domingo, 28 de abril de 2013

Cemitério Maldito ("Pet Sematary", 1989) - Mesmo após tantos anos, este filme perdura como a mais apavorante adaptação cinematográfica de uma obra do mestre Stephen King.


A família Creed muda-se de Chicago para a pequena cidadezinha de Ludlow, Maine. Louis é médico, e aceitou o cargo de diretor do Departamento de Medicina no campus da universidade. Com a sua inteligente e bonita esposa Rachel, Louis faz o melhor para cuidar bem dos filhos, a espevitada menininha Ellie e o bebê Gage. Acompanhando a família, o gato dos Creed, um dócil British Shorthair chamado Church. Depois da mudança, tornam-se amigos do senhor Jud, um velhinho que mora na casa defronte, do outro lado da estrada, e que os leva para passear no “cemitério de animais”, logo atrás da nova propriedade dos Creed, onde as crianças da época de Jud costumavam enterrar os bichinhos mortos. Pelo fato de a autoestrada atravessar a região, o número de mortes de animais de estimação sempre foi muito grande. Para além do cemitério de animais, existe um vasto bosque, e Jud promete a Louis lhe contar mais sobre o lugar que foi terra da extinta tribo dos MicMac.

Um dia, um jovem estudante chamado Victor Pascow é trazido para a emergência do campus após um horroroso acidente automobilístico onde sofreu fratura craniana. O jovem morre, porém antes de partir, avisa ao médico para não se aventurar no bosque. O estudante se dirige a Louis pelo nome e toda a situação parece inverossímil ao médico, vez que jamais haviam se conhecido. Na mesma noite, tem um terrível pesadelo, que parece muito real, onde Victor visita Louis e diz que para além dos bosques existe o solo onde os índios enterravam os mortos, e que jamais deve andar por ali.

Church, o gatinho de Ellie, é morto ao ser atingido por um caminhão na estrada defronte à casa. Isso acontece quando Ellie, Rachel e Gage se encontram em Chicago, visitando os pais de Rachel. Jud pede para que Louis coloque o animal morto em um saco e o acompanhe através do bosque, até a terra dos MicMac, para além do bosque, onde enterram Church. Naquela noite, Church regressa dos mortos, ligeiramente diferente de como se comportava antes do acidente. Parece mais lento e malévolo, como uma paródia de si, e chega a estranhar o dono. Jud conta a Louis sobre o lugar, que foi o mesmo solo que lhe devolveu o cachorro morto, quando criança, e que fez aquilo porque sabia o quanto Ellie amava o gatinho e sofreria com sua morte.

Algum tempo depois, Gage é apanhado em cheio por uma carreta, na mesma traiçoeira estrada. Destroçado pela culpa e dor, Louis pondera desenterrar a criança e levá-la às terras dos MicMac. Jud procura dissuadi-lo, conta-lhe o caso de Timmy Baterman, um rapaz local que morrera durante a Segunda Grande Guerra. Devastado pela dor, o pai de Tim resolveu enterrá-lo no solo indígena para além dos bosques, e o corpo reanimado de Timmy retornou à cidade, aterrorizando os moradores locais. Jud e mais três amigos precisaram atear fogo na casa com Timmy dentro, para acabar com aquela horrorosa situação. O pai, cego de amor pelo filho, correu para dentro da propriedade e morreu ao lado de Timmy no incêndio.

Rachel suplica ao marido que a acompanhe com Ellie para Chicago, mas o ressentimento de Louis pelo sogro Irwin ainda está muito à flor da pele. Com a esposa e a filha distantes, Louis desenterra a criança. A todo instante, enxerga o espírito de Pascow, que suplica para que não cometa tamanha insanidade. Durante a estadia na casa dos avós, Ellie tem um assustador pesadelo, onde Pascow procura alertá-la de que o pai está em vias de fazer algo muito ruim, e que resolveu ajudar o médico porque, no passado, Louis tentou salvar a sua vida. Rachel se assusta com a conversa da filha, porque se recorda do rapaz atropelado, no entanto, não imagina como a filha o conheceria. Ela liga para Jud, atrás de Louis, e o velho imediatamente compreende que o vizinho levará adiante o intento de enterrar Gage na terra MicMac. Rachel resolve retornar imediatamente ao Maine.

