



Apresentarei aos amigos um termo agora – filme de detalhes. Uso este termo para produções a que assisti muitas vezes, porém com que sempre descubro coisas inéditas todas as vezes em que assisto novamente. Aconteceu quando vi a Antes do Amanhecer (Julie Delpy e Ethan Hawke apaixonados, ainda aos vinte e poucos, as vidas inteiras pela frente, caminhando por Viena, visitando um pequeno cemitério local e Julie olhando para as inscrições do túmulo de uma criança que morreu tragicamente e dizendo Ela continuará com dez anos de idade, sempre, e no entanto eu seguirei envelhecendo), e Antes do Pôr-do-sol (no final, os dois a um sopro da despedida, e ela aponta para o gatinho no jardim e diz Sabe o que eu mais admiro nele?É que todas as manhãs ele olha para esse jardim com o encanto da primeira vez). Retratos de uma Obsessão é um filme assim – de detalhes, de instantes muito sutis, reveladores, que, somados, compõem uma obra-prima norte-americana sobre dramas humanos enfrentados por todos nós em uma base diária.


Outra cena evocativa acontece quando Sy aparece no jogo de baseball de Jake, e depois da partida, acompanha-o por parte do trajeto para casa. Eu amo a cena, pois novamente Romanek nos oferecesse uma pequena janela através da qual podemos compreender a vida de Sy. Novamente, a lente captura o drama por um ângulo bem aberto, sem atrapalhar, e você vê os dois, homem e menino conversando, caminhando por um campinho durante uma tarde, as folhas amareladas caindo ao sabor do vento. Sy fala que não podia fazer esportes quando criança pois vivia doente, Jake conta que gostaria que o pai estivesse mais presente para vê-lo jogar (o que nos mostra que a vida dos Yorkin não é tão perfeita quanto Sy imagina). Sy põe a queixa do menino sob perspectiva, ao dizer que a razão pela qual o pai às vezes não comparece tanto quanto o menino gostaria se deve ao fato de Will trabalhar bastante para garantir que Jake e a mãe tenham coisas boas & bonitas.
Romanek é igualmente assertivo ao nos fazer pensar sobre o quanto as crianças sacam as coisas, e o quanto a sensibilidade infantil é tão mais aguçada do que os adultos possam imaginar. Depois da visita ao laboratório de fotos, mais tarde, em casa, quando Nina vai pôr o menino na cama, a criança lhe diz que se sente mal por Sy. Achei interessante, pois o menino não interage muito com o operador de laboratório, até aquele momento, porém sabe, sabe em seu ser, que Sy é uma pessoa triste e as pessoas fazem pouco dele. Pela primeira metade de projeção Retratos de uma Obsessão nos brinda com excepcional construção de personagens. Poucos filmes nos fazem pensar É como se essa turma toda fosse real, sinto como se os tivesse conhecido! Pela segunda, a trama ganha ritmo. Quando Sy descobre que Will está tendo um caso extraconjugal, ocorre-lhe pela primeira vez que os verdadeiros Yorkin diferem da fantasia que fizera dos mesmos, a que tanto desejava pertencer. Em seguida, vem o outro golpe do destino, Sy perde o emprego. A conjunção de infortúnios é demasiadamente pesada para o homem, e ele finalmente sai dos trilhos.

