domingo, 10 de fevereiro de 2013

O Quarto do Filho - A dor da saudade.


Assertivo, sincero, triste e evocativo, O Quarto do Filho, filme do diretor/ator Nanni Moretti, não poupa ninguém com a estória de uma família comum e feliz que de uma hora para a outra perde o chão sob os pés em face de uma inesperada tragédia. Vencedor da Palma de Ouro em Cannes, O Quarto do Filho foi bastante aplaudido, comparado a outros dois extraordinários filmes sobre o luto em família, Gente como a Gente e Laços de Ternura. Tanto em O Quarto do Filho quanto em Gente como a Gente, assistimos à luta de famílias que precisam sublimar a perda de filhos muito queridos, algo que vai em sentido oposto à cronologia natural da vida, e deixa os membros sobreviventes ainda mais atônitos, preenchidos por agonia e remorsos não resolvidos. O olhar sincero do diretor imprime à obra todo o impacto da surpresa e aparente casualidade com que a morte nos assalta e, mais tarde, da tristeza perene que passa a pairar sobre a família, enquanto os sobreviventes tentam compreender o que aconteceu e se será possível, de fato, seguir adiante.

Para o psicanalista Giovanni, a vida não cessa de encantá-lo. Ele é um homem feliz e realizado, de arguta e afiada mente, que imagina guardar a maior parte das respostas para os mais importantes questionamentos existenciais. Em casa, a vida familiar vai de vento em popa: casado com a bela e inteligente editora Paola, ambos se esforçam para criar os filhos adolescentes, Andreas e Irene, dando bons exemplos, encorajando-os a serem si mesmos e se desenvolverem como seres humanos completos e responsáveis. Profissionalmente, sabe fazer bom uso de sua perspicácia e compreensão da natureza humana, auxiliando os pacientes com sensibilidade e bom humor, guiando-os ao bem estar e a resolução de seus dramas pessoais. Quando Giovanni é chamado ao colégio de Andreas depois que o adolescente é apanhado na companhia de colegas no furto de um fóssil do laboratório, começa a se questionar se está se dedicando ao menino com o mesmo afinco com que cuida dos pacientes. O psicanalista sente que devia escutá-lo mais, ao invés de simplesmente ditar opiniões e fornecer lições de moral. Há toda uma parte de Andreas – seus sonhos, os medos, os amores, seus dramas – que Giovanni não conhece bem, e justamente por amar o filho mais do que a qualquer outra coisa, compreende que só poderá ser um bom pai se ele se dedicar mais à aproximação de ambos. O psicanalista não se preocupa tanto, porém, afinal de contas o filho é apenas um adolescente, e os dois têm toda a vida inteira pela frente para se reaproximarem, certo?

Ocorre que assim como acontece para a vida do outro lado da tela, o destino nos reserva surpresas, e parte das surpresas pode ser muito trágica. Andreas morre em um tenebroso acidente de mergulho, depois que o pai precisa comparecer a um compromisso de última hora, o que libera o menino pelo restante da tarde para que possa mergulhar com os amigos. Devastado pela culpa, Giovanni, o homem que conhecia todas as respostas, descobre que as mesmas não valem muito, porque muito embora pareça eficiente ao ajudar as pessoas e ensiná-las a sublimar as próprias dores, não consegue trabalhar o próprio luto. O sentimento avassalador de culpa passa a permear sua existência, e não demora a considerar seriamente abrir mão do trabalho de psicanalista, por falta de condições emocionais. Giovanni perdeu a crença em si, e com a falta da fé, também se foi a mágica com que ajudava os pacientes. Paola procura se manter forte para a filha Irene, a parte mais vulnerabilizada pelo choque da perda. O casal começa a se afastar, os sobreviventes à deriva, Giovanni procurando o conforto do sofá da sala, Paola chorando sozinha à noite na suíte, Irene metida em seu próprio mundo. É quando a inesperada visita de uma pessoa põe a maneira dolorosa com que rememoravam o filho sob perspectiva: uma mocinha, namorada de Andreas, sobre quem o menino jamais falara, aparece na porta de casa. Ela diz que soube da morte do rapaz, que está de passagem, a caminho da França, e que se sentiu impelida a visitá-los para falar sobre o quanto sente muito.

Primeiramente, o que me chamou bastante a atenção deste filme europeu, e na minha opinião o elevou ao patamar do incomum foi a natureza do olhar de seu diretor a uma temática tão delicada. Nanni Moretti revela que a ideia de rodar O Quarto do Filho remonta há muito, muito tempo. Antes de efetivamente fazê-lo, porém, o que o impediu à época foi que havia acabado de se tornar pai, e não conseguia se imaginar conciliando as alegrias de papai de primeira viagem com o dever de filmar uma produção sobre uma família italiana dilacerada pela dor da morte de um filho. Precisou que o tempo passasse, e seu filho crescesse, para que retomasse ao material, para rodá-lo, felizmente com mais maturidade, deliciosa como os melhores vinhos. Em segundo lugar, assim como aconteceu com Antes do Amanhecer de Richard Linklater, o poder de O Quarto do Filho reside em seus detalhes, em instantes sutis cheios de significados, de lições importantes a se descobrir, a cada nova oportunidade que você assiste à fita. Há cenas onde não há nada a ser dito, e ainda assim nos contam muito sobre estes personagens. Vejam, por exemplo, quando assistimos à família, presente ao ritual do lacramento do caixão, na funerária, a tampa sendo soldada, uma cena que faz pesar sobre as nossas cabeças a envergadura da morte – não há retornos, não há consertos, é o fim; ou quando Paola leva Irene a um shopping, para provar roupas novas, em uma tentativa de restabelecer um pouco o senso de normalidade, e Irene finge muito bem sentir-se mais confortável, no entanto, quando a mãe entra no provador, abraça-se ao vestido que vai experimentar, solitariamente, e debulha-se em lágrimas; ou quando Giovanni e Arianna, a namorada de Andreas, sentam-se na sala para folhear o maço de fotografias que a menina trouxe, registros dos bons tempos que passou ao lado de Andreas, e então, subitamente, sem sobreaviso, Giovanni leva o maço à testa, lentamente, e pela primeira vez começa a chorar silenciosamente, uma das demonstrações de dor mais cinematograficamente sutis e marcantes que vi em toda a minha vida.

Mas assim como todos os diretores talentosos, a melhor parte, o cineasta reservou para o deslumbrante final. Arianna presta uma visita à família, quando lhes traz reminiscências felizes de Andreas. Chega a hora de partir. Ela vai apanhar um ônibus na rodoviária, seu destino a fronteira da Itália com a França. Giovanni, ainda bastante comovido com todas as últimas revelações, e finalmente liberto, depois do desabafo do choro ao examinar as fotos, oferece-se a lhe dar uma carona para a rodoviária. Já é tarde da noite. Paola e Irene, que já gostam muito da visitante, acham uma ótima ideia, e resolvem ir juntas. A menina está tão cansada que logo mais adormece no banco detrás. Ao vê-la dormindo tão quietinha, Giovanni e Paola sorriem, e resolvem que vão mesmo é levá-la por todo o caminho até a fronteira com a França. Marido e mulher finalmente têm toda uma madrugada para conversar, enquanto o carro segue pelas largas autoestradas europeias. Não durma, Giovanni sussurra para a esposa, fique aqui comigo. É manhã, quando a família alcança a fronteira. Irene desperta aos poucos, e olha abismada para os pais, como se não acreditasse que os pais tenham dirigido a madrugada inteira. Ela reclama algo nas linhas de Amanhã é segunda-feira e eu tenho aula, como é que vocês tiveram a coragem de vir tão longe! E então Giovanni e Paola entreolham-se, começam a rir, e em seguida, diante da inusitada situação, nem mesmo Irene resiste, explodindo em gostosas gargalhadas. A família e Arianna tomam um café da manhã em um pier próximo, e eles se despedem da moça, o último elo que os conectava ao menino morto, a visitante que lhes permitiu enxergar um outro Andreas. Desde a morte do garoto, é a primeira vez que nós os vemos em um mesmo frame, em um mesmo quadro. Até então, esta família estava despedaçada, os cacos cada vez mais distanciados, porém a visita da namorada transforma a dinâmica, e finalmente os vemos como uma unidade, destroçados pela dor, porém unidos. O final à beira do mar é deslumbrante.

