sexta-feira, 26 de setembro de 2014

Dead Presidents (1995, Albert & Allen Hughes, EUA) Neste assalto, a única cor que importa é a do dinheiro.


Bronx, Nova York. Primavera de 1969. Anthony (Larenz Tate, em grande performance) e seus amigos Skip & José (Freddy Rodriguez & Chris Tucker) estão a um passo de se formar no colégio, e cada qual tem uma ideia diferente para o futuro. Eles estão pegando carona no caminhão que distribui leite nas vizinhanças do Bronx. Nós os vemos conversando sobre o futuro. Em sua ingenuidade, Anthony diz que gostaria de viajar e viver aventuras, e alistar-se para lutar no Vietnã parece a oportunidade certa. Apesar de avesso a estudo, Skip diz que não quer lutar uma "guerra de brancos", e que os vietnamitas não lhe fizeram mal algum para que se metesse em uma guerra que não é sua. Ele brinca com o latino José, dizendo que o amigo parece a vítima perfeita do Exército Americano e não custará a ser convocado "na marra". Você é um ticket apenas, José. Um ticket apenas de ida, Skip brinca.

Anthony desce com a caixa de garrafinhas de leite e vai deixá-la na porta de uma das casas da vizinhança. Quem mora ali é Juanita (Rose Jackson), a garota por quem é apaixonado, mas quem sempre o vê todas as manhãs é Delilah (N'Bushe Wright), a irmã. Anthony não desconfia de nada, mas Delilah secretamente nutre sentimentos românticos pelo rapaz. Nos tempos livres, Anthony frequenta o bar de Kirby (Keith David), um veterano durão que funciona como figura paterna para o rapaz, e mantém um negócio paralelo de jogatina e apostas. O velho lhe confia pequenos trabalhos e o remunera pelos serviços prestados. O clube de bilhar de Kirby é frequentado pelos gangsters locais, entre eles Cowboy (Terrence Howard). Anthony é humilhado pelo bandido após ganhar uma partida de sinuca. Kirby expulsa o delinquente e ordena que volte somente quando for para não arrumar mais confusão.

Kirby leva o garoto para um trabalho: cobrar grana de um cara que está lhe devendo. O garoto não tem carta de motorista, mas o veterano o deixa dirigir. No trato com devedores, Kirby é implacável. Anthony o vê lançando o cara pela janela. A filha do homem aponta uma arma para Kirby, que sem vacilar a toma muito rapidamente e a nocauteia com um soco. O assustado devedor agarra a perna do veterano, e pede que não lhe faça mal, sem se atentar que acabou apanhando a "perna errada" (Kirby é deficiente físico). Ele toma um susto quando a perna de Kirby "solta", mas o veterano logo a recupera e o manda ficar esperto e tratar de arrumar dinheiro para pagar. Ele volta saltitando para o automóvel, e depois de entrar, Anthony acelera. Da próxima vez que ele arrancar a minha perna, uso para lhe dar uma surra! Kirby promete. A bem humorada cena estabelece a dinâmica pai-e-filho existente entre os dois personagens.

Anthony vive com os pais e o irmão, uma harmoniosa família de classe média. O irmão, mais focado, mantém-se resoluto nos seus planos de ir para a faculdade, cursar Direito e formar-se; Anthony, a seu turno, precisa "se conhecer melhor", ou seja, viajar por um tempo, afastar-se de casa, viver uma grande aventura. Os pais querem o melhor para o filho, portanto quando Anthony fala em alistar-se, já não gostam. Quem procura consolá-lo é o pai, embora saiba que o filho cometerá um gravíssimo erro se se meter no Vietnã.

É noite do baile da graduação, todos compareceram e a festa só começou. José conta que assim que voltar da guerra se casará com Marisol, a namorada: isso mesmo, José foi recrutado na marra pelo Tio Sam, conforme Skip previra. Juanita convida Anthony para dançar, e enquanto bailam ao sabor de uma balada romântica, conta que os pais ficarão fora toda a noite, oportunidade para viverem a primeira noite de amor. Juanita praticamente expulsa a irmã Delilah do quarto. Eles fazem sexo, inicialmente um pouco constrangidos, logo mais à vontade. Depois de se amarem, conversam sobre viverem juntos depois que regressar do Vietnã. Abraçados, os jovens adormecem, e somente acordam na manhã seguinte, quando Delilah entra de supetão para avisar que a mãe chegou. Juanita manda a irmã distrai-la, enquanto Anthony se veste apressadamente para pular pela janela. Eles saem nas pontas dos pés, e há um doce momento quando se beijam apaixonadamente para se despedir. Em breve, instantes como esse ficarão apenas nas lembranças de Anthony, que está para se ver metido no inferno do Vietnã.

