sexta-feira, 26 de maio de 2017

"XX" (EUA, 2017, Roxanne Benjamin, Karyn Kusama, St. Vincent & Jovanka Vuckovic) A perspectiva feminina traz à luz um universo de nuances que só a sensibilidade de uma mulher seria capaz de devassar. Quem diria que elas podem nos ensinar tanto sobre horror?

A antologia de horror "V/H/S" rompeu com o paradigma ao nos presentear com um novo formato, e também nos deu um vislumbre do futuro comercial de coisas do tipo. Há todo um mercado na mídia vídeo on demand, onde, após a passagem por festivais independentes especializados, essas pequenas, geniais obras do cinema cult desembocam, cortesia de uma perfeita, ágil e cômoda ferramenta de longo alcance, modo de fazer frente ao poder aniquilador de blockbusters monopolizadores de multiplexes. Compostos por segmentos amarrados por uma linha narrativa principal, os filmes da antologia "V/H/S" viabilizaram oportunidades para que jovens cineastas experimentassem com os argumentos mais bizarros imagináveis e nos mostrassem quão talentosos o eram, o que dava ao conjunto um delicioso gostinho de aventura através do passeio pela "boca do lixo", nos mesmos moldes do gênero exploitation dirigido por gente como Cronenberg, Romero e Argento, no submundo da contracultura, nos anos 70, quando extravagâncias como "Deep Throat" tinham seus títulos exibidos ao lado de nomes de produções mainstream nas marquises. A resposta feminina para a testosterona de "V/H/S" não demorou, e agora temos "XX", uma antologia dirigida exclusivamente por mulheres cineastas, imbuídas de poderosa sensibilidade, cujas lentes lhes emprestam um refrescante ponto de vista ao fascinante elemento do macabro, em um universo caótico e em plena revolução. Composto por quatro contos dirigidos por diferentes cineastas, conectados por um gótico trabalho em stop-motion que presta homenagem a Tim Burton ("O Estranho Mundo de Jack"), "XX" satisfará os cinéfilos saudosos da criatividade de guerrilha dos três filmes "V/H/S".



"XX" quase teria sido um completo affair de "Clube da Luluzinha", porém os homens não foram de todo imprestáveis! Concebido sob a batuta de competentíssimas diretoras, também teve os argumentos escritos pelas mesmas, excetuando-se "The Box", a short story de Jack Ketchum, nome conhecido pelos apaixonados por romances doentios e macabros. O segmento baseado na obra de Ketchum abre o filme com a atmosfera desejada, e o clima jamais se perderá pelos próximos 80 minutos até o desfecho do último segmento. É véspera de Natal, e Susan Jacobs (uma performance vencedora de Natalie Brown), uma elegante mamãe novaiorquina aos 30 e poucos anos de idade, leva os filhos Danny (Peter DaCunha) e Jenny (Peyton Kennedy) para casa, no trem, depois de um dia inteiro conduzindo-os por passeios ao cinema e ao rinque de patinação. Espevitadas, as duas crianças notam um discreto, sombrio cavalheiro vestido em sobretudo e chapéu, com uma chamativa caixa vermelha no colo. O incherido Danny pergunta na "cara dura" o que há na caixa, para a divertida surpresa do cavalheiro. Constrangida, Susan desculpa-se com o estranho e manda o menino deixá-lo em paz. Bastante receptivo, o homem não apenas desarma a situação ao afirmar que está tudo bem, também levanta um pouquinho a tampa, para que Danny veja o conteúdo. A câmera não revela o interior do presente, porém algo no olhar e franzido da testa do menino indica que se trata de algo no mínimo estranho. O cavalheiro se despede logo em seguida, e desembarca na próxima estação.

Robert, o pai das crianças e esposo de Susan, já se encontra à espera da família, tendo preparado o jantar. Na chegada à casa, enquanto se livram dos casacos e tênis, a menina pergunta ao irmão o que havia dentro da caixa. Danny é ambíguo, e minimiza a importância do encontro ao responder que não existia nada. À mesa, o pai preparou um delicioso jantar. Os Jacobs parecem uma típica família unida e feliz, mas a estrutura do lar está para desmoronar por causa do aparentemente inócuo encontro no trem. Robert e Susan estranham quando Danny, sempre tão esfomeado na hora do jantar, não toca na comida, ao passo que Jenny pede para repetir o prato. O pai estranha, mas não muito: como haviam comido no passeio, parece razoável que o menino realmente não tenha desejo de jantar. Reunidos na sala de estar para assistir a "A Noite dos Mortos Vivos", todos agem com naturalidade e alegria. A mãe os observa da poltrona onde se acomodou, enquanto Robert e Jenny comem pipoca da tigela, e Danny faz brincadeiras, sentado no tapete.


Na manhã seguinte, na saída de casa para o ponto de ônibus escolar, diferente da irmã, Danny se esquece de pegar a lancheira. A mãe chama a atenção para o esquecimento. À noite, os pais prepararam pães recheados com batata, purê, e costelas assadas, uma deliciosa refeição. Danny não quer saber, e embora fale animadamente sobre o dia, sem aparentar problemas com a saúde, a situação começa a saltar aos olhos dos agora tensos pais. Na conversa após o jantar, os dois adultos discutem a situação. Robert conta que a lancheira voltou intacta, o menino sequer provara o lanche da merenda no intervalo do recreio. Susan ainda não "entrou em pânico", afinal crianças costumam aprontar as mais inusitadas artimanhas para "fugir" das aulas. Robert cogita levá-lo logo ao pediatra da família, Dr. Weller, todavia, como Danny não demonstra febre, como a própria Susan ressalta, ainda é cedo para tomar a medida. Mesmo que se trate de virose, não há nada a ser feito, pois viroses gozam de um ciclo de vida diante do qual há pouco a fazer, que não tomar muita água e repousar.


Almôndegas com espaguete pinceladas por molho de tomate e pãezinhos de alho tostados: só de ver os pratos, surge água na boca. Jenny devora sua porção sem dó, Danny apenas encara a comida, apático. Dessa vez, os pais chamam a atenção do garoto, e insistem que faz três dias desde sua última refeição. Jenny levanta a hipótese de o menino ter pegado catapora, e ao ilustrar com exagerados gestos os efeitos da doença em uma coleguinha, o irmão a interrompe para avisar que apenas perdeu o apetite. Os pais o escusam, mas vestem olhares enervados. A gota d'água ocorre na noite seguinte, quando Robert perde a paciência, desfere um murro na mesa e sentencia que o filho não os deixará até comer seu pedaço de pizza. Robert acaba às lágrimas, visivelmente cheio de remorso por ter gritado com o filho. Mais centrada, Susan se serve da sensibilidade de mãe para pôr panos quentes na volátil discussão. No dia seguinte, os Jacobs procuram o Dr. Weller.


Reunidos em uma ilha do atendimento de urgência do hospital, Dr. Weller repassa os principais sintomas na tentativa de pinçar a natureza do mal. Ele os questiona sobre febre, vômitos ou diarreia. Os pais explicam que, excluída a apatia, o menino parece perfeitamente bem, por mais que não coma há mais de cinco dias. Perspicaz, o pediatra solicita privacidade com o paciente, obviamente preocupado com a possibilidade de a criança vir sendo vítima de abusos por parte dos pais. A explicação do garoto o deixa mais confuso. Os pais nada lhe fizeram, Danny apenas perdeu o apetite, de uma hora para a outra. "Há pessoas famintas ao redor do mundo, se não correr, eventualmente morrerá", ele tenta colocar as coisas sob perspectiva. O garoto retruca: "E daí?". Quando em nova reunião os pais acrescentam que o filho não tem tido problemas em casa, tampouco no colégio, Dr. Weller levanta a hipótese de a falta de apetite se dever a questões de fundo emocional, e fornece o nome de um terapeuta, amigo seu, para atendê-lo. O objetivo principal agora, segundo Dr. Weller, é ajudá-lo a voltar a se nutrir. Danny sequer se senta no seu lugar à mesa, durante o jantar. Ele continua metido no misterioso retiro.


