sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

Sobrenatural - Revisitando os maiores temores de nossas infâncias.


Ao longo de todos estes anos, tenho observado que os melhores filmes de horror jamais precisaram de cenas violentas ou explícitas para deixar uma forte impressão. Quando do lançamento no início dos anos 70, O Exorcista, obra premiada com o Oscar dirigida por William Friedkin, fez com que pessoas passassem mal nas salas de cinema tamanha sua brutal força psicológica. Quase trinta anos mais tarde, o assombroso, tétrico O Sexto Sentido assaltou os cinemas com semelhante vigor, e novamente ofereceu o terror que curiosamente permanece contigo mesmo depois que a sessão de cinema termina, e você precisa ligar o abajur do criado mudo para adormecer mais tranquilamente à noite. Em comum, estes filmes gozam de incomum elegância: não há cenas de sanguinolência ou violência explícita para se ver, pois os diretores quiseram oferecer algo melhor do que clichês batidos, o horror se dá em uma seara primordialmente psicológica, e os arrepios que eriçam os cabelos das pessoas são provocados por desdobramentos sutis que soam flagrantemente reais. Em O Exorcista, William Friedkin nos contava a estória de uma menina sob a influência cada vez mais poderosa de um demônio chamado Pazuzu, tudo após brincar com uma daquelas tábuas de comunicação com espíritos. Simultaneamente, havia profundidade psicológica à trama, pois conseguíamos nos identificar melhor com as personagens, vez que pareciam humanas e falíveis. A mãe era uma atriz de cinema que tentava criar a filha sozinha, pois enfrentava um doloroso processo de separação do pai da garota; a garota sentia a falta do pai, de certa maneira culpava-se pelo divórcio, e parte de seu estado psicológico vulnerável propiciara que a sua mente se pusesse mais à vontade para a influência de um demônio oportunista e cruel. Em O Sexto Sentido, o diretor revisitava a dinâmica entre pais e filhos, ao falar sobre uma mãe que fazia o melhor para cuidar sozinha do filho, desconhecedora do dom especial da criança, e a chegada de um terapeuta infantil que representa a única figura paterna na vida daquela criança confusa e a quem vem a se apegar. Em ambos os filmes, a natureza do horror que os tornava tão especiais não advinha de cenas de excessos, mas única e exclusivamente da exploração da ideia da presença de forças sobrenaturais para além da compreensão humana, aterrorizando pessoas comuns, com quem podíamos nos identificar, sem uma motivação aparente.

Em Sobrenatural, o diretor James Wan parece ter se guiado pela proposta dos dois filmes mencionados acima, fugindo de excessos, concentrando-se em atmosfera, ideias assustadoras e reminiscentes dos maiores temores de nossas infâncias. O resultado é um filme que apesar de rodado em 2010, remete às melhores obras de terror, dos anos 70 e 80, tais como O Exorcista, O Iluminado e Hellraiser de Clive Barker, em termos de atmosfera, fotografia, estilo e estória. O diretor James Wan começou a carreira dirigindo o primeiro Jogos Mortais, em 2004, e seguiu o inesperado sucesso com dois brilhantes suspenses pouco conhecidos do grande público – Dead Silence (2006) e Death Sentence (2007). Dead Silence foi lançado no Brasil pela Universal, diretamente para o mercado de DVD, com um infeliz título genérico, Gritos Mortais, o que certamente afastou os potenciais interessados de um suspense que em verdade era interessantíssimo, sobre um rapaz que retorna para a cidade natal para enfrentar a lenda de uma mulher morta que trabalhava como ventriloquista, e cujo espírito estaria assombrando os cidadãos remanescentes da falida cidade. Death Sentence foi lançado em 2008 sob a denominação Sentença de Morte, pela Paris Filmes, com uma estória que à primeira vista parece ordinária e batida – pai de família pacato e gentil tem o filho adolescente brutalmente assassinado por uma gangue durante assalto a mercearia, e vira uma máquina de execução, estilo Charles Bronson em Desejo de Matar – fortalecida pela execução magistral cheia de estilo, que permitia que o roteiro previsível fosse balanceado pela natureza empolgante com que Wan desenrolava a estória e também a filmava. Sobrenatural destaca-se no conjunto de sua obra, e até agora é o trabalho onde vimos suas melhores habilidades agregadas. Desde a abertura, ao som de violinos desafinados, Sobrenatural não perde sustentação, é misterioso e empolgante já na montagem dos créditos iniciais, que nos sugerem falsamente que será uma estória sobre uma casa assombrada.