É interessante, porque logo me veio à mente outro filme tristíssimo cujo final à beira do mar novamente encapsula a atitude de autoafirmação e crença absoluta em agarrar a vida com ânimo e determinação, independente do que o destino atire contra nossas caras: Zorba, O Grego, Alan Bates e Anthony Quinn dançando onde marés quebram, mesmo depois de todas as lágrimas vertidas, todas as dores que a vida injustamente lhes jogou no colo. O encantamento, o deslumbramento que cenas semelhantes provocam em nosso imaginário parecem ainda mais valiosas quando paramos para ponderar que tanto em Zorba, O Grego quanto em O Quarto do Filho, aquelas pessoas, afinal de contas, perderam. Elas perderam, porém ainda assim, ao final, a mensagem seguiu válida, o mundo é um lugar que podemos tornar melhor, e a vida vale a pena ser vivida. Em nossas vidas, temos a oportunidade de tratarmos as pessoas que nos são caras com amor, respeito e carinho, e no entanto, conduzimo-nos como se jamais fôssemos perdê-las. Damos preferência a perfeitos estranhos, tentando impressioná-los, sem nos importar com quem verdadeiramente nos ama. Ocorre que nada dura para sempre, e até onde sabemos, tudo o que temos é o aqui, e o agora. Dedique-se aos seus aliados, a pessoas que te ajudaram e cuidaram de ti sem exigir coisa alguma em troca. Somente quem é apanhado pelo impacto de uma tragédia súbita compreende a extensão do remorso, de jamais se ter dito eu te amo as vezes o suficiente para não se arrepender amargamente depois da partida. Como o Mediterrâneo nestes dois filmes maravilhosos nos lembra, a vida é o agora. Aproveite.

Todos os direitos autorais reservados a Warner Brothers. O uso do trailer é para efeito meramente ilustrativo da resenha.

sábado, 2 de fevereiro de 2013

Retratos de uma Obsessão - Quando a nossa parte boa é melhor do que a soma das diferenças de nossa parte má.


Olá, pessoal. Nesta oportunidade, tenho o prazer de falar sobre um de meus filmes preferidos. É fenomenal, impecável do começo ao fim – começando pelas performances na medida certa até a direção precisa – e o melhor momento do astro Robin Williams. Eu fiz uma afirmativa e tanto, não?Escrever que este foi seu melhor momento. Quando se leva em consideração o tempo que este artista vem fazendo filmes bons e interessantes, parece precipitado eleger este quase desconhecido filme de arte como o melhor instante de Robin Williams, mas tomem a minha palavra como certa: Retratos de uma Obsessão é o trabalho pelo qual Robin Williams deverá ser lembrado. Apesar do nome deste blog, os melhores filmes de horror, Retratos de uma Obsessão passa longe do gênero terror. Quem for assistir ao filme esperando um suspense eletrizante se desapontará, e eis o ponto pelo qual o filme não foi bem-sucedido, financeiramente falando, na ocasião do lançamento: tentaram vendê-lo como um suspense nos moldes de Cabo do Medo, quando na verdade passa bem longe desta proposta.

Retratos de uma Obsessão é um filme intimista, centrado em diálogos, um estudo de personagens que parecem reais e a maneira como interagem uns com os outros, sem a menor pretensão de oferecer suspense ou perseguições. O suspense que existe surge apenas na segunda metade da trama, como consequência natural da sucessão de eventos, e não a razão principal para os mesmos. A ausência de perseguições ou cenas de susto ou ação não representou problema algum ao ritmo do filme, pois foi compensada por uma atmosfera melancólica e nostálgica, que permeia a fita do início ao fim. Do mesmo jeito que aconteceu com o diretor Brad Anderson e o magistral Session 9, ou mesmo Tom Shankland e o quase perfeito w delta z, aqui o diretor Mark Romanek escolheu sabiamente ao delegar aos seus atores a incumbência de habitarem os personagens com completa liberdade, torná-los somente seus, e gentilmente se afastar, dar-lhes espaço, posicionando as câmeras sem intromissões ou extravagâncias. Romanek permite que o elenco comande o show, esmerando-se para jamais esquecer de não trair o tom entristecido e realista da estória. Este é um filme tristíssimo, e a fotografia nos remete à solidão devastadora que corrói o personagem principal e o arranca dos trilhos, similar ao que aconteceu a Peter Mullan em Session 9 ou Stellan Skarsgard em w delta z. Em Retratos de uma Obsessão, Romanek foge de estilos e excessos, pois compreende que este não é o seu show, e sim o de seus personagens, e nada mais é importante que as dores pelos quais os mesmos passam no decorrer da estória.

Sy (Robin Williams) é um simpático, introvertido senhor aos seus cinquenta e poucos anos, a maior parte deste tempo passada dentro do WalMart, onde trabalha com revelação de fotografias. Por sua cabine, uma porção considerável da vida da família Yorkin passou pelas suas mãos, registrada em fotografias de alegria, que vão desde o namoro de Will e Nina (Michael Vartan e Connie Nielsen) à vida em família, passando, claro, pelo casamento e o nascimento de Jake, o filho. Os Yorkin são sempre corteses com o revelador, trocando os cumprimentos usuais. Ei, como vai, Sy?, Nina pergunta naturalmente ao trazer os rolos. Como o Jake cresceu, hein? Sy observa ao ver o garoto gradualmente maior a cada nova visita à cabine. E assim, as diferentes estações da vida vão se sucedendo.

Acompanhamos Sy regressando para casa, depois de um cansativo dia de trabalho. Parando em uma diner qualquer para provar um omelete e bebericar xícaras de café com leite, Sy tira um maço de fotografias do bolso, para examiná-las. A expressão de serenidade toma conta do rosto, à medida que vai passando a vista pelos retratos, como cartas de baralho. A garçonete que enche sua xícara casualmente pergunta quem são as pessoas nas fotos. Sy explica que se trata da sua família. Você acaba de ser convidado a um passeio pela horrorosa, triste existência de Sy Parrish, porque muito embora os instantes em que cruza com a família Yorkin no shopping sejam aparentemente muito cândidos e agradáveis, há toda uma vida para além do cordato, uma existência sombria causada por um passado tétrico onde não há ninguém para confortá-lo, para apoiá-lo. Tudo o que resta a Sy são as pessoas nas fotos, as pessoas que ao nominar como família mentiu. Vocês veem que aqui há um abismo que jamais será transposto. Por mais que tenha feito cópias dos retratos do Yorkin e os tenha pendurado na sala, como uma forma de ao menos imaginar como teria sido sua vida no seio de uma família feliz, a realidade é mais cruel. Para a família, Sy é apenas Sy o Cara da Foto. Este é um filme sobre a solidão e como o mundo pode ser cruel para almas vulneráveis.

Apresentarei aos amigos um termo agora – filme de detalhes. Uso este termo para produções a que assisti muitas vezes, porém com que sempre descubro coisas inéditas todas as vezes em que assisto novamente. Aconteceu quando vi a Antes do Amanhecer (Julie Delpy e Ethan Hawke apaixonados, ainda aos vinte e poucos, as vidas inteiras pela frente, caminhando por Viena, visitando um pequeno cemitério local e Julie olhando para as inscrições do túmulo de uma criança que morreu tragicamente e dizendo Ela continuará com dez anos de idade, sempre, e no entanto eu seguirei envelhecendo), e Antes do Pôr-do-sol (no final, os dois a um sopro da despedida, e ela aponta para o gatinho no jardim e diz Sabe o que eu mais admiro nele?É que todas as manhãs ele olha para esse jardim com o encanto da primeira vez). Retratos de uma Obsessão é um filme assim – de detalhes, de instantes muito sutis, reveladores, que, somados, compõem uma obra-prima norte-americana sobre dramas humanos enfrentados por todos nós em uma base diária.