Uma noite, atraída pelo rumor de conversa vindo do quarto do filho, Susan os vê, Danny & Jenny, metidos em confidências, na cama, tartamudeando segredos. Susan deseja saber o tema, porém Danny e Jenny escapolem com um "nada, apenas coisas". Nem mesmo a insistência da mãe os demove do propósito de guardar para si o terrível segredo de seja lá qual for o drama que deva ter lançado Danny na greve de fome, e poderá custar as vidas dos demais membros da família. Intrigada, Susan fuma um cigarro na varanda, e a forma como aperta os braços contra si entrega o calafrio experimentado, seja pelo sibilar da ventania fria da noite, seja pelo sexto sentido que aponta a presença de um mistério muito mais profundo a pairar sobre a casa. Para a terrível surpresa de Susan, na despedida a caminho do ponto do ônibus escolar, a espoleta e extrovertida Jenny recusa o café da manhã. Ela foi acometida pelo mesmo mal de Danny, e quando a noite chega e Robert se dá conta que só restam os dois à mesa, discute com Susan, queixando-se de não entender como a esposa é capaz de comer quando os filhos passam por tamanho drama. O comentário a enche de culpa. Desolado pela impotência de se conectar ao filho, Robert o visita no quarto, e finalmente o convence a desabafar sobre sua aflição. A câmera captura a ação a uma distância que nos impede de ouvir o sussurrado da criança ao pé do ouvido do pai, contudo pela expressão atônita subitamente acesa na cara do homem, deduzimos a gravidade das razões para Danny para não comer.


Naquela noite, ao se recolher com a mulher aos aposentos, Robert se deita pensativo ao lado de Susan, e em uma arrepiante surpresa, ao lhe ser perguntado o que a criança havia dito, ele responde laconicamente "nada". Susan sofre de pesadelos horrorosos, onde se vê prostrada na mesa da sala, tendo parte do braço e coxa mutilados para produzir carne para os filhos, que consomem as ensanguentadas postas de filé cheios de apetite. A timeline do filme se dá com o Natal se avizinhando, e, ao final, o feriado mais importante do ano chegou, como resta comprovado pela cena onde os vemos abrindo presentes ao redor da árvore, uma cena surreal: embora represente uma tradição cristã engrandecida pela reunião familiar, aqui neste segmento veste ares de macabro, através da explícita magreza de três dos membros da família Jacobs. A imagem de pai e filhos emaciados choca pela crueza, ainda mais amarga quando confrontada com a aparência saudável da mãe, a única pessoa poupada da maldição. O ato da entrega de uma caixa de presente vermelha por Danny às mãos de Susan imediatamente a estimula a pensar naquele dia, semanas antes, quando retornavam de trem para o subúrbio, e o elegante cavalheiro saltou na estação seguinte depois de ter levantado só um pouquinho a tampa, de modo que Danny enxergasse o conteúdo. A mulher associa o drama da família ao elegante cavalheiro, senta-se com o filho ao pé da árvore e o perquire sobre o encontro. Dentro de si, Susan forma a convicção de um liame causal entre o drama e o conteúdo da caixa.


Danny morre em 17 de janeiro do ano seguinte. Jenny parte no dia 3 de fevereiro. Robert agoniza por mais um tempo, até perder a luta para a inanição a 27 do mesmo mês. Durante as dolorosas semanas de calvário e morte de marido e filhos, indo de casa para hospital em vigília, Susan toma o trem, desejosa de reencontrar o homem elegante para elucidar o mistério da caixa. Uma tarde, ela pensa que o encontrou na figura de um sujeito de costas, sobretudo e chapéu. Ao tocá-lo no ombro, porém, dá conta de que se trata de outra pessoa. "Preciso encontrá-lo, para saber o que meu filho sabia, e passou para os outros. É o único modo de eu conseguir me sentir próxima a eles, agora. Eu quero ver, eu tenho que ver... estou faminta", a narração de Susan assinala, ao fundo de uma tomada onde a vemos em desalento, sentada ao lado da janela, decerto a reviver a inquietante casualidade daquele encontro meses antes no trem que custou a felicidade da família.


Em "The Birthday Party", Mary (uma divertida, inusitada aparição da atriz Melanie Lynskey, em papel diametralmente oposto às performances que lhe valeram fama) tenta organizar a melhor festa de aniversário possível para a filha Lucy (Sanai Victoria), mas as circunstâncias aleatórias da manhã parecem trabalhar contra suas melhores intenções. Naturalmente estressada, Mary ainda precisa aturar a onipresença da secretária Carla (Sheila Vand, atriz principal do aclamado filme de vampiro "A Girl Walks Home at Night"), uma bonita mulher de penteado impecável, metida em um vestido preto, que surge nos momentos mais inconvenientes, para a má sorte da pobre Mary, louca por um pouco de privacidade. Mesmo ao despertar, cheia de coisas para resolver, Mary encontra a misteriosa criada no caminho. Não devemos esperar profundidade de um segmento de antologia, contudo podemos deduzir, pelo diálogo entre as duas, a existência de alguma desavença entre marido e mulher, pois Mary comenta algo sobre a ausência de David, o marido, e Carla retruca que viu o carro do homem mais cedo na driveway.


Mary encontra o marido sentado na poltrona de couro do gabinete, de costas para a porta. Ela entra tagarelando sobre a expectativa para a festa, e a necessidade de procurarem resolver seus problemas conjugais, pois a ansiedade de Lucy, conforme o terapeuta da filha asseverou, parece se dever ao papel dos pais sobre sua impressionável cabeça. Mary custa a perceber o estado do marido, e só ao abraçá-lo por trás e senti-lo frio, percebe que ele está morto, bem no momento em que Lucy anuncia o despertar chamando pela mãe no corredor. Mary oculta a má notícia, e tenta se comportar como se nada tivesse acontecido. Lucy urinou na cama e sujou a fantasia para a festa de logo mais. A mãe se ocupa de bolar uma nova fantasia para a filha, na base do improviso (ela faz dois furos no lençol para transformá-la numa fantasminha), e enquanto tenta cumprir com eficiência o papel de boa mãe, procura se livrar do cadáver de maneira a não despertar atenção e estragar a festa. A ingrata tarefa é sempre prejudicada pelos casuais encontros com a secretária, uma espécie de vulto vigilante, uma ave de mau agouro. Até mesmo no gabinete, Carla se mete. Mary se esconde apenas a tempo de evitar que a secretária se depare com o cadáver. A distraída Lucy acaba por exigir a atenção de Carla, e as duas se afastam, lhe dando espaço e privacidade para pensar no que fazer com o corpo.



Mary arrasta o marido pela sala, todavia através da porta de correr, enxerga Madeleine, a vizinha fofoqueira, louca para amolá-la com alguma tolice. Como o ponto de vista da vizinha não alcança além do sofá, ela não vê o corpo. Cheia de coisas de última hora para realizar, Mary reúne toda a paciência para escutar as banalidades da fútil loira, que basicamente se convida à festa de Lucy. Depois de "escapar" da vizinha, o trabalho de sumiço do cadáver sofre nova interrupção, quando alguém na campainha começa a chamá-la. Ela atende ao chamado, e não encontra ninguém, a não ser um estéreo troando um divertido rap. Subitamente, em uma cena realmente engraçada que destoa da atmosfera de horror do segmento anterior, mas em seu desconserto agrega à bizarrice do conjunto, um homem vestido de panda salta no vão da porta, e começa a performar os passos da música. Ocorre-lhe, então, a brilhante ideia de dispensar o homem e comprar a fantasia, para esconder o falecido marido dentro.

A mulher "recheia" a fantasia de panda com o cadáver minutos antes da chegada dos convidados. Após as fortes emoções da manhã, Mary finalmente consegue se sentar à mesa, enquanto Carla abre a porta para os convidados. Do outro extremo da mesa, o "animador" vestido de panda permanece sentado, imóvel, até ter o bolo colocado bem diante de si. A cabeça "pende" e ele cai com o "focinho" em cima. Ao "arrancar" a cabeça do panda, Carla acidentalmente revela que se trata de David, o pai de Lucy, morto. A gritaria toma conta da festa, enquanto a desesperada Mary estica a mão em direção ao cadáver, desesperada, impotente para evitar a horrenda, traumática cena de um homem morto sob a fantasia. O segmento encerra com a apresentação do subtítulo: "A Festa de Aniversário. Ou: A memória que Lucy suprimiu de seu aniversário de sete anos, que não foi realmente culpa de sua mãe (embora seu terapeuta diga que provavelmente foi por causa do evento que hoje ela tema intimidade)".

