sábado, 2 de fevereiro de 2013

Retratos de uma Obsessão - Quando a nossa parte boa é melhor do que a soma das diferenças de nossa parte má.


Olá, pessoal. Nesta oportunidade, tenho o prazer de falar sobre um de meus filmes preferidos. É fenomenal, impecável do começo ao fim – começando pelas performances na medida certa até a direção precisa – e o melhor momento do astro Robin Williams. Eu fiz uma afirmativa e tanto, não?Escrever que este foi seu melhor momento. Quando se leva em consideração o tempo que este artista vem fazendo filmes bons e interessantes, parece precipitado eleger este quase desconhecido filme de arte como o melhor instante de Robin Williams, mas tomem a minha palavra como certa: Retratos de uma Obsessão é o trabalho pelo qual Robin Williams deverá ser lembrado. Apesar do nome deste blog, os melhores filmes de horror, Retratos de uma Obsessão passa longe do gênero terror. Quem for assistir ao filme esperando um suspense eletrizante se desapontará, e eis o ponto pelo qual o filme não foi bem-sucedido, financeiramente falando, na ocasião do lançamento: tentaram vendê-lo como um suspense nos moldes de Cabo do Medo, quando na verdade passa bem longe desta proposta.

Retratos de uma Obsessão é um filme intimista, centrado em diálogos, um estudo de personagens que parecem reais e a maneira como interagem uns com os outros, sem a menor pretensão de oferecer suspense ou perseguições. O suspense que existe surge apenas na segunda metade da trama, como consequência natural da sucessão de eventos, e não a razão principal para os mesmos. A ausência de perseguições ou cenas de susto ou ação não representou problema algum ao ritmo do filme, pois foi compensada por uma atmosfera melancólica e nostálgica, que permeia a fita do início ao fim. Do mesmo jeito que aconteceu com o diretor Brad Anderson e o magistral Session 9, ou mesmo Tom Shankland e o quase perfeito w delta z, aqui o diretor Mark Romanek escolheu sabiamente ao delegar aos seus atores a incumbência de habitarem os personagens com completa liberdade, torná-los somente seus, e gentilmente se afastar, dar-lhes espaço, posicionando as câmeras sem intromissões ou extravagâncias. Romanek permite que o elenco comande o show, esmerando-se para jamais esquecer de não trair o tom entristecido e realista da estória. Este é um filme tristíssimo, e a fotografia nos remete à solidão devastadora que corrói o personagem principal e o arranca dos trilhos, similar ao que aconteceu a Peter Mullan em Session 9 ou Stellan Skarsgard em w delta z. Em Retratos de uma Obsessão, Romanek foge de estilos e excessos, pois compreende que este não é o seu show, e sim o de seus personagens, e nada mais é importante que as dores pelos quais os mesmos passam no decorrer da estória.

Sy (Robin Williams) é um simpático, introvertido senhor aos seus cinquenta e poucos anos, a maior parte deste tempo passada dentro do WalMart, onde trabalha com revelação de fotografias. Por sua cabine, uma porção considerável da vida da família Yorkin passou pelas suas mãos, registrada em fotografias de alegria, que vão desde o namoro de Will e Nina (Michael Vartan e Connie Nielsen) à vida em família, passando, claro, pelo casamento e o nascimento de Jake, o filho. Os Yorkin são sempre corteses com o revelador, trocando os cumprimentos usuais. Ei, como vai, Sy?, Nina pergunta naturalmente ao trazer os rolos. Como o Jake cresceu, hein? Sy observa ao ver o garoto gradualmente maior a cada nova visita à cabine. E assim, as diferentes estações da vida vão se sucedendo.

Acompanhamos Sy regressando para casa, depois de um cansativo dia de trabalho. Parando em uma diner qualquer para provar um omelete e bebericar xícaras de café com leite, Sy tira um maço de fotografias do bolso, para examiná-las. A expressão de serenidade toma conta do rosto, à medida que vai passando a vista pelos retratos, como cartas de baralho. A garçonete que enche sua xícara casualmente pergunta quem são as pessoas nas fotos. Sy explica que se trata da sua família. Você acaba de ser convidado a um passeio pela horrorosa, triste existência de Sy Parrish, porque muito embora os instantes em que cruza com a família Yorkin no shopping sejam aparentemente muito cândidos e agradáveis, há toda uma vida para além do cordato, uma existência sombria causada por um passado tétrico onde não há ninguém para confortá-lo, para apoiá-lo. Tudo o que resta a Sy são as pessoas nas fotos, as pessoas que ao nominar como família mentiu. Vocês veem que aqui há um abismo que jamais será transposto. Por mais que tenha feito cópias dos retratos do Yorkin e os tenha pendurado na sala, como uma forma de ao menos imaginar como teria sido sua vida no seio de uma família feliz, a realidade é mais cruel. Para a família, Sy é apenas Sy o Cara da Foto. Este é um filme sobre a solidão e como o mundo pode ser cruel para almas vulneráveis.