Sim, Sy ama os Yorkin, tudo o que queria dos Yorkin era pertencer. Ele não é um stalker, um bandido, não é um pedófilo, não cobiça a mulher alheia, não inveja o pai, tampouco deseja os bens materiais da família de classe média alta. Tudo o que queria, o raio de luz de sua existência, era experimentar um dia que fosse como o Tio Sy, aceito como parte de um lar normal & feliz. Levar Jake aos jogos da liga, assistir às partidas de futebol americano tomando latinhas de cerveja com Will, participar das reuniões familiares – coisas que um tio faz. Vocês percebem que as intenções de Sy são pueris, e que ele apenas não sabe como corretamente estender a mão aos Yorkin para pedir ajuda. Um passado sombrio o alijou de autoestima e o enclausurou em um mundo somente seu, à parte. Em que pese a alma gentil, as interações saem sempre tacanhas e desastradas, e as pessoas, no trabalho, riem às suas costas, pela sua timidez, pelo fato de não conseguir pertencer. Sy quer ser o Tio Sy, porém não compreende que age com intromissão, por exemplo, quando escolhe simplesmente aparecer em um jogo de baseball do garoto e lhe dar um presente. As intenções são as melhores, os meios que usa são desastrosos.

Retratos de uma Obsessão foi construído em cima dos detalhes, porque são dos detalhes que transbordam a tristeza e a dor deste personagem trágico. Na cena inicial do filme, Nina e Jake aparecem no estande de Sy, para revelar o rolo de filmes. Sy nota que há um filme não gasto e se oferece para tirar uma foto de Nina, ali mesmo do estande. Os dois riem, Sy tira a foto... É uma cena maravilhosa, e o detalhe reside na interação meio constrangida entre os dois. Os amigos devem conhecer a sensação, não?Aquela pessoa que você encontra casualmente no elevador, e com quem tem um minuto de cordial prosa, porém fica olhando para o mostrador esperando que chegue logo ao andar. Não que haja algo de errado com a outra pessoa, apenas um constrangimento natural entre dois adultos que não são tão próximos assim, tampouco completos desconhecidos – são apenas adultos que habitam um limbo relacional, onde ainda não se conhecem muito bem, e de onde nascem primeiras impressões, equivocadas.

Outra cena evocativa acontece quando Sy aparece no jogo de baseball de Jake, e depois da partida, acompanha-o por parte do trajeto para casa. Eu amo a cena, pois novamente Romanek nos oferecesse uma pequena janela através da qual podemos compreender a vida de Sy. Novamente, a lente captura o drama por um ângulo bem aberto, sem atrapalhar, e você vê os dois, homem e menino conversando, caminhando por um campinho durante uma tarde, as folhas amareladas caindo ao sabor do vento. Sy fala que não podia fazer esportes quando criança pois vivia doente, Jake conta que gostaria que o pai estivesse mais presente para vê-lo jogar (o que nos mostra que a vida dos Yorkin não é tão perfeita quanto Sy imagina). Sy põe a queixa do menino sob perspectiva, ao dizer que a razão pela qual o pai às vezes não comparece tanto quanto o menino gostaria se deve ao fato de Will trabalhar bastante para garantir que Jake e a mãe tenham coisas boas & bonitas.

Romanek é igualmente assertivo ao nos fazer pensar sobre o quanto as crianças sacam as coisas, e o quanto a sensibilidade infantil é tão mais aguçada do que os adultos possam imaginar. Depois da visita ao laboratório de fotos, mais tarde, em casa, quando Nina vai pôr o menino na cama, a criança lhe diz que se sente mal por Sy. Achei interessante, pois o menino não interage muito com o operador de laboratório, até aquele momento, porém sabe, sabe em seu ser, que Sy é uma pessoa triste e as pessoas fazem pouco dele. Pela primeira metade de projeção Retratos de uma Obsessão nos brinda com excepcional construção de personagens. Poucos filmes nos fazem pensar É como se essa turma toda fosse real, sinto como se os tivesse conhecido! Pela segunda, a trama ganha ritmo. Quando Sy descobre que Will está tendo um caso extraconjugal, ocorre-lhe pela primeira vez que os verdadeiros Yorkin diferem da fantasia que fizera dos mesmos, a que tanto desejava pertencer. Em seguida, vem o outro golpe do destino, Sy perde o emprego. A conjunção de infortúnios é demasiadamente pesada para o homem, e ele finalmente sai dos trilhos.

Do mesmo modo que respeitou os personagens e soube destrinchá-los, Romanek dirigiu magistralmente a segunda metade da fita. Quando o filme se torna mais tenso e sombrio, Romanek oferece um imaginário extremamente perturbador e emocionalmente devastador. Há uma sequência inesquecível, um pesadelo de Sy, talvez instigado pela vida emocional vazia e solitária. No sonho, vê-se sozinho, de pé, dentro daquele WalMart estéril e branco, e subitamente de seus olhos jorram cascatas de sangue. Apesar do suspense crescente na segunda metade, Retratos de uma Obsessão jamais se torna um filme previsível, jamais descamba para a mediocridade. Aqui, não há assassinatos ou tragédias, e se o final é muito triste, o é apenas para o trágico protagonista.

Retratos de uma Obsessão me fez pensar sobre as pessoas semelhantes a Sy Parrish, pessoas de nosso convívio que muitas vezes passam batidas, e todavia ali estão, com histórias de vida semelhantes. Tornamo-nos tão anestesiados face ao estado das coisas que mal conseguimos reunir alguma empatia para as pessoas que sofrem, o que nos empurra a um processo de constante segregação. É como se cada vez mais reduzíssemos a capacidade de aceitar, conviver e nos importar. O círculo vai se fechando, e fora do mesmo, só habitam pessoas com quem não poderíamos nos importar menos. Em 2006, foi lançado um documentário chamado A Ponte. Em linhas gerais, o diretor, Eric Steel, armou muitas câmeras ao redor da Golden Gate, a enorme ponte pênsil em São Francisco, e com as lentes, capturou os suicídios que por ali se deram no primeiro semestre do ano de 2004. Assim que as câmeras capturavam pessoas suspeitas indo e vindo na beirada, como se estivessem contemplando o salto, Steel e a equipe acionavam a Guarda Costeira, que imediatamente abordava o suspeito e o tirava do lugar. Outros suicidas, todavia, não davam pista alguma das intenções, e foram os saltos destes aqueles capturados pelas câmeras. Depois dos trágicos saltos, Steel procurava conhecer a história daquela gente, o que os colocara à beira da Golden Gate, o portal entre esta existência e o fim. O que o cineasta encontrou foram histórias semelhantes a de Sy: almas vulneráveis fragilizadas, passados com dependência química, esquizofrenia e toda sorte de males. O que encorajara aquela gente a saltar da Golden Gate não fora a esquizofrenia ou a dependência química, ao menos não exclusivamente, mas talvez principalmente a completa apatia que encontraram nos semelhantes ao procurarem ajuda e compreensão.