Retratos de uma Obsessão me fez pensar sobre as pessoas semelhantes a Sy Parrish, pessoas de nosso convívio que muitas vezes passam batidas, e todavia ali estão, com histórias de vida semelhantes. Tornamo-nos tão anestesiados face ao estado das coisas que mal conseguimos reunir alguma empatia para as pessoas que sofrem, o que nos empurra a um processo de constante segregação. É como se cada vez mais reduzíssemos a capacidade de aceitar, conviver e nos importar. O círculo vai se fechando, e fora do mesmo, só habitam pessoas com quem não poderíamos nos importar menos. Em 2006, foi lançado um documentário chamado A Ponte. Em linhas gerais, o diretor, Eric Steel, armou muitas câmeras ao redor da Golden Gate, a enorme ponte pênsil em São Francisco, e com as lentes, capturou os suicídios que por ali se deram no primeiro semestre do ano de 2004. Assim que as câmeras capturavam pessoas suspeitas indo e vindo na beirada, como se estivessem contemplando o salto, Steel e a equipe acionavam a Guarda Costeira, que imediatamente abordava o suspeito e o tirava do lugar. Outros suicidas, todavia, não davam pista alguma das intenções, e foram os saltos destes aqueles capturados pelas câmeras. Depois dos trágicos saltos, Steel procurava conhecer a história daquela gente, o que os colocara à beira da Golden Gate, o portal entre esta existência e o fim. O que o cineasta encontrou foram histórias semelhantes a de Sy: almas vulneráveis fragilizadas, passados com dependência química, esquizofrenia e toda sorte de males. O que encorajara aquela gente a saltar da Golden Gate não fora a esquizofrenia ou a dependência química, ao menos não exclusivamente, mas talvez principalmente a completa apatia que encontraram nos semelhantes ao procurarem ajuda e compreensão.
Ao mesmo tempo, observamos que do mesmo jeito que há a parte má da condição humana, representada pelo seu egoísmo, individualismo ou oportunismo, cada vez mais exacerbadamente, existe também a parte boa, a parte agregadora, a parte que deveríamos valorizar mais. Se você analisa, por exemplo, um drama como o acidente de Chernobyl, uma catástrofe que, crê-se, acabará matando de cânceres mais pessoas ao longo dos anos desde 1986 do que as que Adolf Hitler foi capaz de assassinar durante toda a Segunda Grande Guerra, você percebe que a bondade é inerente ao ser humano, pois quando aquela gente pobre e humilde batalhou sobre os destroços do Reator 04 como um time, carregando pedaços fumegantes de grafite radioativo com as mãos, tendo os corpos devorados por césio-137 e iodo radioativo, quando aquela gente concluiu os trabalhos de isolamento do reator e finalmente hasteou a bandeira da União Soviética acima do reator, quando os soldados comemoraram, abraçaram-se e olharam uns para os outros, depois daquele pesadelo, compreenderam que todos pareciam exatamente iguais, com seus rostos sujos, amarronzados e cansados. Apesar das diferenças individuais, todos tinham acabado semelhantes, e o que os movera a derrotar algo tão mortífero quanto as toneladas de césio lançadas na atmosfera havia sido justamente o amor que tinham uns pelos outros, a obstinação de não permitir que aquele acidente alcançasse os familiares, os semelhantes. Mais recentemente, em Santa Maria, tivemos a tragédia do fogo na boate que custou a vida de mais de duzentos e trinta jovens. Novamente, as imagens e os relatos nos mostraram que mesmo em meio à dor, rapazes e meninas que em um primeiro momento tinham deixado a boate com segurança regressaram para a linha de fogo para salvar vidas. Ao final, você viu aquelas cenas emocionantes, vítimas arrastadas para fora da escuridão, para longe da fumaça tóxica, salvas pela bravura de garotos, meninos cujos rostos pareciam exatamente iguais, sujos de fuligem. Não havia mais diferenças, todos ali irmãos, um time. Eu pergunto: existe amor maior do que doar a própria vida para a salvação da vida do teu irmão?Menciono estes dois acontecimentos nesta resenha pois são a prova cabal de que a parte boa da condição humana, aquela que nos une, é muito mais forte do que as diferenças mesquinhas e pequenas causadas pela nossa parte má. Eu quero parabenizar o diretor Mark Romanek pela sensibilidade na condução deste grande filme, e o elenco pelas performances que tornaram os personagens reais, e levantaram questionamentos tão importantes cujos efeitos sentimos no dia a dia, e cujas lições refletem em nossas vidas individuais. Uma última menção vai para a atriz Connie Nielsen. Quando assisti ao filme, lembrei-me dela em um suspense produzido pela HBO chamado Voyage, de 1991 ou 1992, que eu havia visto na televisão quando menino. Ela e o ator Eric Roberts representavam um casal que pegava carona em um veleiro de outro casal, para singrar pela costa de Malta. Ocorria que Connie e Eric Roberts tinham planos sinistros para o casal de amigos – pretendiam matá-los, forjar um acidente e assumir a identidade das vítimas. Ela estava maravilhosa no papel de assassina fria, e me recordo de seu nome, que era tão cool que mesmo depois de tantos anos, conservei na memória – creio que o personagem dela se chamava Ronie Freeland ou algo muito, muito parecido. Aqui, em Retratos de uma Obsessão, feito tantos anos depois de Voyage, ela parece muito diferente, no papel de uma mãe dedicada e esposa devota, e se sai igualmente muito bem. Ela é uma excelente atriz e o tempo lhe fez muito bem, continua bonita. Por causa desta resenha, pesquisei rapidamente na internet sobre sua vida, e descobri que hoje é a mãe de um rapaz de vinte e três anos, e companheira de um músico de sucesso; e também continua a trabalhar em filmes de sucesso!Fico feliz por saber que ela se saiu bem. Ao vê-la depois de tantos anos desde Voyage, eu me apercebi: O tempo realmente voa.
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