Sobrenatural acontece em uma casa onde fenômenos paranormais atormentam uma família, no entanto, não é sobre a casa. Os personagens principais deste filme são os membros da família Lambert, Renai & Josh (Rose Byrne & Patrick Wilson), os pais, e Dalton & Foster, os dois filhinhos. Não há nada de extraordinário com a dinâmica do lar, inclusive o diretor nos apresenta os Dalton como pessoas absolutamente comuns, felizes em um casamento de muita cumplicidade e união,recém-chegados a uma nova residência, onde não custa a coisas inexplicáveis começarem a acontecer. Conhecedor de filmes de horror, o diretor James Wan faz muitas referências aos melhores. Você vê Renai, por exemplo, subindo ao sótão, depois de escutar barulhos vindos de cima, e ao verificar o ambiente, tomado pelas sombras e torsos de manequins cobertos por plástico, não encontra nada de extraordinário, que não o aquecedor estalando, até que toma um baita susto (e nós também!) quando o mesmo subitamente ganha potência, e, por um breve instante, parece ter vida própria. Esta cena é uma homenagem a O Exorcista – há uma cena semelhante no filme de William Friedkin. O diretor James Wan também parecer nutrir carinho por Poltergeist, e presta o tributo a este grande filme também. Por parte de Sobrenatural, nós cremos que se tratará de uma estória sobre casas mal-assombradas e as comparações são inevitáveis. Logo no começo, estranhas manifestações começam a atormentar a família Lambert. Depois que Dalton mergulha em um misterioso coma, da noite para o dia, e os médicos não conseguem cientificamente explicar a condição médica, é ladeira abaixo para os Lambert. O que havia começado estranho (barulhinhos aqui e acolá no sótão) se torna aterrorizante quando as manifestações ganham maior envergadura.

A pobre Renai é o elo fraco da família, quem mais se fragiliza pela condição do filho. O professor Josh, o pai, parece a rocha forte, um jovem homem estoico que inicialmente não crê nas reclamações e avisos de Renai. As cenas das manifestações iniciais, testemunhadas apenas por Renai, são de eriçar os cabelos da nuca, tão surreais, bizarras que são – e quando acontecem, a trilha sonora potencializa o susto em um excelente uso de violinos estridentes. O diretor Scott Derrickson foi um outro cineasta que fez acertado uso de música para estabelecer atmosfera no recente A Entidade. Aqui, Wan criou momentos memoráveis, sem o uso de violência ou derramamento de sangue. Ao contrário, parece resgatar a angústia e o temor pelo desconhecido que os filmes do passado faziam tão bem. Para produzir um memorável filme de horror, você não precisa de sangue ou violência, tampouco de muito dinheiro. Você necessita de atores excelentes, um roteirista inteligente, e a crença de que é do desconhecido de onde vem o terror. Assim, vale a recomendação menos é mais. Desde que o mundo é mundo, nós, seres humanos, perguntamo-nos sobre o que há depois da vida. A força desta produção reside justamente neste medo enraizado em nossas origens. Prepare-se para levar a mão ao coração em galope ao ver coisas como: Renai apanhando as roupas no varal, do lado de fora, quando subitamente escuta a uma bizarra modinha vinda da sala, e ao olhar pela janela, vê um garotinho com roupas do século XIX, ensaiando passos e dançando alegremente no meio da sala sem se importar com os donos da casa; Renai levantando-se à noite para checar o filho, ainda em coma, e, ao entrar insuspeita no quarto, deparar-se com um sujeito estranho parado em frente à janela, olhando para dentro, para o filho deitado; Renai apanhando os lençóis do filho para trocá-los, e encontrando a marca de sangue feita por uma mão pequena, aos pés do menino.