O segmento seguinte, "Don't Fall", dirigido por Roxanne Benjamin (uma das produtoras dos filmes da franquia "V/H/S"), revisita um dos mais queridos e explorados motes para tramas de horror. Sem dúvida, já assistimos a coisas do tipo antes: um grupo de amigos cheio de boas intenções resolve se meter em uma viagem para camping, apenas para quebrar a cara ao descobrir que a natureza, ao invés de inerentemente boa, esconde segredos que tendem a permanecer descobertos, vez que são poucos os sobreviventes para contar a história. A diretora pega emprestado elementos do clássico "The Hills Have Eyes", de Wes Craven, e parte da mesma premissa do filme de 1977: pessoas muito próximas se vendo alvo do assédio de inominável horror; no filme de Craven, tínhamos uma família, e a ameaça se devia a uma quadrilha de canibais, no segmento de Benjamin, seus protagonistas são jovens amigos, e o horror parte de um demônio da natureza, tipo "Wendigo", uma ideia recentemente aproveitada por Greg McLean para o ótimo "The Darkness".


Quatro amigos - Paul (Casey Adams), Gretchen (Breeda Wool), Jess (Angela Trimbur) e Jay (Morgan Krantz) - exploram uma belíssima, inóspita região montanhosa, em busca de aventuras. A deslumbrante fotografia introduz tomadas à distância que capturam com maestria a indiferença da natureza perante aquelas criaturas, meros "pontinhos" no deserto. Do topo de um cânion, os amigos guardam a espetacular visão de uma clareira pontuada por gramíneas e pequenos arbustos, um grandioso espaço a explorar. Gretchen, a mais nervosa do grupo, passa por um aperto quando Jess chega por trás e a abraça na linha da cintura, furtando-a do equilíbrio. Claro, a amiga jamais a deixaria cair, porém para uma pessoa com acrofobia, brincadeiras do tipo não têm graça. Jess pede desculpas, e elas fazem as pazes. O grupo encontra pinturas misteriosas na rocha, e as atribuem ao trabalho de indígenas, há milhares de anos.


Os amigos prepararam o trailer para passar a noite na clareira, com o infinito firmamento celeste polvilhado por lindas, brilhantes estrelas cadentes. Eles puseram as cadeiras e a mesa do lado de fora, onde bebem cerveja, curtem a vista e conversam sobre a origem da pintura. Paul prega uma peça ao se escusar para ir urinar, quando desaparece, apenas para mexer com os nervos de Gretchen. Ele ressurge e dá um susto na namorada. Sonolenta, Gretchen se recolhe ao trailer para descansar um pouco. A lua aponta gloriosa no céu, trata-se de uma noite de lua cheia. Aqui, é importante mencionar que previamente, no início, Gretchen se machucara, um pequeno corte na mão durante o exame das pinturas. À noite, enquanto os demais confraternizam do lado de fora, a jovem é visitada por uma entidade amorfa, como uma ventania, que parece carregá-la para longe, sem que, em sua inconsciência, perceba a abdução. Ela desperta nas vizinhanças da rocha grafada com desenhos, e, para seu desespero, depara-se com um demônio. Antes que consiga reagir, o demônio avança sobre sua pessoa.


Jay acorda de madrugada, quando dá pela ausência da amiga. O frio externo é terrível, e ele aperta os braços contra o peito, na tentativa de suportá-lo. Ele encontra Gretchen ali fora, e pergunta o que aconteceu. De costas para o rapaz, Gretchen se transforma em um horroroso demônio com dentes pontiagudos, garras como galhos de árvore, e uma espinha dorsal cheia de reentrâncias. Com a comoção da entrada de Jay no trailer, os demais membros da expedição despertam, cheios de temor. Jay assume a direção, e ao ligar os faróis, revela a figura de Gretchen mais à frente. O rapaz nem consegue explicar aos amigos por que não devem deixar a segurança do trailer: exclamando que a amiga parece ferida, Paul e Jess preparam-se para sair do veículo. Paul chega a deixar o trailer, Jess ainda não. Ela finalmente entende a gravidade da ameaça quando o corpo estripado de Paul é atirado de volta ao trailer, através da janela.


Jess corre rumo ao deserto friento, com o intento de fugir do demônio. A porta acidentalmente bate, movida pelo vento, prendendo o rapaz dentro do veículo. Ele é atacado e morto, e vemos jatos de sangue tingirem as janelas do trailer, nos dando uma ideia do massacre a se dar. Jess foge através da noite fechada, deixando para trás o terrível cenário de morte. No frenesi da corrida pela sobrevivência, Jess tropeça, sofre uma queda e acaba se vendo no fundo de uma ravina, com uma fratura exposta. Na esperança de resistir à noite, se apenas o demônio não a encontrar, engole a dor e permanece silente. Não adianta: o espírito, uma grotesca figura com a forma feminina de Gretchen, aparece no topo da ravina, e salta sobre sua presa.

Dirigido pela hábil Karyn Kusama, "Her Only Living Son" parte de uma interessantíssima premissa. O segmento reimagina um certo aclamado filme do passado, ou melhor, Kusama parte do desfecho da obra em questão para flertar com desdobramentos para a história original. Não citarei agora o filme a que a diretora faz referência, pois desvendar a conexão faz parte da brincadeira! Cora (Christina Kirk, em grande performance) praticamente vive em função do filho Andy (Kyle Allen), às vésperas de completar 18 anos. Ela trabalha como garçonete, e há muito se esqueceu da felicidade pessoal para criá-lo sem que o rapaz precise passar por nenhuma privação. O segmento abre com um flashback a ilustrar um importante momento do passado de Cora. Nós a vemos mais jovem, quando tinha acabado de dar `a luz o filho, conversando cheia de aflição com o médico. Pelo diálogo, infere-se que a pobre, inocente mulher precisou fugir muito rapidamente de um grande mal, e o médico a ajudou com dinheiro, para que conseguisse "sumir do mapa" com mais facilidade, sem deixar rastros.


Cora desperta do sonho. A aflição no rosto indica seu desejo de apagar as lembranças. Como mãe zelosa, observa o filho dormir e, mais tarde, brincar com o cachorro. Ele a ajuda a preparar o café da manhã, e, à mesa, discutem a programação do dia seguinte, quando completará 18 anos. Aprendemos que o pai de Andy é algum astro de cinema, pois o rapaz quer ver seu novo filme em cartaz. A mãe tenta criá-lo de forma a suprir a carência advinda da ausência da figura paterna, e não perde a oportunidade de falar mal do homem. Os dois se despedem, e Andy vai para a escola. Enquanto Cora preparava o café da manhã, pouco antes, escutara um barulho semelhante ao ganido de um animal, no quintal. Ao verificar, encontra um esquilo morto. As circunstâncias apontam a maldade como obra do rapaz. O segmento voltará a apresentar novos fatos confirmatórios da mente doentia de Andy.

Chet (Mike Doyle), o carteiro, conhece o drama de Cora. Entregador naquela região por muitos anos, tornou-se um rosto frequente e querido na vida da mãe solteira, sempre chegando com suas cartas e o animado bate-papo ao sabor de um cafezinho no alpendre. Embora viva convidando a garçonete a sair, seus galanteios jamais são inteiramente aceitos, afinal a felicidade sentimental jamais se destacou como prioridade na vida da solitária mulher. Chamada à diretoria da escola, Cora encontra a mãe de uma outra aluna, agredida por Andy durante a aula. A menina passa bem, porém teve de ser levada em caráter de urgência ao pronto-socorro. Cora arrazoa que o filho jamais foi violento ou cruel, contudo a outra mãe não quer saber de desculpas. Enerva-a ainda mais a insistência da diretora e de um professor de minimizar a briga, batendo na tecla de que devem escutar a versão de Andy para os fatos, ainda obscuros. A mãe deixa a sala furiosa, avisando-lhes que devem esperar retaliação por parte de seu advogado. Mesmo solidária ao filho, Cora acha justa a imposição de um castigo, e pede que Andy sofra uma suspensão. Ela estranha quando não apenas a diretora se manifesta no sentido de não puni-lo, ainda o enaltece como uma espécie de inspiração para os outros alunos, um "líder nato", pelos últimos quatro anos no colégio.

