terça-feira, 15 de janeiro de 2013

Catfish - Os estranhos que enxugam as nossas lágrimas.


Olá, pessoal. Nesta oportunidade, tenho a satisfação de discorrer sobre um filme realmente extraordinário, que me parece bastante válido neste cenário de relacionamentos virtuais, ao propor os seguintes questionamentos: será que verdadeiramente conhecemos as pessoas com quem confidenciamos a nossa vida e os nossos segredos, online?Há uma distinção clara entre a vida real e a realidade que construímos no meio virtual?Será que as fotos de momentos felizes postadas em perfis de facebook representam honestamente a vida da pessoa cujos instantes restam imortalizados nos retratos?Inicialmente, eu gostaria de destacar que Catfish não é um filme de horror, muito embora o marketing da produção o venda como tal. Quando do lançamento, quem se permitisse levar pelo trailer pensaria se tratar de um suspense psicológico nas linhas de Atividade Paranormal, ou algo igualmente sinistro. Curiosamente, dado o sucesso de Catfish, os seus diretores foram convidados a dirigir os filmes da referida franquia, tendo comandado as partes 3 & 4.

Catfish não é, porém, um filme de horror. Ao contrário de Atividade Paranormal, é um documentário autêntico onde não há atores interpretando personagens, mas gente genuína que passou pela experiência e documentou os momentos mais importantes da jornada. Neste caso que se deu ao longo do ano de 2007 e início de 2008, as crenças e os princípios das pessoas diretamente envolvidas foram profundamente transformados. Cheio de reviravoltas, o documentário nos brinda, inicialmente, com momentos bem-humorados e românticos, subitamente se torna uma aventura misteriosa e atmosférica, e finalmente termina de modo agridoce e revelador, assertivo sobre a condição humana e até onde algumas pessoas estão dispostas a chegar para compensar a dor que a vida lhes infligiu. A execução perfeita se deve à magistral perícia de como os diretores cobriram a trama, e as reviravoltas que os vão lançando em suspense o tempo inteiro e nos arrastam com a mesma urgência. Nós somos companheiros de jornada do trio, e o saldo da jornada – aquilo que os rapazes aprendem sobre si e os semelhantes – é igualmente compartilhado, pois também reavaliamos conceitos e posicionamentos de vida no que importa a pessoas mais carentes as quais parecemos não enxergar no dia a dia.

O ano é 2007. Nev e Ariel Schulman, irmãos, vivem uma existência movimentada e invejável em Nova York. Os dois trabalham com fotografia e filmagens, em um estúdio que dividem com Henry Joost, o melhor amigo. Estes caras não têm mais do que vinte e cinco anos, todavia são os senhores absolutos de suas vidas. Independentes, solteiros e ambiciosos, o destino está a favor do trio, e os rapazes não têm do que se queixar. Uma fotografia muito encantadora de Nev ganha a primeira página de um grande jornal. Algum tempo depois, o rapaz recebe uma encomenda, uma pintura que reproduz a imagem fotográfica. O que o surpreende é a idade da autora da tela – uma menininha chamada Abby, de oito anos de idade, criança prodígio, que vive uma existência diametralmente oposta `a de Nev e seus parceiros. Nev é um garoto de Manhattan – agitações, trabalhos, amigos aos borbotões, uma realidade sofisticada – já Abby mora em Ishpeming, em Michigan, com os dois irmãos, a mãe e o pai, em seu mundo pacífico, interiorano e simplório, existência longínqua de todo o glamour e as luzes da cidade que jamais dorme. Ariel & Henry tomam como doce e admirável a relação entre Nev e Abby, e começam a registrar o progresso do relacionamento. Não custa a Nev ser introduzido virtualmente `a Ângela, a dedicada mãe de Abby, a Vince, o pai, e `a Megan Faccio, a irmã sedutora e misteriosa cujos olhos tristes fazem com que o pobre rapaz se apaixone de cara. Os e-mails se tornam ligações telefônicas, e bate-papo no facebook vira uma constante no dia a dia de Nev. Não custa ao rapaz se envolver emocionalmente com a interessante Megan, a linda moça que é a cara da atriz Elizabeth Berkley, e que diz sonhar morar em um rancho onde poderá criar cavalos e viver uma linda história de amor.

Megan envia uma música especialmente dedicada a Nev, por e-mail, de sua autoria, supostamente cantada pela própria, porém Nev, que até então vinha aceitando as informações que o pessoal de Michigan lhe fornecia sem nada questionar, resolve fazer uma pesquisa online. É o que o leva a descobrir a primeira mentira – a música não é de autoria de Megan Faccio, tampouco trata-se da voz de Megan: foi baixada de um seriado chamado One Three Hill. A descoberta desta primeira mentira desperta em Nev o senso de cautela, e o rapaz passa a ter o cuidado de cruzar as informações com dados sólidos. Descobre que as pinturas sensacionais de Abby, que consoante a mãe haviam sido exibidas e arrematadas em diversos leilões em Ishpeming, jamais foram de fato expostas em galerias, as pesquisas online não retornam informações concretas e substanciais.