Louis carrega o corpo da criança enrolado em um lençol através do fantasmagórico bosque. Durante a travessia, tem a certeza de avistar ao longe as formas do assustador demônio Wendigo, observando-o sorridente. Depois de enterrar a criança no solo MicMac, o médico regressa pela mesma trilha para sua casa. Ao chegar, cai exausto e inconsciente na cama. Horas mais tarde, durante a madrugada fechada, Gage entra no quarto, abre a maleta do médico e apanha o bisturi. O corpo reanimado entra então na casa de Jud e mata o velho. Quando Rachel está para subir o alpendre, depois de ter feito todo o caminho de volta ao Maine, escuta a voz da falecida irmã vindo da propriedade do outro lado da estrada. Zelda, a irmã de Rachel, falecera na infância vitimada por meningite, e Rachel jamais esquecera as terríveis lembranças de como a irmã doente apreciara atormentá-la para descontar a frustração pela saúde debilitada. Rachel entra na casa de Jud e fica chocada ao encontrar o filhinho Gage. Ela o abraça, sem perceber que a criança está munida de um bisturi afiado.

Louis desperta na manhã seguinte, e ao se deparar com as pequeninas pegadas lamacentas no carpete, compreende que o filho retornou da terra dos MicMac e andou pela casa enquanto o pai dormia. Mais preocupante ainda, mexeu na sua maleta e levou o bisturi. É quando o telefone começa a chamar. Do outro lado da linha, o corpo reanimado de Gage avisa ao pai que terminou de brincar com o corpo da mãe, e que agora é a sua vez. Louis prepara várias doses de morfina e segue para a casa do velho. No quintal, dá com Church, o gato reanimado, e sacrifica o animalzinho com uma das doses. Ele então adentra na propriedade, e repentinamente o corpo de Rachel, aberto a golpes de bisturi, despenca sobre o médico. Gage ataca o pai e chega a acertá-lo com alguns golpes, com a lâmina, mas Louis é mais ágil, e penetra o pescoço da criança com a injeção de morfina. Louis banha a casa de gasolina e ateia fogo, levando consigo apenas o corpo de Rachel. O espírito de Pascow observa a cena, e pela última vez implora para que Louis não visite o terreno dos índios. O médico racionaliza que Gage voltou maléfico pois demorou a levar o corpo do filho. Com a mulher, será diferente. Naquela mesma noite, Louis espera pelo regresso da esposa morta jogando cartas no chão da cozinha. À meia-noite, Rachel retorna, o rosto outrora belo ligeiramente diferenciado pelos golpes de bisturi e pela sujeira de terra. Ela sorri ao marido, e os dois se abraçam.

Filme incômodo e aterrorizante, ao mesmo tempo surpreendentemente sensível e humano. Baseado no extraordinário romance de Stephen King, é uma adaptação em sua maior parte fiel à fonte original. A diretora Mary Lambert, que lamentavelmente após a produção jamais voltou a comandar sucesso semelhante, soube como condensar o extenso conteúdo do romance em 100 minutos de duração, sustentando a tensão e o suspense o tempo inteiro. Diferente da maioria dos filmes de mesmo gênero, Lambert também obteve êxito em fortalecê-lo com os momentos de tristeza, doçura e emoção, tão comuns à prosa de King. Quem leu o romance original compreenderá que Stephen King jamais foi simplesmente um “escritor de horror”. Muito embora saiba ambientar os personagens em impressionantes tramas envolvendo o sobrenatural, o seu assertivo olhar sobre a condição humana nos fala a um nível bastante pessoal, em uma intimidade que poucos autores souberam reproduzir na escrita. Normalmente, você seria levado a pensar que tiramos pouco proveito de filmes de horror para nossas vidas individuais. Realmente, um bom filme de horror cumpre sua proposta ao provocar apreensão e medo, no entanto, obras de King são mais ambiciosas e gratificantes, e das mesmas tiramos enorme proveito, pois vão um pouco mais além.