Apresentarei aos amigos um termo agora – filme de detalhes. Uso este termo para produções a que assisti muitas vezes, porém com que sempre descubro coisas inéditas todas as vezes em que assisto novamente. Aconteceu quando vi a Antes do Amanhecer (Julie Delpy e Ethan Hawke apaixonados, ainda aos vinte e poucos, as vidas inteiras pela frente, caminhando por Viena, visitando um pequeno cemitério local e Julie olhando para as inscrições do túmulo de uma criança que morreu tragicamente e dizendo Ela continuará com dez anos de idade, sempre, e no entanto eu seguirei envelhecendo), e Antes do Pôr-do-sol (no final, os dois a um sopro da despedida, e ela aponta para o gatinho no jardim e diz Sabe o que eu mais admiro nele?É que todas as manhãs ele olha para esse jardim com o encanto da primeira vez). Retratos de uma Obsessão é um filme assim – de detalhes, de instantes muito sutis, reveladores, que, somados, compõem uma obra-prima norte-americana sobre dramas humanos enfrentados por todos nós em uma base diária.

Sim, Sy ama os Yorkin, tudo o que queria dos Yorkin era pertencer. Ele não é um stalker, um bandido, não é um pedófilo, não cobiça a mulher alheia, não inveja o pai, tampouco deseja os bens materiais da família de classe média alta. Tudo o que queria, o raio de luz de sua existência, era experimentar um dia que fosse como o Tio Sy, aceito como parte de um lar normal & feliz. Levar Jake aos jogos da liga, assistir às partidas de futebol americano tomando latinhas de cerveja com Will, participar das reuniões familiares – coisas que um tio faz. Vocês percebem que as intenções de Sy são pueris, e que ele apenas não sabe como corretamente estender a mão aos Yorkin para pedir ajuda. Um passado sombrio o alijou de autoestima e o enclausurou em um mundo somente seu, à parte. Em que pese a alma gentil, as interações saem sempre tacanhas e desastradas, e as pessoas, no trabalho, riem às suas costas, pela sua timidez, pelo fato de não conseguir pertencer. Sy quer ser o Tio Sy, porém não compreende que age com intromissão, por exemplo, quando escolhe simplesmente aparecer em um jogo de baseball do garoto e lhe dar um presente. As intenções são as melhores, os meios que usa são desastrosos.

Retratos de uma Obsessão foi construído em cima dos detalhes, porque são dos detalhes que transbordam a tristeza e a dor deste personagem trágico. Na cena inicial do filme, Nina e Jake aparecem no estande de Sy, para revelar o rolo de filmes. Sy nota que há um filme não gasto e se oferece para tirar uma foto de Nina, ali mesmo do estande. Os dois riem, Sy tira a foto... É uma cena maravilhosa, e o detalhe reside na interação meio constrangida entre os dois. Os amigos devem conhecer a sensação, não?Aquela pessoa que você encontra casualmente no elevador, e com quem tem um minuto de cordial prosa, porém fica olhando para o mostrador esperando que chegue logo ao andar. Não que haja algo de errado com a outra pessoa, apenas um constrangimento natural entre dois adultos que não são tão próximos assim, tampouco completos desconhecidos – são apenas adultos que habitam um limbo relacional, onde ainda não se conhecem muito bem, e de onde nascem primeiras impressões, equivocadas.

