de sete dias de coleta - ficava à esquerda do altar, caso eles exigissem algum gesto espontâneo de auto profanação. À direita, um prato com cabeças de pombas, o qual Kircher também o aconselhou a ter à mão. Ele observara todas as partes do ritual de invocação. Nenhum cardeal, ávido pelas sandálias do pescador, poderia ter sido mais diligente. Mas, agora, conforme o som do sino tornava-se mais alto, sufocando a caixa de música, ele teve medo. 'Tarde demais', murmurou para si próprio, esperando reprimir o pavor crescente. O dispositivo de Lemarchand estava desnudo; o truque final havia sido desvendado. Não havia tempo para evasivas ou arrependimentos. Além disso, ele não tinha arriscado a vida e a sanidade para tornar aquela descoberta possível? Naquele instante, a porta se abria para prazeres que apenas um punhado de humanos sabia da existência e menos ainda tinham provado - prazeres que redefiniriam os parâmetros da sensação, que o libertariam do círculo maçando do desejo, sedução e desapontamento que, desde o final da adolescência, o obstinava. Ele seria transformado pelo conhecimento, não? Nenhum homem poderia experimentar a profundidade de tal sentimento e permanecer imutável. A lâmpada nua no centro do quarto esmaeceu e brilhou, brilhou e esmaeceu novamente. Ela adotara o ritmo do sino, fulgurando em seu máximo a cada vez. Nos intervalos entre a luz e as trevas, o quarto se tornava pleno; era como se o mundo que ele ocupara durante vinte e nove anos tivesse deixado de existir. Então, o sino soava de novo e a lâmpada queimava tão forte que parecia que jamais esmoreceria e, por poucos e preciosos segundos, ele se via de pé num local familiar, com uma porta que levava para fora, para a rua e uma janela pela qual - se ele tivesse a vontade (ou a força) de puxar as persianas - poderia obter um vislumbre da alvorada. A cada ocasião, a luz da lâmpada revelava mais. Por meio dela, ele viu a parede leste esfolar; viu a solidez dos tijolos se afrouxar momentaneamente e explodir; viu, naquele mesmo instante, o lugar além do quarto de onde o sino tocava. Seria um mundo de pássaros? Enormes pássaros negros voando numa tempestade eterna? isso foi tudo que os seus sentidos puderam discernir da província de onde os hierofantes chegavam; uma planície em confusão, repleta de coisas frágeis e quebradiças que ascendiam, caíam e preenchiam novamente o ar escuro com seu pavor. Então, a parede voltou a ser sólida e o sino ficou em silêncio. A lâmpada apagou. Desta vez, sem esperança de voltar a acender. Ele ficou nas trevas, sem nada dizer. Mesmo se pudesse se lembrar das palavras de boas-vindas que tinha preparado, sua língua não as teria dito. Ela estava brincando de morta na boca. Então, a luz. Ela veio deles: do quarteto de Cenobitas que, agora, com a parede selada ao fundo, ocupava o cômodo. Uma fosforescência espasmódica, como o brilho de peixes das profundezas: azul, frio e sem encanto. Ela golpeou Frank, que jamais imaginara como seles se pareceriam. Sua imaginação, embora fértil quando o assunto era logro e trapaça, era pobre naquele quesito. A habilidade de vislumbrar aquelas eminências estava além dele, portanto, não havia nem ao menos tentado. Por que, então, ele estava tão aflito de observá-los? Seriam as cicatrizes que cobriam cada polegada dos corpos deles, a carne cosmeticamente perfurada, cortada e infibulada, sendo a seguir coberta de cinzas? Seria o odor de baunilha que eles traziam consigo, a doçura que mal conseguia disfarçar o fedor que havia por detrás? Ou seria que, conforme a luz aumentava e ele os examinava mais atentamente, ele não viu nada de alegria ou mesmo de humanidade em seus rostos mutilados, apenas desespero e um apetite que fazia suas entranhas se retorcerem? 'Que cidade é esta?' - um dos quatro perguntou. Frank teve dificuldade em adivinhar o gênero do falante com alguma segurança. Suas roupas, algumas das quais estavam costuradas à pele, escondiam as partes privadas e não havia nada na voz ou nas feições intencionalmente desfiguradas que oferecesse a menor pista. Quando falou, os ganchos que transfixavam as pálpebras dos olhos - unidos por um intricado sistema de correntes que atravessavam carne e ossos a ganchos similares no lábio inferior - balançaram ao movimento, expondo a carne lustrosa sob eles. 'Eu fiz uma pergunta' - ele disse. Frank não respondeu. O nome da cidade era a última coisa que tinha em mente. 'Você entendeu?' - a figura ao lado do primeiro falante questionou. Sua voz, diferente da do companheiro, era leve e arejada - a voz de uma garota excitada. Cada centímetro da cabeça era tatuado com um intrincado padrão e, em cada intersecção de eixos verticais e horizontais, havia um alfinete cravejado, enterrado até o osso. Sua língua era decorada de forma parecida. 'Você ao menos sabe quem somos?' - perguntou. 'Sim' - Frank disse, enfim. - 'Eu sei'. Claro que ele sabia; ele e Kircher passaram longas noites conversando sobre insinuações aprendidas nos diários de Bolingbroke e Gilles de Rais. Tudo que a humanidade sabia sobre a Ordem de Gash, ele sabia. Não obstante... ele esperava algo diferente. Esperava algum sinal dos esplendores sem fim que eles tinham acessado. Ele imaginara que, ao menos, trariam consigo mulheres; mulheres untadas, mulheres defraudadas, mulheres depiladas e musculosas de tanto executar o ato do amor; os lábios perfumados, as coxas ansiosas para se abrirem, as nádegas grandes, da forma como ele gostava. Ele esperava suspiros e corpos lânguidos espalhados pelo chão como um tapete vivo; esperava vadias virgens cujo cada orifício fosse seu para explorar e cujas habilidades o levariam - para além, para além - a êxtases jamais sonhados. Ele se esqueceria do mundo nos braços delas. Seria exaltado pela concupiscência, em vez de desprezado. Mas, não. Nenhuma mulher, nenhum suspiro. Somente aquelas coisas assexuadas, com a ele corrugada. Agora, o terceiro falou. Suas feições eram tão terrivelmente escarificadas - as feridas nutridas até incharem - que os olhos eram invisíveis e as palavras corrompidas pela desfiguração da boca. 'O que você quer?' - ele perguntou. Frank examinou este questionador com mais confiança do que fizera aos outros dois. Seu medo diminuía a cada segundo que passava. As lembranças do local aterrador além da parede já estavam ficando para trás. Ele fora deixado com aqueles decadentes decrépitos, com seu fedor e aguda deformidade, com sua evidente fragilidade. A única coisa que tinha a temer era a náusea. 'Kircher me disse que haveria cinco de vocês' - disse Frank. 'O Engenheiro virá se o momento merecer' - foi a resposta. - 'Agora, mais uma vez, perguntamos: O que você quer?'. Por que ele não deveria responder de forma direta? 'Prazer' - replicou. - 'Kircher disse que vocês sabem sobre prazer'. 'Ah, nós sabemos' - afirmou o primeiro deles. - 'Tudo o que você sempre quis'. 'Mesmo?'. 'É claro, é claro' - a criatura o encarou com seus olhos demasiados nus. - 'O que você aspira?'. A questão, posta de modo tão aberto, o confundiu. Como ele poderia articular a natureza dos espectros que sua libido criara? Ele ainda procurava as palavras quando um deles falou: 'Este mundo... o desaponta?'. 'Bastante' - ele respondeu. 'Você não é o primeiro a se cansar das suas trivialidades' - foi a resposta. - 'Houve outros'. 'Não muitos' - o de rosto gradeado colocou. 'É verdade. Um punhado, no máximo. Mas poucos ousaram utilizar a Configuração de Lemarchand. Homens como você, famintos por novas possibilidades, que ouviram dizer que possuímos habilidades desconhecidas em seu mundo'. 'Eu esperava...' - começou Frank. 