O cerne do filme – a influência de um demônio oriundo da mitologia das tribos indígenas da América do Norte sobre o território anteriormente ocupado pelos MicMac – é fantástico e próprio ao gênero horror, todavia os dramas particulares que orbitam o referido núcleo sobrenatural nos parecem familiares e reveladores e, portanto, imprimem à estória incomum e inesperada profundidade psicológica, até mesmo nos convidando à reflexão. Mais acentuadamente no romance original, porém também presente na adaptação cinematográfica, Pet Sematary aborda temas atemporais e importantes, válidos para discussão, questões que nos ajudam a pensar em nossas próprias vidas. A começar pela doença terminal de Zelda e a morte do gatinho Church, King nos estimula a simpatizar com os personagens, até porque suas dificuldades também se assemelham `as nossas. Creio que todos nós conhecemos a dor da perda de um parente amado levado por uma doença terminal. O horror de Rachel ao falar sobre a morte parece justificável, face ao que passou com a irmã doente, e a forma aterrorizante com que se recorda de Zelda talvez se deva muito ao fato de que era uma criança quando toda a confusão aconteceu, quando a morte da irmã deixou uma marca indelével na sua personalidade, trauma que parece mais explícito hoje, já mulher crescida, esposa e mãe de duas crianças. Os sentimentos de Rachel pela irmã parecem contraditórios: ela a ama, pois Zelda é, afinal de contas, sua irmã, apenas uma criança tomada por uma horrorosa e letal moléstia, e nada fez para merecer um destino tão triste; ela a odeia, porque, por causa da doença, Zelda se tornou uma criatura monstruosa, horrorosa, vingativa, maliciosa e assustadora, os olhos cheios de ressentimentos contra Rachel. Zelda não tem como deixar de ressenti-la: Rachel terá toda uma vida pela frente, Zelda jamais terá a oportunidade de começar a própria. Ainda acerca da maneira como lidamos com a morte, a forma como Louis reage à perda de Church parece dolorosamente familiar. Quase todos descobrimos sobre a morte quando crianças, através de bichinhos de estimação. Todos conhecemos a sensação, não é mesmo?Quando criança, cuidamos de um bichinho e lhe devotamos carinho e amor incondicionais, e o animal retribui com ainda mais afeição, até que os fatos da vida nos atingem na cara pela primeira vez quando morrem mais cedo do que esperávamos. É como um “preparatório” para a vida adulta, quando passamos a perder pessoas – não mais animais - que amamos, e, ironicamente, nos sentimos igualmente confusos e perdidos como quando havíamos perdidos os nossos animaizinhos.

No romance de King, a cena em que Louis encontra o gatinho morto é brilhantemente construída, e o talento do escritor nos permite compreender a extensão do amor do médico pelo animalzinho, e a tristeza pela sua morte. King escreve “Pela primeira vez tomava consciência de que amava Church — talvez não com o mesmo fervor de Ellie, mas a seu próprio modo. Nas semanas que se seguiram à castração, Church tinha se modificado, ficara gordo e indolente, caíra num perambular rotineiro entre a cama de Ellie, o sofá e a vasilha de comida. Raramente saía de casa. Agora, morto, olhava para Louis como o velho Church. A boca, pequena e ensangüentada, cheia dos seus dentes de felino, afiados como agulha, parecia congelada num rosnado de ataque. Os olhos sem vida, mesmo assim pareciam furiosos. Era como se depois da curta e estúpida fase de uma existência como eunuco, Church redescobrisse sua verdadeira natureza no momento da morte”.

A dinâmica de casal entre Rachel e Louis é impecável. Parece evidente no filme, mas na fonte original salta aos olhos ainda mais explícita. Você sente que estes dois são reais e aprofundados, complexos como as pessoas que conhecemos e com quem nos relacionamos no dia a dia. Na estória, são jovens pais, aos trinta e poucos anos, superando unidos as pequenas dificuldades diárias. Com dois filhos, a vida do casal pareceu focar-se em criá-los bem, no entanto, ainda assim encontram oportunidades para reacender a chama da paixão. No livro, há tocantes momentos que jovens casais, pais de primeira viagem, ao lê-los, reagirão com sorriso familiar e conhecedor, tais como quando Louis a presenteia com um colar de safiras, e Rachel se emociona, prometendo que vai usá-lo quando fizerem amor naquela noite. No romance, King escreve:

Abriu o presente sentada num degrau, viu a caixa da Tiffany e quase deu um grito de satisfação. Removeu o enchimento de algodão e ficou imóvel, de boca ligeiramente aberta.
Bem? — ele perguntou ansioso. Era a primeira vez que lhe comprava uma verdadeira joia e estava nervoso. — Você gosta?
Ela estendeu a fina corrente de ouro nos dedos e voltou a pequena safira para a luz do corredor. Depois girou-a lentamente e a pedra pareceu atirar frios raios de luz azulada.
Oh, Louis, é tão maravilhoso...
Rachel começou a chorar e Louis se sentiu ao mesmo tempo comovido e alarmado.
Ei, meu bem, não faça isso — disse. — Ponha o cordão no pescoço.
Louis, nós não podemos... Você não pode comprar...
Chiií — disse ele. — Consegui guardar algum dinheiro desde o Natal passado... E não foi assim tão caro...
Quanto custou, Louis?
Nunca vou dizer, Rachei — respondeu solenemente. — Nem um exército de torturadores chineses conseguiria me fazer contar... Dois mil dólares.
Dois mil...!
Ela o abraçou com tanta força e tão de repente que quase o fez rolar pela escada.
Louis, você está louco!
Ponha no pescoço — ele pediu de novo.
Rachel obedeceu. Louis ajudou-a no fecho. Depois ela se virou com um sorriso.
Quero subir e dar uma olhada no espelho — disse. — Quero me curtir um pouco.
Então se curta um pouco — disse ele. — Vou colocar o gato lá fora e apagar as luzes.
Quando fizermos amor — disse Rachel, olhando tristemente nos olhos dele —, vou tirar tudo, menos isto.
Apronte-se, então — disse Louis, e ela riu.

Semelhante ternura também é evocada quando Rachel aproveita que os meninos estão fora de casa e prepara um banho para Louis e os dois terminam fazendo amor. Estes momentos jamais parecem vulgares, e carregam um tipo de delicadeza que casais verdadeiros os invejariam. Apesar da pouca idade, ambos aos trinta e poucos, Rachel e Louis têm uma bela história para contar, onde uma série de percalços teve de ser superada para que ficassem juntos, entre eles o antagonismo que o pai de Rachel, Irwin, sente pelo genro. No romance, as motivações de Irwin parecem originar-se da frustração pelo fato de Louis ter “carregado” a filha para longe da casa dos pais. Rachel sendo a filha sobrevivente, parece natural que os pais tenham se apegado tanto à moça, porém Irwin realmente ressente o genro de uma maneira doentia e, mais tarde, chega ao cúmulo de responsabilizá-lo pela morte do bebê Gage. No livro, Irwin cospe o ódio ao genro com palavras devastadoras, que foram recriadas para o filme Já sabia disso quando ela se casou com você. “Vai comer o pão que o diabo amassou e muito mais”, eu disse. E agora olhe isso... Este caos. Sempre tive certeza de que as coisas acabariam assim... Assim ou de forma parecida. Percebi o tipo de homem que você era desde a primeira vez que o vi. - Goldman se inclinou para a frente, exalando um bafo de scotch. - Você nunca me enganou, seu medicozinho metido a besta... Induziu minha filha a um casamento estúpido, irresponsável, depois a transformou numa lavadora de pratos, depois deixou o filho dela ser atropelado na estrada como um... um animal.

Na versão para o cinema, a diretora Mary Lambert conseguiu reproduzir a magnífica química entre Louis e Rachel graças a seus dois atores principais, absolutamente perfeitos para os papéis e, talvez mais importante, perfeitos um para o outro. O resultado do filme depende diretamente da maneira como os dois atores principais reagem um ao outro, uma escolha equivocada teria funcionado como o beijo da morte para a produção, a estória jamais teria decolado, não teríamos acreditado por um minuto no drama que os protagonistas atravessam. Felizmente, Lambert não poderia ter escolhido pessoas melhores. Estes dois realmente pertencem ao mesmo frame.