A família muda-se para um novo endereço, porém as manifestações os seguem. Relutante, Josh acata a ideia de Renai, e a família consulta uma senhora investigadora de fenômenos paranormais. Durante a visita, a senhora faz o diagnóstico da natureza dos problemas que recaem sobre os Lambert, depois de uma cena impressionante, quando ao visitar o quarto da criança em coma, olha para cima, para uma parte escura do teto, e começa a explicar a um de seus assistentes a aparência da coisa que somente ela enxerga: um demônio alto e magérrimo, de língua fina protuberante, avermelhado, chifres grandes, uma visão malévola e negativa, ali para atormentar e exercitar influência sobre uma criança indefesa. Ao caminhar pela casa, para fazer o reconhecimento, o outro assistente, munido de equipamentos especiais, tem uma outra visão aterradora: duas irmãs que surgem ao final do corredor, vestidas como nos anos 50, que ao serem vistas pelo investigador abrem uma espécie de sorriso insano. Ao procurar colocar para os Lambert a origem dos problemas, a senhora só complica a situação, pois Josh perde a paciência e imediatamente descredita a explicação sobrenatural para a natureza do coma que aflige o filho ou os demais problemas que parecem assediá-los. É somente quando a mãe de Josh (Barbara Hershey) reaparece que a verdade começa a emergir. Havia uma característica da personalidade de Josh que esposa e filhos jamais conseguiriam compreender muito bem. Josh jamais apreciou posar para fotos de família. Parece algo menor, que é mencionado de maneira passageira no início do filme, antes dos problemas, porém as razões para a aversão às fotos enraizam-se até sua infância. Em uma cena reveladora, construída por excelentes atuações e flashbacks, a mãe de Josh o ajuda a se recordar. Ela mostra um maço de fotos e começa a explicar que quando criança, à medida que ia crescendo, registrada nas fotos que a mãe tirava do menino, havia a presença de uma mulher desconhecida, bem ao fundo dos registros. Ao longo dos anos, à medida que se tornava adolescente, a presença da mesma mulher misteriosa ficava cada vez mais próxima do menino, o rosto mais definido. Era como se a manifestação tivesse cismado com o garoto e o assediasse sem tréguas. Já ao final da infância, a mãe explica, a tal mulher desapareceu, deixando-o em paz a partir de então. A aterrorizante experiência deixou encrustada em seu subconsciente a aversão a fotos. Acontece que mais recentemente, a mãe teve um sonho em que entrava no quarto do neto e enxergava uma figura magérrima de braços longos como gravetos, de pé ao lado do leito do menino, envolto por sombras, sugando sua energia, esperando para levá-lo para a dimensão que habita. Ela acredita que o mesmo que aconteceu a Josh esteja agora se sucedendo a Dalton. Esta cena, pessoal, é um dos pontos mais fortes da fita. Durante o diálogo na cozinha entre mãe, filho e nora, há um susto arrepiante e inesperado, que fará com que pulem do sofá, mas... Não se preocupem, não entregarei a surpresa!Apenas... Assistam!