'Nós sabemos o que esperava' - respondeu o Cenobita. - 'Nós entendemos profundamente a natureza do seu frenesi. É totalmente familiar para nós'. Frank grunhiu: 'Então, sabe com o que sonhei. Pode suprir meus prazeres'. O rosto da coisa se contorceu, seus lábios ondulando; o sorriso de um babuíno: 'Não da forma como você compreende' - ele respondeu. Frank fez menção de interromper, mas a criatura ergueu a mão, silenciando-o. 'Há condições nas terminações nervosas do tipo que sua imaginação, por mais febril que seja, não é capaz de evocar'. '... é mesmo?'. 'Sim. Decerto. Sua depravação mais caprichosa é brinquedo de criança se comparada às experiências que oferecemos'. 'Você tomará parte delas?' - disse o segundo Cenobita. Frank olhou para as cicatrizes e ganchos. Sua língua voltou a ficar deficiente. 'Tomará parte?'. Lá fora, em algum lugar próximo dali, o mundo logo estaria despertando. Da janela de seu quarto, ele o observara acordar em rebuliço, dia após dias, para mais uma rodada de buscas infrutíferas. E ele sabia, sabia, que não havia restado nada lá fora capaz de excitá-lo. Nenhum ardor, somente esforço. Nenhuma paixão, somente a súbita luxúria e, então, uma indiferença tão repentina quanto. Ele dera as costas à tamanha insatisfação. Se, para fazê-lo, teria de interpretar os sinais que aquelas criaturas haviam trazido, então tal era o preço da sua ambição. Ele estava preparado para pagá-lo. 'Mostre-me' - disse Frank. 'Não há como voltar atrás. Você compreende isso?'. 'Mostre-me'". O recorte acima busca contextualizar a análise. Sem uma recapitulação do livro ou do primeiro filme, a análise ficaria incompleta, pois me reporto frequentemente a seus elementos. Se a estória e as ideias parecem complexas e intrincadas, deve ter sido ainda mais delicado para o time criativo achar um impulso sólido para "Hellraiser 2". O roteirista Peter Atkins começa de onde o primeiro filme deixara, minutos após o massacre na casa da Lodovico Street. Trabalhando em perfeita sintonia com o diretor Tony Randel, Atkins tomou uma direção inesperada. Enquanto o filme de Barker é um horror psicológico intimista passado numa claustrofóbica casa, o filme de Randel se assemelha a uma extravagante, febril e grandiosa ópera, como uma louca fantasia de Dario Argento e Ken Russell. O time não se conformou em receber a bola e seguir carregando; eles resolveram nos levar diretamente à dimensão dos cenobitas. E, como ponto de partida, renderam homenagem ao potencial de um hospital psiquiátrico como trampolim para a loucura. Poucos lugares gozam de uma atmosfera tão tétrica quanto hospícios. As locações garantem uma densa, pesada neblina que permeia a estória de começo a fim. Atkins respeitou o legado de Barker, mas ao ir um pouco além, deu ao filme algo de pessoal, criando, com detalhes, a realidade habitada pelos cenobitas. O inferno foi bem explorado nesta continuação, porém quando a terceira parte entrou em produção, no final do ano de 1991, a ideia foi descartada e nada mais se viu do labirinto. Curiosamente, quando se teve o insight de se retomar os cânones de "Hellraiser" via graphic novels, o labirinto e Leviatã voltaram a ocupar o centro da trama.

Christopher Young, o compositor da trilha do primeiro filme, retorna com um escore épico. Ao passo que a música de "Hellraiser" encantava pela tristeza gótica, para "Hellraiser 2", Young preferiu uma excitação extravagante. Visualmente, a cena de tirar o fôlego em que Julia e Channard adentram o labirinto e contemplam o giro de Leviatã pela primeira vez ganha muita potência, fruto da trilha de Young. Ele preparou uma suíte para cenas específicas, como na volta de Julia através do colchão, quando a batida assume um frenesi tribal e erótico. Independente das nuances, uma qualidade comum aos cenários é sua absoluta majestade. O trabalho de orquestra nos leva a crer na seriedade e compromisso envolvidos no ato de se contar essa inesquecível estória.

Décadas antes do surgimento do que veio a ser batizado de "New French Extreme", ou seja, "Novo Extremo Francês", "Hellraiser 2" deixou as pessoas estupefatas pela crueza e brutalidade da violência. O filme não é apenas violento, ele detém uma perversa malícia que beira o satânico. Se só pela soma de detalhes se erige algo único, o time criativo sabia o que fazia ao conceber as minúcias, desde as fotos emolduradas no gabinete da obsessão de Channard (onde se vê imagens de Aleister Crowley e recortes de títulos bizarros) à longa demora do processo de ressurreição de Julia. No documentário "Leviathan: The Story of Hellraiser and Hellbound: Hellraiser 2", o ator Oliver Smith compartilha com muita simpatia e bom humor suas reminiscências das filmagens. Ele esteve no primeiro filme, no papel de Frank ressuscitado sem pele, e foi escolhido pelo porte franzino, facilitador do processo de aplicação de prostéticos e maquiagem. Para "Hellraiser 2", escalaram-no para o papel do paciente psiquiátrico alucinado com insetos no corpo. Veterano de filmes e séries de TV britânicas onde sempre fazia pequenos papéis, Smith acostumou-se a se dar mal: ele já havia sido despachado em explosões, tiros, fatiado ao meio e todo o mais; entretanto, "Hellraiser 2" ofereceu uma novidade! Ele brinca, dizendo que ao chegar a casa após um dia inteiro de filmagem, anunciou alegremente para a família: "Ei, pessoal, adivinhem só o que me aconteceu no trabalho?! Eu fui comido por uma mulher! E eles: 'Foi nada!'. E eu: 'Fui, sim!'". Na cena, registra-se um brevíssimo, fundamental toque de mestre por parte do diretor Randel. Enquanto o brutal renascimento de Julia se desdobra, Channard observa o drama vestindo um olhar fascinado, até que em sua face se revela o susto, no instante em que um jato de sangue atinge sua cara. O detalhe, um improviso de Randel para o qual o ator não estava preparado, funciona eficientemente. Foi obtido com o uso de uma pistola d'água, usada pelo cineasta para atirar sangue falso. No roteiro de Atkins, a cena foi escrita como uma sequência visceral e gráfica, com Julia reaparecendo como uma massa amorfa acoplada às costas do homem esquizofrênico. Aos poucos, a forma e as curvas sinuosas de uma pessoa do sexo feminino vão se evidenciando, à medida em que o pobre homem tem seus nutrientes drenados. Atkins imagina o momento como uma perversa paródia de cópula. Do jeito que a cena foi filmada, a sequência continua quase tão devastadora e psicologicamente exasperante quanto o texto. A modelo sul-africana Deborah Joel dá um belíssimo desempenho, de expressão puramente corporal, e o embate dos dois colegas cria a terrível sensação de durar uma eternidade pela selvageria, ambos rolando agarrados pelo colchão melado de sangue, ele escapando, mas sendo pego pelos tornozelos e puxado de volta ao chão, ela reassumindo as costas da vítima e enfiando os dedos na nuca para lhe tirar os movimentos, ele gritando e agitando os braços em desespero... Em entrevista ao documentário, Cranham descreve sua impressão como a de "dois coelhos cujas peles foram arrancados, rolando agarrados e lutando". Em um lançamento em DVD de 2001, Ashley Laurence, Atkins e Randel assistiram ao filme juntos para a gravação de uma trilha de comentários, uma dos bônus do disco. Durante a cena do colchão, não obstante se note o bom humor e as brincadeiras entre os dois homens para amenizar a tensão, a voz abalada de Laurence denuncia o peso da violência, insuportável mesmo após tantos anos desde as filmagens. No primeiro lançamento do filme no Brasil, pela Paris Filmes, alguns segundos foram suprimidos, nominalmente um take onde vemos a mulher inserir os dedos na nuca do homem para paralisá-lo, e um outro, do ponto de vista de Kyle, que assiste à cena detrás das cortinas, quando vemos Julia abraçar sua vítima por trás, ambos no chão, ela investida no ato de sucção dos nutrientes na altura da nuca ferida, ele se debatendo e esperneando, sem conseguir se virar.