Outra cena evocativa acontece quando Sy aparece no jogo de baseball de Jake, e depois da partida, acompanha-o por parte do trajeto para casa. Eu amo a cena, pois novamente Romanek nos oferecesse uma pequena janela através da qual podemos compreender a vida de Sy. Novamente, a lente captura o drama por um ângulo bem aberto, sem atrapalhar, e você vê os dois, homem e menino conversando, caminhando por um campinho durante uma tarde, as folhas amareladas caindo ao sabor do vento. Sy fala que não podia fazer esportes quando criança pois vivia doente, Jake conta que gostaria que o pai estivesse mais presente para vê-lo jogar (o que nos mostra que a vida dos Yorkin não é tão perfeita quanto Sy imagina). Sy põe a queixa do menino sob perspectiva, ao dizer que a razão pela qual o pai às vezes não comparece tanto quanto o menino gostaria se deve ao fato de Will trabalhar bastante para garantir que Jake e a mãe tenham coisas boas & bonitas.

Romanek é igualmente assertivo ao nos fazer pensar sobre o quanto as crianças sacam as coisas, e o quanto a sensibilidade infantil é tão mais aguçada do que os adultos possam imaginar. Depois da visita ao laboratório de fotos, mais tarde, em casa, quando Nina vai pôr o menino na cama, a criança lhe diz que se sente mal por Sy. Achei interessante, pois o menino não interage muito com o operador de laboratório, até aquele momento, porém sabe, sabe em seu ser, que Sy é uma pessoa triste e as pessoas fazem pouco dele. Pela primeira metade de projeção Retratos de uma Obsessão nos brinda com excepcional construção de personagens. Poucos filmes nos fazem pensar É como se essa turma toda fosse real, sinto como se os tivesse conhecido! Pela segunda, a trama ganha ritmo. Quando Sy descobre que Will está tendo um caso extraconjugal, ocorre-lhe pela primeira vez que os verdadeiros Yorkin diferem da fantasia que fizera dos mesmos, a que tanto desejava pertencer. Em seguida, vem o outro golpe do destino, Sy perde o emprego. A conjunção de infortúnios é demasiadamente pesada para o homem, e ele finalmente sai dos trilhos.

Do mesmo modo que respeitou os personagens e soube destrinchá-los, Romanek dirigiu magistralmente a segunda metade da fita. Quando o filme se torna mais tenso e sombrio, Romanek oferece um imaginário extremamente perturbador e emocionalmente devastador. Há uma sequência inesquecível, um pesadelo de Sy, talvez instigado pela vida emocional vazia e solitária. No sonho, vê-se sozinho, de pé, dentro daquele WalMart estéril e branco, e subitamente de seus olhos jorram cascatas de sangue. Apesar do suspense crescente na segunda metade, Retratos de uma Obsessão jamais se torna um filme previsível, jamais descamba para a mediocridade. Aqui, não há assassinatos ou tragédias, e se o final é muito triste, o é apenas para o trágico protagonista.

Retratos de uma Obsessão me fez pensar sobre as pessoas semelhantes a Sy Parrish, pessoas de nosso convívio que muitas vezes passam batidas, e todavia ali estão, com histórias de vida semelhantes. Tornamo-nos tão anestesiados face ao estado das coisas que mal conseguimos reunir alguma empatia para as pessoas que sofrem, o que nos empurra a um processo de constante segregação. É como se cada vez mais reduzíssemos a capacidade de aceitar, conviver e nos importar. O círculo vai se fechando, e fora do mesmo, só habitam pessoas com quem não poderíamos nos importar menos. Em 2006, foi lançado um documentário chamado A Ponte. Em linhas gerais, o diretor, Eric Steel, armou muitas câmeras ao redor da Golden Gate, a enorme ponte pênsil em São Francisco, e com as lentes, capturou os suicídios que por ali se deram no primeiro semestre do ano de 2004. Assim que as câmeras capturavam pessoas suspeitas indo e vindo na beirada, como se estivessem contemplando o salto, Steel e a equipe acionavam a Guarda Costeira, que imediatamente abordava o suspeito e o tirava do lugar. Outros suicidas, todavia, não davam pista alguma das intenções, e foram os saltos destes aqueles capturados pelas câmeras. Depois dos trágicos saltos, Steel procurava conhecer a história daquela gente, o que os colocara à beira da Golden Gate, o portal entre esta existência e o fim. O que o cineasta encontrou foram histórias semelhantes a de Sy: almas vulneráveis fragilizadas, passados com dependência química, esquizofrenia e toda sorte de males. O que encorajara aquela gente a saltar da Golden Gate não fora a esquizofrenia ou a dependência química, ao menos não exclusivamente, mas talvez principalmente a completa apatia que encontraram nos semelhantes ao procurarem ajuda e compreensão.

