sábado, 9 de março de 2013

Jogos Mortais ("Saw", 2004): Que comecem os jogos!


Olá, pessoal. Nesta oportunidade, eu estarei falando sobre Jogos Mortais, o suspense independente de 2004 realizado com orçamento modesto, que surpreendeu nas bilheterias, e revelou o talento do diretor James Wan, que mais recentemente fez Sobrenatural. Jogos Mortais e Jigsaw se tornaram tão populares, renderam tantas continuações, que após todo o sucesso, recaiu sobre o primeiro a mesma sina que se abate sobre outro extraordinário filme, Hellraiser: de alguma forma, a superexposição dos originais e o fato de os produtores terem procurado aproveitar ao máximo o que podiam drenar da ideia principal permitiram que continuações cada vez mais desnecessárias fossem se sucedendo ano a ano, deixando lembranças negativas que injustamente acabaram por impactar o primeiro, que todos parecem esquecer. Sobre a questão da superexposição, vem-me à mente o primeiro A Bruxa de Blair. Recordo-me que quando o filme foi lançado nos cinemas, em 1999, as pessoas saiam realmente sacudidas pela experiência. Parecia bastante real – muitas pessoas acreditavam que o trio de cineastas tinha se perdido mesmo na floresta, e depois mortos – e as resenhas o enalteciam pela criatividade, já que os criadores eram adeptos da tese de que é justamente aquilo que você não exibe ou enxerga que mais assusta. A única coisa mais apavorante que a bruxa te agarrando é, paradoxalmente, a ausência da bruxa. Não se enxergar a bruxa em meio a escuridão, mas apenas sentir que está por ali, à espreita, fazendo barulhos e guerra psicológica, parece muito mais angustiante. Alguns anos mais tarde, depois do celeuma do lançamento, e de uma péssima continuação, as pessoas voltaram-se contra A Bruxa de Blair. Um interessante filme de horror experimental acabou estigmatizado, vítima de seu próprio sucesso repentino e inesperado.

A série Jogos Mortais tornou-se sinônimo de criativas cenas de armadilhas, que vieram a se tornar o ponto alto das continuações, no entanto, as pessoas tendem a se esquecer que foi justamente no primeiro em que os testes de Jigsaw mereceram menos importância do que a estória de seus protagonistas. Aqui, o foco permanece na trama, e nos desdobramentos que a levam até a conclusão, onde tudo se explica. Sim, há cenas de armadilhas, porém os personagens parecem mais críveis e importantes do que o espetáculo de terror representado pelos testes de Jigsaw. Talvez não por menos, as continuações, gradativamente inferiores, por se basearem exclusivamente em valor de choque, não foram dirigidas por James Wan. Dois homens comuns, o oncologista Dr. Gordon, interpretado por Cary Elwes, e o fotógrafo Adam interpretado por Leigh Whannell, acordam em um banheiro abandonado, semelhante aos de rodoviária, presos na altura do tornozelo por correntes atreladas ao sistema de encanamento. Entre os dois, há o corpo de um terceiro homem, que aparentemente cometeu suicídio, e um gravador. Os dois estranhos descobrem fitas nos seus bolsos, com instruções de como jogar. Por uma série de flashbacks, o filme nos apresenta mais sobre o passado dos dois homens no banheiro, e por que parecem ter sido escolhidos pelo temível assassino a quem a imprensa batizou de Jigsaw. O ardiloso assassino jamais foi apanhado, apesar dos incansáveis esforços dos dois policiais dedicados ao caso, interpretados por Danny Glover e Ken Leung. O modus operandi leva Gordon a crer que ambos estão em um jogo arquitetado pela mesma mente doentia.

O que apreciei neste filme foi a habilidade que o diretor revelou ao entrecortar a estória principal com a intervenção de flashbacks e explicações que momentaneamente arrancam o filme do claustrofóbico ambiente em que o jogo se dá, e constroem o todo da estória, onde as partes são muito importantes e, somadas, dão sentindo ao conjunto. Nada é revelado antes da hora, e o diretor James Wan consegue manter a trama em curso sem jamais fornecer ou esconder demais, sustentando o ritmo até à surpreendente revelação final. Os personagens são bem esmiuçados, e as motivações parecem realistas. Surpreendentemente, o motivo de Jigsaw parece nobre: pôr em teste pessoas que não valorizam suas vidas, para que à custa de terríveis sacrifícios pessoais superem as armadilhas e as próprias limitações, e saiam vivas com a lição da gratidão. Assim como mostraria nos filmes seguintes, o diretor James Wan sabe como extrair grandes atuações de seus atores. Danny Glover e Ken Leung se destacam entre os demais, como Tapp e Sing, os dois tiras parceiros dedicados a descobrir a identidade de Jigsaw. Depois que chegam muito próximos do assassino, a ponto de inclusive rendê-lo, os dois se distraem por um segundo, o bastante para que Sing seja destroçado por uma inesperada armadilha, Jigsaw escape e Tapp saia dos trilhos, abandonando a força para se vingar com as próprias mãos. A bonita atriz veterana Shawnee Smith, presença fácil de filmes de horror e comédias dos anos 80, dá uma performance memorável, com uma personagem que, posteriormente, no decurso da série, viria a se tornar mais importante. A sua personagem, Amanda, é uma ex-dependente química e acometida pela horrível Síndrome de Estocolmo, única sobrevivente das armadilhas de Jigsaw, que acredita que somente superou o vício e passou a valorizar a vida por causa do que sofreu nas mãos do assassino. A breve cena com Amanda compartilhando com os investigadores o seu encontro e declarando amor por Jigsaw, pelo fato de considerá-lo o homem que a livrou da depressão e dependência é o grande momento do filme, aquele de eriçar os cabelos. Você não sabe pelo que lamentar mais, o fato de ela ter passado por uma experiência tão traumática ou as sequelas psicológicas que levou consigo após o sequestro, reveladas na Síndrome de Estocolmo, quando a vítima de uma enorme violência ou horror se apaixona perdidamente pelo algoz. Eu me lembro de um outro suspense psicológico que explorou a questão de maneira muito elegante, chamado Poughkeepsie Tapes. Este filme, Poughkeepsie Tapes, jamais foi lançado no Brasil, mas fez tanto sucesso pelos Estados Unidos que os dois diretores, John Erick & Drew Dowdle foram convidados para dirigir o sucesso Quarentena, a refilmagem do excelente suspense espanhol [REC]. Ainda sobre a personagem, uma curiosidade: o diretor James Wan contou que admirava esta atriz em particular, desde os anos 80, quando ela atuava naquelas comédias e slasher movies e ele ainda era um rapaz, e na época prometeu a si mesmo que se um dia se tornasse diretor de filmes, escreveria um papel para a sua artista preferida. O resultado foi a Amanda de Jogos Mortais.

Jogos Mortais foi o filme que inaugurou toda uma nova tendência para Hollywood, nos mesmos moldes de Hellraiser, o filme de Clive Barker. Jogos Mortais soprou novo fôlego aos filmes sobre serial killers; Hellraiser foi o filme britânico pelo qual ninguém esperava, e que, com as suas ideias sobre o quanto dor e prazer parecem faces da mesma moeda, propôs um novo estilo de horror, com personagens de profundidade, onde o surreal e o bizarro confundem-se facilmente com sentimentos bastante humanos e familiares, tais como cobiça, desejo e amores não correspondidos, e muitas vezes onde os monstros e o grotesco podem ser os bons - e os normais, os maus. Em comum, os dois sacudiram o gênero, porém, lamentavelmente, as continuações perderam o espírito, a essência do original. Costumo frisar que a única sequência de Hellraiser que guarda o erotismo, o fetichismo, o horror incomum e surreal do primeiro, é Hellraiser II – Renascido das Trevas (Hellbound: Hellraiser II). Ambos os filmes foram rodados no Reino Unido, e Clive Barker esteve envolvido na concepção e filmagem de ambos. Depois que os direitos sobre a obra foram vendidos a produtores norte-americanos, e o desgostoso Clive Barker saltou fora, a série virou uma sucessão de bobagens que nada têm a ver com a fonte original The Hellbound Heart. No caso de Jogos Mortais, apenas uma sequência me pareceu à altura do original, Jogos Mortais 6. Todas as demais continuações não merecem mais do que serem descartadas sem cerimônia.