Ao mesmo tempo, observamos que do mesmo jeito que há a parte má da condição humana, representada pelo seu egoísmo, individualismo ou oportunismo, cada vez mais exacerbadamente, existe também a parte boa, a parte agregadora, a parte que deveríamos valorizar mais. Se você analisa, por exemplo, um drama como o acidente de Chernobyl, uma catástrofe que, crê-se, acabará matando de cânceres mais pessoas ao longo dos anos desde 1986 do que as que Adolf Hitler foi capaz de assassinar durante toda a Segunda Grande Guerra, você percebe que a bondade é inerente ao ser humano, pois quando aquela gente pobre e humilde batalhou sobre os destroços do Reator 04 como um time, carregando pedaços fumegantes de grafite radioativo com as mãos, tendo os corpos devorados por césio-137 e iodo radioativo, quando aquela gente concluiu os trabalhos de isolamento do reator e finalmente hasteou a bandeira da União Soviética acima do reator, quando os soldados comemoraram, abraçaram-se e olharam uns para os outros, depois daquele pesadelo, compreenderam que todos pareciam exatamente iguais, com seus rostos sujos, amarronzados e cansados. Apesar das diferenças individuais, todos tinham acabado semelhantes, e o que os movera a derrotar algo tão mortífero quanto as toneladas de césio lançadas na atmosfera havia sido justamente o amor que tinham uns pelos outros, a obstinação de não permitir que aquele acidente alcançasse os familiares, os semelhantes. Mais recentemente, em Santa Maria, tivemos a tragédia do fogo na boate que custou a vida de mais de duzentos e trinta jovens. Novamente, as imagens e os relatos nos mostraram que mesmo em meio à dor, rapazes e meninas que em um primeiro momento tinham deixado a boate com segurança regressaram para a linha de fogo para salvar vidas. Ao final, você viu aquelas cenas emocionantes, vítimas arrastadas para fora da escuridão, para longe da fumaça tóxica, salvas pela bravura de garotos, meninos cujos rostos pareciam exatamente iguais, sujos de fuligem. Não havia mais diferenças, todos ali irmãos, um time. Eu pergunto: existe amor maior do que doar a própria vida para a salvação da vida do teu irmão?Menciono estes dois acontecimentos nesta resenha pois são a prova cabal de que a parte boa da condição humana, aquela que nos une, é muito mais forte do que as diferenças mesquinhas e pequenas causadas pela nossa parte má. Eu quero parabenizar o diretor Mark Romanek pela sensibilidade na condução deste grande filme, e o elenco pelas performances que tornaram os personagens reais, e levantaram questionamentos tão importantes cujos efeitos sentimos no dia a dia, e cujas lições refletem em nossas vidas individuais. Uma última menção vai para a atriz Connie Nielsen. Quando assisti ao filme, lembrei-me dela em um suspense produzido pela HBO chamado Voyage, de 1991 ou 1992, que eu havia visto na televisão quando menino. Ela e o ator Eric Roberts representavam um casal que pegava carona em um veleiro de outro casal, para singrar pela costa de Malta. Ocorria que Connie e Eric Roberts tinham planos sinistros para o casal de amigos – pretendiam matá-los, forjar um acidente e assumir a identidade das vítimas. Ela estava maravilhosa no papel de assassina fria, e me recordo de seu nome, que era tão cool que mesmo depois de tantos anos, conservei na memória – creio que o personagem dela se chamava Ronie Freeland ou algo muito, muito parecido. Aqui, em Retratos de uma Obsessão, feito tantos anos depois de Voyage, ela parece muito diferente, no papel de uma mãe dedicada e esposa devota, e se sai igualmente muito bem. Ela é uma excelente atriz e o tempo lhe fez muito bem, continua bonita. Por causa desta resenha, pesquisei rapidamente na internet sobre sua vida, e descobri que hoje é a mãe de um rapaz de vinte e três anos, e companheira de um músico de sucesso; e também continua a trabalhar em filmes de sucesso!Fico feliz por saber que ela se saiu bem. Ao vê-la depois de tantos anos desde Voyage, eu me apercebi: O tempo realmente voa.

Todos os direitos autorais reservados a Twentieth Century Fox. O uso do trailer & imagens é meramente para efeito ilustrativo da resenha.

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2013

A Árvore da Maldição.


Olá, pessoal. Hoje, o objeto da resenha será o filme The Guardian – A Árvore da Maldição, do aclamado diretor William Friedkin. Lançado pela Universal no começo dos anos 90, o filme não foi bem acolhido, e de modo geral, foi tomado como mais um exemplar da fase criativa ruim de seu diretor, que depois de ganhar prêmios da Academia por Operação França, de 1971, e O Exorcista, de 1973, jamais conseguiu capitalizar o momentum gerado por suas duas primeiras grandes obras. De toda sorte, pouco importa que The Guardian tenha sido meio que esquecido pelo público: é um filme de horror interessante, atmosférico, divertido e cheio de estilo, e que merece ser redescoberto. Da mesma maneira que, por exemplo, você assiste a um filme e graças ao estilo pode afirmar com convicção que foi dirigido por um gênio como Brian de Palma, você pode afirmar o mesmo sobre Friedkin, que guarda um olhar somente seu, uma personalidade forte refletida na sua obra e que causa impressão.

Baseado no romance de Dan Greenburg, The Guardian foi lançado em 1990 pela Universal, um período onde filmes do gênero faziam muito dinheiro para os estúdios. No ano anterior, Pet Sematary gerara muitos dividendos, trazendo para a Paramount quase sessenta milhões de dólares nas bilheterias. The Guardian foi concebido nesta onda criativa de horror, mas os lucros na bilheteria ficaram aquém do esperado. Depois de uma breve passagem pelo cinema, onde gerou dezessete milhões de dólares, foi esquecido nas prateleiras de vídeo.

Uma pena. Muito embora Friedkin não tenha criado uma obra tão memorável quanto O Exorcista, realizou um filme muito habilidoso e com alguns momentos realmente assustadores. O filme revolve um jovem casal de classe média, aos seus trinta e poucos anos, felizes pais de primeira viagem, cheios de expectativa pela chegada do bebê. Uma jovem britânica aparece na porta da casa, dizendo-se indicada por uma determinada agência de babás, e imediatamente angaria a simpatia do casal, apesar de mais tarde a esposa fazer um comentário brincalhão com o marido, sobre como sentia que estava cometendo um grande erro ao contratá-la, pois Camila, a babá, era uma jovem muito bonita – e uma concorrente em potencial.

Mas o fato de Camila ser bonita e interessante acaba sendo o menor dos problemas. Este não é um filme sobre casos extraconjugais. O diretor William Friedkin explora a lenda dos druidas, sacerdotes oriundos da sociedade celta, adeptos da filosofia natural, que tinham na árvore do carvalho o seu grande guia, adeptos de sacrifício humano. Pouco se sabe sobre essa sociedade, mas os sacerdotes celtas tinham uma ligação muito forte com a natureza, e acreditavam na sua magia. Coisas bizarras começam a se suceder, depois que Camila se muda para dentro da bela casa à beira do bosque. Ela parece muito ligada ao bebê, e em dado momento chega até mesmo a lhe dar de mamar. Depois de uma recepção para os amigos, o vizinho, jovem arquiteto, conhece Camila e se interessa pela moça. Ao investigar sobre a babá, o rapaz desaparece misteriosamente. Acontecimentos inexplicáveis passam a se suceder. O pai começa a olhar com mais atenção para as peças do quebra cabeça, e as investigações o levam a uma sofrida senhora cujo filho fora sequestrado anos antes, e que jura que foi Camila, então com outro nome, a responsável.

A previsibilidade é compensada pela habilidade do diretor veterano, que concebe momentos memoráveis. O destino do tal vizinho, que some misteriosamente, é particularmente assombroso, muito bem executado. Uma noite, ao procurar por Camila para convidá-la a sair, a avista de longe, entrando no bosque. Grita por ela, mas a babá parece não o escutar, e então a segue. É quando ele testemunha a moça em um ritual druida aos pés de um enorme carvalho. Surpreendido por Camila, o rapaz é perseguido - do bosque para sua casa, por lobos, e por uma força sobrenatural que prova se materializar em todos os cantos - até ser finalmente morto dentro de casa. É interessante, uma vilã assustadora que tem a seu favor o misterioso comando sobre a fauna e a flora local. Os lobos obedecem a seus comandos, e as árvores de carvalho têm vida!Pode parecer um pouco tolo, mas nas hábeis mãos de Friedkin não o é. O cineasta também faz excelente uso de música, nos moldes do que aconteceu com os filmes recentes de horror A Entidade e Sobrenatural, onde as súbitas entradas de violinos histéricos agudos criam momentos de eriçar os cabelos da nuca.

Jenny Seagrove interpreta Camila, e dá mais uma das grandes performances de atrizes britânicas em filmes de horror. Clare Higgins continua sendo a melhor, no sinistro papel de Julia, assassinando homens com marteladas na cabeça em Hellraiser, ou drenando o sangue e os nutrientes de uma vítima em Hellbound: Hellraiser II. Jenny, no entanto, deixou impressão marcante, principalmente na referida sequência em que o vizinho arquiteto é devorado dentro de casa após escapar do bosque. Dwier Brown é o protagonista, o pai de família que precisa enfrentar o mal sobrenatural secular para proteger a mulher e o bebê, e se sai muito bem, como o sujeito comum, bem-sucedido, que ama a família e protege os amigos, e em momentos de horror, consegue descobrir em si a coragem para subjugar o mal. Árvore da Maldição foi lançado no mercado de vídeo, no começo dos anos 90, mas a transposição para DVD jamais aconteceu, no Brasil. É possível encontrá-lo em sítios de compartilhamento de vídeo, todavia sem legendas, sob o nome The Guardian. Corra atrás de The Guardian – ou Camila aparecerá à noite na sua sala de estar!
Todos os direitos autorais reservados a Universal Pictures. O uso do trailer é para efeito meramente ilustrativo da resenha.

domingo, 20 de janeiro de 2013

V/H/S - Um passeio pelas alamedas da recordação.