Província de Quing Tri. 16 de abril de 1971. Assim como uma porção de jovens de sua idade, Anthony deixa a segurança de sua vida pretérita pelos horrores do Vietnã.  Membro do Pelotão de Reconhecimento Cobra, Anthony encontra-se submetido à autoridade do Sargento Dugan, um militar kamikaze ótimo em tirar seus rapazes das mais temerosas frias. Ali, Anthony conhece uma variedade de novos companheiros, desde o sensível D'Ambrosio (Michael Imperioli) ao maluco Cleon (Bookem Woodbine). Cleon é um verdadeiro sociopata, uma máquina de matar sem quaisquer resquícios de remorso ou compaixão; mesmo seus amigos temem suas loucuras ou que surte e cometa alguma bobagem contra o próprio pelotão. Cleon é filho de pastor, e sente especial satisfação em matar comunistas. Agora você é bom, agora Jesus te ama, diz com um sorriso após estourar os miolos de um vietnamita. Depois de todas as considerações sobre ir para a faculdade, Skip acabou mesmo se juntando a Anthony, e serve na mesma unidade.

O segmento no Vietnã começa com o Pelotão Cobra em apuros, protegendo-se como pode por entre ruínas de um templo abandonado. Os inimigos estão se aproximando perigosamente, e um dos garotos foi mortalmente atingido. Anthony procura consolá-lo, mas lamentavelmente o rapaz não resiste. Dugan contata a Força Aérea e dá as coordenadas da tropa de vietnamitas. Não custa a jatos realizarem um rasante na área e botarem a floresta das imediações abaixo com o bombardeio de napalm. Livres dos inimigos, Dugan comemora e convida os rapazes a darem o fora para o ponto de encontro, onde um helicóptero os recolherá de volta à base. Cleon protesta. Ele não quer voltar tão cedo `a base. Ele sugere que examinem os soldados mortos para assim buscarem por possíveis papéis de Inteligência.

Uma vez no cenário do bombardeio, Cleon é o desequilibrado de sempre, chegando a abrir fogo contra os cadáveres dos inimigos. Sargento Dugan descobre que um dos vietnamitas traz insígnias de hierarquia privilegiada, e arranca as medalhas para colecioná-las. Itens de inimigos mortos guardam muito valor entre soldados americanos. Dugan faz qualquer brincadeira com Cleon, dizendo-se sujeito de sorte por ter descoberto a medalha, e Cleon não. Insatisfeito, Cleon resolve levar o seu próprio memento mori: o cara se aproxima de um corpo estatelado na árvore, saca o facão, e sem um único segundo de hesitação, o decapita. Os demais assistem abismados à toda a loucura. Cleon arranca a cabeça do vietnamita e resolve guardá-la na mochila como amuleto de sorte. Nem mesmo Dugan tem coragem de protestar.

De volta à base, Anthony e Skip conversam sobre o que acabaram de testemunhar. Skip não tem dúvida alguma de que Cleon é um psicopata perigosíssimo e se arrepende profundamente por ter se alistado em uma "guerra de brancos". Filho da mãe, ficamos na floresta o dia inteiro!Amarelos pulando de todos os cantos em cima da gente o tempo inteiro, cara, eu não fui feito para isso! Skip desabafa. Sentados em um pequeno bar, Anthony e Skip fazem um brinde ao Bronx. Skip pergunta ao amigo se tem recebido cartas de Juanita, e Anthony conta que na noite do baile, os dois acabaram fazendo amor e Juanita engravidou. Skip o parabeniza e pede para ver uma foto da filha, mas Anthony explica que prefere não pensar na namorada ou em como era a vida no Bronx. Se sobreviveu por seis meses na floresta foi porque deixou de pensar nas pessoas amadas para se concentrar na sobrevivência. Anthony jamais respondeu as cartas de Juanita. A única pessoa em quem confia para desabafar é o amigo Kirby. Por uma carta redigida à luz do lampião, ele narra os horrores do dia a dia. Anthony se preocupa com Skip, acha que ele não pertence à Unidade Cobra, pois está sempre injetando heroína, tudo para suportar a carga de stress. Quanto a si, procura viver um dia de cada vez e não pensar muito em tudo o que abdicou. Vejo-o quando voltar ao Bronx, ele conclui a carta.