Quero lembrar aos amigos que, hoje, é muito fácil encontrar o DVD de Jogos Mortais. Nas grandes lojas tais como Americanas você pode levar o filme por módicos R$ 15,00, quantia justa quando se leva em conta o excelente valor, o cuidado com que a Paris Filmes o tratou. Há extras, trailers, e a arte da caixa ficou fantástica, uma acertada compra para os fãs de horror. Ainda, recomendo que procurem por Poughkeepsie Tapes. Encontrá-lo integralmente na internet é fácil, infelizmente não sei de versões com legendas em português. Poughkeepsie Tapes é apresentado como um documentário, uma espécie de “episódio especial” do extinto Linha Direta, sobre um assassino serial que vem brutalizando e desmembrando mulheres ao longo das décadas, sem que a polícia jamais consiga chegar perto de sua identidade. Ao longo dos anos, ele forja provas que erroneamente levam os investigadores a um policial, que inclusive chega a ser executado por injeção letal, apenas para se descobrir posteriormente que não era o referido assassino. Assim como em Jogos Mortais, ele deixa uma sobrevivente, uma moça abduzida anos antes, mantida em cárcere, que ao retornar à vida, não consegue mais se adaptar em face da ausência do psicopata por quem veio a se apaixonar. O formato de documentário de Poughkeepsie Tapes, que faz crer que tudo o que se vê é um caso real torna a experiência ainda mais arrepiante.

Ao final desta resenha, reforço o valor de Jogos Mortais como uma excelente pedida de suspense/horror, albergada pelo suporte de atuações inspiradas, roteiro bem amarrado e original e, principalmente, a visão de um cineasta que veio para oferecer algo a mais a todos nós que curtimos este tipo de espetáculo. Eu me sinto seguro em afirmar que o nome de James Wan merece figurar ao lado de tantos outros diretores de cinema que tocaram a minha vida de maneira incomum, e me inspiraram a me expressar através da escrita, a quem aprendi a amar, a quem devo os melhores momentos de minha infância/adolescência, crescendo: David Cronenberg, John Boorman, John Frankenheimer, Brian De Palma, Dario Argento e, principalmente, o maior dos maiores, o Sr. Clive Barker. Espero um dia escrever um post onde poderei falar por que os amo tanto, mas fica para a próxima. Por ora, convido-os a Jogar os Jogos Mortais do excelente James Wan.

domingo, 24 de fevereiro de 2013

O Chamado ("Ringu", 1998, Hideo Nakata)


Olá, pessoal. Nesta oportunidade, estarei fazendo considerações sobre um filme de horror realmente marcante, que infelizmente foi eclipsado pela refilmagem norte-americana. Aqui no Brasil, todo mundo parece ter assistido à refilmagem, porém e quanto ao original?Estou falando de “Ringu”, produção japonesa dirigida por Hideo Nakata, em 1998. Quando do lançamento no mercado mundial, o sucesso foi instantâneo e fenomenal, introduzindo um frutífero período para o cinema asiático, conhecido como “J-Horror” (japanese horror). Logo, os produtores norte-americanos ouviram falar do filme japonês, e alguns anos mais tarde, trouxeram às telas a nova versão, “O Chamado”, de 2002. Eu assisti a ambos, e embora a refilmagem americana de 2002 reúna as qualidades de um excelente filme de horror, mantenho a mesma opinião de há dez anos, quando descobri a ambos: comparadas as diferenças, o original ainda se sagra superior. Há alguma coisa nas estórias de horror japonesas, um apelo que os produtores americanos jamais conseguiram capturar quando de suas adaptações. Algo é perdido, e este charme extra é o grande diferencial que coloca “Ringu” no panteão dos melhores filmes de terror dos anos 90.

Reiko é uma jornalista fazendo pesquisa sobre um tal “vídeo amaldiçoado”, objeto de lendas urbanas que correm entre os estudantes dos colégios de Tóquio. Consoante a lenda, a fita traz uma série de imagens bizarras e sem nexo, e quem lhe assiste supostamente morre uma semana após a exibição. Ironicamente, a sobrinha de Reiko, Tomoko, morre nas mesmas circunstâncias misteriosas. Ela tinha ido passar um fim de semana em uma cabana nas serras, com as colegas de escola, e foi lá onde assistiu à referida fita. Reiko visita a cabana onde os adolescentes ficaram e descobre o VHS. Após assistir ao tape, cujo conteúdo é mesmo uma sequência de imagens assustadoras, surreais e inexplicáveis, ela recebe uma ligação, e a maldição dos sete dias recai sobre a sua pessoa. Quando tenta tirar fotografias de si, a jornalista constata que as imagens saem deformadas, tal qual ocorreu com a sobrinha nas fotografias do passeio com os amigos. Com uma semana apenas para descobrir a origem da fita e o segredo por trás do mistério, Reiko procura pela ajuda do ex-marido Ryuji. As coisas se complicam quando o filho Yoichi assiste à fita enquanto a mãe está dormindo. As descobertas que se sucedem acabam por levá-los a uma ilha vulcânica do Japão, quando descobrem que as imagens do tape referem-se a uma mulher psíquica que se suicidou trinta anos antes, e a sua filha Sadako. Curiosamente, o autor da estória, Kôji Suzuki, afirmou que a personagem da psíquica, mãe da menina Sadako, foi baseada em uma pessoa que realmente existiu, nascida em 1886, da cidade de Kumamoto, e que teria sido tocada pelo dom da premonição. Após uma demonstração em 1910, quando a acusaram de charlatã, a mulher em questão cometeu suicídio pela ingestão de veneno.

Assistindo a “Ringu”, não pude deixar de perceber que o mesmo pareceu homenagear os grandes filmes de terror do passado, mas também inspirou sucessos que vieram depois. O fato de o filme nos apresentar uma criança com habilidades psíquicas me fez pensar em O Iluminado, que foi o primeiro a descortinar eventos paranormais sob a ótica infantil. Por outro lado, há uma cena em “Ringu”, durante a reunião familiar que se segue após a morte da sobrinha de Reiko, que foi recriada em O Sexto Sentido, quando Yochi enxerga o espírito da prima subindo discretamente as escadas e a segue até ao quarto, quando o encontra envolto pelo breu, vazio.

Ao contrário da refilmagem, há tantos momentos pequenos especiais em “Ringu” que se torna impossível preteri-lo em favor do filme americano. O Japão é um país intrigante. O mundo da tecnologia de ponta, do encanto das máquinas, das luzes, parece coexistir com um outro mundo atemporal, de superstições, de tradições milenares, de mistérios tão antigos quanto a própria formação da cultura do país. A forma com que a morte é tratada pela cultura japonesa é particularmente instigante, e o ponto de vista peculiar desta gente quanto ao assunto abre um leque excepcional para todo o imaginário estimulado pela passagem desta existência para a próxima. Acreditem, os fantasmas idealizados pelos japoneses são arrepiantes, não apenas os fantasmas, mas todo o conjunto que vem com o tema: premonições, maldições, poderes psíquicos, comunicação com os que partiram e por aí vai. Deste modo, o charme de “Ringu” deve muito à cultura que o gerou, e vez que própria aos japoneses, os produtores da refilmagem americana tiveram de antever certa perda desta maravilhosa atmosfera, todos estes instigantes mistérios, quando da tradução para uma produção de Hollywood.