Ao voltar para casa, ela encontra, sobre a mesa, uma nota escrita pelo filho, avisando que dormirá na casa de um amigo, mas retornará no dia seguinte. Ela prepara solitariamente o bolo de aniversário, na cozinha, e ao ir dormir, rememora o momento em que "a bolsa estourou" e ela pariu. Há uma arrepiante imagem, pela qual Cora se vê na cama, metida no breu, e um menininho com um sorriso macabro a afaga no rosto. Ela desperta de madrugada com barulhos vindos do banheiro, e ao chamar o filho com uma voz chorosa, escuta o que se assemelha ao relinchar de um cavalo. Cora empurra a porta, preocupada, e encontra o garoto. Ela só consegue enfurecê-lo, pois o rapaz exclama que se ela deseja lhe dar um excelente presente, agradeceria se começasse pela privacidade. Andy bate a porta do quarto na cara da mãe. Ao examinar o banheiro, Cora apavora-se com manchas de sangue no assoalho.



Na manhã seguinte, ela estende roupas molhadas no varal, cheia de tristeza no rosto. Chet subitamente chega de bicicleta, uma bem-vinda visita à Cora, que no pretendente sempre encontra palavras de suporte e encorajamento. Ela confidencia, com muito pesar, que há algo errado com o filho. Chet tenta mitigar as impressões da garçonete, "Ora, ele está amadurecendo, só isso, virando um homem". Quando ela retruca "Ele não é meu Andy mais", a resposta de Chet a deixa arrepiada, pois entrega que o carteiro sempre participou do esquema. Ele comenta "Mas ele jamais foi realmente seu, certo?". Chet começa a filosofar com conhecimento de causa, espantando a garçonete com a precisão de detalhes conhecidos sobre sua jornada. Até aquele instante, aos olhos de Cora, Chet sempre soara como um bom amigo e pretendente romântico. Ela se vê face a face com a agenda secreta do homem, na verdade um "infiltrado" que vem acompanhando sua vida no curso dos últimos 18 anos. O pai de Andy, um famoso astro, fizera um pacto com o Diabo, pelo qual amealharia riquezas e fama, ao custo de ceder a mulher a Lúcifer para que em seu ventre gerasse seu filho. A adulação em torno do problemático adolescente, portanto, acusa a rede de satanistas atuantes na sociedade, que de tão bem camuflados nas mais diferentes esferas jamais despertam suspeitas. "É claro, eu apenas escutei a sua história umas mil vezes, e certamente histórias tendem a ficarem distorcidas à medida que são repassadas, mas aconteceu. E eu fiz minha contribuição... eu gosto de crer que fiz uma diferença no esquema maior das coisas, fui abençoado ao vigiá-lo ao longo desses anos... e vigiar o Andy, preparar o mundo para esse glorioso dia. Não há nada a temer, Cora, é o tempo dele, só isso. Abençoada seja sua escuridão", o carteiro repete, de maneira horripilante, lançando a garçonete no desespero. Ela se tranca em casa pelo resto do dia.

Ao vasculhar o quarto do filho, Cora topa com uma caixinha repleta de unhas, mas não unhas comuns. As mesmas parecem ter sido arrancadas de algum bicho, como um bode, e foram tiradas desde a raiz. Surpreendida com a inesperada chegada do rapaz, Cora se esconde dentro do closet, de onde guarda um bom ângulo da cama, graças aos espaços entre as gretas. Andy se senta no colchão, e a mãe entende a origem da caixa: as unhas são dos dedos dos pés do rapaz, que precisa apará-las com frequência para que não fiquem enormes. Ao testemunhar a inusitada, bizarra revelação, Cora solta um suspiro, involuntariamente entregando sua presença clandestina. Ela encontra o filho de costas, na cozinha, e ele exige respostas. Andy conta que um dia desses uma mulher estranha o abordou, do nada, para lhe falar sobre como ele era especial. O rapaz revela sofrer de pesadelos horrendos sobre o dia em que finalmente imporá um regime de maldade e miséria sobre a humanidade. Cora põe as cartas na mesa, e desabafa sobre os inimagináveis perigos corridos por mãe & filho, no curso dos anos, sempre tendo de fugir, de cidade a cidade, para escapar dos satanistas. Ela conta que na época da gestação, lhe foi feita uma proposta pela qual poderia abdicar do filho e entregá-lo, o filho do Diabo, aos satanistas, ou optar por ficar com a criança, e ter de passar o resto da existência fugindo das garras da organização. O amor de mãe falou mais forte, e agora, às vésperas de Andy completar 18 anos, Cora sabe que definitivamente jamais desistirá do garoto. Eles se abraçam, plenos de amor, à medida que a sala escurece sob as trevas, sinal da vigília de Satanás ao redor da casa. Mesmo diante de uma força tão malévola, a ligação entre mãe e filho prova-se maior que a influência diabólica, e os dois sucumbem juntos, no assoalho da cozinha, mortos, mas livres das garras do mal.


Há muito se discutia a produção de uma antologia de contos de horror comandada por mulheres. A ideia de "XX" teve incipiência em 2013, quando os produtores anunciaram os préstimos de Jennifer Lynch (filha de David Lynch), Mary Harron (mais conhecida por "Psicopata Americana"), Jen & Sylvia Soska (diretoras de curtas na antologia "ABC da Morte 2"), Jovanka Vuckovic e Karyn Kusama para a empreitada. Quando das filmagens, anos mais tarde, do time original, somente restavam Vuckovic e Kusama, tendo Roxanne Benjamin e Annie Clark (nome artístico St. Vincent) se juntado posteriormente à equipe criativa. Produzido por Nate Bolotin & Todd Brown, dois profissionais com um impressionante currículo no gênero, "XX" teve sua première no prestigiado festival de cinema de Tribeca deste ano de 2017, e em fevereiro recebeu um lançamento limitado através do inovador sistema vídeo-on-demand. Novamente, a Magnet Releasing, braço da Magnólia Pictures, prova o tino para a escolha de obras independentes refinadas e elegantes. Se fizermos um apanhado da nata do horror cult independente nos últimos cinco anos, anotaremos que as melhores surpresas foram distribuídas sob o selo da Magnet Releasing, que viabilizou comercialmente as primeiras chances de cineastas predestinados à enormidade, como Gareth Edwards. Antes das superproduções nababescas, o aclamado diretor de "Godzlla" & "Star Wars: Rogue One" ensaiou os primeiros passos atrás das câmeras com o maravilhoso "Monsters", de 2011, resultado da boa fé depositada sobre sua pessoa pelo selo. No caso do filme objeto da resenha, vindas de distintos backgrounds, cada diretora trouxe uma ideia refrescante a sua colaboração, engrandecendo o conjunto. O colorido, frutífero espectro de "XX" captura a retomada da atemporal batalha entre Bem & Mal através do segmento de Karyn Kusama ("Her Only Living Son"), a surpresa do humor negro encontrado nas mais inusitadas situações, nas mãos de Annie Clark ("The Birthday Party"), a reciclagem da clássica fórmula de pessoas comuns sob o assalto de um horripilante mal, longe das benesses da sociedade moderna, através do olhar de Roxanne Benjamin ("Don't Fall"), e a harmonia & solidez da instituição familiar viradas de dentro para fora pela ação de um monstro invisível ("The Box"), pelas lentes operadas com intimidade por Jovanka Vuckovic.