O documentário "Leviathan" traz uma outra lembrança paradoxalmente engraçada da cena. O ator William Hope conta que, na época, sua sogra visitava Londres com seu sobrinho pequeno e, sabendo que o tio trabalhava num filme, o menino amolou-o para que o levasse ao set. O ator realizou o desejo bem no dia no qual rodaram a cena do colchão: o garoto adorou a experiência; a sogra ficou chocada e embasbacada! A carreira de Hope gozava de cacife, em 1988, afinal, apenas dois anos antes, atuara em "Aliens, O Resgate", de James Cameron. Ele interpretava o inexperiente Tenente Gorman, em quem os soldados que descem à colônia exterminada infestada pelas criaturas não confiam. Gorman se redime com um heroico gesto de sacrifício no final da estória, mas foram o nervosismo e ineficácia do personagem os elementos que chamaram a atenção dos produtores de "Hellraiser 2" para convidarem-no para o semelhante papel de Kyle; tão despreparado e ingênuo quanto o Gorman de "Aliens". Kyle intenciona o bem, porém não compreende a gravidade da situação, e paga um preço caríssimo. Na época das filmagens, o ator revezava seu tempo entre peças de teatro em Londres e o trabalho no cinema. Assim que terminava a última apresentação da tarde, um carro o apanhava e o levava para o estúdio Pinewood, onde rodavam "Hellraiser 2". No set, fez amizade com o ator Ken Cranham, um pregando peça no outro, um modo de amenizar a enorme tensão, dada o desgaste das imagens violentíssimas filmadas dia após dia. Veterano e dono de uma eclética filmografia, Hope atuou, desde então, em uma impressionante gama de filmes e peças. Em "Hellraiser 2", desempenhou o papel de interesse romântico da heroína com a dose certa de caráter e bom mocismo. Seu personagem serve ao propósito de criar uma falsa impressão de segurança. Quando Julia o mata, por não termos esperado tal desfecho, o choque é ainda pior. A devastadora cena de sua morte muito deve aos atores em cena, à sensibilidade do diretor ao capturar a ação, e ao técnico de efeitos Geoff Portass, o homem por trás da prostética cuja função é a de retratar o processo de degradação de Kyle. Randel dirige o momento com maestria e poucos cortes; na verdade, opta por um só take de movimento de câmera para documentar o sofrimento do jovem médico, do instante no qual é pego até ser solto, quando basta a força da gravidade para levar sua casca ao chão. Portass criou uma prótese na forma de uma placa de borracha aderida ao lado do pescoço e começo do perfil de Hope, e o artifício comunica eficientemente a pletora de informações sobre o processo de nutrição em curso. No script, Atkins descreve a cena da seguinte forma: "Kyle olha ao redor. Todas as oito vítimas foram sugadas até a secura. Ele está cercado por carcaças. Seu rosto empalidece. Ele dá a impressão de que vai desmaiar. Ele assente, com a cabeça. Sua voz sai como um suspiro derrotado. 'Sim, sim, é terrível'. Julia atravessa rapidamente o sótão em sua direção. A face dela é a imagem da empatia. 'Oh, você parece terrível. Pobre menino. Venha cá...'. Enquanto fala, Julia abre os braços para ele. Kyle vê o conforto oferecido e vai em direção a ela. Ao se encontrarem, a câmera se move ao redor dos dois e vemos, pela primeira vez, que Julia ainda está incompleta; suas costas ainda estão em carne viva, os ossos da coluna vertebral claramente expostos. Os braços de ambos envolvem seus corpos bem no momento em que Julia termina de falar: 'Vem para a mamãe'. Assim que as mãos de Kyle tocam a carne grudenta e cheia de muco dos ombros dela, fica instantaneamente claro para ele o que ocorreu. Por um momento, ele congela de terror. Estabanado, ele retira os braços dela e joga a cabeça para trás. Mas Julia é muito forte agora e seu abraço não relaxa. A expressão de Kyle é uma mistura de terror e confusão ao encarar a bela face do monstro. Julia sorri para ele, um sorriso cheio de apetite e excitação. 'Qual é seu nome?'. Kyle mal pode falar, de tanto medo. 'Kyle...'. 'Eu sou Julia'. Ela ergueu uma mão das costas dele para a nuca, e pressiona o rosto dele em direção ao seu. Julia executa o momento exatamente como um beijo sensual e apaixonado, sua boca bem aberta, sua cabeça se movendo rítmica e sinuosamente. A reação de Kyle é um tanto diferente; seus braços sacodem de pânico (apesar de apenas a partir dos cotovelos - o abraço de Julia impede qualquer coisa além disso) e sua cabeça convulsiona para trás. A câmera se move ao redor do casal abraçado até se deter atrás de Julia. As costas de seu vestido, como sabemos, é extremamente baixa. À medida que o beijo prossegue, vemos a pele crescer sob o perfil do vestido até a base da espinha, fluindo até as extremidades se encontrarem e se complementarem perfeitamente no pescoço e ombros. Julia ficou completa. Enquanto esse processo acontece, Kyle está morrendo lenta e horrivelmente nos braços dela, sua energia vital sugada através de suas bocas abertas. Seu corpo, ao tempo em que ela está regenerada, está drenado, vazio e seco. Julia tira os braços do corpo de Kyle e dá um passo para trás, permitindo que a casca caia no chão. Julia lambe os lábios e olha para baixo, com afeto, para o cadáver. Ela sorri: 'Obrigada, Kyle'". No filme, o detalhe que subverte a cena vem do inesperado efeito sonoro de sucção e o tocante lamurio choroso do jovem. Por termos esperado certo protagonismo de sua parte, vê-lo reduzido a choros, impotente diante da situação, joga-nos ao encontro da intenção do diretor, a de nos questionarmos como as duas meninas farão para transpor obstáculos tão horrendos, à medida que seguem perdendo seus aliados.