Enquanto “O Chamado”, a refilmagem, nos brinda com entretenimento de primeira produzido em grande escala, com orçamento invejável, é a discrição, a sutileza e o charme de “Ringu” que substituem efeitos especiais ou dinheiro por atmosfera – e muita. Há o senso de tragédia iminente que permeia o filme original, e enquanto a refilmagem nos aterroriza com os seus sustos, é no original onde os cabelos de nossa nuca realmente acabam eriçados, sem a necessidade de choques constantes para tanto. Um dos instantes mais memoráveis se dá sem sustos ou efeito especial algum. Ryuji, o ex-marido que ajuda Reiko na busca pela verdade, tem natural sensibilidade psíquica, e o menino parece ter herdado do pai este sexto sentido. Pois bem, há essa cena onde Ryuji descansa sentado em um banco de madeira, na praça, passando a limpo as anotações, concentrado, enquanto pessoas vêm e vão pela calçada. É quando Ryuji enxerga os pés de uma mulher, de saltos altos brancos, aproximando-se. Ele não ergue os olhos para a estranha, segue encarando apenas os pés, e ela lhe diz algo que parece aleatório. Quando Ryuji levanta os olhos, não a vê mais por ali. A cena sutil serve para reforçar o dom especial do rapaz, que aparentemente foi abordado por um espírito errante, que se aproximou para falar algo e partir. Não há pulo, não há súbita surpresa, a cena é essencialmente discreta e contida, mas bastante atmosférica, e perdura na sua cabeça por um bom tempo.

Ringu” foi lançado em DVD no Brasil pela Califórnia Filmes, em 2003, sob o título “Ring – O Chamado”. Não é difícil encontrá-lo em DVD nas locadoras. Se você apreciou “O Chamado”, é o seu dever assistir à fonte, vez que melhor. Como disse anteriormente, “Ringu” inaugurou a tendência, onde filmes de sucesso orientais, excelentes produções de horror, ganharam refilmagens americanas. Este foi o caso de “Ju On”, refeito em 2004 como “O Grito”; “Honogurai mizu no soko kara”, refeito em 2005 pelo brasileiro Walter Salles como “Água Negra”, com a sempre extraordinária Jennifer Connelly; “Kairo”, refilmado em 2006 com Kristen Bell como “Pulse”; e “Janghwa, Hongryeon”, refeito em 2009 como “O Mistério das 2 Irmãs”. Lamentavelmente, um dos melhores filmes desta safra nipônica jamais ganhou a contrapartida americana. Refiro-me a Ôdishon (1999), suspense de Takashi Miike, sobre um executivo que perdeu a amada esposa para uma doença terminal, e depois de alguns anos sem se envolver com novas mulheres, é convencido pelo melhor amigo, um produtor de cinema, a reconstruir a vida sentimental, com consequências desastrosas. O homem conhece uma série de pretendentes, mas quem chama a sua atenção é uma jovem bailarina de olhos tristes. Ele se encanta pela moça. Preocupado, o amigo investiga as referências fornecidas pela garota, mas nenhuma das informações quanto a seu passado, tais como onde estudou ou cresceu, confere. Este filme de horror foi um dos poucos que não envolveu o sobrenatural, porém ainda assim se consagrou como um dos exemplares mais memoráveis da criativa fase que o cinema nipônico experimentou. Começa como um drama (o cara perdendo a mulher), depois mais se assemelha a uma comédia romântica (o cara conhecendo a menina, com direito a paqueras, jantares românticos, os dois se tornando mais íntimos), e quando você menos espera, vira um horror barra-pesada e surreal, já que é revelado que a garota, na verdade, tem problemas psiquiátricos gravíssimos, cujos motivos estão enraizados em seu passado repleto de segredos terríveis e abusos sexuais, e mantém o ex-namorado em cativeiro, desmembrado, dentro de um saco, no apartamento, alimentando-o regularmente com o próprio vômito. Tarde demais, o cara compreende que envolver-se com a garota significou comprar uma passagem só de ida para o inferno, vez que está metido na situação até o pescoço, e ela não vai deixá-lo sair de sua vida tão facilmente. À época que o vi pela primeira vez, nos idos de 2004, imaginei como seria possível refazê-lo. Assim como ocorreu a w delta z, a possível refilmagem de Ôdishon foi uma outra oportunidade em que vislumbrei como teria sido Jennifer Connelly e Burt Reynolds juntos, se apenas a diferença de idades entre ambos não fosse tão significativa. No meu avatar pessoal, ambos tinham as idades ideais para os respectivos personagens, Burt Reynolds um pouco mais velho (em 1979, aos quarenta e três anos de idade), Jennifer Connelly ainda jovem (em 1998, aos vinte e oito). Se fosse possível pinçá-los no tempo e juntá-los hoje, ambos dariam vida aos personagens principais de forma magistral, sem dúvida. Agora, imaginem só um diretor como Brian De Palma rodando a refilmagem estrelada pelo casal. Infelizmente, as coisas não funcionam do jeito que a gente quer. As coisas são como são. De certa forma, ao longo dos anos, à medida que fui escrevendo uma estória de minha autoria intitulada O Jogo Mais Perigoso, o trabalho serviu como uma compensação: já que David Cronenberg ou Brian De Palma jamais deram aos dois um filme para atuarem juntos, já que o tempo não pôde mesmo ser vencido, é no trabalho da escrita onde pude me tornar o diretor da minha própria estória, e, de certa forma, vê-los juntos, vez que os personagens foram escrito para os dois. Sim, trata-se de um trabalho literário, de ficção, mas em um contexto ideal, foi uma forma de mandar a passagem do tempo e os diretores às favas, e homenagear a dupla, com personagens feitos na medida para seus talentos.

Bem, mas me permitam voltar à resenha, já que o que começou como uma crítica parece ter se tornado uma divagação pessoal sobre Jennifer Connelly e Burt Reynolds contracenando. Eu gostaria de finalizar a análise de “Ringu” fazendo especial menção à atuação de Hiroyuki Sanada, que interpreta o ex-marido Ryuji. Este senhor rouba a cena com a impecável e silente performance, vestindo a aura de tristeza e elegância em cada cena onde aparece muito bem, e dando um desempenho memorável. Em breve, Sanada aparecerá no novo filme sobre Wolverine, com Hugh Jackman, e ao lado de Keanu Reeves em Os 47 Ronins. Estes dois artistas famosos que se cuidem, pois tenho para mim que Sanada roubará o filme de ambos!Ainda, gostaria de recomendar aos fãs do gênero que gostaram de “Ringu” para que aproveitem para procurar por Noroi The Curse, outro filme japonês nas linhas de “Ringu”, e que pode ser obtido facilmente online. Bons filmes de horror aparecem apenas ocasionalmente, e os japoneses sabem como ninguém trazer às telas ideias novas e interessantes.

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

Sobrenatural - Revisitando os maiores temores de nossas infâncias.


Ao longo de todos estes anos, tenho observado que os melhores filmes de horror jamais precisaram de cenas violentas ou explícitas para deixar uma forte impressão. Quando do lançamento no início dos anos 70, O Exorcista, obra premiada com o Oscar dirigida por William Friedkin, fez com que pessoas passassem mal nas salas de cinema tamanha sua brutal força psicológica. Quase trinta anos mais tarde, o assombroso, tétrico O Sexto Sentido assaltou os cinemas com semelhante vigor, e novamente ofereceu o terror que curiosamente permanece contigo mesmo depois que a sessão de cinema termina, e você precisa ligar o abajur do criado mudo para adormecer mais tranquilamente à noite. Em comum, estes filmes gozam de incomum elegância: não há cenas de sanguinolência ou violência explícita para se ver, pois os diretores quiseram oferecer algo melhor do que clichês batidos, o horror se dá em uma seara primordialmente psicológica, e os arrepios que eriçam os cabelos das pessoas são provocados por desdobramentos sutis que soam flagrantemente reais. Em O Exorcista, William Friedkin nos contava a estória de uma menina sob a influência cada vez mais poderosa de um demônio chamado Pazuzu, tudo após brincar com uma daquelas tábuas de comunicação com espíritos. Simultaneamente, havia profundidade psicológica à trama, pois conseguíamos nos identificar melhor com as personagens, vez que pareciam humanas e falíveis. A mãe era uma atriz de cinema que tentava criar a filha sozinha, pois enfrentava um doloroso processo de separação do pai da garota; a garota sentia a falta do pai, de certa maneira culpava-se pelo divórcio, e parte de seu estado psicológico vulnerável propiciara que a sua mente se pusesse mais à vontade para a influência de um demônio oportunista e cruel. Em O Sexto Sentido, o diretor revisitava a dinâmica entre pais e filhos, ao falar sobre uma mãe que fazia o melhor para cuidar sozinha do filho, desconhecedora do dom especial da criança, e a chegada de um terapeuta infantil que representa a única figura paterna na vida daquela criança confusa e a quem vem a se apegar. Em ambos os filmes, a natureza do horror que os tornava tão especiais não advinha de cenas de excessos, mas única e exclusivamente da exploração da ideia da presença de forças sobrenaturais para além da compreensão humana, aterrorizando pessoas comuns, com quem podíamos nos identificar, sem uma motivação aparente.