A diretora Vuckovic falou sobre a gênese do projeto, e explicou, com muita desenvoltura, a importância de seu background para a confecção do segmento. Em entrevista a Chris Alexander, do site Coming Soon, ela contou: "Nós criamos XX porque não existia nenhuma antologia de horror realizada por mulheres. Eu andava pensando em produzir o filme através de crowdfunding no Kickstarter quando, do nada, Todd Brown, da XYZ (distribuidora) me ligou e me perguntou se eu gostaria de criar a antologia ao seu lado, o que foi uma maravilhosa coincidência. Ambos notávamos o modo como cineastas mulheres eram preteridas para filmes recentes neste formato, então colocamos nossas cabeças para pensar em algo do tipo. Sem o Todd, esse filme não existiria. Ele foi o herói do projeto. Ele tinha um formato em mente, e trouxe o financiamento a bordo. E até sua sugestão de título, XX, era melhor do que a minha. Então, começamos a elaborar uma lista de cineastas que gostaríamos de trazer a bordo. XX é uma resposta direta à falta de oportunidades para mulheres em filmes, mais especificamente filmes de terror. O gênero não é inerentemente sexista, porém trata-se de uma área onde as mulheres têm sido historicamente mal representadas diante das câmeras e atrás das mesmas. As pessoas pensam que só por torná-las as vilãs, ou objetificar os homens, estão sendo progressivas. Mas estas são tentativas superficiais rumo ao horror feminista. Pessoas me perguntam o tempo inteiro o que torna um filme uma história de terror feminista. A solução, na verdade, é bem simples: para rodar um filme feminista, basta retratá-las como seres humanos. Essa questão é sintomática de uma ainda bem mais ampla questão sistêmica no cinema, mas progresso precisa começar de algum ponto, e horror é o gênero que conheço intimamente".

Jack Ketchum, um autor de dramas perturbadores, chamou minha atenção pela primeira vez há dez anos, por causa de um apavorante filme de terror chamado "The Girl Next Door". O filme transpôs para a tela a obra literária de Ketchum, que, a seu turno reciclava um horripilante e notório caso ocorrido no verão de 1965, em Indianapolis, Indiana. Ketchum parece dotado da mesma habilidade de um outro colega de tintas igualmente talentoso, Richard Matheson, pois extrai de situações hodiernas, do dia a dia no subúrbio, do drama do homem comum, o tecido para costurar tramas habitadas por horrores e fantasmas, seja no sentido literal, seja no figurado, sem jamais nos alienar. Nada surpreenderá mais do que a capacidade do coração humano para a perversidade. De "The Box", chega um atraente charme de familiaridade com as demandas cotidianas, subitamente invadidas por um horror incompreensível e sobrenatural, nos moldes do que o diretor David Koepp fez tão bem ao adaptar o romance de Matheson "Stir of Echoes". Ambas as experiências cinematográficas, "The Box" & "Stir of Echoes", revolvem jornadas ao desconhecido vividas por pessoas ordinárias que subitamente tiveram seus mundos, onde interpretavam tão bem seus predefinidos papéis, virados de cabeça para baixo, ao descobrirem a ação muito real de forças que jamais julgavam existir em meio a banalidades de uma existência sem novidades, quase predeterminada em expectativas muito modestas. "Stir of Echoes" tinha como herói um operário de fios de alta tensão para uma companhia telefônica, casado com a moça que fora sua namorada nos tempos do colégio, e pai de um espevitado menininho. Koepp retratava com muito cuidado a realidade da vida daquele trabalhador "blue collar", e capturava com fidelidade a pulsante energia de uma comunidade de bairro em Chicago. Nesse sentido, depois que esse homem se submete à hipnose durante uma festa na quadra, a título de brincadeira, e acorda com a sensibilidade aguçada, apta a "sintonizar" a presença de uma moça desaparecida meses atrás em circunstâncias misteriosas, Koepp nos apanha pela jugular, pois nos atira dentro da jornada ao lado do cara. Koepp, aliás, se move como absoluto maestro na regência da orquestra ao trabalhar em temas do tipo. Já analisado neste blog, o seu "The Trigger Effect" também guarda similitudes com "Stir of Echoes", uma família suburbana assediada pelo perigo do inesperado, nominalmente o colapso da grid elétrica de Los Angeles que lança cidadãos comuns na luta pela sobrevivência. A trama de "The Box" goza de semelhante febre. Ao longo da história, sentimo-nos investidos no drama da família, e queremos antecipar o próximo terrível desdobramento. Enquanto parece mais dificultoso familiarizar-se a pessoas metidas nas mais estapafúrdias situações criadas em blockbusters, a menor escala de uma trama estilo "The Box", "Stir of Echoes" e "The Trigger Effect" nos convida à intimidade da infância de se sentar sobre o tapete do quarto, à noite, com as amigas, lanternas em mão, para contar e ouvir histórias macabras.


As atuações uniformemente sólidas me deixaram interessado em conhecer os trabalhos anteriores destes atores. Habituada ao horror, Natalie Brown, que aqui interpreta a mãe, parecerá familiar aos fãs do gênero. Ela atua na série de televisão produzida por Guillermo del Toro, "The Strain", sobre o surgimento de um terrível vírus que transforma as pessoas em vampiros, em Nova York. No tipo de personagem que ficaria excepcional nas mãos de Jennifer Connelly, Natalie Brown transcende a ingratidão do brevíssimo tempo do segmento para imbuir seu papel da profundidade cerne do projeto. "XX" não foi dirigido por mulheres acidentalmente. Aqui, buscou-se redescobrir o horror, recriá-lo pela perspectiva feminina, peculiar em todos os seus conflitos e dilemas. Através da performance disciplinada de Brown, é emblemático que Susan saia como a única sobrevivente da tragédia. Aos 30 e tantos, em que pese a aparência atraente, são pelas rugas de preocupação e detalhes como o cigarro consumido ao toque do vento frio no parapeito que compõem uma mulher real, e não uma caricatura da figura feminina. Mãe observadora & esposa devota, transcende papéis definidos pela sociedade e salta das telas como um ser humano de carne e osso, com direito a fraquezas e falhas, rescaldo de uma jornada da qual emerge como mulher falível, mas principalmente porto seguro de seu homem & crianças. Seu senso de responsabilidade pelo bem da família e a dor da culpa encontram representação perfeita na gráfica cena do pesadelo, Susan deitada sobre a mesa, sustentando os corpos da família através do sacrifício da própria carne. Para muitos, a surpresa escatológica parecerá um truque barato por parte de Vuckovic para pincelar seu segmento com o gore, mas quem sopesar o peso da condição feminina da cineasta e o modo como a mesma reverbera na manifestação criativa encontrará um profícuo solo de discussões para arar. Os demais membros do elenco também não deixam a desejar, apenas não têm muito o que desenvolver, visto que se trata de um show de/para mulheres. Jonathan Watton, cuja filmografia inclui um papel no último filme de Cronenberg, "Maps to the Stars", me faz pensar no "Louis Creed" de "Pet Sematary", o apavorante romance de Stephen King que, entre tantas coisas horripilantes, esmiúça com sensibilidade as coisinhas doces e simples do dia a dia de jovens pais, através da jornada de Louis, o médico recém-chegado à cidadezinha para assumir a vaga de coordenador dos serviços médicos da Universidade do Maine, e sua esposa Rachel. Ao lado de Clive Barker, Edgar Allan Poe e H.P. Lovecraft,  o assertivo King sempre foi um dos grandes senhores do horror, e prova-se ainda mais grandioso ao escrever sobre personagens "gente como a gente". King descreve com muita paixão os esforços destes jovens pais de criarem bem os filhos pequenos Gage e Elie, e ainda assim encontrarem pequenas maneiras de manter a chama da paixão acesa. Assim como acontece a todos, a chegada de crianças tem seu jeito de empurrar para a sombra o desejo que se mostrava tão palpitante no início da relação. Subitamente, coisas que um dia tinham sido tão importantes... já eram. Tornam-se semi-importantes, quiçá desimportantes. Filhos lembram seus pais da própria mortalidade. De um dia para o outro, você descobre que "não pode ir embora", e portanto não deve mais viver tão perigosamente, porque precisa cuidar dos filhos até que saibam se virar sozinhos, e não quer perder nenhum instante das crianças, desde o momento n° 1. No romance de Stephen King, havia doçura em momentos como quando Louis e Rachel confabulam "tirar as crianças" de casa para passar um fim de semana com os avós, e finalmente encontram a privacidade para "namorar", ou quando Louis a presenteia com um belo pingente, e Rachel, de olhos marejados, comenta que será a única peça que não tirará quando fizerem amor logo mais. Coube aos talentos da diretora Vuckovic e dos atores a árdua missão de nos oferecer um conteúdo igualmente rico, em tão pouco tempo. Dentre os demais, "The Box" me parece o segmento ideal para se destrinchar em uma longa-metragem. E por que não? Já aconteceu anteriormente. Cinéfilos familiarizados com "V/H/S" devem saber que o segmento "Amateur's Night", sobre um demônio sucubus e o azarado trio de rapazes que o acaba levando a um motel na esperança de sexo fácil, apenas para ser triturado, gerou uma longa-metragem chamada "Siren", onde o conceito foi ampliado e enriquecido. Ao mesmo tempo, posso soar contraditório, porém não sei se a engorda de um conceito criado dentro dos parâmetros da curta-metragem beneficiaria o sabor deixado pelo original. Explico: sim, adoraria um filme mais detalhado baseado nos personagens de "The Box", porque novas informações satisfariam meu apetite, todavia, não posso me imiscuir da defesa tão bem feita pelo grande Chaplin ao recusar rodar filmes sonoros & em cores, quando da chegada do technicolor, em 1922. Chaplin dizia que se rodasse um filme onde O Vagabundo falasse, estaria matando a criação. A magia do ícone residia no seu silêncio e no mistério do sorriso triste e resiliente. Uma vez eliminado o mistério, também estaria fulminada a ideia antecedente do mistério. Embora meu apetite reclame por mais de "The Box", os melhores pratos são os menores, justamente porque jamais satisfazem o apetite, e nos deixam querendo mais.