Clare Higgins retorna no papel de Julia, e o diretor Tony Randel fala sobre a diferença entre seus desempenhos nos dois filmes. Ele explica que, no primeiro, ela teve de criar uma vilã, pois Julia vai do papel de mulher adúltera à homicida; em "Hellraiser 2", ela já surge como vilã completa. Embora figure como destaque nos materiais publicitários da época, e seu nome venha em primeiro lugar nos créditos, Clare Higgins assume uma posição coadjuvante. Ela só aparece após cerca de 40 minutos de projeção, o que lança as atrizes Ashley Laurence e Imogen Boorman como as reais protagonistas. Higgins recebeu elogios pela performance, tendo sido, inclusive, indicada ao Saturn Award do ano de 1990 como melhor atriz coadjuvante (ela perdeu para Sylvia Sidney, vencedora pelo trabalho em "Os Fantasmas se Divertem"). Veterana do teatro britânico, Higgins é uma das atrizes mais importantes da Inglaterra, verdadeiro tesouro nacional, e consta do panteão de nomes como o de Helen Mirren e Judy Dench. "Hellraiser" ocorreu "por acaso" na vida da atriz, que se eternizou pelo sinistro papel de Julia, porém jamais compreendeu o apelo do material: ela admite ojeriza a filmes de horror, e revela que nunca assistiu aos dois integralmente. Peter Atkins e Clive Barker consideraram fortemente construir uma franquia em torno de Julia, seria para esta direção a que as primeiras ideias de um "Hellraiser 3" levariam a saga; entretanto, depois de vocalizar a escolha por se afastar de filmes violentos, Higgins atirou um balde de água gelada no time criativo. Foi quando eles se inteiraram do impacto cultural advindo da elegante, macabra presença do Cabeça de Pregos, e ele virou o "novo monstro" para estampar pôsteres de continuações. Quando vi o filme pela primeira vez, foi em VHS, no começo dos anos 90, 1990 ou 1991. Eu era uma criança de dez anos de idade, e "Hellraiser 1&2" queimaram em minha memória uma imagem muito poderosa e ofuscante das personagens. Isso foi uma década antes do aparecimento da internet. Ao longo dos anos, enquanto crescia, via-me sempre retornando a aquele material tão volátil cuja inesquecível impressão fizera sulcos em meu imaginário. Olhando para trás, décadas mais tarde, percebo que o material refletia certa dissonância cognitiva minha, na época, ao observar, com olhos da infância, o indecifrável, distante mundo dos adultos. "Hellraiser" jamais foi, a meu ver, uma simples fantasia de ficção-científica. Ele tocava em temas muito reais e perturbadores, por mais que, a uma criança, escape-lhe o domínio de conceitos tão filosóficos e profundos. Algo no subconsciente me falava sobre a perversidade por trás de coisas como quando você vê a entrada dos cenobitas após a invocação da menina autista, e eles entram em cena por túneis recém-abertos, sob a batuta da trilha sonora bombástica de Christopher Young: assista à cena, e me diga se nas roupas, por exemplo, nas peças de couro, nos adornos apertados e nas lâminas como armas de escolha, você não consegue enxergar um peculiar tipo de crueldade... trata-se de uma malícia de natureza sexual, sadomasoquista e perigosa, por estender-se de uma filosofia. O conhecimento de Barker da natureza humana fazia de seu material um paiol em flerte com a explosão, pois sabia, em seu âmago, que era daquilo que as pessoas "não haviam visto" de que elas se recordavam. Os dois primeiros "Hellraiser", os únicos frutos da "filosofia", transcendem os parâmetros do horror ordinário, e expõem à luz uma amálgama de neuroses que elimina qualquer possibilidade de encerramento de discussão no que tange ao significado completo da obra. Ao se recordar do primeiro filme, no qual ela atuou em 1986, a atriz Ashley Laurence cita muitas cenas cuja essência só compreenderia mais tarde, como mulher adulta. Ela cita uma cena do filme de 87, na qual, tendo voltado com o marido para a casa onde Frank morara, Julia passa a vista por um maço de fotos encontradas no quarto do cunhado, e nas quais vê-lo na companhia de uma prostituta. Laurence fala que, na época, não entendia o intento de Barker ao escrever a cena; mais tarde, entretanto, soube ler perfeitamente a verdade por trás das nuances do desempenho da colega Clare Higgins. Na cena, ela tentava comunicar - e o fez perfeitamente - a tristeza de uma mulher cujo primor ficara para trás e, encarando o peso do tempo, enlutava-se ao, nas fotos, reconhecer o único homem por quem sentira amor, justamente aquele que a rejeitara tão cruelmente ao pôr seus prazeres acima de qualquer outro compromisso. O figurino e a caracterização de Julia, uma atração à parte, catapultam-na acima do abismo entre antes & depois. A mulher entristecida vira uma assassina implacável; a blusa e o terno executivo, as ombreiras estilo Joan Collins e a maquiagem funcionam como a "pintura de guerra", o contraste extravagante, revelador do ponto a partir do qual melancolia e abandono femininos chegam ao ponto de fervura, e precisam ser extravasados a marteladas na cabeça. Paradoxalmente, para uma artista cuja marca foi a de uma personagem tão icônica, Higgins encontrou seu nicho nos papéis mais dolorosos e introvertidos, como o da viúva dona do pensionato por quem um jovem Van Gogh vem a se apaixonar na premiada peça de teatro "Vincent in Brixton", ou o da sofrida esposa companheira do saudoso Brian Dennehy na aclamada montagem de "Death of a Salesman". Para os seus trabalhos artísticos, a maravilhosa atriz traz um pouco da bagagem de vida, já que de seu turbulento passado parece irradiar a melancolia que invoca para realizar desempenhos tão poderosos. Filha de professores, ela fugiu de casa na adolescência para se aventurar pelo mundo, uma aventura que culminou na gravidez inesperada aos dezessete anos, o que a levou a entregar a criança para a adoção. Nos anos seguintes, o tempo se encarregou de levá-la ao olimpo dos principais nomes do teatro britânico, porém, nem mesmo o clamor conseguia substituir o incomensurável vazio no peito, explicável pela ausência do filho de quem abrira mão décadas antes. A dor só foi dirimida ao rastreá-lo em 1995, àquela altura um homem adulto, com a sua própria vida, e casado. O reatamento da relação abriu novas perspectivas para ambos, que desde então seguiram alinhados. Quando assisti ao filme pela primeira vez, e por todos estes anos nos quais, não havendo internet, sabia tão pouco sobre ela, eu não poderia supor uma vida tão rica de acontecimentos por trás das duas performances que a galvanizaram na minha mente. Ela teve uma vida verdadeiramente fenomenal, repleta das surpresas e reviravoltas que nem mesmo Clive Barker seria capaz de conceber, por mais que, na fantasia, tenha escrito a personagem pela qual os connoisseurs se lembrariam imediatamente dela. A título de curiosidade, há alguns anos, descobri uma jovem atriz que é uma fac-símile da Clare Higgins, chamada Analeigh Tipton. Os olhos, o nariz e a estrutura facial são idênticos. Ambas lindas mulheres, em momentos diferentes da escala de barganha.