Em Sobrenatural, o diretor James Wan parece ter se guiado pela proposta dos dois filmes mencionados acima, fugindo de excessos, concentrando-se em atmosfera, ideias assustadoras e reminiscentes dos maiores temores de nossas infâncias. O resultado é um filme que apesar de rodado em 2010, remete às melhores obras de terror, dos anos 70 e 80, tais como O Exorcista, O Iluminado e Hellraiser de Clive Barker, em termos de atmosfera, fotografia, estilo e estória. O diretor James Wan começou a carreira dirigindo o primeiro Jogos Mortais, em 2004, e seguiu o inesperado sucesso com dois brilhantes suspenses pouco conhecidos do grande público – Dead Silence (2006) e Death Sentence (2007). Dead Silence foi lançado no Brasil pela Universal, diretamente para o mercado de DVD, com um infeliz título genérico, Gritos Mortais, o que certamente afastou os potenciais interessados de um suspense que em verdade era interessantíssimo, sobre um rapaz que retorna para a cidade natal para enfrentar a lenda de uma mulher morta que trabalhava como ventriloquista, e cujo espírito estaria assombrando os cidadãos remanescentes da falida cidade. Death Sentence foi lançado em 2008 sob a denominação Sentença de Morte, pela Paris Filmes, com uma estória que à primeira vista parece ordinária e batida – pai de família pacato e gentil tem o filho adolescente brutalmente assassinado por uma gangue durante assalto a mercearia, e vira uma máquina de execução, estilo Charles Bronson em Desejo de Matar – fortalecida pela execução magistral cheia de estilo, que permitia que o roteiro previsível fosse balanceado pela natureza empolgante com que Wan desenrolava a estória e também a filmava. Sobrenatural destaca-se no conjunto de sua obra, e até agora é o trabalho onde vimos suas melhores habilidades agregadas. Desde a abertura, ao som de violinos desafinados, Sobrenatural não perde sustentação, é misterioso e empolgante já na montagem dos créditos iniciais, que nos sugerem falsamente que será uma estória sobre uma casa assombrada.

Sobrenatural acontece em uma casa onde fenômenos paranormais atormentam uma família, no entanto, não é sobre a casa. Os personagens principais deste filme são os membros da família Lambert, Renai & Josh (Rose Byrne & Patrick Wilson), os pais, e Dalton & Foster, os dois filhinhos. Não há nada de extraordinário com a dinâmica do lar, inclusive o diretor nos apresenta os Dalton como pessoas absolutamente comuns, felizes em um casamento de muita cumplicidade e união,recém-chegados a uma nova residência, onde não custa a coisas inexplicáveis começarem a acontecer. Conhecedor de filmes de horror, o diretor James Wan faz muitas referências aos melhores. Você vê Renai, por exemplo, subindo ao sótão, depois de escutar barulhos vindos de cima, e ao verificar o ambiente, tomado pelas sombras e torsos de manequins cobertos por plástico, não encontra nada de extraordinário, que não o aquecedor estalando, até que toma um baita susto (e nós também!) quando o mesmo subitamente ganha potência, e, por um breve instante, parece ter vida própria. Esta cena é uma homenagem a O Exorcista – há uma cena semelhante no filme de William Friedkin. O diretor James Wan também parecer nutrir carinho por Poltergeist, e presta o tributo a este grande filme também. Por parte de Sobrenatural, nós cremos que se tratará de uma estória sobre casas mal-assombradas e as comparações são inevitáveis. Logo no começo, estranhas manifestações começam a atormentar a família Lambert. Depois que Dalton mergulha em um misterioso coma, da noite para o dia, e os médicos não conseguem cientificamente explicar a condição médica, é ladeira abaixo para os Lambert. O que havia começado estranho (barulhinhos aqui e acolá no sótão) se torna aterrorizante quando as manifestações ganham maior envergadura.

A pobre Renai é o elo fraco da família, quem mais se fragiliza pela condição do filho. O professor Josh, o pai, parece a rocha forte, um jovem homem estoico que inicialmente não crê nas reclamações e avisos de Renai. As cenas das manifestações iniciais, testemunhadas apenas por Renai, são de eriçar os cabelos da nuca, tão surreais, bizarras que são – e quando acontecem, a trilha sonora potencializa o susto em um excelente uso de violinos estridentes. O diretor Scott Derrickson foi um outro cineasta que fez acertado uso de música para estabelecer atmosfera no recente A Entidade. Aqui, Wan criou momentos memoráveis, sem o uso de violência ou derramamento de sangue. Ao contrário, parece resgatar a angústia e o temor pelo desconhecido que os filmes do passado faziam tão bem. Para produzir um memorável filme de horror, você não precisa de sangue ou violência, tampouco de muito dinheiro. Você necessita de atores excelentes, um roteirista inteligente, e a crença de que é do desconhecido de onde vem o terror. Assim, vale a recomendação menos é mais. Desde que o mundo é mundo, nós, seres humanos, perguntamo-nos sobre o que há depois da vida. A força desta produção reside justamente neste medo enraizado em nossas origens. Prepare-se para levar a mão ao coração em galope ao ver coisas como: Renai apanhando as roupas no varal, do lado de fora, quando subitamente escuta a uma bizarra modinha vinda da sala, e ao olhar pela janela, vê um garotinho com roupas do século XIX, ensaiando passos e dançando alegremente no meio da sala sem se importar com os donos da casa; Renai levantando-se à noite para checar o filho, ainda em coma, e, ao entrar insuspeita no quarto, deparar-se com um sujeito estranho parado em frente à janela, olhando para dentro, para o filho deitado; Renai apanhando os lençóis do filho para trocá-los, e encontrando a marca de sangue feita por uma mão pequena, aos pés do menino.

A família muda-se para um novo endereço, porém as manifestações os seguem. Relutante, Josh acata a ideia de Renai, e a família consulta uma senhora investigadora de fenômenos paranormais. Durante a visita, a senhora faz o diagnóstico da natureza dos problemas que recaem sobre os Lambert, depois de uma cena impressionante, quando ao visitar o quarto da criança em coma, olha para cima, para uma parte escura do teto, e começa a explicar a um de seus assistentes a aparência da coisa que somente ela enxerga: um demônio alto e magérrimo, de língua fina protuberante, avermelhado, chifres grandes, uma visão malévola e negativa, ali para atormentar e exercitar influência sobre uma criança indefesa. Ao caminhar pela casa, para fazer o reconhecimento, o outro assistente, munido de equipamentos especiais, tem uma outra visão aterradora: duas irmãs que surgem ao final do corredor, vestidas como nos anos 50, que ao serem vistas pelo investigador abrem uma espécie de sorriso insano. Ao procurar colocar para os Lambert a origem dos problemas, a senhora só complica a situação, pois Josh perde a paciência e imediatamente descredita a explicação sobrenatural para a natureza do coma que aflige o filho ou os demais problemas que parecem assediá-los. É somente quando a mãe de Josh (Barbara Hershey) reaparece que a verdade começa a emergir. Havia uma característica da personalidade de Josh que esposa e filhos jamais conseguiriam compreender muito bem. Josh jamais apreciou posar para fotos de família. Parece algo menor, que é mencionado de maneira passageira no início do filme, antes dos problemas, porém as razões para a aversão às fotos enraizam-se até sua infância. Em uma cena reveladora, construída por excelentes atuações e flashbacks, a mãe de Josh o ajuda a se recordar. Ela mostra um maço de fotos e começa a explicar que quando criança, à medida que ia crescendo, registrada nas fotos que a mãe tirava do menino, havia a presença de uma mulher desconhecida, bem ao fundo dos registros. Ao longo dos anos, à medida que se tornava adolescente, a presença da mesma mulher misteriosa ficava cada vez mais próxima do menino, o rosto mais definido. Era como se a manifestação tivesse cismado com o garoto e o assediasse sem tréguas. Já ao final da infância, a mãe explica, a tal mulher desapareceu, deixando-o em paz a partir de então. A aterrorizante experiência deixou encrustada em seu subconsciente a aversão a fotos. Acontece que mais recentemente, a mãe teve um sonho em que entrava no quarto do neto e enxergava uma figura magérrima de braços longos como gravetos, de pé ao lado do leito do menino, envolto por sombras, sugando sua energia, esperando para levá-lo para a dimensão que habita. Ela acredita que o mesmo que aconteceu a Josh esteja agora se sucedendo a Dalton. Esta cena, pessoal, é um dos pontos mais fortes da fita. Durante o diálogo na cozinha entre mãe, filho e nora, há um susto arrepiante e inesperado, que fará com que pulem do sofá, mas... Não se preocupem, não entregarei a surpresa!Apenas... Assistam!