Dugan e seus rapazes são deixados pelo helicóptero em uma clareira. Reunidos no meio do mato enquanto aguardam ordens, Sargento Dugan toca no ponto que todos temem discutir: ninguém aguenta mais ver Cleon carregando a cabeça para onde vai dentro da mochila. Além de representar uma visão macabra, a cabeça em decomposição exala um cheiro terrível. O próprio médico do pelotão alerta o rapaz quanto aos perigos de contaminação por bactéria. Cleon retruca dizendo que a cabeça é o amuleto de sorte do Pelotão Cobra; desde que decapitou o vietnamita, ninguém na unidade sofreu um único arranhão. Se jogarem a cabeça fora, Cleon explica, todos estarão ferrados. Encorajada por Dugan, a turma faz coro, e pede a Cleon que enterre de vez aquela porcaria antes que os demais fiquem doentes. Dugan vai mais além: se não se livrar imediatamente da cabeça, reportará o rapaz à Corte Marcial assim que retornarem aos Estados Unidos. Mesmo a contragosto, Cleon não tem mais o que fazer, que não seguir as ordens do sargento e enterrar seu "amuleto".

A Unidade Cobra é contatada pelo rádio. Aparentemente, há uma patrulha de comunistas por perto, e a missão da turma é a de neutralizar os vietnamitas e interrogá-los no local sobre transporte de armamentos. Anthony dá pela falta de D'Ambrosio. Um amigo diz que o rapaz tinha pedido licença para se aliviar, porém desde então não havia voltado. Contrário ao protocolo, o colega não o acompanhou quando D'Ambrosio foi fazer as necessidades no mato. Dugan ordena que vistam as mochilas e se apressem, agora precisam encontrá-lo. Quando finalmente o acham, veem que o rapaz foi estripado e castrado; seus genitais enfiados na própria boca. D'Ambrosio ainda está vivo, mas seus intestinos encontram-se expostos. Ao lado do soldado, um folder. Anthony diz que se trata de uma mensagem, "Negros, vão para casa, essa não é sua guerra". Dugan fica furioso e ordena "Livre-se imediatamente desse lixo comunista!".

A turma se prepara para retomar o trajeto rumo ao ponto de encontro, D'Ambrosio sobre os ombros de Anthony. Durante o percurso, o soldado suplica para que Anthony o deixe morrer, pois não quer voltar inutilizado para casa. Cheio de angústia, o rapaz atende ao pedido do amigo, e quando o helicóptero está para pousar, aplica a injeção de morfina que o faz apagar. Mais tarde, em uma operação noturna, é a vez de o Pelotão perder Sargento Dugan, quando os soldados caem em uma emboscada dos vietnamitas. Quando um colega pisa numa armadilha e é mandado pelos ares em pedaços, Skip congela, e durante o tiroteio se esquece de dar cobertura a Sargento Dugan, que acaba atingido pelos disparos da bateria inimiga. Os demais escapam ilesos. Seis meses se passam. O Pelotão Cobra agora parece praticamente uma família, soldados unidos por laços forjados sob fogo no campo de batalha. Eles nada temem, nada mais pode chocá-los. Os rapazes estão rindo e bebendo cerveja, enquanto fazem gozações com os novatos.

Bronx, Nova York. 1973. Anthony retorna ao velho bairro como Herói de Guerra. As coisas parecem bem diferente. Da última vez que caminhou por aquelas calçadas, o bairro vivia a inocência dos anos 60. Agora, os anos 70 - drogas, sexo, discoteca, calças boca de sino - chegaram com força total para mudar hábitos. Anthony avista Skip sentado do lado de fora de um bar e pede ao motorista que pare. Louco de felicidade por rever seu velho amigo, cumprimenta-o com uma brincadeira, mas Skip está tão drogado que nem o reconhece. Anthony fica desapontado ao ver que Skip continua injetando heroína. Finalmente, Skip presta mais atenção e o reconhece. Os dois se abraçam em grande alegria.

Anthony e Skip caminham juntos pelo bairro, rememorando os velhos tempos. Skip dissipa as preocupações do amigo ao contar que está financeiramente confortável. Ele deixou o serviço militar com aposentadoria integral, e não precisará mais trabalhar. Anthony estranha, e Skip explica que voltou com algo no sangue. Os médicos não sabem explicar seu problema, tudo o que dizem é que suas células estão ferradas. Skip insiste que o amigo não o olhe com pena: financeiramente, está folgado, e agora que Anthony retornou para o Bronx, poderão aprontar, como nos velhos tempos. Eles se despedem e Skip recomenda que vá ver Juanita e a filha. A visita aos pais não vai bem. Durante o jantar, Anthony permanece caladão, sem vontade de discutir as terríveis experiências. A mãe está preocupada, porque muitos jovens retornaram viciados em drogas. Anthony dispersa os temores dos pais. Fora as horrorosas lembranças, nada mais trouxe consigo. Anthony se sente mais à vontade ao visitar o clube de bilhar e reencontrar os dois amigos que adora, Kirby e José.