As instigantes questões filosóficas propostas tanto pelo livro quanto pelo filme provocariam interessantíssimas discussões e jamais seria possível chegar-se a uma resposta satisfatória. Se por um lado enterrar o gato Church e, depois, o filho Gage no território MicMac vai de encontro à ordem natural da vida, por outro, eu compreendi as escolhas equivocadas de Louis, e devo dizer que somente saberíamos como teríamos agido se passássemos por uma catástrofe familiar semelhante. Certamente, não concordo com suas atitudes, mas compreendo a dor e o desespero que o levaram a tamanha insanidade. Do momento em que chegam à cidadezinha, a família Creed parece condenada a toda a tragédia que vem mais tarde, talvez até mesmo pela influência da energia malévola que perdura na região, que parece se alimentar da curiosidade dos desavisados, ou mesmo da necessidade do ser humano de passar adiante os segredos tão mágicos da terra secular de origem indígena. Por maior que fosse o seu carinho e apego pela família Creed, o vizinho Jud, um senhor bondoso e solícito por natureza, não teve como deixar de contar sobre a magia do território MicMac. Quando o gato aparece morto, atropelado, Jud poderia ter deixado a questão se resolver por si - a garotinha Ellie precisaria mesmo, um dia, aceitar os fatos da vida, a morte de animaizinhos e pessoas queridas um desses duros fatos – porém, a energia do lugar e do Wendigo foi mais forte, e Jud tagarelou sobre o solo. Uma vez que Church retorna à vida, e Louis compreende que o poder da terra é bastante real, parece-me que o Wendigo usa de seu encanto e fascínio sobre o médico como alavanca para arremessar a família em um pesadelo de loucura e morte, o momento definitivo a manhã do piquenique em que o menininho Gage sai correndo atrás de uma pipa, sem que os pais distraídos deem pelo perigo. Sabemos que o menino acaba apanhado em cheio pela carreta na estrada. O Wendigo é um espírito maléfico, e portanto sua razão de existir fundamenta-se em perpetuar o mal. A sua sedutora promessa falsa de devolver um ente querido à vida é a força motriz de seu diabólico apelo. Stephen King escreve:

Ela (Rachel) ergueu o rosto inchado.
O Gage nem estava sendo malcriado, Louis. Pra ele tudo não passava de uma brincadeira... O caminhão veio na hora errada... A Srta. Dandridge telefonou enquanto eu ainda estava chorando. Leu no American de Ellsworth que o motorista tentou se matar.
Quê?!
Tentou se enforcar na garagem da casa dele. Segundo o jornal, está em estado de choque e com uma depressão profunda...
Pena que não conseguiu morrer — disse Louis brutalmente, mas a voz pareceu distante aos seus próprios ouvidos. Sentiu um calafrio tomando conta do corpo. O lugar tem poder, Louis... Foi cheio de força no passado e estou com medo de que esteja voltando a ter pleno poder. — Meu filho está morto e esse motorista foi solto por uma fiança de mil dólares... Vai continuar se sentindo deprimido e com vontade de morrer até que um juiz qualquer casse a carteira dele por noventa dias e na saída lhe aperte o punho dizendo que está tudo bem.
A Srta. Dandridge diz que a mulher pegou as crianças e foi embora —Rachel falou sombriamente. — Não leu isso no jornal, mas soube por alguém que conhece um vizinho dele. Não estava bêbado. Não estava drogado. Nunca teve multas por excesso de velocidade. Mas disse que quando entrou em Ludlow, simplesmente teve vontade de pisar fundo no acelerador. Disse que não sabe como aconteceu. Simplesmente aconteceu.
Simplesmente teve vontade de pisar fundo no acelerador.
O lugar tem poder...