Ademais, a senhora que trabalha com investigações paranormais era uma velha conhecida, Josh apenas não se recordava: no passado, quando criança, a mãe recorrera à ajuda da senhora para afastar a bizarra presença feminina que parecia assombrar o filho. Depois que a verdade vem à tona, e Josh se torna mais aberto à existência de forças sobrenaturais que a ciência não consegue explicar, a senhora lhes explica que Dalton não se encontra em coma, e sim em um lugar chamado Further, ou Além, o limbo triste e sombrio entre vida e morte onde almas que não se conformam com a passagem habitam, esperando regressar para o mundo dos vivos, dada a oportunidade. Dalton herdara do pai a capacidade de se desconectar de seu corpo material durante o sono para viajar com o espírito. Em uma destas viagens, Dalton “perde o caminho de casa”, e fica preso neste mundo espiritual, no Além. Daí as manifestações paranormais nas duas residências onde a família morou. Já que Dalton estava no limbo, mas ainda dispunha de um corpo material no mundo dos vivos, os espíritos maus o assediavam, procurando tomar o seu lugar, retornar ao mundo dos vivos através de Dalton. O demônio alto e magrelo de braços longos como galhos de árvores se alimenta do sofrimento das almas miseráveis, e também ficou louco para trazê-lo logo para o seu domínio, desconectá-lo permanentemente do corpo material, ou seja, matá-lo para carregá-lo logo ao seu reino, o Limbo. Com a ajuda da senhora psíquica, seus assistentes, a mãe e a esposa, Josh precisa se submeter à hipnose para se depreender do corpo físico e visitar o Limbo, para resgatar o filho das garras do demônio e enfrentar a mulher que o assediava quando criança, na verdade mais um espírito entristecido que habita a zona.

Surpreende-me a maneira como Wan pegou um orçamento relativamente pequeno e executou um filme que parece tão visualmente arrebatador, bem como criativamente triunfante. A figura do demônio alto de braços longos e unhas curvadas nos remete ao imaginário do diretor Guillermo del Toro e o seu O Labirinto do Fauno, outro festival de criatividade visual incomum e memorável. Ademais, a representação do limbo como uma dimensão de dor e sombras onde o tempo parece não existir é mais um dos bons frutos da criatividade de James Wan. As figuras que existem por ali vão provocar pesadelos, em especial a família que Josh encontra enquanto procura pelo filho, uma típica família de norte-americanos dos anos 50 – pai, mãe e duas filhas (as mulheres que foram vistas rapidamente na primeira metade do filme pelo investigador paranormal) – sendo que em seus rostos há perenes sorrisos insanos e maldosos, e o cara segue assoviando. É sugerido que talvez pela influência do demônio uma das meninas tenha apanhado o rifle, chacinado a família, e depois se suicidado. Desde então habitam o limbo, como se ainda estivessem nos anos 50. O sabor retrô, nostálgico de Sobrenatural, que resgata os deliciosos arrepios que tínhamos assistindo a O Exorcista, também se deve às performances impecáveis de todo o elenco, em especial de Rose Byrne, uma atriz cujos olhos são uns dos mais tristes e evocativos que já vi, rivalizando com os de Jennifer Connelly. O filme foi escrito por Leigh Wannell, que atua como um dos investigadores, e cuja parceria com o diretor James Wan iniciou-se em 2004 com Jogos Mortais, onde interpretava um dos personagens principais.
 
Os amigos que ainda não conferiram Sobrenatural estão perdendo – e muito. Podem alugar o DVD sem receio, não há do que se arrepender aqui, a não ser os pesadelos que vão ganhar por um tempinho, coisa de uma semana!No momento, James Wan dirige a continuação, com todo o elenco principal a bordo, e previsão de lançamento nos cinemas brasileiros para 30 de agosto de 2013. Wan retornando para a continuação foi uma maravilhosa notícia, sinal de que não há riscos de desvirtuamento de suas ideias originais ou estilo empolgante. No mesmo semestre em que Sobrenatural 2 chegar aos cinemas, teremos a chance de assistir a mais um filme semelhante dirigido por Wan, aparentemente baseado em fatos reais, que se deram em 1973 em uma casa onde fenômenos pareciam muito ativos, chamado The Conjuring (ainda sem título para o lançamento no Brasil), programado para estrear no dia 13 de setembro próximo.
Todos os direitos autorais reservados a PlayArte Filmes. O uso do trailer é para efeito meramente ilustrativo da resenha.  

domingo, 10 de fevereiro de 2013

O Quarto do Filho - A dor da saudade.


Assertivo, sincero, triste e evocativo, O Quarto do Filho, filme do diretor/ator Nanni Moretti, não poupa ninguém com a estória de uma família comum e feliz que de uma hora para a outra perde o chão sob os pés em face de uma inesperada tragédia. Vencedor da Palma de Ouro em Cannes, O Quarto do Filho foi bastante aplaudido, comparado a outros dois extraordinários filmes sobre o luto em família, Gente como a Gente e Laços de Ternura. Tanto em O Quarto do Filho quanto em Gente como a Gente, assistimos à luta de famílias que precisam sublimar a perda de filhos muito queridos, algo que vai em sentido oposto à cronologia natural da vida, e deixa os membros sobreviventes ainda mais atônitos, preenchidos por agonia e remorsos não resolvidos. O olhar sincero do diretor imprime à obra todo o impacto da surpresa e aparente casualidade com que a morte nos assalta e, mais tarde, da tristeza perene que passa a pairar sobre a família, enquanto os sobreviventes tentam compreender o que aconteceu e se será possível, de fato, seguir adiante.

Para o psicanalista Giovanni, a vida não cessa de encantá-lo. Ele é um homem feliz e realizado, de arguta e afiada mente, que imagina guardar a maior parte das respostas para os mais importantes questionamentos existenciais. Em casa, a vida familiar vai de vento em popa: casado com a bela e inteligente editora Paola, ambos se esforçam para criar os filhos adolescentes, Andreas e Irene, dando bons exemplos, encorajando-os a serem si mesmos e se desenvolverem como seres humanos completos e responsáveis. Profissionalmente, sabe fazer bom uso de sua perspicácia e compreensão da natureza humana, auxiliando os pacientes com sensibilidade e bom humor, guiando-os ao bem estar e a resolução de seus dramas pessoais. Quando Giovanni é chamado ao colégio de Andreas depois que o adolescente é apanhado na companhia de colegas no furto de um fóssil do laboratório, começa a se questionar se está se dedicando ao menino com o mesmo afinco com que cuida dos pacientes. O psicanalista sente que devia escutá-lo mais, ao invés de simplesmente ditar opiniões e fornecer lições de moral. Há toda uma parte de Andreas – seus sonhos, os medos, os amores, seus dramas – que Giovanni não conhece bem, e justamente por amar o filho mais do que a qualquer outra coisa, compreende que só poderá ser um bom pai se ele se dedicar mais à aproximação de ambos. O psicanalista não se preocupa tanto, porém, afinal de contas o filho é apenas um adolescente, e os dois têm toda a vida inteira pela frente para se reaproximarem, certo?

