domingo, 10 de fevereiro de 2013

O Quarto do Filho - A dor da saudade.


Assertivo, sincero, triste e evocativo, O Quarto do Filho, filme do diretor/ator Nanni Moretti, não poupa ninguém com a estória de uma família comum e feliz que de uma hora para a outra perde o chão sob os pés em face de uma inesperada tragédia. Vencedor da Palma de Ouro em Cannes, O Quarto do Filho foi bastante aplaudido, comparado a outros dois extraordinários filmes sobre o luto em família, Gente como a Gente e Laços de Ternura. Tanto em O Quarto do Filho quanto em Gente como a Gente, assistimos à luta de famílias que precisam sublimar a perda de filhos muito queridos, algo que vai em sentido oposto à cronologia natural da vida, e deixa os membros sobreviventes ainda mais atônitos, preenchidos por agonia e remorsos não resolvidos. O olhar sincero do diretor imprime à obra todo o impacto da surpresa e aparente casualidade com que a morte nos assalta e, mais tarde, da tristeza perene que passa a pairar sobre a família, enquanto os sobreviventes tentam compreender o que aconteceu e se será possível, de fato, seguir adiante.

Para o psicanalista Giovanni, a vida não cessa de encantá-lo. Ele é um homem feliz e realizado, de arguta e afiada mente, que imagina guardar a maior parte das respostas para os mais importantes questionamentos existenciais. Em casa, a vida familiar vai de vento em popa: casado com a bela e inteligente editora Paola, ambos se esforçam para criar os filhos adolescentes, Andreas e Irene, dando bons exemplos, encorajando-os a serem si mesmos e se desenvolverem como seres humanos completos e responsáveis. Profissionalmente, sabe fazer bom uso de sua perspicácia e compreensão da natureza humana, auxiliando os pacientes com sensibilidade e bom humor, guiando-os ao bem estar e a resolução de seus dramas pessoais. Quando Giovanni é chamado ao colégio de Andreas depois que o adolescente é apanhado na companhia de colegas no furto de um fóssil do laboratório, começa a se questionar se está se dedicando ao menino com o mesmo afinco com que cuida dos pacientes. O psicanalista sente que devia escutá-lo mais, ao invés de simplesmente ditar opiniões e fornecer lições de moral. Há toda uma parte de Andreas – seus sonhos, os medos, os amores, seus dramas – que Giovanni não conhece bem, e justamente por amar o filho mais do que a qualquer outra coisa, compreende que só poderá ser um bom pai se ele se dedicar mais à aproximação de ambos. O psicanalista não se preocupa tanto, porém, afinal de contas o filho é apenas um adolescente, e os dois têm toda a vida inteira pela frente para se reaproximarem, certo?

Ocorre que assim como acontece para a vida do outro lado da tela, o destino nos reserva surpresas, e parte das surpresas pode ser muito trágica. Andreas morre em um tenebroso acidente de mergulho, depois que o pai precisa comparecer a um compromisso de última hora, o que libera o menino pelo restante da tarde para que possa mergulhar com os amigos. Devastado pela culpa, Giovanni, o homem que conhecia todas as respostas, descobre que as mesmas não valem muito, porque muito embora pareça eficiente ao ajudar as pessoas e ensiná-las a sublimar as próprias dores, não consegue trabalhar o próprio luto. O sentimento avassalador de culpa passa a permear sua existência, e não demora a considerar seriamente abrir mão do trabalho de psicanalista, por falta de condições emocionais. Giovanni perdeu a crença em si, e com a falta da fé, também se foi a mágica com que ajudava os pacientes. Paola procura se manter forte para a filha Irene, a parte mais vulnerabilizada pelo choque da perda. O casal começa a se afastar, os sobreviventes à deriva, Giovanni procurando o conforto do sofá da sala, Paola chorando sozinha à noite na suíte, Irene metida em seu próprio mundo. É quando a inesperada visita de uma pessoa põe a maneira dolorosa com que rememoravam o filho sob perspectiva: uma mocinha, namorada de Andreas, sobre quem o menino jamais falara, aparece na porta de casa. Ela diz que soube da morte do rapaz, que está de passagem, a caminho da França, e que se sentiu impelida a visitá-los para falar sobre o quanto sente muito.