Ashley Laurence e Imogen Boorman encabeçam o elenco nos papéis centrais de Kirsty & Tiffany. Mais experiente e adulta, Laurence soa crível como heroína, bem coadjuvada pela estreante Imogen Boorman no papel da menina autista. As duas exibem fantástica química, e sua dinâmica nos faz pensar na relação de duas irmãs. Em "Hellraiser", Laurence dava uma interpretação de criança assustada; aqui, ela toma as rédeas do próprio destino, e desafia o inferno para "trancar" o Leviatã em definitivo. Cito as graphic novels desenvolvidas pela Boom! Studios, que ao imaginar sequências para "Hellraiser 2", trouxeram Kirsty & Tiffany, melhores amigas tantas décadas após a aventura no hospício. O trabalho da Boom! Studios é altamente recomendável. Com argumentos escritos pelo próprio Barker, temos um vislumbre das direções para onde o cinema poderia ter levado tão fantástica saga. No papel do vilão principal, Dr. Channard, Ken Cranham expressa o mesmo dissabor da amiga Clare Higgins no tocante ao gênero. Cranham trabalhava em uma peça com o ator Gary Oldman, quando os executivos o convidaram para viver o cenobita. Cranham conta como o colega Oldman sentiu uma pontinha de inveja, pois sempre lhe apetecera trabalhar em um filme assustador. Seu sonho se tornaria realidade poucos anos mais tarde, ao ser escalado para "Drácula de Bram Stoker", do diretor Francis Ford Coppola. O ator Cranham aceitou o papel de Channard pela mesma razão de Higgins: ambos eram amigos na vida real, e por mais que não pinçassem do roteiro o cabedal de dramas humanos que usualmente atrai atores shakespearianos a projetos, seria uma oportunidade de trabalharem juntos, vez que se gostavam muito. Cranham encarou com estoicismo as longas horas demandadas para a "transformação" em cenobita, e o sacrifício compensou, dada a longevidade de suas cenas apavorantes como o "filho preferido" do Leviatã. Em uníssono, elenco e equipe técnica jamais se esqueceriam do trabalho no famoso estúdio Pinewood, o "berço" dos grandiosos filmes de James Bond. Em 1988, dividiam o espaço com a equipe um outro filme, a do primeiro "Batman", de Tim Burton. A equipe de "Hellraiser 2" se lembra da empolgação dos membros, na hora do almoço, quando partilhavam o refeitório, e a apenas algumas mesas de onde se sentavam, podiam ver os astros Michael Keaton e Jack Nicholson em seu momento de descanso.

"Hellraiser 2" foi lançado no Natal de 1988, e fez uma boa soma nas bilheterias. A partir daquele momento, Clare Higgins se despediu do gênero, e os direitos autorais foram parar nas mãos dos americanos. O produtor Lawrence Kuppin comprou os direitos e comissionou Atkins para escrever o roteiro da terceira aventura. A seriedade e crueza dos filmes perderam espaço para uma desastrosa tentativa de adaptar a série ao gosto do "mainstream" e, em 1991, as filmagens de "Hellraiser 3" se iniciaram na Carolina do Norte. Lançado em 11 de setembro de 1992 nos Estados Unidos, "Hellraiser 3" recuperou financeiramente o investimento, mas a melancolia da ideia original restaria comprometida por décadas; a versão final pouco exibia da elegância dos antecessores, mais se aproximando dos clichês de "A Hora do Pesadelo", na época um fenômeno comercial. Algumas sequências problemáticas se seguiram, e, dentre tantos filmes, um ou dois se salvaram, o melhor deles "Hellraiser: Inferno", de 2000, estrelando Craig Sheffer. O fascínio dos dois primeiros filmes ficou apagado, e diante da menção de "Hellraiser", as pessoas pensavam nas continuações medíocres, alheias aos dois primeiros, duas obras primas esquecidas com o avançar dos anos. Em 2006, a tendência deixou de girar em torno da realização de continuações e assumiu um tom mais promissor, pois foi a partir daquele ano no qual se começou a se discutir seriamente a refilmagem.

Em 2007, a Dimension, detentora dos direitos autorais, aventava o diretor Jim Sonzero para o projeto, responsável pelo remake do clássico japonês "Kairo", intitulado "Pulse", mas nada de concreto adveio do encontro, que não a mera expressão de vontades. Naquele mesmo ano, dois cineastas franceses, Julien Maury & Alexandre Bustillo, haviam chamado a atenção por causa de um tenebroso, aterrorizante expoente do "New french extremity", um suspense chamado "À L'interieur", lançado no Brasil sob o título "A Invasora", pela California Filmes. Os franceses foram convidados para apresentarem um tratamento para um possível remake. Não houve progresso após as tratativas iniciais, logo abortadas quando os franceses solicitaram maior liberdade criativa. Os executivos da Dimension encarregados de pôr o projeto nos trilhos sabiam que o tom apropriado para um reimaginação deveria conferir com a seriedade e a angústia existencial europeia. Assim, o próximo nome na lista foi um outro francês, outro prodígio da "New french extremity". A bola da vez se chamava Pascal Laugier, de cuja mente brotara uma das coisas mais perturbadoras vistas nos últimos anos, o transgressor "Mártires", dono de um niilismo difícil de ser rivalizado.
  
Barker
vocalizou o entusiasmo com os boatos sobre Laugier. Ele sabia que uma reinvenção só daria certo se as rédeas passassem às mãos de alguém louco e destemido o suficiente, afinal, quando fizera "Hellraiser", ele mesmo, Barker, viera para mudar as regras do jogo, um revolucionário. Quando Laugier perdeu a paciência com a demora e se atarefou com novos projetos ("O Homem das Sombras" & "Incident in a Ghostland"), o estúdio riscou seu nome e foi para o "enfant terrible do momento", um diretor turco chamado Can Evrenol. Chamaram-no para escrever uma premissa de "Hellraiser", com a promessa de que, se o estúdio gostasse, o negócio seria fechado e a produção entraria na fase de filmagem o mais rápido possível. Era 2015, e Evrenol caíra na graça dos fãs do gênero após a exibição de "Baskin", um horror similar a "Hellraiser 2", no Toronto International Film Festival. Evrenol fala sobre a época, discorrendo enigmaticamente sobre as ideias que, infelizmente, não deram certo. O cineasta disse: "Logo após a première de Baskin em Toronto, meus agentes me disseram: 'A Dimension quer falar contigo a respeito de um remake de Hellraiser'. Nós escrevemos uma bela abertura, onde veríamos uma estátua, uma estátua da Suméria, e a sua cara é subitamente arrebentada com uma marretada. Nós vemos terroristas do ISIS vandalizando um museu, um museu arqueológico. Eles começam a matar as pessoas presentes, e então surge esse outro cara que chega e mata os terroristas. Ele era um membro do ISIS e os havia usado para entrar no museu arqueológico. Ele abre uma porta e desce pelas escadas até um sarcófago. Ele abre o sarcófago e, dentro, encontra um torso com correntes conectadas ao mesmo. E ele diz: 'Olá, papai'. E arrebenta o crânio como se quebrasse um ovo. De dentro da cabeça, ele retira o cubo... A 'Configuração do Lamento'. Nós pusemos essa abertura em desenhos de storyboard e levamos para a Dimension... mas nada adveio disso aí". Mais de uma década tinha se passado desde que se falara no remake pela primeira vez, e nada acontecera. Surpreendentemente, embora a refilmagem não tivesse saído do papel, a Dimension produzira, a toque de caixa, dois filmes direto para DVD que só serviram para