Olá, pessoal. É com muita satisfação que venho tecer considerações sobre um dos filmes de horror mais interessantes de 2012 – e que pode ser facilmente conseguido em sítios de hospedagem de vídeos, cortesia de algum cinéfilo generoso que o disponibilizou. Refiro-me a uma contribuição entre os nomes mais pronunciados do cinema do horror desta década – entre eles Ti West, o diretor do aclamado House of the Devil – chamada V/H/S, coletânea de pequenas estórias de terror amarradas pela trama principal, que envolve um grupo de rapazes que invade uma residência para realizar um assalto, encontram o morador morto e uma caixa de tapes. As estórias são justamente os tapes que os invasores começam a assistir, ao todo cinco segmentos, cada qual melhor que o outro!Se os amigos preferem assistir a filmes sem conhecer as estórias, recomendo que parem de ler por aqui – ao longo desta resenha, farei revelações sobre as mesmas, porém quero ser categórico ao afirmar que jamais me diverti tanto quanto no passado, - em 1994 por exemplo, quando tinha 14 anos e assistia a Gêmeos Mórbida Semelhança, os filmes de David Cronenberg ou os de Burt Reynolds, que passavam na Sessão da Tarde, ou mesmo os de Jennifer Connelly - como quando hoje, ao descobrir V/H/S. Foi tão bom assim!Um passeio nostálgico pelas alamedas da recordação, cortesia de diretores que assim como a gente vivenciaram aqueles tempos, apaixonaram-se por filmes do gênero, e finalmente tiveram a oportunidade de homenageá-los com um trabalho diferenciado e encantador.

O que apreciei neste filme foi que fugiu à regra, e se distanciou o máximo possível de efeitos especiais bobocas e clichês do gênero. Ao contrário, a abordagem refrescante apenas favorece a atmosfera retrô que permeia todo o filme. Os diretores souberam adicionar elementos realmente inesperados – e incômodos, tétricos – a cada segmento, de modo que a obra, como um conjunto, acabou mais forte do que as partes. Há violência, mas a mesma não é mais evocativa do que as estórias. O diferencial de V/H/S é o clima mórbido que consegue impor, o que se deve ao amor que os cineastas devotam a este tipo de material. Assim como o cineasta Quentin Tarantino fez anteriormente, o fato de procurarem imprimir ao celuloide os detalhes, os pontos fortes de todos estes clássicos do passado – os de Dario Argento, David Cronenberg, os de Wes Craven – deu à produção uma roupagem nostálgica que, curiosamente, parece inédita, vez que reinventada.

O primeiro segmento envolve um trio de jovens na balada. Um dos rapazes, aquele que parece o mais inexperiente e ingênuo, veste óculos que documentam toda a farra. É que os amigos querem pegar as meninas mais bonitas, levá-las a um motel qualquer, fazer amor e documentar a conquista para se exibirem depois. Entram em um bar, conhecem algumas garotas, rapidamente o mais experiente dá um jeitinho de embebedá-las, para preparar terreno e, mais tarde, abater a caça. O mais inocente conhece uma moça estranha, que parece simpatizar com sua pessoa de imediato. Eu gosto de você, ela sussurra no ouvido do cara. Os desdobramentos horrorosos da noite são o fio narrativo do primeiro conto, que envolve a lenda do Sucubus, um espírito demoníaco feminino que eventualmente desce à Terra para levar nas suas asas a alma de algum incauto que caia pelo seu poder de sedução. Este segmento angustiante oferece breve nudez frontal, violência explícita (um pulso com fratura exposta e uma castração gráfica) e muitos arrepios. A cena em que a moça chega para o rapaz e diz, em sussurro, I like you (eu gosto de você) é de gelar... Principalmente, levando-se em conta no pesadelo em que estes três rapazes estão se metendo do momento em que resolvem levá-la para um quarto de motel de beira de estrada.

A segunda estória, a melhor de todas, foi dirigida pelo talentoso Ti West, responsável por House of the Devil e Hotel do Terror. Trata de um jovem casal em lua de mel viajando pelas rodovias interestaduais dos Estados Unidos. Este segmento é o único que não envolve forças sobrenaturais ou alienígenas, todavia o impacto da revelação final é tão chocante quanto os mais arrepiantes fenômenos paranormais que você consiga imaginar. O jovem casal documenta a jornada pelas estradas, o amplo horizonte norte-americano a se perder de vista. Os dois param em uma cidadezinha que recria os tempos do Velho Oeste. A moça põe uma nota na máquina do boneco que prevê o futuro. O aviso não poderia soar mais profético. Para o rapaz, mais tarde, fará completo sentido o trecho que afirma que “Você confia excessivamente nas pessoas e está disposto a fazer favores sem desconfiar que os outros usam isso como vantagem”; e para a moça, “Um acontecimento inédito está se aproximando, você se reunirá a um grande amor do passado e a vida será tudo aquilo que sempre desejou”. É claro que não há nada que leve o rapaz a suspeitar que existe algo de errado na relação, até porque a moça parece sempre amável e compreensível. Na noite em que param em um hotel de beira de estrada, uma menina bate à porta, e o rapaz vai atender. Mais tarde, explica `a esposa que a estranha pediu uma carona para o dia seguinte. Parecia uma moça comum, normal, no entanto, havia algo em seus modos que lhe causou arrepios. Ele considera reportar o caso para a polícia, porém compreende que a estranha não fez nada de errado, afinal de contas. Em um tom sombrio, ele lembra à esposa que estão metidos nas brenhas dos Estados Unidos, e aquela região é notória pelo alto índice de criminalidade. Os dois vão dormir, tensos, e durante a madrugada, a estranha consegue entrar no quarto. Ela acaricia as coxas da mulher, que não acorda, mexe com o rapaz, que também segue alheio, vira os pertences do casal, afana algum dinheiro da carteira do cara, e depois, vai embora, sem fazer mal algum a nenhum dos dois. É durante a retomada da viagem, no dia seguinte, que ao mexer na carteira, o rapaz se dá pela falta de uma certa quantia de dinheiro. Pergunta à esposa a respeito, ela responde que não pegou, e a questão morre por aí mesmo. A esta altura, o homem deveria estar no mínimo intrigado, afinal se a mulher diz que não mexeu na carteira e o dinheiro sumiu da noite para o dia, alguém deve ter passado no quarto, mas ele não dá atenção ao mistério, e a partir daí seu destino trágico é selado, porque a menina que esteve na noite anterior pedindo carona e mais tarde entrou no quarto enquanto o casal dormia é, na verdade, a namorada da esposa – isso mesmo, a esposa é bissexual – e as duas estão fazendo joguinhos psicológicos com a cabeça do Romeu apaixonado. Na segunda noite, a visitante regressa ao quarto do próximo motel onde o casal se hospeda, e esfaqueia o rapaz, que está dormindo, na garganta, seguidas vezes, sem lhe dar chance de defesa. Depois, você vê as duas no banheiro, a assassina lavando a lâmina, a esposa do rapaz filmando tudo, as duas se beijando apaixonadamente na boca, e mais tarde apanhando a estrada, para fugir e viver o caso de amor que tanto desejavam. Atmosférico e de imagens poderosas, este foi o segmento mais vívido e impressionante de V/H/S, aflitivo e misterioso do começo ao fim, com a fuga na autoestrada deserta, à noite, o vento batendo forte, e as duas amantes realizadas após o homicídio do insuspeito marido.