Primeiramente, o que me chamou bastante a atenção deste filme europeu, e na minha opinião o elevou ao patamar do incomum foi a natureza do olhar de seu diretor a uma temática tão delicada. Nanni Moretti revela que a ideia de rodar O Quarto do Filho remonta há muito, muito tempo. Antes de efetivamente fazê-lo, porém, o que o impediu à época foi que havia acabado de se tornar pai, e não conseguia se imaginar conciliando as alegrias de papai de primeira viagem com o dever de filmar uma produção sobre uma família italiana dilacerada pela dor da morte de um filho. Precisou que o tempo passasse, e seu filho crescesse, para que retomasse ao material, para rodá-lo, felizmente com mais maturidade, deliciosa como os melhores vinhos. Em segundo lugar, assim como aconteceu com Antes do Amanhecer de Richard Linklater, o poder de O Quarto do Filho reside em seus detalhes, em instantes sutis cheios de significados, de lições importantes a se descobrir, a cada nova oportunidade que você assiste à fita. Há cenas onde não há nada a ser dito, e ainda assim nos contam muito sobre estes personagens. Vejam, por exemplo, quando assistimos à família, presente ao ritual do lacramento do caixão, na funerária, a tampa sendo soldada, uma cena que faz pesar sobre as nossas cabeças a envergadura da morte – não há retornos, não há consertos, é o fim; ou quando Paola leva Irene a um shopping, para provar roupas novas, em uma tentativa de restabelecer um pouco o senso de normalidade, e Irene finge muito bem sentir-se mais confortável, no entanto, quando a mãe entra no provador, abraça-se ao vestido que vai experimentar, solitariamente, e debulha-se em lágrimas; ou quando Giovanni e Arianna, a namorada de Andreas, sentam-se na sala para folhear o maço de fotografias que a menina trouxe, registros dos bons tempos que passou ao lado de Andreas, e então, subitamente, sem sobreaviso, Giovanni leva o maço à testa, lentamente, e pela primeira vez começa a chorar silenciosamente, uma das demonstrações de dor mais cinematograficamente sutis e marcantes que vi em toda a minha vida.

Mas assim como todos os diretores talentosos, a melhor parte, o cineasta reservou para o deslumbrante final. Arianna presta uma visita à família, quando lhes traz reminiscências felizes de Andreas. Chega a hora de partir. Ela vai apanhar um ônibus na rodoviária, seu destino a fronteira da Itália com a França. Giovanni, ainda bastante comovido com todas as últimas revelações, e finalmente liberto, depois do desabafo do choro ao examinar as fotos, oferece-se a lhe dar uma carona para a rodoviária. Já é tarde da noite. Paola e Irene, que já gostam muito da visitante, acham uma ótima ideia, e resolvem ir juntas. A menina está tão cansada que logo mais adormece no banco detrás. Ao vê-la dormindo tão quietinha, Giovanni e Paola sorriem, e resolvem que vão mesmo é levá-la por todo o caminho até a fronteira com a França. Marido e mulher finalmente têm toda uma madrugada para conversar, enquanto o carro segue pelas largas autoestradas europeias. Não durma, Giovanni sussurra para a esposa, fique aqui comigo. É manhã, quando a família alcança a fronteira. Irene desperta aos poucos, e olha abismada para os pais, como se não acreditasse que os pais tenham dirigido a madrugada inteira. Ela reclama algo nas linhas de Amanhã é segunda-feira e eu tenho aula, como é que vocês tiveram a coragem de vir tão longe! E então Giovanni e Paola entreolham-se, começam a rir, e em seguida, diante da inusitada situação, nem mesmo Irene resiste, explodindo em gostosas gargalhadas. A família e Arianna tomam um café da manhã em um pier próximo, e eles se despedem da moça, o último elo que os conectava ao menino morto, a visitante que lhes permitiu enxergar um outro Andreas. Desde a morte do garoto, é a primeira vez que nós os vemos em um mesmo frame, em um mesmo quadro. Até então, esta família estava despedaçada, os cacos cada vez mais distanciados, porém a visita da namorada transforma a dinâmica, e finalmente os vemos como uma unidade, destroçados pela dor, porém unidos. O final à beira do mar é deslumbrante.

É interessante, porque logo me veio à mente outro filme tristíssimo cujo final à beira do mar novamente encapsula a atitude de autoafirmação e crença absoluta em agarrar a vida com ânimo e determinação, independente do que o destino atire contra nossas caras: Zorba, O Grego, Alan Bates e Anthony Quinn dançando onde marés quebram, mesmo depois de todas as lágrimas vertidas, todas as dores que a vida injustamente lhes jogou no colo. O encantamento, o deslumbramento que cenas semelhantes provocam em nosso imaginário parecem ainda mais valiosas quando paramos para ponderar que tanto em Zorba, O Grego quanto em O Quarto do Filho, aquelas pessoas, afinal de contas, perderam. Elas perderam, porém ainda assim, ao final, a mensagem seguiu válida, o mundo é um lugar que podemos tornar melhor, e a vida vale a pena ser vivida. Em nossas vidas, temos a oportunidade de tratarmos as pessoas que nos são caras com amor, respeito e carinho, e no entanto, conduzimo-nos como se jamais fôssemos perdê-las. Damos preferência a perfeitos estranhos, tentando impressioná-los, sem nos importar com quem verdadeiramente nos ama. Ocorre que nada dura para sempre, e até onde sabemos, tudo o que temos é o aqui, e o agora. Dedique-se aos seus aliados, a pessoas que te ajudaram e cuidaram de ti sem exigir coisa alguma em troca. Somente quem é apanhado pelo impacto de uma tragédia súbita compreende a extensão do remorso, de jamais se ter dito eu te amo as vezes o suficiente para não se arrepender amargamente depois da partida. Como o Mediterrâneo nestes dois filmes maravilhosos nos lembra, a vida é o agora. Aproveite.

Todos os direitos autorais reservados a Warner Brothers. O uso do trailer é para efeito meramente ilustrativo da resenha.

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