Durante a guerra, José se tornou especialista em explosivos, mas foi dispensado após ferir gravemente uma das mãos. Entre goles de bebida, Kirby e Anthony compensam o tempo perdido. Kirby queixa-se da Polícia de Nova York, tiras corruptos que querem uma boquinha de seu negócio paralelo de jogatina. Não são tempos fáceis, e Anthony precisa arrumar logo um emprego. Saul, o gentil dono do açougue do bairro, lhe arruma uma vaga. Após conseguir o emprego, o rapaz procura Juanita. Quem abre a porta é Delilah. A irmã de Juanita se tornou uma mulher muito bonita, e bastante politizada. Ela é participante ativa do grupo Panteras Negras. Juanita chega em seguida, trazendo uma linda menininha no colo. Ao vê-lo na sala, seus olhos ficam marejados. Os dois se abraçam, e Juanita coloca a menininha no seu colo.

Anthony não sabe ainda "em que pé está" com Juanita. Os dois permaneceram muito tempo separados, e o rapaz jamais respondeu as cartas da ex-namorada. Juanita dá sinais de interesse, e os dois se beijam no automóvel enquanto a menininha dorme. Quem pareia com o carro é Cutty, uma espécie de malandro local. Cheio da grana, Cutty se comporta como gângster, e ao cumprimentar Juanita, o faz com intimidade. Ele diz que esteve no seu apartamento mais cedo, porém não a encontrou. A intimidade de Cutty nos revela que ele é um "pretendente". Enquanto Anthony esteve fora, "cortejou" a moça, comprou mimos para a bebê, porém não passou disso. Apesar de simpático e atencioso para com Juanita (chega a entregar um maço de dólares, para que ela compre presentes para a bebê), Cutty trata Anthony como se o rapaz não existisse. Juanita o convida a entrar, e Anthony parece meio constrangido. Juanita explica melhor a situação com Cutty, apenas um amigo, e revela-se ainda apaixonada pelo namorado. Os dois reatam.

Cowboy e Anthony estão disputando uma partida de sinuca, Anthony levando a melhor. De péssimo humor, Cowboy tem a infeliz ideia de provocar o adversário. Ele começa afirmando que foi tolice envolver-se na Guerra do Vietnã, pois depois de lutar e sofrer por quase cinco anos, não recebeu nada em troca. Não bastasse o desprezo do governo para com veteranos, Anthony se distanciou de Juanita, criando oportunidade para que Cutty, patrão de Cowboy, a "traçasse". Quando Cowboy insinua que o patrão dormiu com Juanita, Anthony perde a cabeça. Ele o põe para baixo com um golpe de taco, e se vinga da humilhação de anos antes. É Kirby quem tem de intervir e impedir que Anthony continue surrando Cowboy.

Anthony e Juanita estão casados, e uma vez que a rotina se assenta, as intrigas conjugais se amontoam. Juanita engravida, e logo o casal precisará alimentar mais uma criança. Juanita vocaliza seus temores. Ela gostaria que Anthony arrumasse um emprego melhor, e o rapaz se compromete a achar algo que pague mais, porém o resto da noite azeda quando Juanita faz um comentário inconsequente que o magoa profundamente: Caso não tenha notado, você vive agora no mundo real. Não há almoço grátis como havia no Exército! Anthony protesta, retrucando que a esposa nem poderia imaginar o que passou, e que no Vietnã, nada foi de graça. Cheio de preocupações na cabeça, Anthony passa a beber cada vez mais. José aproxima-se de Anthony e Kirby com uma ideia arriscadíssima que, caso vingue, poderá resolver os problemas de todos de uma só vez. Os três estão passeando à noite no automóvel de Kirby, quando José se aprofunda melhor no plano.

Um carro forte costuma fazer a parada mensal no Federal Reserve Bank na Noble Street do Bronx, antes de seguir para Washington. José tem estudado a rota do carro forte, e contabilizou quatro guardas, dois na frente, dois atrás, um deles com arma pesada. Os amigos discutem a viabilidade de um assalto. Eles parecem temerosos. Se toparem, terão de estudar melhor a abordagem, as variáveis envolvidas... Em casa, a vida conjugal se revela cada vez mais complicada. Anthony sofre com pesadelos horrorosos, um deles envolvendo soldado D'Ambrosio revisitando-o, coberto de sangue e com as tripas para fora. Anthony acorda assustado, empapado de suor. Atormentado pelas imagens de D'ambrosio, não consegue cumprir com seu papel de marido. Ele e Juanita quase não fazem mais amor.