A terceira estória adiciona ao conjunto a bizarra ficção científica dos filmes de alienígenas, que voltará a ser abordado em outro segmento de V/H/S. É como uma inesperada, incomum versão de Predador. Dois garotos e duas garotas organizam uma viagem para acampar em uma região muito bonita nas montanhas, a convite de uma delas. Quando já se encontram por lá, a menina revela que esteve por ali algum tempo atrás, e que seus amigos foram misteriosamente assassinados por uma força inexplicável. O grupo reage com incredulidade. A outra menina se afasta do grupo, com um dos rapazes. Subitamente, é atingida por um objeto pontiagudo que atravessa o crânio, arremessado por um ser invisível, bastante semelhante ao monstro do filme Predador. O rapaz é morto em seguida. A verdade é que a menina que os convidou procurava usá-los como isca, para atrair o alienígena a uma de suas muitas armadilhas previamente preparadas. Os seus amigos são assassinados, mas ela consegue apanhar o caçador alienígena invisível com uma armadilha de facas. Quando acha que tudo está ganho, descobre tarde demais que não há apenas um, mas muitos outros predadores invisíveis nas montanhas. Estes surgem da mata escura para trucidá-la de uma maneira horrorosa. Deste segmento, apreciei a ideia de utilizar a premissa de Predador, e experimentá-lo com uma estória típica de adolescentes perdidos na floresta. A moça que os convida para o piquenique também dá um grande desempenho. Desconheço o seu nome, mas chamou a minha atenção. É uma atriz muito bonita e talentosa, que veste muito bem a aura de mistério e perigo.

A quarta estória se dá inteiramente no espaço do Skype, o programinha que permite que duas pessoas conversem em tempo real, via vídeo, através do computador. O seu formato é interessante, e aqui os diretores continuaram a adicionar à mistura o tempero da temática alienígena. Uma moça e um rapaz, amigos desde a infância, moram em estados diferentes, e matam a saudade conversando todos os dias no skype. A menina explica que seu novo apartamento é mal assombrado, contudo, o amigo pensa pouco sobre os temores da garota, até que durante uma conversa online, testemunha fenômenos inexplicáveis, tais como um menininho entrando no quarto e disparando em carreira pelo corredor, para em seguida desaparecer. A jovem se queixa de um caroço no braço, que não consegue explicar. Encorajada pelo amigo, ela resolve filmar a sala de estar, à noite, para que veja se consegue identificar alguma manifestação. E em uma certa noite, ao investigar, a moça filma os invasores, estranhas crianças que subitamente aparecem e a fazem desmaiar ao emitir um facho de luz. Os visitantes são criaturas extraterrestres, e o caroço em seu braço nada mais é do que um sinalizador que lhes permitia segui-la ao longo de todos aqueles anos. Para completar, quando a moça desfalece, o amigo aparece na sala. Ele apenas afirmava que estava em outro estado, mas durante o tempo todo estivera morando ao lado, e fazia parte do esquema dos alienígenas para estudá-la. Ele realiza uma pequena cirurgia enquanto a menina está desmaiada, retira o que parece ser uma pequena criatura de dentro da jovem e então a entrega para os alienígenas. Algum tempo depois, ao conversar com o amigo no skype, a moça parece não se recordar de coisa alguma, e conta que os médicos a diagnosticaram com esquizofrenia paranoide. O amigo finge surpreso e procura ser atencioso, mas sabe que a verdade é muito pior. Este é o segmento mais bizarro, nonsense, inquietante em suas ideias sinistras, onde os realizadores procuraram homenagear os antigos filmes de horror sobre OVNIS e invasores de outros planetas, na verve do que o segmento anterior começara a propor pela via de Predador.

A última estória, a quinta, fecha V/H/S com chave de ouro. O diretor deste segmento fez bom uso de câmera e efeitos especiais, remetendo-nos à nostalgia do primeiro Poltergeist. É dia das bruxas, ano de 1998, quando quatro amigos se reúnem para ir ao que pensam que será uma divertida festa à fantasia, do outro lado da cidade. De carro, seguem pelas vias de um bairro afastado, atravessam os trilhos e finalmente conseguem chegar ao endereço combinado. Ao ali chegar, porém, não encontram a turma. Cheios de energia e virando latas de cerveja após latas de cerveja, os quatro parecem não se importar. Investigando a elegante casa abandonada, dão pela presença de uma figura feminina imersa nas sombras, que desaparece misteriosamente. Levados ao último andar, os amigos escutam gritos vindo do sótão, e ao entrarem, presenciam uma cerimônia de exorcismo, uma moça amarrada e alguns homens realizando o ritual. Não levam a sério e começam a fazer brincadeiras, no entanto, quando os homens são atacados por uma força invisível, veem que não se trata de festa ou exorcismo de mentirinha. Aterrorizados, desamarram a menina e tratam de correr. É neste instante que o segmento homenageia Poltergeist, jogando manifestações apavorantes por todos os lados – jarros que flutuam e são atirados contra os visitantes, mesas levitando, braços fantasmagóricos que saem das paredes para tentar pegá-los. Os quatro rapazes e a menina conseguem fugir, mas quando já se encontram no cruzamento dos trilhos, o carro inexplicavelmente dá o prego. Eles cometeram um grave erro ao resgatar a mulher, pois ela está possuída pelo demônio, o mesmo que os aprisiona aos trilhos para que o trem que se aproxima os apanhe em cheio.

Para os amantes do cinema, que cresceram nos anos 80, assustando-se com os filmes que a nova geração apenas conhece por causa das refilmagens ruins, V/H/S os presenteará com uma viagem no túnel do tempo, quando vocês poderão se recordar de quando os filmes de horror eram realmente espetaculares, e não havia nada melhor do que lhes assistir com as luzes do quarto desligadas, sob os lençóis. Procurem prestigiar e aproveitar V/H/S, pois joias assim são bastante raras de se encontrar.

Todos os direitos autorais reservados a Magnolia Pictures. O uso do trailer é para efeito meramente ilustrativo da resenha.

terça-feira, 15 de janeiro de 2013

Catfish - Os estranhos que enxugam as nossas lágrimas.


Olá, pessoal. Nesta oportunidade, tenho a satisfação de discorrer sobre um filme realmente extraordinário, que me parece bastante válido neste cenário de relacionamentos virtuais, ao propor os seguintes questionamentos: será que verdadeiramente conhecemos as pessoas com quem confidenciamos a nossa vida e os nossos segredos, online?Há uma distinção clara entre a vida real e a realidade que construímos no meio virtual?Será que as fotos de momentos felizes postadas em perfis de facebook representam honestamente a vida da pessoa cujos instantes restam imortalizados nos retratos?Inicialmente, eu gostaria de destacar que Catfish não é um filme de horror, muito embora o marketing da produção o venda como tal. Quando do lançamento, quem se permitisse levar pelo trailer pensaria se tratar de um suspense psicológico nas linhas de Atividade Paranormal, ou algo igualmente sinistro. Curiosamente, dado o sucesso de Catfish, os seus diretores foram convidados a dirigir os filmes da referida franquia, tendo comandado as partes 3 & 4.

Catfish não é, porém, um filme de horror. Ao contrário de Atividade Paranormal, é um documentário autêntico onde não há atores interpretando personagens, mas gente genuína que passou pela experiência e documentou os momentos mais importantes da jornada. Neste caso que se deu ao longo do ano de 2007 e início de 2008, as crenças e os princípios das pessoas diretamente envolvidas foram profundamente transformados. Cheio de reviravoltas, o documentário nos brinda, inicialmente, com momentos bem-humorados e românticos, subitamente se torna uma aventura misteriosa e atmosférica, e finalmente termina de modo agridoce e revelador, assertivo sobre a condição humana e até onde algumas pessoas estão dispostas a chegar para compensar a dor que a vida lhes infligiu. A execução perfeita se deve à magistral perícia de como os diretores cobriram a trama, e as reviravoltas que os vão lançando em suspense o tempo inteiro e nos arrastam com a mesma urgência. Nós somos companheiros de jornada do trio, e o saldo da jornada – aquilo que os rapazes aprendem sobre si e os semelhantes – é igualmente compartilhado, pois também reavaliamos conceitos e posicionamentos de vida no que importa a pessoas mais carentes as quais parecemos não enxergar no dia a dia.