Mas o que habita a caixa? Alguns poderão ficar frustrados ao saber que a pergunta permanecerá na escuridão. A julgar pela forma como Danny transforma as vidas do pai e da irmã ao sussurrar ao pé do ouvido seu testemunho, podemos deduzir que se tratava de alguma coisa horrivelmente ímpar. Na caixa, poderia existir algo do mais surreal, como a visão enlouquecedora de uma fada amordaçada, a outra coisa mais ordinária, mas nem por isso menos repugnante, como fotos nojentas em preto-e-branco de pedofilia. Simultaneamente, já imaginou quão terrível seria... se nada existisse na caixa? Sim, terrível, afinal refletiria a evidência da inconstância da harmonia familiar, em frangalhos diante do vislumbre de um "nada" existencial. Se formos sinceros conosco, enxergaremos que, em nossa estupidez humana, parte das escolhas divisoras de água de nossas vidas foram tomadas pelas razões mais egoístas ou risíveis possíveis. Pelo exercício de imaginação do conteúdo da caixa, nossas mentes evocam as surpresas mais delirantes, mas, sejamos francos, seriam elas mais apavorantes que o fato de que tudo não passou de uma caixa vazia, e o menino simplesmente foi dormir para despertar sem vontade de comer, engatilhando a tragédia familiar culminante em três mortes? Eu entenderia o impacto do trauma de se abrir uma caixa e se deparar com uma fada minúscula enclausurada, tornozelos e pulsos presos por acessórios de couro sadomasoquista, uma visão digna de mandar a sanidade às favas, mas a aleatoriedade de se resolver autodestruir-se de uma hora para a outra soa mais tétrica e aterrorizante. Imagino que em nossas vidas jamais veremos "Sininhos", mas talvez o que exista dentro de nossas mentes torne o impossível & surreal um mero passeio no parque, em comparação. A maldade do coração humano não precisa de embalagens para presente, é real e íntima. Pouco importa quão rico em amigos ou bens você se julgue, uma noite dessas haverá um monstro esperando para pular em cima de ti assim que você dobrar na esquina.


Talvez o "Patinho Feio" da antologia tenha sido o segmento dirigido por Annie Clark (foto), "The Birthday Party". Em seu primeiro trabalho como diretora, Clark consegue filmar uma trama exasperante, colocando-nos no desesperador encalço da protagonista, vivida por Melanie Lynskey. Intriga-me como uma aventura passada exclusivamente dentro de uma casa emula parte da energia de um "Shallow Grave", por exemplo, o filme de horror britânico de Danny Boyle, também ambientado dentro de uma casa, desesperador e sufocante nas reviravoltas envolvidas em se ocultar o corpo de um viciado em heroína que morreu ao lado de uma mala abarrotada de dinheiro sem procedência conhecida. Clark reveste seu segmento com o manto da clássica comédia de humor negro, um bem-vindo contraponto ao quase generalizado horror das outras tragédias. Ela afirma: "Eu não gosto de filmes de horror. Pode soar óbvio, mas eles são tão assustadores para mim. Então eu pensei, se horror é sobre as coisas que mais nos apavoram, como eu poderia reproduzir isso, com minha própria voz? E a voz acabou sendo a comédia de humor negro. Eu penso que a estranheza do mundo ao redor da protagonista e a maneira como o segmento foi estilizado ajudaram-me enormemente a desenvolver o absurdo de toda a premissa. Porque, na superfície, se você lê-la – uma mãe acordando, encontrando o marido morto, e tentando blindar a filha da verdade por apenas algumas horas a mais até a festa – eis uma premissa muito, muito negra". A diretora nomina a principal influência por trás das escolhas de "The Birthday Party". O nonsense nos faz pensar no Cronenberg da década de 70 ("Shivers" & "Rabid"), porém principalmente em Lynch. Clark conta: "O que acontece com David Lynch... é que me parece que ele costuma apanhar dois polos distintos, para trabalhar a partir daí. Como em Twin Peaks, os dois polos são os anos 80 & 50, e por causa de tanto anacronismo vindo de todos os lados, concebe uma timeline que passa a impressão de se dar em um mundo inteiramente distinto, paralelo. Temos um timeframe indefinido. Assim, nesse sentido, eu escolhi as décadas de 60 & 90 como referências visuais e tentei mesclá-las".

Apesar de raso, "The Birthday Party" vale como exercício de estilo, e por mais que Clark cite como inspiração as obras de Lynch, por uma razão qualquer, o segmento me fez pensar nas comédias românticas estreladas por Tom Selleck na segunda metade da década de 80/primeira metade dos anos 90, tipo "Adorável Sedutora" & "3 Solteirões & uma Pequena Dama". Se Clark desejou criar um "universo paralelo", definitivamente resgatou um ingênuo frescor oitentista, há muito perdido, o último ingrediente que você esperaria em um filme de terror, uma salada de gêneros semelhante a "Rec 3", o thriller espanhol que deu vida nova à franquia, cortesia da capacidade de ousar ao realocar a proposta do incontrolável vírus da Raiva para dentro de uma festa de casamento! No final, o segmento cumpre a função de adicionar tempero ao prato principal, mas nos deixa com a impressão de experimento. Não fosse o exercício da mistura e o desfile de estilos, a trama não teria nem mesmo justificado a duração de uma curta-metragem, pois simplesmente não há material para fermentar. Outrossim, como nos mostrou o brilhante De Palma em seus momentos menos consagrados, como "Síndrome de Caim" ou "Femme Fatale", o romantismo do olhar proporciona visuais que, se não substituem, ao menos compensam qualquer carência narrativa. A desenvoltura de Clark atrás das câmeras sublima o escasso set-up, e nos brinda com um energizado, estilístico jogo de cena. "The Birthday Party" seria, portanto, um saboroso "fast food", um tira-gosto. O prato principal, nós o encontramos nos segmentos entre os quais o de Clark se insere.

Quem assistiu ao impressionante "Almas Gêmeas", de 1994, se surpreenderá ao reencontrar Melanie Lynskey no papel de mamãe estressada. O filme pelo qual Peter Jackson iniciou a longa caminhada até o comando de "O Senhor dos Anéis", "Almas Gêmeas" também catapultou as carreiras dos membros do elenco, e deu à atriz Kate Winslet seu primeiro papel de relevância, apenas três anos antes do estrelato. Baseado no chocante caso Parker-Hulme, ocorrido em 1954, em Christchurch, Nova Zelândia, "Almas Gêmeas" reconstituía a amizade de duas meninas vindas de diferentes realidades sociais, que desenvolviam uma paixão platônica uma pela outra, e criavam um mundo imaginário por meio do qual sobreviviam às agruras da adolescência. Quando mundo imaginário & real passam a se misturar sem clara distinção, os resultados são horrendos. Ainda uma menina no filme de Jackson, aqui, Lynskey, já mulher, se assemelha à Winona Ryder, e interpreta com muito gosto o papel da mamãe determinada a criar o mundo perfeito para a filha, apenas para tragicamente lhe causar um trauma maior. Para quem a reconhece do filme de 1994, "XX" lhe proporcionou o encontro com a justiça poética, ou melhor, cinematográfica: em "Almas Gêmeas", matava - figurativa & literalmente (à base de tijolos estocados dentro da meia de nylon) - a mãe, e em "XX", finalmente como adulta, sofre pelo bem-estar da filha, que aqui não deve ser muito mais nova do que a atriz, quando trabalhou com Jackson, em 1994.