A situação se agrava quando Saul anuncia a falência do açougue, e que precisará dispensá-lo. Na despedida, Saul separa as melhores peças de carne e as dá de presente a Anthony, que fica tocado pelo gesto do amigo. O velhinho lhe deseja sorte. Em casa, Anthony e Cutty se cruzam nas escadas, o gangster deixando o apartamento justamente quando o rapaz chegava do trabalho. Cutty é irônico e malicioso, e surpreende Anthony com uma coronhada que o faz tombar escada abaixo. Juanita também não lhe mostra respeito. Quando o marido ordena que devolva o dinheiro para o gangster, responde que enquanto o rapaz não encontrar um emprego que remunere melhor, aceitará os galanteios de Cutty. Ela novamente vai bem na ferida - o desemprego - e diz algo nas linhas de Você é Anthony, o grande herói de guerra sem emprego!Você não tem dinheiro, não dorme comigo, eu só consigo abraçá-lo quando tem um desses pesadelos de araque! Depois disso, Anthony perde a cabeça. Ele a empurra contra a parede e com a mão na garganta, responde que Juanita jamais poderia contemplar os horrores que vivenciou na floresta. Eles têm uma violenta briga, e enquanto Juanita se debulha em lágrimas, Anthony a deixa para trás no apartamento. O que antes parecia uma ideia distante - o assalto ao carro forte - adquire matizes mais definidas quando Anthony percebe que a única saída fácil para os graves problemas financeiros consiste no esquema de José. Ele procura por Delilah no quartel dos Panteras Negras, e a convida para comer qualquer coisa em uma lanchonete, onde terão oportunidade de conversar melhor. Anthony já conta com quatro companheiros para o assalto ao carro forte: Kirby, José, Delilah e Skip reúnem-se no clube de bilhar onde Anthony faz a preleção.

Kirby deverá se posicionar no carro da fuga, que aguardará na esquina, de onde o veterano contará com amplo campo de visão; Anthony e José esperarão pela chegada dos guardas sob a rampa de acesso à porta de onde saem com o dinheiro; Delilah deverá se posicionar dentro do depósito de lixo defronte à rampa de acesso; Skip fará a cobertura a dez pés da rampa de acesso, também da esquina. Se durante a ação um deles for pego, deverá permanecer quieto e não abrir o bico, pois sua parte irá para a família. Kirby ainda não gosta do plano. Ele sugere mais um homem, que deverá ficar do outro lado da rua. Skip não gosta, quanto mais pessoas trouxerem para a ação, pior. Devíamos colocar uma droga de anúncio nos Classificados! Ele reclama. Delilah diz que consegue alguém dos Panteras Negras, mas Kirby não quer saber de revolucionários no grupo.

Adivinhem a quem Anthony recorre para fechar a ação?Desde o fim da guerra, Cleon mudou de vida. Hoje pastor na igreja de seu pai, cita seu exemplo como prova da maneira como Deus pode transformar a vida de um homem. Anthony aparece em uma das pregações e aguarda até o fim da cerimônia para que possam conversar. Cleon reage com incredulidade. Tem muito a perder caso a ação dê errado. Também o desagrada, quando Anthony revela que Skip integrará o grupo. Cleon ainda se recorda do preço do surto de Skip durante a guerra, quando congelou, e nisso Sargento Dugan foi fuzilado pelos vietnamitas. Apesar de relutante, Cleon acaba seduzido para o esquema.

Manhã do assalto. A rua do Banco federal parece deserta, mas Anthony e José espreitam sob a rampa, armados de escopetas, e Delilah aguarda dentro do depósito que dá para a porta. Eles trazem seus rostos pintados por tinta branca, e se vestem de preto. O carro forte se aproxima, insuspeito. Cleon e Skip estão parados de pé em calçadas opostas. Kirby observa de seu carro. Dois guardas descem para apanhar o dinheiro. Tudo está se sucedendo conforme o previsto, até que um elemento inesperado altera toda a dinâmica: um jovem guarda de trânsito se aproxima casualmente de Cleon, perguntando se pode ajudá-lo. Ele percebeu que Cleon vestia uma jaqueta de veterano do Vietnã, e o aborda dizendo que sempre está disposto a ajudar um companheiro de farda. Cleon procura se sair com a desculpa de que está esperado o ônibus da linha 11, mas o guarda responde que o ônibus não passa na região tão cedo, e oferece-se para contatar a central e dirimir a dúvida.