Ocorre que assim como acontece para a vida do outro lado da tela, o destino nos reserva surpresas, e parte das surpresas pode ser muito trágica. Andreas morre em um tenebroso acidente de mergulho, depois que o pai precisa comparecer a um compromisso de última hora, o que libera o menino pelo restante da tarde para que possa mergulhar com os amigos. Devastado pela culpa, Giovanni, o homem que conhecia todas as respostas, descobre que as mesmas não valem muito, porque muito embora pareça eficiente ao ajudar as pessoas e ensiná-las a sublimar as próprias dores, não consegue trabalhar o próprio luto. O sentimento avassalador de culpa passa a permear sua existência, e não demora a considerar seriamente abrir mão do trabalho de psicanalista, por falta de condições emocionais. Giovanni perdeu a crença em si, e com a falta da fé, também se foi a mágica com que ajudava os pacientes. Paola procura se manter forte para a filha Irene, a parte mais vulnerabilizada pelo choque da perda. O casal começa a se afastar, os sobreviventes à deriva, Giovanni procurando o conforto do sofá da sala, Paola chorando sozinha à noite na suíte, Irene metida em seu próprio mundo. É quando a inesperada visita de uma pessoa põe a maneira dolorosa com que rememoravam o filho sob perspectiva: uma mocinha, namorada de Andreas, sobre quem o menino jamais falara, aparece na porta de casa. Ela diz que soube da morte do rapaz, que está de passagem, a caminho da França, e que se sentiu impelida a visitá-los para falar sobre o quanto sente muito.

Primeiramente, o que me chamou bastante a atenção deste filme europeu, e na minha opinião o elevou ao patamar do incomum foi a natureza do olhar de seu diretor a uma temática tão delicada. Nanni Moretti revela que a ideia de rodar O Quarto do Filho remonta há muito, muito tempo. Antes de efetivamente fazê-lo, porém, o que o impediu à época foi que havia acabado de se tornar pai, e não conseguia se imaginar conciliando as alegrias de papai de primeira viagem com o dever de filmar uma produção sobre uma família italiana dilacerada pela dor da morte de um filho. Precisou que o tempo passasse, e seu filho crescesse, para que retomasse ao material, para rodá-lo, felizmente com mais maturidade, deliciosa como os melhores vinhos. Em segundo lugar, assim como aconteceu com Antes do Amanhecer de Richard Linklater, o poder de O Quarto do Filho reside em seus detalhes, em instantes sutis cheios de significados, de lições importantes a se descobrir, a cada nova oportunidade que você assiste à fita. Há cenas onde não há nada a ser dito, e ainda assim nos contam muito sobre estes personagens. Vejam, por exemplo, quando assistimos à família, presente ao ritual do lacramento do caixão, na funerária, a tampa sendo soldada, uma cena que faz pesar sobre as nossas cabeças a envergadura da morte – não há retornos, não há consertos, é o fim; ou quando Paola leva Irene a um shopping, para provar roupas novas, em uma tentativa de restabelecer um pouco o senso de normalidade, e Irene finge muito bem sentir-se mais confortável, no entanto, quando a mãe entra no provador, abraça-se ao vestido que vai experimentar, solitariamente, e debulha-se em lágrimas; ou quando Giovanni e Arianna, a namorada de Andreas, sentam-se na sala para folhear o maço de fotografias que a menina trouxe, registros dos bons tempos que passou ao lado de Andreas, e então, subitamente, sem sobreaviso, Giovanni leva o maço à testa, lentamente, e pela primeira vez começa a chorar silenciosamente, uma das demonstrações de dor mais cinematograficamente sutis e marcantes que vi em toda a minha vida.

Mas assim como todos os diretores talentosos, a melhor parte, o cineasta reservou para o deslumbrante final. Arianna presta uma visita à família, quando lhes traz reminiscências felizes de Andreas. Chega a hora de partir. Ela vai apanhar um ônibus na rodoviária, seu destino a fronteira da Itália com a França. Giovanni, ainda bastante comovido com todas as últimas revelações, e finalmente liberto, depois do desabafo do choro ao examinar as fotos, oferece-se a lhe dar uma carona para a rodoviária. Já é tarde da noite. Paola e Irene, que já gostam muito da visitante, acham uma ótima ideia, e resolvem ir juntas. A menina está tão cansada que logo mais adormece no banco detrás. Ao vê-la dormindo tão quietinha, Giovanni e Paola sorriem, e resolvem que vão mesmo é levá-la por todo o caminho até a fronteira com a França. Marido e mulher finalmente têm toda uma madrugada para conversar, enquanto o carro segue pelas largas autoestradas europeias. Não durma, Giovanni sussurra para a esposa, fique aqui comigo. É manhã, quando a família alcança a fronteira. Irene desperta aos poucos, e olha abismada para os pais, como se não acreditasse que os pais tenham dirigido a madrugada inteira. Ela reclama algo nas linhas de Amanhã é segunda-feira e eu tenho aula, como é que vocês tiveram a coragem de vir tão longe! E então Giovanni e Paola entreolham-se, começam a rir, e em seguida, diante da inusitada situação, nem mesmo Irene resiste, explodindo em gostosas gargalhadas. A família e Arianna tomam um café da manhã em um pier próximo, e eles se despedem da moça, o último elo que os conectava ao menino morto, a visitante que lhes permitiu enxergar um outro Andreas. Desde a morte do garoto, é a primeira vez que nós os vemos em um mesmo frame, em um mesmo quadro. Até então, esta família estava despedaçada, os cacos cada vez mais distanciados, porém a visita da namorada transforma a dinâmica, e finalmente os vemos como uma unidade, destroçados pela dor, porém unidos. O final à beira do mar é deslumbrante.

É interessante, porque logo me veio à mente outro filme tristíssimo cujo final à beira do mar novamente encapsula a atitude de autoafirmação e crença absoluta em agarrar a vida com ânimo e determinação, independente do que o destino atire contra nossas caras: Zorba, O Grego, Alan Bates e Anthony Quinn dançando onde marés quebram, mesmo depois de todas as lágrimas vertidas, todas as dores que a vida injustamente lhes jogou no colo. O encantamento, o deslumbramento que cenas semelhantes provocam em nosso imaginário parecem ainda mais valiosas quando paramos para ponderar que tanto em Zorba, O Grego quanto em O Quarto do Filho, aquelas pessoas, afinal de contas, perderam. Elas perderam, porém ainda assim, ao final, a mensagem seguiu válida, o mundo é um lugar que podemos tornar melhor, e a vida vale a pena ser vivida. Em nossas vidas, temos a oportunidade de tratarmos as pessoas que nos são caras com amor, respeito e carinho, e no entanto, conduzimo-nos como se jamais fôssemos perdê-las. Damos preferência a perfeitos estranhos, tentando impressioná-los, sem nos importar com quem verdadeiramente nos ama. Ocorre que nada dura para sempre, e até onde sabemos, tudo o que temos é o aqui, e o agora. Dedique-se aos seus aliados, a pessoas que te ajudaram e cuidaram de ti sem exigir coisa alguma em troca. Somente quem é apanhado pelo impacto de uma tragédia súbita compreende a extensão do remorso, de jamais se ter dito eu te amo as vezes o suficiente para não se arrepender amargamente depois da partida. Como o Mediterrâneo nestes dois filmes maravilhosos nos lembra, a vida é o agora. Aproveite.

Todos os direitos autorais reservados a Warner Brothers. O uso do trailer é para efeito meramente ilustrativo da resenha.

sábado, 2 de fevereiro de 2013

Retratos de uma Obsessão - Quando a nossa parte boa é melhor do que a soma das diferenças de nossa parte má.


Olá, pessoal. Nesta oportunidade, tenho o prazer de falar sobre um de meus filmes preferidos. É fenomenal, impecável do começo ao fim – começando pelas performances na medida certa até a direção precisa – e o melhor momento do astro Robin Williams. Eu fiz uma afirmativa e tanto, não?Escrever que este foi seu melhor momento. Quando se leva em consideração o tempo que este artista vem fazendo filmes bons e interessantes, parece precipitado eleger este quase desconhecido filme de arte como o melhor instante de Robin Williams, mas tomem a minha palavra como certa: Retratos de uma Obsessão é o trabalho pelo qual Robin Williams deverá ser lembrado. Apesar do nome deste blog, os melhores filmes de horror, Retratos de uma Obsessão passa longe do gênero terror. Quem for assistir ao filme esperando um suspense eletrizante se desapontará, e eis o ponto pelo qual o filme não foi bem-sucedido, financeiramente falando, na ocasião do lançamento: tentaram vendê-lo como um suspense nos moldes de Cabo do Medo, quando na verdade passa bem longe desta proposta.