No apanhado geral, essa comédia de humor negro não quebra o ritmo, e se presta a ilustrar o conjunto com novidades na paleta de cores, um "happy hour" antes "do bicho voltar a pegar" com "Don't Fall", esta sim uma clássica história de horror digna de discussões ao redor da fogueira. Roxanne Benjamin (foto) dirigiu com muita segurança o segmento que nos remete ao clássico gênero "survival", cujo cardápio inclui desde ameaças extraterrestres, como em "Alien O Oitavo Passageiro", a canibais, como em "Viagem Maldita", de Alexandre Aja, rodado em 2006, refilmagem do original de Wes Craven, "The Hills Have Eyes", de 1977. A trama se assemelha à introdução de um excelente suspense do ano passado, "The Darkness", dirigido por Greg McLean, sobre uma família egressa de uma excursão a um sítio arqueológico, que acaba levando consigo uma espécie de demônio ao regressar para a cidade. O filme, estrelado por Kevin Bacon, encadeava uma série de intrigantes desdobramentos, dando-nos um espetáculo à velha moda, digno de prender a atenção, estilo "A Árvore da Maldição", o subestimado, desconhecido e maravilhoso thriller do grande William Friedkin. No caso de "Don't Fall", a diretora se focou no conceito de um demônio à solta na natureza selvagem, algo nos moldes do "Wendigo" sobre o qual Stephen King tanto escreveu em "Pet Sematary", e fez bom uso do choque do primeiro contato. Como não precisou se preocupar com um desenvolvimento à altura da duração de longa-metragem, Benjamin usou a criatividade para engordar o que para grandes produções não passaria de prólogo, e se divertir com os poucos minutos, rodando um filme tenso e cheio de mistérios fadados à incógnita.

O segmento é elevado a um competitivo patamar graças à magistral fotografia de Tarin Anderson, cujos créditos incluem a curta "Tape 49", espinha dorsal de "V/H/S 2". Ela exibe, com lentes muito amplas, tomadas da imensidão capazes de tirar o fôlego. Sua elegância o enriquece com uma atmosfera quase épica, e uma visão da abóbada celeste riscada por estrelas cadentes traçadoras de arcos dourados de nos deixar embasbacados. Se levarmos em conta que o elenco não teve como trabalhar motivações, a forma como rascunham personalidades bem delineadas àquelas pessoas tão transitórias reforça o talento envolvido no processo criativo. Breeda Wool se destaca como a assustada Gretchen, peixe fora d'água cujo corpo se torna objeto da possessão do demônio indígena. A cena em que desperta no meio das rochas, à noite, e testemunha a aproximação da entidade que lhe tomará o corpo salta aos olhos, especificamente pela reação genuína e apavorada da atriz. Angela Trimbur tem causado uma forte impressão no circuito cult e lhe sobra talento para virar a nova rainha dos filmes "indie", à la Kate Lyn Sheil. Ela será brevemente vista no aguardado "Psychopaths", de Mickey Keating, diretor do ótimo "Ritual", onde interpretará o papel de uma serial killer misândrica. O filme "Psychopaths", inclusive, tem causado celeuma por onde passa; no festival de cinema de Tribeca deste ano, deixou as pessoas falando a respeito. Tecerei considerações sobre o ambicioso projeto ao final da resenha. Aqui em "Don't Fall", Trimbur dá vida a uma das amigas, e tem uma morte terrível. Seu rosto, bastante expressivo, vira uma máscara de pavor quando o horror os assalta, principalmente na cena em que ela e um amigo tentam fazer sentido dos estranhos fatos através da janela embaçada do trailer, por onde não se vê muita coisa.

Sobre sua narrativa mais straight forward, a diretora Benjamin explica o intento: "Para esse trabalho, eu quis fazer algo que as pessoas dissessem 'Estamos mesmo diante de um filme de terror!' desde o primeiro segundo. Por isso eu o abri com as title cards que entram de maneira extravagante. Todos os elementos conformam-se com a fórmula clássica do horror. Eu apenas queria brincar com a fórmula, e me deixar levar por um passeio na montanha russa. Esse é o grande barato de se rodar uma curta-metragem, você não precisa se preocupar com um grande volume de desenvolvimento de personagens ou reviravoltas, então tudo o que tem a fazer é se divertir com a experiência!". Ela ainda fala sobre os efeitos especiais utilizados para retratar a criatura: "Eu trabalhei com Russell FX, que é ótimo. Eles haviam trabalhado comigo em 'Southbound' (outro filme de horror, também dirigido por Benjamin). Eles são maravilhosos. Eu lhes dei uma ideia do que eu gostaria de ver, tipo essa criatura surgindo da terra seca desse lugar deserto, e iniciamos a criação a partir daí. Deveria saltar aos olhos como uma coisa seca, e todos seus movimentos deveriam parecer desajeitados, desconectados, como um louva-a-deus. É por isso que previamente eu havia mostrado um louva-a-deus, no começo, porque era parte importante do conceito gráfico. Eu acho que ele botou pra quebrar! As pessoas devem achar a criatura esquelética e seca, quase como uma múmia ao voltar à vida". O demônio, memorável detalhe do segmento, habitará seus pesadelos por algum tempo. Quem assistiu ao brutal "Martyrs", filme francês de Pascal Laugier, se recordará que um dos elementos da trama consistia na aparição de uma coisa magérrima e horrenda, na verdade uma mulher, algoz de uma menina esquizofrênica assombrada pelo remorso. Claro, a criatura não existia, emblematizava a consciência atormentada da moça, e somente ela a enxergava. Quando a criatura lançava seu implacável assalto sobre a menina, na verdade era a própria quem estava se machucando, batendo-se contra móveis e cortando-se com lâminas. O monstro de "Martyrs", uma visão animalesca e impossivelmente magra, causou grande impacto à época do lançamento, e a escolha de Benjamin ao criar seu monstro parece render homenagem à assombração de Laugier.


Karyn Kusama (foto), diretora do último segmento, não é tímida ao gênero. Ela dirigiu um dos melhores filmes de terror do ano passado, "O Convite", e para bolar uma aventura para "XX", escolheu rascunhar um argumento partindo do desfecho de um clássico do passado, o aterrorizante "O Bebê de Rosemary", de Roman Polanski, sobre uma ingênua jovem cujo marido, um ambicioso ator da Broadway, "cede" o ventre da esposa para os vizinhos, uma influente família de satanistas novaiorquinos, de modo que ela possa gerar, totalmente alheia à ardilosidade, o filho do Diabo. Rodado em 1968 e indicado a dois Oscar (vencedor de Melhor Atriz Coadjuvante para Ruth Gordon, pelo papel da tétrica vizinha), "O Bebê de Rosemary" consta de toda lista dos melhores filmes de terror do século XX. Curiosamente, "O Bebê de Rosemary" foi uma das grandes oportunidades perdidas por Burt Reynolds na juventude: em 1968, aos 32 anos, ele fez testes para ficar com o papel do marido de Rosemary, mas Polanski acabou optando pelo excelente John Cassavetes. Kusama explica o impacto de "O Bebê de Rosemary" sobre seu imaginário: "E se uma personagem como a Rosemary tivesse sido capaz de escapar inicialmente das circunstâncias, o que teria sido atirado no seu caminho, ao longo dos anos? Porque o que acho interessante é que as ramificações de sua vida ainda continuariam bem apavorantes, sabe? A ideia de você ter um filho fora de controle, e à medida que ele cresce, possa se tornar perigoso, de um jeito que você não consiga mais fazer frente a sua força, porque ele não é mais criança. Isso me tocou como uma história muito humana, e me deixou intrigada o impasse de que mesmo se Rosemary tivesse conseguido se evadir daquele meio, com o filhinho, a vida ainda lhe teria sido muito ingrata".