É quando o trio vai fazer um trabalho de filmagem em um festival de música que se dará em uma cidade próxima a Ishpeming que a verdade começa a aparecer, já que os rapazes resolvem passar, na volta, pela cidadezinha, para descobrir o que há por trás das personagens do facebook, por trás da garota em quem Nev tanto se investiu emocionalmente, ao longo daquele quase um ano de vida.

A primeira metade do filme é leve e ingênuo, chega a ser prazeroso assistir a Nev e Megan se apaixonando, trocando mensagens que começam compungidas, e com o tempo adquirem nuance de declarações de amor e promessas de uma vida a dois no futuro próximo. Fotos vêm e vão por e-mail, as ligações se tornam mais frequentes. Nev chega a fazer uma doce homenagem, onde coloca, em uma mesma imagem, a sua própria figura e a Megan, lado a lado, como uma dupla. A última metade do filme, que vai do início das suspeitas até a descoberta da verdade, deixa os filmes de suspense de Hollywood no chinelo. A viagem dos amigos pelo interior de Michigan acontece em meio a muitas dúvidas, investigações e descobertas escabrosas. Em face de se tratar de um documentário, eu me senti como uma quarta pessoa, ali no carro com os rapazes, cruzando as estradas do interior de Michigan, pela madrugada, visitando cada ponto que marcou o namoro virtual de Nev (lugares para onde mandou cartões postais e cartas apaixonadas), na realidade endereços abandonados por onde ninguém realmente passou. A atmosfera tensa chega a ser palpável. A última parte da jornada destes garotos assume uma triste tonalidade existencial, e completa o arco de Catfish, como uma montanha russa que passou por todas as voltas, todas as emoções humanas existentes.

O título do filme é bastante emblemático do cerne moral dessa jornada. Catfish, um tipo de peixe, costuma ser adicionado aos tanques de pesqueiros, junto ao bacalhau. É que em razão da longa viagem dos Estados Unidos à China, o bacalhau tende a morrer nos tanques, de cansaço, de desinteresse talvez. Mas então, os pesqueiros adicionam ao tanque este tipo de peixe, catfish, que parece exigir algo a mais do outro, o bacalhau, mantê-los alertas, em movimento, vivos, ativos, aptos a sobreviver as agruras da viagem. E há pessoas assim, na vida. Pessoas que mesmo em um contexto platônico, permitem que enxuguemos lágrimas do rosto e sigamos em frente, mesmo diante das dores que a vida arremessa em nossos rostos a cada volta. Sylvester Stallone disse, uma vez, em uma entrevista a James Lipton, no programa Inside the Actor's Studios, Há duas coisas que nós passamos todas as nossas vidas fazendo. Nós passamos todas as nossas vidas lutando – por um objetivo, por um sonho, por nosso espaço no mundo – e nós passamos todas as nossas vidas correndo – correndo atrás de alguém, estendendo as nossas mãos para alcançar a alguém a quem amamos, a quem ainda não conquistamos.

A observação do artista tem tudo a ver com a essência deste documentário triste e sombrio, porque o que os rapazes descobrem em Ishpeming – uma dona de casa de meia-idade acima do peso, que cuida de dois rapazes que sofrem de problemas mentais, e que criou toda uma nova existência online para suportar a desilusão de todos os planos não realizados que um dia alimentou, quando jovem – é que, de certa forma, Nev foi o “catfish” da  “verdadeira Megan”. O rapaz bonito, enérgico, bem humorado, que vivia uma vida movimentada em Nova York, permitiu que Ângela, a dona de casa, suportasse a tristeza, e despertasse as manhãs, baseada exclusivamente na força que este amor platônico lhe gerava de dividendos, pelo simples fato de, mesmo através de uma mentira, sentir-se parte daquela vida diferente e sofisticada, onde lhe era possível voltar a ser jovem sem cometer os mesmos erros.

Claro que para a maioria, felizmente, nós perseguimos os nossos sonhos, e com um pouco de boa sorte, uma pitada de bons conselhos, e bastante trabalho, alcançamos este alguém e ocupamos o nosso espaço no mundo. Ocorre que para outras pessoas, aquelas que por um motivo ou outro jamais realizaram o seu maravilhoso potencial e se sentiram às margens da vida, o escapismo para a dor é o amor ingênuo e platônico que se nutre por algo ou alguém inatingíveis. Acontece que ainda assim, o amor incondicional permite que estas pessoas amenizem a dor e a solidão. Isso é o que os garotos descobrem, ao final: embora Nev se sinta traído ao descobrir todas as mentiras, desenvolve uma nova consciência e se redime, vez que conhece uma inesperada compaixão pela simplória estranha. Se há algo que Catfish faz, é promover a discussão sobre a solidão nestes dias de internet e cruzamento de informações velozes, e nos levar a refletir – dada a mesma situação, descobriríamos dentro de nós mesmos a mesma compaixão e compreensão em face de nossos semelhantes mais vulneráveis?

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Todos os direitos autorais referentes ao trailer acima pertencem a Rogue-Universal Pictures. O uso do vídeo é para efeito meramente ilustrativo desta resenha.

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