denegrir o legado dos primeiros filmes dos anos 80. Os direitos autorais expiraram, e a Dimension perdeu em definitivo qualquer pretensão de produzir a refilmagem. Quando o serviço de streaming Hulu entrou em campo, as coisas mudaram: Barker foi trazido a bordo, e em um tempo relativamente exíguo, as peças para um remake já se encontravam nos seus devidos lugares. Ao diretor David Bruckner, um dos nomes vindos para ficar, revelado no começo da década de 2010 com "V/H/S", foi confiada a cadeira de diretor. Ele escalou um elenco intrigante, e de agosto a outubro de 2021, escolheu a Sérvia como locação. Sob forte expectativa, "Hellraiser" promete estrear simultaneamente na Hulu e nos cinemas, em data ainda não definida de 2022. Dentre as poucas coisas que se sabe da produção, a notícia mais interessante é a escolha de Bruckner para o rosto por trás do novo "Cabeça de Pregos". Buscando uma adaptação mais literal de "The Hellbound Heart", o diretor Bruckner parece ter se atentado ao fato de que, no romance, "Cabeça de Pregos" é uma mulher! E, assim, a missão de reinventar o novo "Cabeça de Pregos" coube a uma atriz chamada Jamie Clayton (foto). Ao passo que quase nada se saiba sobre a estória, as falas de Barker e Bruckner lançadas na mídia impressa estimulam-nos a pensar no que vem aí. Barker diz: "O design do filme é incrível, é algo que eu não esperava. David e sua equipe mergulharam na mitologia de Hellraiser. Seu objetivo é prestar homenagem ao original, enquanto o revoluciona para que possa capturar as novas gerações". O sr. Bruckner, a seu turno, teve o seguinte a acrescentar: "Estamos trabalhando muito. Para mim é uma alegria e sonho poder mergulhar nesse mundo. Tudo o que posso dizer é que pretendemos ser o mais fiel possível ao material de origem. 'The Hellbound Heart' (a estória original de Clive Barker) também é nossa principal fonte de inspiração". Os outros nomes elencados deixaram-me intrigados quanto a quem interpretarão. Há um quarteto de jovens atores, todos ainda na casa dos vinte anos: Drew Starkey, Brandon Flynn, Odessa A'zion e Selina Lo. Não obstante eu não possa afirmar, provavelmente os dois rapazes farão Rory & Frank. A atriz Odessa A'zion, citada como a heroína desta versão, pode ser Kirsty, a colega de trabalho secretamente apaixonada por Rory. A indagação revolve a misteriosa figura de Julia. Seria a novata Selina Lo a sua intérprete? Dois outros nomes me fizeram pensar em como caberiam nesta estória: Goran Visnjic e Hiam Abbass. Ambos são veteranos, Visnjic um rosto familiar por causa de seu papel de galã na série "E.R. Plantão Médico"; Abbass, uma respeitada atriz palestina vista em produções intelectualizadas como "Blade Runner 2049". O ponto de interrogação consiste no seguinte ponto: sim, ambos os atores, bem aparentados e donos de bagagem dramática, reúnem cacife de protagonistas; todavia, a discrepância da idade aponta como quase impossível que Visnjic viva Frank ou Rory, ou que Abbass interprete Julia. Os dois atores, maduros, não batem com a descrição de Barker dos dois personagens. Há uma diferença de quase duas décadas. Creio que eles possam vir a integrar o quarteto de cenobitas liderado por Jamie Clayton e, tendo lido muitas vezes a obra literária, imagino qual seria o cenobita vivido por Abbass (transcrevo, mais abaixo, o trecho do livro onde se menciona a cenobita que me parece ser o papel da sensual e madura atriz). Em termos de direção, existe uma compreensível expectativa pela condução do cineasta David Bruckner. Ele esbanjou habilidade na condução do suspense psicológico sobrenatural "The Night House", estrelando Rebecca Hall (por falar nisso, é de se pensar a razão pela qual ele não a trouxe a bordo de "Hellraiser", ela teria sido uma estupenda Julia). De qualquer jeito, só saberemos as respostas a partir do segundo semestre, quando "Hellraiser" chegar à plataforma. Segue o trecho sobre o qual escrevi acima. Na primeira versão para o cinema, Clive Barker apresentou uma sequência diferente, resumida; crê-se que, nesta refilmagem, o diretor David Bruckner irá até o fim para transpô-la para a linguagem cinematográfica com literalidade: "Eles não precisavam de outro convite para levantar a cortina. Ele ouviu a porta ranger como se fosse aberta e virou-se para ver que o mundo além da soleira havia desaparecido, sendo substituído pelas mesmas trevas repletas de pânico de onde os membros da ordem haviam saído. Ele olhou para os Cenobitas, buscando alguma explicação para aquilo, mas eles tinham desaparecido. Contudo, sua passagem não ficara sem registro. Eles haviam levado as flores consigo, deixando apenas tábuas nuas e, na parede, as oferendas que Frank preparara estavam enegrecidas, como se estivessem no calor de uma chama feroz, contudo, invisível. Ele sentiu o cheiro acre da combustão delas; ele pinicou suas narinas tão firmemente, que Frank estava quase certo de que elas sangrariam. Mas o cheiro de queimado foi só o início. Assim que ele o registrara, meia dúzia de outros odores preencheu sua cabeça. Perfumes que ele mal notara até então, de súbito, fizeram-se imensamente fortes. O persistente cheiro de flores furtadas; o cheiro da pintura do teto e da seiva na madeira sob seus pés — tudo inundou sua cabeça. Ele podia até sentir o cheiro das trevas além da porta e, dentro delas, o excremento de cem mil pássaros. Ele levou a mão à boca e ao nariz para impedir que o ataque o possuísse, mas o fedor da perspiração dos seus dedos lhe deu vertigens. Ele poderia ter se sentido nauseado se novas sensações não inundassem seu sistema e germinassem em cada uma das terminações nervosas. Era como se ele pudesse, repentinamente, sentir a colisão dos grãos de poeira contra sua pele. Cada exalação irritava seus lábios; cada piscadela, os seus olhos. Bile queimava no fundo da sua garganta e um bocado do bife do dia anterior que ficara alojado entre seus dentes enviou espasmos por todo o sistema ao liberar uma gotícula de calda sobre a língua. Seus ouvidos tornaram-se tão sensíveis quanto. Sua mente foi preenchida por milhares de ruídos, alguns produzidos por ele próprio. O ar que tocava seus tímpanos era um furacão; a flatulência das suas entranhas, um trovão. Mas havia outros sons — incontáveis — que o atacavam, vindo de um lugar que não era ele próprio. Vozes erguidas em raiva, juras de amor sussurradas, rugidos e agitações, trechos de músicas e lágrimas. Seria o mundo o que ele estava escutando — a alvorada irrompendo em incontáveis lares? Ele não teve oportunidade de ouvir com atenção; a cacofonia arrancara qualquer poder de análise da sua mente. Mas havia algo pior. Os olhos! Deus do céu, Frank nunca imaginou que eles poderiam ser tamanho tormento; ele, que achara que não restara nada na Terra que poderia desconcertá-lo. Agora, ele recuava! Visão em todos os lugares! O gesso plano do teto era uma espetacular geografia de golpes de pincel. O tecido da sua camisa lisa, uma insuportável elaboração de fios. Num canto, ele viu um rato se mover com a cabeça de uma pomba morta e piscar para ele, ao perceber que Frank o vira. Demais! Demais! Consternado, fechou os olhos, contudo, havia mais do lado de dentro do que fora; memórias cuja violência o abalou ao ponto de quase