Nisso, do outro lado da rua, os guardas estão deixando o Banco Federal com os malotes. Anthony e José esgueiram-se para fora da rampa, para abordar os guardas, quando o motorista os enxerga pelo retrovisor e anuncia emboscada. Anthony rende o primeiro guarda, José assalta o segundo e já sai correndo com um dos sacos.  Quando um dos guardas faz menção de sacar a arma, Delilah salta para fora do depósito de lixo com duas automáticas. Ela elimina o primeiro guarda. Anthony se distrai, e o segundo homem luta para tirar a escopeta de suas mãos. Anthony quebra o nariz do guarda com uma cabeçada e o derruba fazendo uso do cabo para golpeá-lo. O guarda de trânsito que conversava com Cleon fica estupefato, e sai correndo para ajudar os oficiais do carro forte. Kirby deixa o automóvel de fuga e procura acertá-lo, dando início a uma troca de tiros em pleno cruzamento. Kirby é atingido de raspão, Skip chega por trás do guarda de trânsito e estoura seus miolos.

O motorista do carro forte arranca, mas José ainda tem a iniciativa de preparar o explosivo que acionará por controle remoto. Mesmo ferido, Kirby acelera para deixar o carro bem no cruzamento, para bloquear a passagem do carro forte. José aciona o transmissor e manda o carro forte pelos ares. Anthony assiste a tudo abismado, e nem repara quando outro guarda aparece apontando uma arma. Delilah grita para o parceiro, e troca tiros com o oficial, que a acaba atingindo. Anthony o derruba com um tiro de escopeta na perna, aproxima-se, puxa o revólver e o descarrega no peito, à queima roupa. Quando o outro faz menção de reagir, Anthony o mata a golpes de coronhada. A forte explosão arrebentou o cofre do carro forte, mas há muitos malotes de dinheiro ao alcance da turma, e eles pegam o que podem. O grupo empreende fuga em plena luz do dia, mas José não tem sorte. Ao entrar em um beco próximo `as docas, é encurralado por um carro de polícia, e morre atropelado.

A turma se reúne no clube de bilhar. Sobre a mesa, maços e mais maços de dinheiro. Eles discutem o ocorrido, Anthony visivelmente abalado com a morte de Delilah. Kirby está contando dinheiro para separá-lo. A parte de José ficará para Marisol. Após o barulho causado pela ação, os amigos combinam de agir com discrição até que o lance caia no esquecimento. Eles devem retomar suas vidas como se nada tivessem a ver com o crime. Vemos Skip injetando heroína na veia enquanto escuta na rádio as últimas informações sobre a investigação do assalto; Anthony aparece pensativo, ainda com as atrocidades do Vietnã passando na cabeça como filme. Honrando o desejo de Delilah, Anthony e Skip gastam a sua parte comprando perus e brinquedos e os distribuindo para crianças carentes de uma área particularmente barra pesada do Bronx.

Kirby, Skip e Anthony discutem o que fazer, quando chega a seus ouvidos a notícia de que Cleon anda fazendo bobagem. O primo de Kirby, que mora na mesma região de Cleon, contou que o pastor havia comprado um Cadilac novo e andava distribuindo notas de cem dólares aos fiéis, dizendo que Deus lhe dera toda a grana. Ele está chamando atenção para si, e Kirby teme que a polícia chegue a Cleon para investigar a história mais a fundo. Kirby se oferece para "apagá-lo" antes que Cleon os dedure, mas Anthony o convence a deixar conversar com o rapaz primeiro. A espera se revelará um grave erro, pois quando Anthony finalmente o procura, vê-lo sendo escoltado pelos detetives para fora da paróquia. No interrogatório, a polícia o aperta, os tiras determinados a fazê-lo ceder sob pressão. Cleon acaba entregando os parceiros em troca de um acordo oferecido pela promotoria. Desesperado e cheio de remorsos, Skip se mata com uma overdose no apartamento, antes de ser pego.

Kirby e Anthony ainda se encontram no clube de bilhar para preparar malas para fugir, quando os tiras aparecem e os rendem. Anthony vai a julgamento, e em suas considerações finais, declara que apesar de compreender a gravidade do erro, só agiu daquela forma pois estava desesperado, tinha uma família para criar, e todas as portas vinham sendo fechadas na sua cara. O advogado ainda pede que o Juiz leve em consideração os serviços prestados por Anthony no Vietnã, mas ambos são humilhados quando o Magistrado responde que também foi herói, de uma "guerra de verdade", a Segunda Grande Guerra, e que Anthony não passa de uma desgraça ao Serviço Militar. Sentenciado `a prisão perpétua, Anthony fica perplexo, assim como seus pais, irmão e Juanita, que assiste a tudo esvaindo-se em lágrimas. Isso é o que recebo da Justiça depois de tudo o que fiz por este maldito país?!Ao inferno! Ele grita ao levantar a cadeira e arremessá-la com toda força contra o Juiz. Algemado ao lado de outros prisioneiros, nós o vemos dentro do ônibus, transportado ao Presídio onde permanecerá pelo resto da vida. A seu lado, outras pessoas semelhantes ao próprio Anthony, minorias que lutaram pelo país contra comunistas em uma sangrenta guerra e não receberam nada ao voltar, que não desprezo e ingratidão. 