"Her Only Living Son" imagina os desdobramentos para aquele terrível evento do filme de 1968, e reencontra a personagem dezoito anos depois, mais cansada pelo peso da fuga sobre os ombros, tentando juntar os cacos da vida após a horrenda traição do ex-marido, fazendo o melhor para proteger o filho das garras de um mal invisível que jamais os perdeu de vista. Uma história sobre o amor de mãe por filho, o anticristo, nos levaria a crer que seria Andy o personagem a se temer, porém Kusama, astuta demais para cair no clichê, prefere se concentrar nas implicações da escolha de Cora, e no assédio moral de inimigos cujos rostos se adaptam e camuflam muito bem entre outros de gente do dia a dia. Christina Kirk desempenha seu papel com maravilhosa vulnerabilidade, e retrata muito bem as consequências psicológicas de uma perseguição a longo prazo. Todos nós temos família, e concordaremos que seria preferível o cometimento de uma injustiça sobre nossas cabeças a algum mal a um ente querido. Kusama explicou que as implicações da decisão de Cora ao fugir a intrigavam, e a cineasta agiu corretamente ao sugerir apenas sutilmente a transformação a ocorrer na puberdade de Andy, preterindo-a em nome do genuíno horror advindo de pessoas com notórios traços de psicopatia, rondando seu lar, mesmo que por algum tempo "invisíveis", desde o momento do rompimento com o ex-marido, quase vinte anos antes.

Ela alcançou o objetivo graças à afinidade com o gênero e, em parte, às performances sólidas do elenco secundário, com especial menção ao talentosíssimo Mike Doyle, um ator já utilizado por Kusama no excepcional "O Convite". Como todo character actor com desenvoltura no ofício, Doyle transita muito facilmente pelo caminho entre duas vias. Inicialmente, surge como o quintessencial, simpático e solícito homem comum, o carteiro boa praça e empático aos dramas da vida daquela mãe solteira, o tipo de personagem que fez de Jimmy Stewart uma estrela de cinema em filmes de Frank Capra; posteriormente, em um instante verdadeiramente inquietante, vagarosamente, Doyle vai deixando a máscara cair, revelando que sabe mais sobre Cora do que ela imaginava. O rosto de Christina Kirk vai desmoronando, à medida que se toca que aquele homem tão solícito, que ao longo dos últimos anos sempre interpretara muito bem o papel de simpático carteiro, está metido até o pescoço no esquema dos satanistas, uma parte da agenda imunda. Sobre a sensação de impotência enfrentada por Cora, ao se descobrir cercada por satanistas, Kusama discorre, mais especificamente acerca da reunião na sala da coordenadora: "Há algo errado com esse menino, mas então ela se depara com a resposta mais arrepiante da confusão, 'não vamos fazer nada a respeito'. Na verdade, os professores puxam para si a responsabilidade de protegê-lo, mais do que a menina atacada. É uma discreta cena, neste modesto, minúsculo segmento, mas eu definitivamente me diverti ao escrevê-la, porque me fez pensar no tipo de perversidade a permear a realidade diária vivida hoje". Surpreendentemente, Kusama acha espaço no exíguo tempo para temperar a trama com uma linda mensagem sobre amor materno, e o modo como o comprometimento de uma mãe transcende as mais terríveis ameaças, os mais malévolos antagonistas. Diante da tão sombria perspectiva de reinado satânico, mãe e filho se redimem ao escolher a morte, e o segmento, embora pesado e claustrofóbico, termina em uma nota positiva, a maneira perfeita para "embalar" o filme como um conjunto, dentro de um lindo e sentimental pacote de presente, tal qual aquele objeto da curiosidade do menino Danny em "The Box".

Talvez "XX" prove-se intrínseco a mulheres, afinal de contas, vez que dirigido pelas mesmas, somente o coração feminino será capaz de capturar a gama de temas explorados. Eu enxerguei o heroico voluntarismo da mulher enquanto esposa/mãe do lar em "The Box", o forte remorso a atormentá-las na difícil missão de criar filhos em "The Birthday Party", e o amor abnegado de mãe em "Her Only Living Son". Os criadores conseguiram experimentar com um maravilhoso formato, já tão bem explorado na franquia "V/H/S", para nos brindar com algo refrescante, palatável e assertivo. Acima da questão do sexo dos criadores, o filme se sustenta com as próprias pernas pelo talento criativo envolvido na concepção, e esbanja uma elegante fotografia como abre-alas para uma antologia digna das fantasias mais delirantes de Poe, Lovecraft ou Barker, homens do horror que, surpreendentemente, compreenderam as mulheres com incomum sensibilidade, e as desenharam, pela pena ou pela câmera, com belíssimos contornos, com o perfeccionismo à altura destas maravilhosas, complicadas criaturas. A visão de Natalie Brown, como Susan Jacobs, anestesiando as preocupações com um cigarro, na varanda frienta, enquanto abraça o próprio peito, com frio, e sustenta uma expressão angustiada, me lembra Clare Higgins contemplando o próprio reflexo no espelho, com o rosto salpicado de sangue, após o primeiro homicídio no sótão, em "Hellraiser", de Clive Barker. Nos dois instantes cinematográficos, as duas personagens parecem lutar inutilmente contra a consciência, afoitas por um senso de lógica, da racionalidade dentro do caos do mais trevoso horror. Eu não teria sabido como pontuar a semelhança entre dois momentos aparentemente tão díspares, até me lembrar que há coisas sobre as quais a lógica deita, sim, sua luz, e há outras tantas somente acessíveis a corações devassos.

Todos os direitos autorais reservados a Magnolia Pictures & Magnet Releasing. O uso do trailer & imagens é para efeito meramente ilustrativo da resenha. 

Concluo a resenha tecendo alguns comentários sobre o suspense "Psychopaths", o novo filme do diretor Mickey Keating, um talentoso cineasta especializado no gênero que vem criando uma belíssima filmografia para si, com títulos muito interessantes e elogiados. Desde "Ritual", de 2013, já analisado neste blog, até o recente "Carnage Park", a evolução como cineasta de primeira grandeza de Keating tem acontecido a olhos vistos. Seu último filme, "Psychopaths", foi exibido no festival de Tribeca, neste ano de 2017. Considerado seu mais ambicioso trabalho, com "Psychopaths", ele presta reverência a mestres do passado, nesta trama que, em linhas amplas, revolve uma surreal noite onde serial killers e almas perdidas - uma ex-paciente de hospital psiquiátrico que se imagina viver em um mundo glamouroso nos anos 50, uma serial killer fetichista (Angela Trimbur, de "Don't Fall", vocês a verão no clip abaixo) que odeia homens e os atrai para o porão de casa para torturá-los e matá-los, um estrangulador que vitimiza mulheres ingênuas, e um hitman mascarado cujo último trabalho o levará a um nightclub do submundo - colidirão, gerando trágicas consequências. Abaixo, colacionei um clip do filme, que nos mostra as prováveis influências por trás deste grande diretor. A técnica de split screen e o mise-en-scène nos remetem ao Brian De Palma dos tempos de "Vestida para Matar", "Um Tiro na Noite" e "Dublê de Corpo", a fantasia de couro sadomasoquista escapuliu de algum pesadelo de Clive Barker, e, finalmente, o esplendoroso trabalho da fotografia reitera a tese de que assim como ocorre a trilhas sonoras, a atmosfera também representa uma importantíssima parte do percurso. Reparem no excelente uso de luzes para criar o noir, em como o noir principia a imersão nos sonhos, nos mistérios da calada da noite. Tudo fruto do noir. Um de meus filmes de horror preferidos, "w Delta z", contava com uma fotografia que contava a história daquelas tristes pessoas antes mesmo que os atores proferissem as primeiras linhas. Pela palpitante paixão sentida no curto trecho, por "Psychopaths" sinto a mesma empolgação de 2014, às vésperas do lançamento de "Under the Skin", de Jonathan Glazer. E não importa se o resultado ficar aquém do esperado: um artista pode cometer quase todos os pecados, menos o da chatice. E mesmo que diretores estilísticos como Brian De Palma, Clive Barker, Cronenberg e agora Mickey Keating se compliquem ao darem passos maiores do que as pernas, jamais deixam de empolgar.

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