desacordá-lo. Ele sugou o leite da mãe e engasgou; sentiu o braço de seu irmão envolvê-lo (uma briga ou um abraço fraternal? De qualquer modo, ele sufocou). E mais, muito mais. Uma vida curta de sensações, todas escritas de modo perfeito em seu córtex, transgredindo-o com sua insistência de serem lembradas. Ele sentiu-se próximo de explodir. Sem dúvida, o mundo fora da sua cabeça — o quarto e os pássaros além da porta — apesar de todos os seus guinchos excessivos, não poderia ser tão opressor quanto suas memórias. Melhor aquilo, ele pensou, e abriu os olhos. Mas eles não descolaram. Lágrimas ou pus ou agulha e linha os haviam selado. Ele pensou nos rostos dos Cenobitas: os ganchos e correntes. Será que tinham efetuado alguma cirurgia parecida nele, trancando-o atrás dos próprios olhos com o desfile da sua história? Temendo pela sanidade, ele começou a se endereçar a eles, embora não estivesse nem ao menos seguro de que eles se encontravam dentro do alcance de suas palavras. — Por quê? — ele perguntou. — Por que estão fazendo isto comigo? O eco das palavras ribombou em seus ouvidos, mas ele mal as percebeu. Mais impressões dos sentidos vinham nadando do passado para atormentá-lo. A infância ainda persistia na sua língua (leite e frustração), mas havia sensações adultas juntando-se a ela agora. Ele havia crescido! Usava bigode e era poderoso, mãos pesadas e coragem. Os prazeres da juventude tinham substituído o apelo das novidades, mas, conforme os anos passavam e sensações moderadas perdiam sua potência, experiências mais e mais fortes eram necessárias. E aí vinham elas de novo, mais pungentes por serem despidas nas trevas, nos recessos da mente. Ele sentiu incontáveis sabores em sua língua: amargos, doces, azedos, salgados; temperos fortes e merda e os cabelos da sua mãe; viu cidades e céus; viu velocidade, viu profundezas; dividiu pão com homens agora mortos e foi escalpelado pelo calor da saliva deles em sua bochecha. E, claro, havia as mulheres. Sempre em meio à confusão e agitação, memórias de mulheres surgiam, aturdindo-o com seus odores, texturas e sabores. A proximidade deste harém o excitou, apesar das circunstâncias. Ele abriu as calças e acariciou o pau, mais ávido por espalhar sua semente e se livrar daquelas criaturas do que pelo prazer em si. Estava levemente ciente, conforme executava a tarefa, de que devia ser uma visão digna de pena: um cego num quarto vazio, excitado por um sonho. Mas o orgasmo sem alegria fracassou em sequer desacelerar a impiedosa demonstração. Houve um espasmo de dor quando ele atingiu o chão, mas a resposta foi varrida antes da chegada de outra onda de memórias. Ele rolou de costas e gritou; gritou e implorou para que aquilo acabasse, mas as sensações só aumentavam, elevadas a novas alturas a cada prece que ele fazia para que cessassem. As súplicas se tornaram um só som, palavras e sentidos eclipsados pelo pânico. Parecia não haver fim para aquilo, senão a loucura. Nenhuma esperança, senão perder a esperança. Ao que formulou este último e desesperado pensamento, o tormento cessou. Tudo de uma vez; todo ele. Se foi. Visão, som, tato, odor, paladar. Ele se viu, abruptamente, privado de todos. Então, houve segundos em que duvidou da própria existência. Duas batidas do coração, três, quatro. Na quinta, ele abriu os olhos. O quarto estava vazio, as pombas e o pote com o mijo haviam sumido. A porta estava fechada. Ele se sentou com cautela. Seus lábios formigavam; a cabeça, punhos e bexiga doíam. Então, um movimento do outro lado do quarto chamou sua atenção. Onde poucos momentos antes havia um espaço vazio, agora ele via uma figura. Era o quarto Cenobita, aquele que não tinha falado nem mostrado o rosto. (nota do autor: eu penso ser este o papel da atriz Hiam Abbass). Agora, Frank percebia que ele era ela. O capuz que vestia fora descartado, assim como as vestes. A mulher por baixo delas era acinzentada, contudo, reluzente; os lábios vermelhos como sangue, as pernas separadas de modo que a elaborada escarificação do púbis ficasse à mostra. Ela estava sentada sobre uma pilha de cabeças humanas apodrecidas e sorriu, dando boas-vindas. O choque de sensualidade e morte o consternou. Teria ele alguma dúvida de que ela havia, pessoalmente, despachado aquelas vítimas? A podridão delas estava sob as unhas da criatura, e as línguas — vinte ou mais — estavam dispostas em grupos sobre suas coxas untadas, como se aguardassem entrar. Ele também não duvidou de que os cérebros que agora escorriam pelos ouvidos e narinas tinham sido levados à insanidade antes que um golpe ou um beijo tivesse parado o coração. Kircher tinha mentido — ou isso ou ele também fora horrivelmente enganado. Não havia prazer no ar; ou pelo menos, não como a humanidade o entendia. Ele cometera um erro ao abrir a caixa de Lemarchand. Um erro terrível. — Oh, então você parou de sonhar? — perguntou a Cenobita, estudando-o, ao que ele permanecia ofegante sobre as tábuas nuas. — Bom. Ela se levantou. As línguas caíram no chão como uma chuva de vermes. — Agora podemos começar — ela disse".

Clive Barker foi um dos autores mais influentes sobre o meu imaginário, durante a infância e adolescência. Aquelas cenas esquisitas de "Hellraiser", - o blazer e as ombreiras de Julia, a maquiagem e os cabelos dos anos 80, a crueldade sexual e o sadomasoquismo - somaram-se à plêiade de David Cronenberg, John Boorman, John FrankenheimerDario Argento e Brian De Palma, compondo, junto às personas icônicas de Jennifer Connelly, em "Rocketeer" e Burt Reynolds, em "Starting Over", uma desfocada, hipersensível concepção dos affairs adultos, vistos através da ótica da infância, que a tudo registra, por mais que nem sempre entenda. Aos dez anos, eu contemplava as poucas fotos que encontrara dos dois, Barker e Clare Higgins, e tentava desvendar o que existia por trás da expressão, como se a resposta, passível de extração a duras penas daquela gente tão sedutora em seu sorridente e estático mistério, pudesse elucidar as pessoas ao meu redor, e embora eu visse aquele rapaz parecido com Hugh Grant em "Quatro Casamentos e um Funeral" e aquela moça semelhante a uma jovem Charlotte Rampling, também recriava, com tintas fortes e desmedidamente, os "meus próprios adultos", moldando-os à única linguagem que eu conhecia bem, a do cinema. "Gêmeos - Mórbida Semelhança" trouxe um desses vislumbres do pesadíssimo jogo psicológico do qual adultos complicados tomam parte, jogos reinterpretados pelas lentes do sr. Cronenberg. Eu tinha 14 anos quando assisti ao filme pela primeira vez, em 1994, na televisão, e depois fui atrás da fita de vídeo. Eu tinha a caixa em VHS empoeirada da F.J. Lucas junto aos meus alfarrábios. Baseado no livro "Twins", de Jack Geasland & Bari Wood, o filme, que pega muito emprestado do tétrico caso real dos gêmeos Stewart & Cyrill Marcus, contava a estória de dois célebres cirurgiões ginecologistas que, incapazes de viverem existências independentes, costumavam dividir os diferentes aspectos demandados pela vida adulta como se fossem uma só pessoa, um se passando pelo outro pela mera diversão, enganando pacientes e colegas. Compartilhavam parceiras sexuais, méritos e aventuras, e tudo ia muito bem, até a chegada de uma mulher