Ao mesmo tempo, observamos que do mesmo jeito que há a parte má da condição humana, representada pelo seu egoísmo, individualismo ou oportunismo, cada vez mais exacerbadamente, existe também a parte boa, a parte agregadora, a parte que deveríamos valorizar mais. Se você analisa, por exemplo, um drama como o acidente de Chernobyl, uma catástrofe que, crê-se, acabará matando de cânceres mais pessoas ao longo dos anos desde 1986 do que as que Adolf Hitler foi capaz de assassinar durante toda a Segunda Grande Guerra, você percebe que a bondade é inerente ao ser humano, pois quando aquela gente pobre e humilde batalhou sobre os destroços do Reator 04 como um time, carregando pedaços fumegantes de grafite radioativo com as mãos, tendo os corpos devorados por césio-137 e iodo radioativo, quando aquela gente concluiu os trabalhos de isolamento do reator e finalmente hasteou a bandeira da União Soviética acima do reator, quando os soldados comemoraram, abraçaram-se e olharam uns para os outros, depois daquele pesadelo, compreenderam que todos pareciam exatamente iguais, com seus rostos sujos, amarronzados e cansados. Apesar das diferenças individuais, todos tinham acabado semelhantes, e o que os movera a derrotar algo tão mortífero quanto as toneladas de césio lançadas na atmosfera havia sido justamente o amor que tinham uns pelos outros, a obstinação de não permitir que aquele acidente alcançasse os familiares, os semelhantes. Mais recentemente, em Santa Maria, tivemos a tragédia do fogo na boate que custou a vida de mais de duzentos e trinta jovens. Novamente, as imagens e os relatos nos mostraram que mesmo em meio à dor, rapazes e meninas que em um primeiro momento tinham deixado a boate com segurança regressaram para a linha de fogo para salvar vidas. Ao final, você viu aquelas cenas emocionantes, vítimas arrastadas para fora da escuridão, para longe da fumaça tóxica, salvas pela bravura de garotos, meninos cujos rostos pareciam exatamente iguais, sujos de fuligem. Não havia mais diferenças, todos ali irmãos, um time. Eu pergunto: existe amor maior do que doar a própria vida para a salvação da vida do teu irmão?Menciono estes dois acontecimentos nesta resenha pois são a prova cabal de que a parte boa da condição humana, aquela que nos une, é muito mais forte do que as diferenças mesquinhas e pequenas causadas pela nossa parte má. Eu quero parabenizar o diretor Mark Romanek pela sensibilidade na condução deste grande filme, e o elenco pelas performances que tornaram os personagens reais, e levantaram questionamentos tão importantes cujos efeitos sentimos no dia a dia, e cujas lições refletem em nossas vidas individuais. Uma última menção vai para a atriz Connie Nielsen. Quando assisti ao filme, lembrei-me dela em um suspense produzido pela HBO chamado Voyage, de 1991 ou 1992, que eu havia visto na televisão quando menino. Ela e o ator Eric Roberts representavam um casal que pegava carona em um veleiro de outro casal, para singrar pela costa de Malta. Ocorria que Connie e Eric Roberts tinham planos sinistros para o casal de amigos – pretendiam matá-los, forjar um acidente e assumir a identidade das vítimas. Ela estava maravilhosa no papel de assassina fria, e me recordo de seu nome, que era tão cool que mesmo depois de tantos anos, conservei na memória – creio que o personagem dela se chamava Ronie Freeland ou algo muito, muito parecido. Aqui, em Retratos de uma Obsessão, feito tantos anos depois de Voyage, ela parece muito diferente, no papel de uma mãe dedicada e esposa devota, e se sai igualmente muito bem. Ela é uma excelente atriz e o tempo lhe fez muito bem, continua bonita. Por causa desta resenha, pesquisei rapidamente na internet sobre sua vida, e descobri que hoje é a mãe de um rapaz de vinte e três anos, e companheira de um músico de sucesso; e também continua a trabalhar em filmes de sucesso!Fico feliz por saber que ela se saiu bem. Ao vê-la depois de tantos anos desde Voyage, eu me apercebi: O tempo realmente voa.

Todos os direitos autorais reservados a Twentieth Century Fox. O uso do trailer & imagens é meramente para efeito ilustrativo da resenha.

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