Assim como aconteceu em sua obra The Shining, em que a energia negativa de um hotel isolado nas montanhas do Colorado usa das vulnerabilidades e segredos de um ex-alcoólatra para voltá-lo contra a esposa e o filho sensitivo pequeno, em Pet Sematary, o demônio Wendigo assume a forma dos maiores horrores dos protagonistas. Para Rachel, o Wendigo se manifesta através da aparição da irmã doente – tanto no romance quanto na adaptação para o cinema – e para Jud (no romance), o Wendigo se materializa como a falecida esposa do senhor. Uma das cenas mais arrepiantes envolve Rachel reencontrando Gage, possuído pelo Wendigo, surgindo para a mãe vestido a caráter, de cartola, capa e bengala. Quando o demônio assim o faz, está jogando com a cabeça de Rachel: o vestido usado pela criança corresponde a uma pintura de Zelda, feita quando criancinha, anos antes da meningite. Tudo o que o Wendigo faz parece ardilosamente orquestrado para incutir absoluto horror às pessoas vítimas de sua influência. Outro ponto em comum entre The Shining e Pet Sematary é a natureza amorfa dos males que aterrorizam os personagens. Em Pet Sematary, pouco se sabe sobre o Wendigo. Basicamente, conhecemos apenas que o Wendigo compõe parte da rica mitologia indígena, descrito como um demônio canibal que habita a natureza, e entra na mente de pessoas vulnerabilizadas pela fome, sugerindo-lhes a prática do canibalismo, no entanto jamais chegamos a vê-lo, permanece como uma entidade abstrata e misteriosa. Em The Shining, a energia malévola do hotel Overlook deve-se a dois fatores preponderantes: primeiro, o fato de ter sido erguido sobre terras indígenas, segundo, a natureza pérfida e cruel das pessoas que ao longo dos anos passaram pelo lugar. O homem que o ergueu - um playboy bissexual notório pelos seus excessos, com laços com a máfia, e cujos tentáculos alcançavam uma variedade de investimentos, de hotelaria e cassinos a estúdios de cinema - é só a ponta do iceberg na sinistra história do lugar. Uma série de coisas horrorosas ocorreu no hotel, desde escândalos sexuais, mortes por overdose, assassinatos encomendados pelo crime organizado, a toda sorte de escândalos violentos e revoltantes. É como se a energia reminiscente de todo esse pessoal que ou por ali passou ou morreu em suas dependências seguisse nos corredores do hotel, assombrando-o, como uma força conjunta e impiedosa, que jamais é vista plenamente, mas identificada apenas em sinais, principalmente pelo menininho sensitivo, que tem um encontro aterrorizante com o espírito da mulher morta do quarto 237, vê as duas irmãs gêmeas assassinadas a machadadas pelo pai no corredor, e é assediado por um homem bem aparentado que veste a fantasia de cachorro. A mulher morta do quarto 237 havia sido abandonada pelo companheiro, e veio a se matar com o uso de barbitúricos, em 1975. No filme de Stanley Kubrick, o espírito do quarto 237 assume a forma de uma velha decrépita, mas no romance de Stephen King, é descrita como uma mulher que aparenta seus 35-40 anos, habita o quarto e emerge da banheira sempre que alguém entra no lugar. King refere-se a ela como Senhorita Massey. A sequência em que Danny a encontra é inesquecível, um dos instantes mais apavorantes do livro. King não descreve o desenrolar do encontro, interrompe a narrativa bem no instante em que a mulher sai da banheira, depois que o menino se vê preso dentro do quarto com a estranha. Na cena seguinte, a mãe o encontra no corredor, em estado de choque, chupando o polegar, os olhos vidrados, cheio de marcas no corpo, resultado da surra que levou da mulher. O homem vestido de cachorro representa mais um dos tristes e tétricos personagens que passaram pelo Overlook no passado, e se chama Roger, amante de Horace Derwent, o playboy bilionário dono do hotel com conexões com o crime organizado e a indústria do jogo de Vegas. Aparentemente, os dois tiveram um breve romance homossexual, mas logo Derwent lhe deu um chute no traseiro. Apaixonado, Roger passou o resto da vida tentando reatar com o magnata ex-namorado. A fantasia que veste, de cachorro, é uma alusão a um baile de máscaras que ocorreu por ali, nos idos de 1945, quando esteve no Overlook para procurar se reconciliar com Derwent. Tanto a Senhorita Massey quanto Roger são figuras claramente trágicas e tristes, símbolos do amor não retribuído, não correspondido. São estas as duas manifestações que mais frequentemente atormentam a criança durante sua estadia no hotel. Há ainda os outros espíritos, centenas deles, gente que em vida celebrou o baile de máscaras de 1945 e cujos espíritos vagam pelos corredores encorajando visitantes vulneráveis a cometerem violência contra familiares ou contra si. De muitas maneiras, as pessoas elegantes, refinadas, cruéis e maquiavélicas do baile de máscaras de 1945 parecem ter marchado diretamente de um pesadelo de David Cronenberg, no sentido de que a violência psicológica que impõem aos visitantes chega a se mostrar tão esmagadora que acaba por levá-los primeiro à mais absoluta loucura e então à morte.