O ano é 2007. Nev e Ariel Schulman, irmãos, vivem uma existência movimentada e invejável em Nova York. Os dois trabalham com fotografia e filmagens, em um estúdio que dividem com Henry Joost, o melhor amigo. Estes caras não têm mais do que vinte e cinco anos, todavia são os senhores absolutos de suas vidas. Independentes, solteiros e ambiciosos, o destino está a favor do trio, e os rapazes não têm do que se queixar. Uma fotografia muito encantadora de Nev ganha a primeira página de um grande jornal. Algum tempo depois, o rapaz recebe uma encomenda, uma pintura que reproduz a imagem fotográfica. O que o surpreende é a idade da autora da tela – uma menininha chamada Abby, de oito anos de idade, criança prodígio, que vive uma existência diametralmente oposta `a de Nev e seus parceiros. Nev é um garoto de Manhattan – agitações, trabalhos, amigos aos borbotões, uma realidade sofisticada – já Abby mora em Ishpeming, em Michigan, com os dois irmãos, a mãe e o pai, em seu mundo pacífico, interiorano e simplório, existência longínqua de todo o glamour e as luzes da cidade que jamais dorme. Ariel & Henry tomam como doce e admirável a relação entre Nev e Abby, e começam a registrar o progresso do relacionamento. Não custa a Nev ser introduzido virtualmente `a Ângela, a dedicada mãe de Abby, a Vince, o pai, e `a Megan Faccio, a irmã sedutora e misteriosa cujos olhos tristes fazem com que o pobre rapaz se apaixone de cara. Os e-mails se tornam ligações telefônicas, e bate-papo no facebook vira uma constante no dia a dia de Nev. Não custa ao rapaz se envolver emocionalmente com a interessante Megan, a linda moça que é a cara da atriz Elizabeth Berkley, e que diz sonhar morar em um rancho onde poderá criar cavalos e viver uma linda história de amor.

Megan envia uma música especialmente dedicada a Nev, por e-mail, de sua autoria, supostamente cantada pela própria, porém Nev, que até então vinha aceitando as informações que o pessoal de Michigan lhe fornecia sem nada questionar, resolve fazer uma pesquisa online. É o que o leva a descobrir a primeira mentira – a música não é de autoria de Megan Faccio, tampouco trata-se da voz de Megan: foi baixada de um seriado chamado One Three Hill. A descoberta desta primeira mentira desperta em Nev o senso de cautela, e o rapaz passa a ter o cuidado de cruzar as informações com dados sólidos. Descobre que as pinturas sensacionais de Abby, que consoante a mãe haviam sido exibidas e arrematadas em diversos leilões em Ishpeming, jamais foram de fato expostas em galerias, as pesquisas online não retornam informações concretas e substanciais.

É quando o trio vai fazer um trabalho de filmagem em um festival de música que se dará em uma cidade próxima a Ishpeming que a verdade começa a aparecer, já que os rapazes resolvem passar, na volta, pela cidadezinha, para descobrir o que há por trás das personagens do facebook, por trás da garota em quem Nev tanto se investiu emocionalmente, ao longo daquele quase um ano de vida.

A primeira metade do filme é leve e ingênuo, chega a ser prazeroso assistir a Nev e Megan se apaixonando, trocando mensagens que começam compungidas, e com o tempo adquirem nuance de declarações de amor e promessas de uma vida a dois no futuro próximo. Fotos vêm e vão por e-mail, as ligações se tornam mais frequentes. Nev chega a fazer uma doce homenagem, onde coloca, em uma mesma imagem, a sua própria figura e a Megan, lado a lado, como uma dupla. A última metade do filme, que vai do início das suspeitas até a descoberta da verdade, deixa os filmes de suspense de Hollywood no chinelo. A viagem dos amigos pelo interior de Michigan acontece em meio a muitas dúvidas, investigações e descobertas escabrosas. Em face de se tratar de um documentário, eu me senti como uma quarta pessoa, ali no carro com os rapazes, cruzando as estradas do interior de Michigan, pela madrugada, visitando cada ponto que marcou o namoro virtual de Nev (lugares para onde mandou cartões postais e cartas apaixonadas), na realidade endereços abandonados por onde ninguém realmente passou. A atmosfera tensa chega a ser palpável. A última parte da jornada destes garotos assume uma triste tonalidade existencial, e completa o arco de Catfish, como uma montanha russa que passou por todas as voltas, todas as emoções humanas existentes.

O título do filme é bastante emblemático do cerne moral dessa jornada. Catfish, um tipo de peixe, costuma ser adicionado aos tanques de pesqueiros, junto ao bacalhau. É que em razão da longa viagem dos Estados Unidos à China, o bacalhau tende a morrer nos tanques, de cansaço, de desinteresse talvez. Mas então, os pesqueiros adicionam ao tanque este tipo de peixe, catfish, que parece exigir algo a mais do outro, o bacalhau, mantê-los alertas, em movimento, vivos, ativos, aptos a sobreviver as agruras da viagem. E há pessoas assim, na vida. Pessoas que mesmo em um contexto platônico, permitem que enxuguemos lágrimas do rosto e sigamos em frente, mesmo diante das dores que a vida arremessa em nossos rostos a cada volta. Sylvester Stallone disse, uma vez, em uma entrevista a James Lipton, no programa Inside the Actor's Studios, Há duas coisas que nós passamos todas as nossas vidas fazendo. Nós passamos todas as nossas vidas lutando – por um objetivo, por um sonho, por nosso espaço no mundo – e nós passamos todas as nossas vidas correndo – correndo atrás de alguém, estendendo as nossas mãos para alcançar a alguém a quem amamos, a quem ainda não conquistamos.

A observação do artista tem tudo a ver com a essência deste documentário triste e sombrio, porque o que os rapazes descobrem em Ishpeming – uma dona de casa de meia-idade acima do peso, que cuida de dois rapazes que sofrem de problemas mentais, e que criou toda uma nova existência online para suportar a desilusão de todos os planos não realizados que um dia alimentou, quando jovem – é que, de certa forma, Nev foi o “catfish” da  “verdadeira Megan”. O rapaz bonito, enérgico, bem humorado, que vivia uma vida movimentada em Nova York, permitiu que Ângela, a dona de casa, suportasse a tristeza, e despertasse as manhãs, baseada exclusivamente na força que este amor platônico lhe gerava de dividendos, pelo simples fato de, mesmo através de uma mentira, sentir-se parte daquela vida diferente e sofisticada, onde lhe era possível voltar a ser jovem sem cometer os mesmos erros.

Claro que para a maioria, felizmente, nós perseguimos os nossos sonhos, e com um pouco de boa sorte, uma pitada de bons conselhos, e bastante trabalho, alcançamos este alguém e ocupamos o nosso espaço no mundo. Ocorre que para outras pessoas, aquelas que por um motivo ou outro jamais realizaram o seu maravilhoso potencial e se sentiram às margens da vida, o escapismo para a dor é o amor ingênuo e platônico que se nutre por algo ou alguém inatingíveis. Acontece que ainda assim, o amor incondicional permite que estas pessoas amenizem a dor e a solidão. Isso é o que os garotos descobrem, ao final: embora Nev se sinta traído ao descobrir todas as mentiras, desenvolve uma nova consciência e se redime, vez que conhece uma inesperada compaixão pela simplória estranha. Se há algo que Catfish faz, é promover a discussão sobre a solidão nestes dias de internet e cruzamento de informações velozes, e nos levar a refletir – dada a mesma situação, descobriríamos dentro de nós mesmos a mesma compaixão e compreensão em face de nossos semelhantes mais vulneráveis?

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Todos os direitos autorais referentes ao trailer acima pertencem a Rogue-Universal Pictures. O uso do vídeo é para efeito meramente ilustrativo desta resenha.

segunda-feira, 14 de janeiro de 2013

Pontypool - O seu mundo seguro vai cair por terra.


Olá, pessoal. Nesta oportunidade, abordarei um filme de horror muito especial que lamentavelmente não recebeu a merecida guarida no Brasil, mas que pode vir a ser descoberto na internet ou DVD pelos fãs do gênero. Pontypool é uma produção independente canadense, brilhantemente executada, cujo charme reside no elenco afinado e no esmero com que o diretor do filme tratou a premissa, à primeira vista absurda (um vírus propagado... através da inflexão de palavras!). O filme oferece uma abordagem alternativa para os filmes de zumbis, já tão brilhantemente representados por produções como Madrugada dos Mortos e Extermínio. A proposta inovadora dividiu opiniões. As pessoas que preferem filmes de horror movimentados odiaram Pontypool, contudo os fãs abertos a novas experiências acolheram-no como uma das surpresas mais agradáveis de 2008, ano de lançamento do original.