muito especial, que põe tudo a perder. A história real fervilhava com escândalos impossíveis de transposição para as telas, mesmo nas mãos de um gênio criativo como David Cronenberg. Permanece no filme o abuso de heroína; mas a obra não toca nos detalhes mais sórdidos, como a prática de masturbação mútua. O filme introduz, como elemento exógeno catalisador da destruição dos irmãos, a figura de uma mulher, uma atriz em declínio que procura um deles por causa do desejo de engravidar. Ela deseja suprir seu vazio existencial. O mais vulnerável dos irmãos se apaixona pela unicidade das minúcias que ela traz consigo (o útero trifurcado), e acaba por se obcecar pelo oceano de mistérios daquela fêmea em particular, que veio para enriquecer seu "mundo de detalhes". Daí para frente suas vidas entram numa espiral de loucura e autodestruição. Eu me lembrei do filme pois, nesta toada de remakes feitos para novos tempos, "Dead Ringers" será o próximo. O serviço de streaming Amazon Prime lançará, ainda neste ano, o remake do filme de David Cronenberg, desta vez com mulheres, isso mesmo, mulheres, nos papéis centrais. Se no filme de 1988 o ator Jeremy Irons desempenhou os papéis dos gêmeos Elliot & Beverly Mantle, e Genevieve Bujold criou a personagem da mulher manipuladora que se mete entre eles e introduz o processo de desintegração de suas vidas, em 2022, será a atriz Rachel Weisz quem habitará o papel dos irmãos, ou melhor, das duas gêmeas, cirurgiãs ginecologistas, as "irmãs Mantle". Nada se sabe sobre as novidades desta versão. O que causará a desarmonia e loucura entre as irmãs? Será um homem que entrará no caminho da mais sensível, a ponto de, ao se apaixonar pelo rapaz, ela principiar o processo de queda? Ou será uma outra mulher, um romance homossexual? Consta, no elenco, o nome de uma respeitada atriz chamada Jennifer Ehle. Será ela quem dividirá os lençóis com as duas irmãs, jogando uma contra a outra? Recentemente, Rachel Weisz foi fotografada em Nova York ao lado de uma colega, filmando uma cena de "Dead Ringers". Observando cuidadosamente a linguagem corporal e o modo de vestir das duas atrizes, não tenho como deixar de ser remetido à eletricidade quando, na infância, vi "Hellraiser" pela primeira vez. O que há por trás de blazers, ombreiras, cardigãs, saltos altos e óculos grandes demais para o rosto, extravagantes em suas cores berrantes? Eu escrevia este trabalho quando, num exercício de nostalgia, fui levado de volta a 1987, 1988, aos meus 9, 10 anos de idade. Pensei no colégio, em pequenas coisas como quando, na hora de ir embora, via uma elegante senhora, a mãe de um colega, ali à espera do filho para levá-lo todos os dias, na hora do almoço, para casa. Sua imagem permaneceu forjada na minha mente pela semelhança entre a sua "pintura de guerra" (a maquiagem, o blazer, a moda) e a "pintura de guerra" daquelas fantasias de carne e osso oriundas dos pesadelos de Barker, Cronenberg e De Palma. Eu sorrio afetuosamente ao pensar nisso, pois a via como alguém para além de minhas capacidades intelectuais de sustentar um diálogo de igual para igual e, no entanto, percebo que, ali, em 87 e 88, aquela pessoa devia se encontrar na casa dos 30, ao passo que eu, aos 42 anos, estou mais velho do que aquela personagem, aquela figura "do mundo adulto mesclado ao meu mundo na infância". Paradoxalmente, na minha mente, ela continua mais velha, mais "adulta", para além da possibilidade de conversação. Nas poucas vezes em que nossos caminhos se cruzaram, sempre foi doce e acolhedora. Era a mãe deste colega que, naquela época, vivia a azucrinar-me, porém que, logo mais, tornar-se-ia amigo, tendo me levado junto a passeios como um feriado na casa de campo da família. Foi daí que veio a lembrança mais duradoura que tenho da mulher, eu deixando a piscina do sítio e ela vindo na minha direção e me cobrindo com a toalha, um afeto materno, gentil. Isso se deu em 1992. Não era uma mulher alta, porém era definitivamente muito bonita. Eu ainda me recordo de seu rosto, com os "óculos grandes demais", óculos escuros, típico de executivas nos anos 80 e começo da década de 90 (ela era dentista). Imagino o mundo de acontecimentos que ela viveu neste completo mistério que é o hiato entre 1992 e 2022; os anos se passando... Se me fosse possível voltar a algum ponto do "passado", 1999 talvez, diria a ela uma só coisa, meigamente. Pediria: "Pode me fazer um favor? Prometa-me que continuará linda assim". E ela não precisaria se esforçar. Deve ter permanecido linda, dentro & fora, seja conduzindo-se por trás da armadura que é a classe do tailleur e por sobre a estupenda força das mulheres de caráter que precisam provar a capacidade num mundo injusto para com o "sexo frágil" após os trinta anos, seja executando passos nas aulas de aeróbica, movendo-se graciosa, descalça, bela em leggings pretas com cós e pezinho. Um dia desses, enquanto eu bebericava uma xícara de café na cozinha, com minha mãe, e mencionava todas essas coisas, perguntei se ela se lembrava dessa mulher, na minha infância. Nos últimos cinco anos, acho que houve uma outra conversa do tipo, quando comecei a trazer essas paradas à tona. E ela disse algo nos moldes do que disse da última vez: "Meu filho, isso aí ocorreu há tanto, tanto tempo. Por que está falando sobre essas coisas agora?". Quando eu escrevia esta resenha, reconsiderei a pergunta da minha mãe, sobre se lembrar, contudo não se trata de se recordar. É possível que eu simplesmente não tenha esquecido. Foi um momento como tantos outros da vida, o diferencial sendo somente o período no qual ocorreu, a infância, o tempo no qual o cerne da personalidade do homem é programado. Para muitos, reminiscências do tipo teriam se perdido ao longo da estrada; por qualquer razão, detalhes de fragmentos permanecem comigo como se não existisse distinção entre o que foi, o que é e o que será, como se tudo acontecesse ao mesmo tempo - você é uma criança, diante de quem, em 1987, a mulher elegante com  cardigã e blazer (ou um tailleur conservador, ou mesmo uma calça brim mais amarronzada), saltos altos, óculos escuros e ombreiras guarda uma dimensão de mistério maior que a vida; porém, no exato "momento", você também se encontra caminhando pelas calçadas que passam na rua do colégio onde tudo aconteceu, em direção ao supermercado, numa tarde em 2022, e embora esteja aos 42 anos de idade, mais velho, inclusive, que a mulher da lembrança, ao ver de relance o espaço onde ela se sentara todas as manhãs para esperar o filho, no século passado, seus olhos subitamente reassumem o ponto de vista de um garoto aos 7 anos, e é assim que se captura, por uma fração de segundo, a mentira que é o tempo. Quando você começa a se perceber no mundo, tudo começa na primeira infância, que simbolicamente é a sala de brinquedos onde as peças de montar foram misturadas por todos os lados: a partir dali, a vida de um homem é a busca pela unidade. Prof. Olavo de Carvalho dizia que o homem de sucesso é aquele que, na fase adulta, consegue tornar real sonhos desejados no ardor da juventude. E no espaço entre as peças espalhadas até à unidade que se busca alcançar, existe o mundo habitado pelos detalhes que um homem vai juntando à medida que persevera.