Retratos de uma Obsessão é um filme intimista, centrado em diálogos, um estudo de personagens que parecem reais e a maneira como interagem uns com os outros, sem a menor pretensão de oferecer suspense ou perseguições. O suspense que existe surge apenas na segunda metade da trama, como consequência natural da sucessão de eventos, e não a razão principal para os mesmos. A ausência de perseguições ou cenas de susto ou ação não representou problema algum ao ritmo do filme, pois foi compensada por uma atmosfera melancólica e nostálgica, que permeia a fita do início ao fim. Do mesmo jeito que aconteceu com o diretor Brad Anderson e o magistral Session 9, ou mesmo Tom Shankland e o quase perfeito w delta z, aqui o diretor Mark Romanek escolheu sabiamente ao delegar aos seus atores a incumbência de habitarem os personagens com completa liberdade, torná-los somente seus, e gentilmente se afastar, dar-lhes espaço, posicionando as câmeras sem intromissões ou extravagâncias. Romanek permite que o elenco comande o show, esmerando-se para jamais esquecer de não trair o tom entristecido e realista da estória. Este é um filme tristíssimo, e a fotografia nos remete à solidão devastadora que corrói o personagem principal e o arranca dos trilhos, similar ao que aconteceu a Peter Mullan em Session 9 ou Stellan Skarsgard em w delta z. Em Retratos de uma Obsessão, Romanek foge de estilos e excessos, pois compreende que este não é o seu show, e sim o de seus personagens, e nada mais é importante que as dores pelos quais os mesmos passam no decorrer da estória.

Sy (Robin Williams) é um simpático, introvertido senhor aos seus cinquenta e poucos anos, a maior parte deste tempo passada dentro do WalMart, onde trabalha com revelação de fotografias. Por sua cabine, uma porção considerável da vida da família Yorkin passou pelas suas mãos, registrada em fotografias de alegria, que vão desde o namoro de Will e Nina (Michael Vartan e Connie Nielsen) à vida em família, passando, claro, pelo casamento e o nascimento de Jake, o filho. Os Yorkin são sempre corteses com o revelador, trocando os cumprimentos usuais. Ei, como vai, Sy?, Nina pergunta naturalmente ao trazer os rolos. Como o Jake cresceu, hein? Sy observa ao ver o garoto gradualmente maior a cada nova visita à cabine. E assim, as diferentes estações da vida vão se sucedendo.

Acompanhamos Sy regressando para casa, depois de um cansativo dia de trabalho. Parando em uma diner qualquer para provar um omelete e bebericar xícaras de café com leite, Sy tira um maço de fotografias do bolso, para examiná-las. A expressão de serenidade toma conta do rosto, à medida que vai passando a vista pelos retratos, como cartas de baralho. A garçonete que enche sua xícara casualmente pergunta quem são as pessoas nas fotos. Sy explica que se trata da sua família. Você acaba de ser convidado a um passeio pela horrorosa, triste existência de Sy Parrish, porque muito embora os instantes em que cruza com a família Yorkin no shopping sejam aparentemente muito cândidos e agradáveis, há toda uma vida para além do cordato, uma existência sombria causada por um passado tétrico onde não há ninguém para confortá-lo, para apoiá-lo. Tudo o que resta a Sy são as pessoas nas fotos, as pessoas que ao nominar como família mentiu. Vocês veem que aqui há um abismo que jamais será transposto. Por mais que tenha feito cópias dos retratos do Yorkin e os tenha pendurado na sala, como uma forma de ao menos imaginar como teria sido sua vida no seio de uma família feliz, a realidade é mais cruel. Para a família, Sy é apenas Sy o Cara da Foto. Este é um filme sobre a solidão e como o mundo pode ser cruel para almas vulneráveis.

Apresentarei aos amigos um termo agora – filme de detalhes. Uso este termo para produções a que assisti muitas vezes, porém com que sempre descubro coisas inéditas todas as vezes em que assisto novamente. Aconteceu quando vi a Antes do Amanhecer (Julie Delpy e Ethan Hawke apaixonados, ainda aos vinte e poucos, as vidas inteiras pela frente, caminhando por Viena, visitando um pequeno cemitério local e Julie olhando para as inscrições do túmulo de uma criança que morreu tragicamente e dizendo Ela continuará com dez anos de idade, sempre, e no entanto eu seguirei envelhecendo), e Antes do Pôr-do-sol (no final, os dois a um sopro da despedida, e ela aponta para o gatinho no jardim e diz Sabe o que eu mais admiro nele?É que todas as manhãs ele olha para esse jardim com o encanto da primeira vez). Retratos de uma Obsessão é um filme assim – de detalhes, de instantes muito sutis, reveladores, que, somados, compõem uma obra-prima norte-americana sobre dramas humanos enfrentados por todos nós em uma base diária.

Sim, Sy ama os Yorkin, tudo o que queria dos Yorkin era pertencer. Ele não é um stalker, um bandido, não é um pedófilo, não cobiça a mulher alheia, não inveja o pai, tampouco deseja os bens materiais da família de classe média alta. Tudo o que queria, o raio de luz de sua existência, era experimentar um dia que fosse como o Tio Sy, aceito como parte de um lar normal & feliz. Levar Jake aos jogos da liga, assistir às partidas de futebol americano tomando latinhas de cerveja com Will, participar das reuniões familiares – coisas que um tio faz. Vocês percebem que as intenções de Sy são pueris, e que ele apenas não sabe como corretamente estender a mão aos Yorkin para pedir ajuda. Um passado sombrio o alijou de autoestima e o enclausurou em um mundo somente seu, à parte. Em que pese a alma gentil, as interações saem sempre tacanhas e desastradas, e as pessoas, no trabalho, riem às suas costas, pela sua timidez, pelo fato de não conseguir pertencer. Sy quer ser o Tio Sy, porém não compreende que age com intromissão, por exemplo, quando escolhe simplesmente aparecer em um jogo de baseball do garoto e lhe dar um presente. As intenções são as melhores, os meios que usa são desastrosos.

Retratos de uma Obsessão foi construído em cima dos detalhes, porque são dos detalhes que transbordam a tristeza e a dor deste personagem trágico. Na cena inicial do filme, Nina e Jake aparecem no estande de Sy, para revelar o rolo de filmes. Sy nota que há um filme não gasto e se oferece para tirar uma foto de Nina, ali mesmo do estande. Os dois riem, Sy tira a foto... É uma cena maravilhosa, e o detalhe reside na interação meio constrangida entre os dois. Os amigos devem conhecer a sensação, não?Aquela pessoa que você encontra casualmente no elevador, e com quem tem um minuto de cordial prosa, porém fica olhando para o mostrador esperando que chegue logo ao andar. Não que haja algo de errado com a outra pessoa, apenas um constrangimento natural entre dois adultos que não são tão próximos assim, tampouco completos desconhecidos – são apenas adultos que habitam um limbo relacional, onde ainda não se conhecem muito bem, e de onde nascem primeiras impressões, equivocadas.

Outra cena evocativa acontece quando Sy aparece no jogo de baseball de Jake, e depois da partida, acompanha-o por parte do trajeto para casa. Eu amo a cena, pois novamente Romanek nos oferecesse uma pequena janela através da qual podemos compreender a vida de Sy. Novamente, a lente captura o drama por um ângulo bem aberto, sem atrapalhar, e você vê os dois, homem e menino conversando, caminhando por um campinho durante uma tarde, as folhas amareladas caindo ao sabor do vento. Sy fala que não podia fazer esportes quando criança pois vivia doente, Jake conta que gostaria que o pai estivesse mais presente para vê-lo jogar (o que nos mostra que a vida dos Yorkin não é tão perfeita quanto Sy imagina). Sy põe a queixa do menino sob perspectiva, ao dizer que a razão pela qual o pai às vezes não comparece tanto quanto o menino gostaria se deve ao fato de Will trabalhar bastante para garantir que Jake e a mãe tenham coisas boas & bonitas.