Mesmo tantos anos depois, este sombrio, pouco visto suspense de 1995 representa o melhor momento da carreira dos irmãos Albert & Allen Hughes, que ironicamente só cairiam na graça de crítica e público seis anos mais tarde, ao rodar Do Inferno. Outros filmes seguiriam, os irmãos Hughes comandariam produções grandiosas, tais como O Livro de Eli, mas jamais recapturariam a glória daquele longínquo outubro de 1995. Ao revisitar Dead Presidents tantos anos mais tarde, a escolha do estúdio pelos irmãos Hughes para dirigir Do Inferno parece autoexplicativa. Baseado na graphic novel de Alan Moore, Do Inferno rompeu os limites dos quadrinhos para aclamação como uma das principais obras literárias do século XX. Ao contar a história do surgimento de Jack, O Estripador, Moore costurou um empolgante mistério que ia desde intrigas entre membros da Família Real britânica às ruas empobrecidas de uma Londres pós Revolução Industrial, explorando um emaranhado de relações viciadas e doentias sem jamais perder o senso de foco e direção. Não tive como deixar de notar a similitude de textura e estilo narrativo, entre Dead Presidents, o filme dos irmãos Hughes que antecedeu Do Inferno, e outras graphic novels poeirentas em preto e branco, mais especificamente a maravilhosa A History of Violence, de John Wagner, ilustrada por Vince Locke. Toda a energia a emanar das ruas e pequenos prédios do Bronx, brilhantemente capturada pelo traçado da caneta de Locke e o texto de Wagner, salta aos olhos em cada frame de Dead Presidents. Sim, são duas histórias diferentes, porém moldadas dentro de um mesmo modelo: dramas urbanos, tragédias da cidade grande, vidas marginais, o sol escaldante cuja luz é refletida por vidros de vitrines de decadentes prédios do Bronx. A violência, aqui ou acolá, jamais é utilizada de maneira vulgar, mas quando acontece, é brutal. Eu creio que a 20th Century Fox, estúdio responsável por Do Inferno, tenha enxergado a habilidade dos irmãos Hughes com Dead Presidents, daí a escolha da dupla para comandar a versão cinematográfica da obra de Alan Moore.

Livre de pretensões - o que aos olhos da crítica o torna menos "importante" do que clássicos como O Franco-Atirador & Os Bons Companheiros - mas sério demais para ser rotulado como puro filme de ação, Dead Presidents é o senhor absoluto do limbo que habita, o melhor de dois mundos. Rodado em grande escala, o que o aproxima dos épicos cinematográficos sobre o submundo do crime ou as consequências da Guerra, não se faz de rogado ao transitar facilmente entre drama social ao mais puro e simples exercício da ação. Assim, uma vez visto, nos deixa a recompensa da originalidade: um filme sombrio que ousa tocar em questões muito sérias, os efeitos do Vietnã no espírito do norte-americano, porém que simultaneamente alterna seu tom dramático por um mais energético ao flertar com uma ação que pareceria mais à vontade em filmes de Isaac Florentine, ou com uma violência grotesca encontrada mais frequentemente na obra de David Cronenberg, ou com uma paleta de cores melancólicas e nostálgicas semelhante à aplicada ao traçado que Vince Locke usa para dar vida à prosa de John Wagner.

Enquanto filme de ação, Dead Presidents a traz em dois momentos muito claros. Primeiro, no Vietnã, quando não somos poupados da brutalidade envolvida no conflito, e cenas de decapitação, explosão, execução `a queima roupa, homens indo aos ares em pedaços após pisarem em minas e toda sorte de barbaridade desfilam na tela como uma dança macabra. Mais tarde, no Bronx, quando a tomada do carro forte, que deveria ser um trabalho fácil, se torna um sangrento e prolongado tiroteio em plena luz do dia. Os instantes um pouco anteriores ao clímax também merecem elogios, pois através da discussão que antecede o evento, os diretores criam a atmosfera de eletricidade que torna o desfecho ainda mais contundente.