Ademais, a senhora que trabalha com investigações paranormais era uma velha conhecida, Josh apenas não se recordava: no passado, quando criança, a mãe recorrera à ajuda da senhora para afastar a bizarra presença feminina que parecia assombrar o filho. Depois que a verdade vem à tona, e Josh se torna mais aberto à existência de forças sobrenaturais que a ciência não consegue explicar, a senhora lhes explica que Dalton não se encontra em coma, e sim em um lugar chamado Further, ou Além, o limbo triste e sombrio entre vida e morte onde almas que não se conformam com a passagem habitam, esperando regressar para o mundo dos vivos, dada a oportunidade. Dalton herdara do pai a capacidade de se desconectar de seu corpo material durante o sono para viajar com o espírito. Em uma destas viagens, Dalton “perde o caminho de casa”, e fica preso neste mundo espiritual, no Além. Daí as manifestações paranormais nas duas residências onde a família morou. Já que Dalton estava no limbo, mas ainda dispunha de um corpo material no mundo dos vivos, os espíritos maus o assediavam, procurando tomar o seu lugar, retornar ao mundo dos vivos através de Dalton. O demônio alto e magrelo de braços longos como galhos de árvores se alimenta do sofrimento das almas miseráveis, e também ficou louco para trazê-lo logo para o seu domínio, desconectá-lo permanentemente do corpo material, ou seja, matá-lo para carregá-lo logo ao seu reino, o Limbo. Com a ajuda da senhora psíquica, seus assistentes, a mãe e a esposa, Josh precisa se submeter à hipnose para se depreender do corpo físico e visitar o Limbo, para resgatar o filho das garras do demônio e enfrentar a mulher que o assediava quando criança, na verdade mais um espírito entristecido que habita a zona.

Surpreende-me a maneira como Wan pegou um orçamento relativamente pequeno e executou um filme que parece tão visualmente arrebatador, bem como criativamente triunfante. A figura do demônio alto de braços longos e unhas curvadas nos remete ao imaginário do diretor Guillermo del Toro e o seu O Labirinto do Fauno, outro festival de criatividade visual incomum e memorável. Ademais, a representação do limbo como uma dimensão de dor e sombras onde o tempo parece não existir é mais um dos bons frutos da criatividade de James Wan. As figuras que existem por ali vão provocar pesadelos, em especial a família que Josh encontra enquanto procura pelo filho, uma típica família de norte-americanos dos anos 50 – pai, mãe e duas filhas (as mulheres que foram vistas rapidamente na primeira metade do filme pelo investigador paranormal) – sendo que em seus rostos há perenes sorrisos insanos e maldosos, e o cara segue assoviando. É sugerido que talvez pela influência do demônio uma das meninas tenha apanhado o rifle, chacinado a família, e depois se suicidado. Desde então habitam o limbo, como se ainda estivessem nos anos 50. O sabor retrô, nostálgico de Sobrenatural, que resgata os deliciosos arrepios que tínhamos assistindo a O Exorcista, também se deve às performances impecáveis de todo o elenco, em especial de Rose Byrne, uma atriz cujos olhos são uns dos mais tristes e evocativos que já vi, rivalizando com os de Jennifer Connelly. O filme foi escrito por Leigh Wannell, que atua como um dos investigadores, e cuja parceria com o diretor James Wan iniciou-se em 2004 com Jogos Mortais, onde interpretava um dos personagens principais.
 
Os amigos que ainda não conferiram Sobrenatural estão perdendo – e muito. Podem alugar o DVD sem receio, não há do que se arrepender aqui, a não ser os pesadelos que vão ganhar por um tempinho, coisa de uma semana!No momento, James Wan dirige a continuação, com todo o elenco principal a bordo, e previsão de lançamento nos cinemas brasileiros para 30 de agosto de 2013. Wan retornando para a continuação foi uma maravilhosa notícia, sinal de que não há riscos de desvirtuamento de suas ideias originais ou estilo empolgante. No mesmo semestre em que Sobrenatural 2 chegar aos cinemas, teremos a chance de assistir a mais um filme semelhante dirigido por Wan, aparentemente baseado em fatos reais, que se deram em 1973 em uma casa onde fenômenos pareciam muito ativos, chamado The Conjuring (ainda sem título para o lançamento no Brasil), programado para estrear no dia 13 de setembro próximo.
Todos os direitos autorais reservados a PlayArte Filmes. O uso do trailer é para efeito meramente ilustrativo da resenha.  

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