Ainda em comum, Pet Sematary e The Shining dependem de flashbacks que nos permitem compreender melhor a natureza do mal. Em Pet Sematary, é Jud quem faz essa ponte entre o presente, quando a família do vizinho Louis se torna alvo do assédio do Wendigo, e o passado, quando Jud, ainda menino, descobriu sobre o lugar pelas mesmas razões que contou o segredo para Louis, depois que o gato do médico morreu: no passado, foi a morte do cachorro que levou um andarilho a lhe explicar que sabia de um lugar que amenizaria sua dor. Em The Shining, por meio de recortes de jornais, Jack Torrance vai montando as peças do quebra-cabeças do passado do Overlook, porém é no extravagante baile de máscaras de 1945 que toda a aura de glamour do mundo dos ricos e privilegiados ganha vida, em descrições vívidas de muitas cores e belas formas. Evidentemente, a riqueza de detalhes é particularmente forte nos romances originais. Os filmes perdem um pouco das ideias de King, de modo que somente a leitura integral dos livros poderá oferecer uma experiência completa.

Recentemente, foi anunciado pela Paramount que a refilmagem de Pet Sematary encontra-se em concepção. A produção ainda está em fase de elaboração de roteiro, e não há menção a nomes quanto a direção ou a elenco. Acredito que o talentoso James Wan reúna talento e paixão necessários para a cadeira de diretor. Talvez o aspecto mais delicado recaia sobre a escalação de elenco. Dale Midkiff e Denise Crosby fizeram um trabalho tão magnífico nos papéis de Louis e Rachel que mesmo tantos anos após o primeiro filme parece complicado repensar em novos artistas para os personagens. A questão vai além do talento necessário para os papéis, vez que tão importante quanto capacidade individual é a química entre o par, que foi o que tornou o filme de Mary Lambert tão ímpar. O excelente ator Colin Firth parece reunir as qualidades mais importantes para o trabalho, porém, recentemente, ao assistir ao ótimo 5 Dias de Guerra, do diretor Renny Harlin, fiquei impressionado com o artista Rupert Friend, cujo carisma me fez enxergá-lo como um jovem Burt Reynolds. Acho que a difícil escolha deveria se dar entre Colin Firth e Rupert Friend, dois homens sob medida para Louis Creed. Jennifer Connelly faria uma ótima Rachel, até porque traz tristeza no olhar, difícil de se reproduzir – é uma tristeza só sua, evidente em todos os papéis que faz. Rose Byrne também ofereceria algo de refrescante à personagem, pois sempre agrega valor a todos as obras em que atua. Byrne também conhece o gênero horror e já colaborou com Wan, tendo ambos nos brindado com o excepcional Insidious – Sobrenatural. Mesmo em um estágio tão inicial, nós fãs de filmes de horror temos muito o que celebrar!Gostaria de concluir a resenha transcrevendo o inesquecível desfecho do romance Pet Sematary, um momento magistral saído da imaginação de Stephen King que jamais será transposto às telas com o mesmo impacto:

A polícia veio no fim da tarde. Fizeram perguntas, mas não levantaram suspeitas. As cinzas ainda estavam quentes e ainda não tinham sido revolvidas. Louis respondeu às perguntas. Eles pareceram ficar satisfeitos. Conversaram do lado de fora e ele usava um chapéu. Isso era bom. Se tivessem visto seu cabelo branco, poderiam ter feito mais perguntas. O que seria mal. Ele usava luvas de jardinagem, o que também era bom. As mãos estavam ensanguentadas e muito machucadas. Jogou cartas sozinho até bem depois da meia-noite. Estava começando uma nova rodada quando ouviu a porta de trás se abrir. “Você arranjou a coisa, ela é sua, e mais cedo ou mais tarde acaba voltando às suas mãos”, Louis Creed pensou.
Não se virou, continuou olhando as cartas, enquanto os passos lentos, rangentes se aproximaram. Viu a rainha de espadas. Pôs a mão em cima dela.
Os passos cessaram bem nas suas costas.
Silêncio.
A mão fria caiu no ombro de Louis. A voz de Rachel era um chiado que parecia cheio de terra.
Querido — disse a coisa.

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