Romanek é igualmente assertivo ao nos fazer pensar sobre o quanto as crianças sacam as coisas, e o quanto a sensibilidade infantil é tão mais aguçada do que os adultos possam imaginar. Depois da visita ao laboratório de fotos, mais tarde, em casa, quando Nina vai pôr o menino na cama, a criança lhe diz que se sente mal por Sy. Achei interessante, pois o menino não interage muito com o operador de laboratório, até aquele momento, porém sabe, sabe em seu ser, que Sy é uma pessoa triste e as pessoas fazem pouco dele. Pela primeira metade de projeção Retratos de uma Obsessão nos brinda com excepcional construção de personagens. Poucos filmes nos fazem pensar É como se essa turma toda fosse real, sinto como se os tivesse conhecido! Pela segunda, a trama ganha ritmo. Quando Sy descobre que Will está tendo um caso extraconjugal, ocorre-lhe pela primeira vez que os verdadeiros Yorkin diferem da fantasia que fizera dos mesmos, a que tanto desejava pertencer. Em seguida, vem o outro golpe do destino, Sy perde o emprego. A conjunção de infortúnios é demasiadamente pesada para o homem, e ele finalmente sai dos trilhos.

Do mesmo modo que respeitou os personagens e soube destrinchá-los, Romanek dirigiu magistralmente a segunda metade da fita. Quando o filme se torna mais tenso e sombrio, Romanek oferece um imaginário extremamente perturbador e emocionalmente devastador. Há uma sequência inesquecível, um pesadelo de Sy, talvez instigado pela vida emocional vazia e solitária. No sonho, vê-se sozinho, de pé, dentro daquele WalMart estéril e branco, e subitamente de seus olhos jorram cascatas de sangue. Apesar do suspense crescente na segunda metade, Retratos de uma Obsessão jamais se torna um filme previsível, jamais descamba para a mediocridade. Aqui, não há assassinatos ou tragédias, e se o final é muito triste, o é apenas para o trágico protagonista.

Retratos de uma Obsessão me fez pensar sobre as pessoas semelhantes a Sy Parrish, pessoas de nosso convívio que muitas vezes passam batidas, e todavia ali estão, com histórias de vida semelhantes. Tornamo-nos tão anestesiados face ao estado das coisas que mal conseguimos reunir alguma empatia para as pessoas que sofrem, o que nos empurra a um processo de constante segregação. É como se cada vez mais reduzíssemos a capacidade de aceitar, conviver e nos importar. O círculo vai se fechando, e fora do mesmo, só habitam pessoas com quem não poderíamos nos importar menos. Em 2006, foi lançado um documentário chamado A Ponte. Em linhas gerais, o diretor, Eric Steel, armou muitas câmeras ao redor da Golden Gate, a enorme ponte pênsil em São Francisco, e com as lentes, capturou os suicídios que por ali se deram no primeiro semestre do ano de 2004. Assim que as câmeras capturavam pessoas suspeitas indo e vindo na beirada, como se estivessem contemplando o salto, Steel e a equipe acionavam a Guarda Costeira, que imediatamente abordava o suspeito e o tirava do lugar. Outros suicidas, todavia, não davam pista alguma das intenções, e foram os saltos destes aqueles capturados pelas câmeras. Depois dos trágicos saltos, Steel procurava conhecer a história daquela gente, o que os colocara à beira da Golden Gate, o portal entre esta existência e o fim. O que o cineasta encontrou foram histórias semelhantes a de Sy: almas vulneráveis fragilizadas, passados com dependência química, esquizofrenia e toda sorte de males. O que encorajara aquela gente a saltar da Golden Gate não fora a esquizofrenia ou a dependência química, ao menos não exclusivamente, mas talvez principalmente a completa apatia que encontraram nos semelhantes ao procurarem ajuda e compreensão.

Ao mesmo tempo, observamos que do mesmo jeito que há a parte má da condição humana, representada pelo seu egoísmo, individualismo ou oportunismo, cada vez mais exacerbadamente, existe também a parte boa, a parte agregadora, a parte que deveríamos valorizar mais. Se você analisa, por exemplo, um drama como o acidente de Chernobyl, uma catástrofe que, crê-se, acabará matando de cânceres mais pessoas ao longo dos anos desde 1986 do que as que Adolf Hitler foi capaz de assassinar durante toda a Segunda Grande Guerra, você percebe que a bondade é inerente ao ser humano, pois quando aquela gente pobre e humilde batalhou sobre os destroços do Reator 04 como um time, carregando pedaços fumegantes de grafite radioativo com as mãos, tendo os corpos devorados por césio-137 e iodo radioativo, quando aquela gente concluiu os trabalhos de isolamento do reator e finalmente hasteou a bandeira da União Soviética acima do reator, quando os soldados comemoraram, abraçaram-se e olharam uns para os outros, depois daquele pesadelo, compreenderam que todos pareciam exatamente iguais, com seus rostos sujos, amarronzados e cansados. Apesar das diferenças individuais, todos tinham acabado semelhantes, e o que os movera a derrotar algo tão mortífero quanto as toneladas de césio lançadas na atmosfera havia sido justamente o amor que tinham uns pelos outros, a obstinação de não permitir que aquele acidente alcançasse os familiares, os semelhantes. Mais recentemente, em Santa Maria, tivemos a tragédia do fogo na boate que custou a vida de mais de duzentos e trinta jovens. Novamente, as imagens e os relatos nos mostraram que mesmo em meio à dor, rapazes e meninas que em um primeiro momento tinham deixado a boate com segurança regressaram para a linha de fogo para salvar vidas. Ao final, você viu aquelas cenas emocionantes, vítimas arrastadas para fora da escuridão, para longe da fumaça tóxica, salvas pela bravura de garotos, meninos cujos rostos pareciam exatamente iguais, sujos de fuligem. Não havia mais diferenças, todos ali irmãos, um time. Eu pergunto: existe amor maior do que doar a própria vida para a salvação da vida do teu irmão?Menciono estes dois acontecimentos nesta resenha pois são a prova cabal de que a parte boa da condição humana, aquela que nos une, é muito mais forte do que as diferenças mesquinhas e pequenas causadas pela nossa parte má. Eu quero parabenizar o diretor Mark Romanek pela sensibilidade na condução deste grande filme, e o elenco pelas performances que tornaram os personagens reais, e levantaram questionamentos tão importantes cujos efeitos sentimos no dia a dia, e cujas lições refletem em nossas vidas individuais. Uma última menção vai para a atriz Connie Nielsen. Quando assisti ao filme, lembrei-me dela em um suspense produzido pela HBO chamado Voyage, de 1991 ou 1992, que eu havia visto na televisão quando menino. Ela e o ator Eric Roberts representavam um casal que pegava carona em um veleiro de outro casal, para singrar pela costa de Malta. Ocorria que Connie e Eric Roberts tinham planos sinistros para o casal de amigos – pretendiam matá-los, forjar um acidente e assumir a identidade das vítimas. Ela estava maravilhosa no papel de assassina fria, e me recordo de seu nome, que era tão cool que mesmo depois de tantos anos, conservei na memória – creio que o personagem dela se chamava Ronie Freeland ou algo muito, muito parecido. Aqui, em Retratos de uma Obsessão, feito tantos anos depois de Voyage, ela parece muito diferente, no papel de uma mãe dedicada e esposa devota, e se sai igualmente muito bem. Ela é uma excelente atriz e o tempo lhe fez muito bem, continua bonita. Por causa desta resenha, pesquisei rapidamente na internet sobre sua vida, e descobri que hoje é a mãe de um rapaz de vinte e três anos, e companheira de um músico de sucesso; e também continua a trabalhar em filmes de sucesso!Fico feliz por saber que ela se saiu bem. Ao vê-la depois de tantos anos desde Voyage, eu me apercebi: O tempo realmente voa.

Todos os direitos autorais reservados a Twentieth Century Fox. O uso do trailer & imagens é meramente para efeito ilustrativo da resenha.