Eu me lembro de um outro filme que assisti, chamado “Countdown to Looking Glass”, onde o possível cenário para a eclosão da Terceira Guerra Mundial nuclear era apresentado através de uma série de intervenções jornalísticas transmitidas do Oriente Médio. A estória se desenrolava pelo ponto de vista do âncora do jornal, em tempo real, que seguia fornecendo notícias cada vez mais perturbadoras oriundas do estreito de Ormuz, onde forças apoiadas pela União Soviética proibiam a passagem de petroleiros, e um porta-aviões norte-americano seguia à espreita no Golfo Pérsico, determinado a romper a barreira soviética. Submarinos nucleares por todos os lados, a tensão crescente cada vez mais grave, e o mundo inteiro em suspense, orando para que nenhuma das duas partes use mísseis nucleares primeiro... O filme apresentava um cenário muito real a toda a crise, quero dizer, você assistia a “Countdown to Looking Glass” e achava que aquela situação estava realmente se desenrolando. Era impossível não roer as unhas. Um dos filmes mais tensos que assisti, não há uma única cena de efeitos especiais - “Countdown to Looking Glass” apoiava-se exclusivamente em sua abordagem “Cinema Verdade” e na narrativa enxuta e seca. Neste sentido, causava o medo que as grandes produções fantásticas de Hollywood não conseguem reproduzir. Agora que não existe mais a União Soviética, e a Guerra Fria ficou para trás, é apavorante constatar o quão perto estivemos do confronto nuclear em grande escala. Quando Chernobyl aconteceu, em 1986, com a explosão do reator 04 e a disseminação de Césio-137 e Iodo radioativo por toda a Europa, pessoas morrendo de câncer na tireoide, foi como uma “palinha” do que poderia vir a a acontecer com o mundo, no caso de uma trocação nuclear com mísseis intercontinentais com ogivas nucleares nas pontas.

Pois bem. No caso deste filme, Pontypool, o cineasta Bruce McDonald resolveu oferecer uma abordagem semelhante à possibilidade de uma crise que trará o fim do mundo. O diretor esmiuça a trama através dos olhos de uma pequena equipe de uma estação de rádio na gélida cidadezinha canadense de Pontypool, em Ontário, Canadá, quando o que seria apenas um dia comum e entendiante se torna um surreal pesadelo, sugerido pelas informações cada vez mais contraditórias que chegam à estação pelas ondas retransmissoras, sobre essa epidemia de violência que parece ter acometido os cidadãos ordinários da cidade. Grant Mazzy (Stephen McHattie) é um disc jockey em fim de carreira, que queimou todas as pontes que tinha com os aliados, cortesia de seu comportamento irreverente, e agora se vê relegado a comandar a staff de uma simplória estação em Pontypool. A sua staff é composta por Sydney (Lisa Houle), a sua agente, e Laurel-ann (Georgina Reilly), a charmosa novata que adora flertar com Grant, o ex-astro.

É em uma madrugada de trabalho insuspeita que começam a chegar à estação relatos de pessoas desesperadas, com testemunhos sobre o comportamento bizarro disseminado entre os cidadãos de Pontypool. Inicialmente, fala-se em saque a comércios, mas logo se torna claro que os agressores parecem possessos e irracionais. Grant se recorda de que naquele dia, antes de chegar à estação, a caminho de Pontypool, pela vazia estrada deserta, durante a madrugada, quando teve de estacionar no acostamento por um momento para atender ao celular, uma estranha mulher subitamente bateu à janela do automóvel, balbuciando nonsense. Assustado com a aparição da mulher, Grant ainda baixou o vidro para procurar escutá-la melhor, porém a estranha desapareceu em seguida, engolida pela escuridão da noite, à beira da autoestrada gelada. O disc-jockey enxerga paralelos entre o inusitado comportamento da estranha e os relatos subsequentes que começam a se somar pelas ondas retransmissoras para compor um quadro aterrorizante: pessoas comuns subitamente cedendo à loucura, de um momento para o outro.

O drama é contado a partir do ponto de vista da staff da estação. Nós, espectadores, sabemos sobre o surto de loucura tanto quanto Grant e as duas colegas, e assim como o trio, nos sentimos igualmente dentro daquela estação escura enquanto a nevasca ruge do lado de fora. Neste sentido, Pontypool provoca o mesmo calafrio que “Countdown to Looking Glass”. Para os protagonistas, todo o mundo se resume ao espaço da estação, claustrofóbica, um tanto quanto sombria, aparentemente segura e isolada, dissociada do “mundo lá fora”, a verdade filtrada por relatos de terceiros. Simultaneamente, com as intromissões cada vez mais desesperadoras, e após a intervenção do Exército canadense sobre a cidadezinha, fica cada vez mais evidente que mesmo escondidos em um mundo à parte, logo mais, o horror e a loucura estarão batendo à porta, e não haverá escapatória.

O ponto mais forte de Pontypool consiste na atmosfera. Este não é um filme sobre zumbis, e sim uma obra sobre como um grupo de pessoas reage quando os pilares que regem a sociedade caem por terra. Os zumbis de Pontypool fazem apenas uma participação especial, pois quando chegam a aparecer, o fazem por um momento muito breve. Há ainda uma outra cena, apavorante, envolvendo uma pessoa tomada pela loucura, dentro da estação, arremessando-se contra o vidro à prova de som da cabine da rádio, espirrando sangue contra o vidro a cada investida, tentando chegar a Grant e a Sydney sem sucesso. Desconsiderando-se estas cenas pontuais, todavia, se o que você espera de Pontypool é o mesmo ritmo frenético de Madrugada dos Mortos e Extermínio, procure em outro lugar. Pontypool funciona mais como um filme de arte estilístico que oferece algo de refrescante ao gênero, nas linha de Orson Welles tocando o terror ao ler Guerra dos Mundos.

O elenco é sensacional. Apreciei o trabalho do ator principal, que constrói um personagem fácil de simpatizar. Grant é o tipo de cara cuja personalidade é maior do que a própria vida, irônico, descompromissadamente engraçado com as tiradas geniais. O ator nos brinda com uma dose adequada de irreverência, que parece balancear a tensão e a claustrofobia que permeia a estória. Sydney é o balanço perfeito à personalidade esfuziante de Grant – durona, mas ao mesmo tempo assertiva e sensível. Os dois parecem feitos um para o outro, muito embora briguem feito gata e rato!A performance excepcional de Pontypool cabe, porém, a Georgina Reilly. Não conhecia esta extraordinária atriz, mas posso afirmar que por todas as vezes em que esteve em cena, a sua presença fortaleceu o conjunto, levando o filme às alturas. De seus flertes inocentes com Grant, passando pelos instantes em que o contempla com olhares vagos e misteriosos, até o final, quando cede à loucura, e, tomada pelo vírus, tenta arrebentar o vidro da cabine para chegar a Grant e a Sydney, as sequências de Pontypool que restaram mais frescas em minha memória foram aquelas que a envolveram, direta ou indiretamente.

A direção é precisa, a fotografia deslumbrante. A cena inicial - Grant cruzando uma gélida, vazia autoestrada em Ontário, parando no acostamento, e a visão da mulher saindo da margem da estrada para abordá-lo à janela – dá o tom correto ao que está por vir, e após a brilhante introdução, o diretor Bruce McDonald, adaptando o romance original de Tony Burgess, Pontypool Changes Everything, não deixa a peteca cair. Pontypool o convidará a passar um dia misterioso e gelado dentro de uma escura, apertada estação de rádio, enquanto o mundo como você conhece é destruído e rearranjado por hordas de vítimas enlouquecidas. Apenas lembre-se que, por mais que pareça alheio ao mundo lá fora, por mais que se sinta seguro em seu microcosmo que é a estação, mais cedo ou mais tarde o perigo baterá na sua porta, e o horror externo, ameaçador e gigantesco, esmagará o seu frágil mundinho isolado.
Todos os direitos autorais reservados a IFC Filmes. O uso do trailer é para efeito meramente ilustrativo da resenha.