Enquanto drama relevante, Dead Presidents toca na ferida que não quer cicatrizar. Direta ou indiretamente explorado em filmes anteriores, o drama dos soldados que voltaram do Vietnã como párias vez ou outra encontra o caminho de volta `as telas, sendo alguns de seus expoentes O Franco Atirador, de Michael Cimino, Coming Home, de Hal Ashby, e o mais sensível In Country, de Norman Jewinson. Durante a década de 90, Dead Presidents foi a primeira grande produção a revisitar o tema. Contando o drama dos veteranos pela ótica dos negros - que lutaram por um país que até então os tratava com preconceito, por mais velado que o fosse - Dead Presidents é baseado na história real de Haywood T. Kirkland, um herói de guerra que ao retornar aos Estados Unidos somente deu com portas fechadas e, desesperado, cometeu o assalto a um carro forte. Escrito pelos próprios irmãos Hughes, o roteiro pega muito emprestado do livro Blood: An Oral History of the Vietnam War by Black Veterans, de Wallace Terry, sobre os eventos envolvendo Kirkland e o assalto. Importante mencionar que na época, internamente, os Estados Unidos estava dividido entre favoráveis e opositores, a mais notória voz entre os dissidentes a do pugilista Muhammad Ali, que recusou servir ao Exército quando do recrutamento e disparou a frase Não tenho problema com vietcongues. Nenhum vietcongue jamais me chamou de negro, uma alusão ao racismo que acreditava experimentar dentro do próprio país. Se no frigir dos ovos o envolvimento norte-americano provou-se ou não um grande equívoco nem é a questão principal. Através da história de Anthony, o filme está contando a de todos os outros que voltaram para casa para serem recebidos com animosidade. Guardadas as diferenças, ao menos no cerne, o primeiro Rambo narrava uma história semelhante, sobre um veterano deslocado que não consegue se ajustar à vida normal e enlouquece. Apesar de lembrado pelas cenas de ação excelentemente executadas, seu melhor momento se dá ao final, quando Rambo tem esse tocante momento com Coronel Trautman e desabafa aos gritos sobre a dificuldade em se readaptar. Lá (Vietnã) eu pilotava helicópteros, dirigia máquinas, fazia de tudo, aqui não consigo arrumar uma droga de emprego em lava-rápido! Ele desabafa, chorando. O segredo da identificação com o público do filme de Sylvester Stallone me parece a homenagem que presta aos veteranos, que finalmente enxergavam na tela um herói que dava vazão à toda a dor que sentiam mas não tinham o veículo para exteriorizar. Com o velho radicalismo esquerdista em voga nos anos 60 & 70, bem representado por hippies e gente como "Hanoi" Jane Fonda & Tom Hayden, não é de se admirar que muitas dessas pessoas tenham se entregado ao álcool e ao desespero após a queda de Saigon e o retorno aos Estados Unidos. Ao mesmo tempo em que chamaram soldados norte-americanos de assassinos de bebês, os liberais convenientemente se esqueceram de que foi após a saída dos Estados Unidos do Sudeste da Ásia que aberrações como o Khmer Vermelho aconteceram. Em linhas muito resumidas, em 1975, quando o então Presidente Ford batalhou para conseguir ajuda financeira para o governo pró América de Lon Nol, no Camboja, vozes de liberais radicais como Hanoi Jane capitanearam o movimento contrário, apregoando a "liberação" do Sudeste da Ásia e denunciando quem se opusesse à vitória comunista no Camboja e Vietnã. Ford alertou sobre o horror e a tragédia que se abateriam sobre o Camboja caso os americanos se omitissem, e não fornecessem armamentos e dinheiro para o exército da resistência de Lon Nol. Intimidado pelos liberais anti guerra, o Congresso Norte Americano deixou de aprovar a verba que teria viabilizado a resistência, deixando o Camboja entregue à própria sorte, sob a crença de que uma vitória do Khmer Vermelho traria paz e prosperidade para a região.

Não sei se os amigos já leram sobre o Khmer Vermelho, mas se vocês têm alguma dúvida sobre a existência do Diabo, é porque jamais conheceram o genocídio cambojano observado entre os anos de 1975 e 1979. Comandado por Pol Pot, vulgo Irmão n° 1, o regime do Khmer Vermelho ceifou a vida de mais de dois milhões de pessoas, um terço da população cambojana. Comunista extremista, Pol Pot estudou as ideias marxistas com os radicais de Paris e voltou ao Camboja certo de que a revolução social só se daria se a sociedade regredisse à economia camponesa, o Estado desprovido de cidades, posses, moedas, indústrias; seus cidadãos, de identidade. Organizou a guerrilha contra o governo de Lon Nol no início dos anos 70. Por um tempo, os embates ficaram restritos às montanhas. Quando os Estados Unidos deixou o Sudeste da Ásia, Pol Pot e seus asseclas partiram para a arrancada final rumo à capital Phnom Penh. A chegada do Khmer Vermelho à cidade é recontada de forma arrepiante no premiado filme britânico The Killing Fields, de Rolland Joffé. Naquela tarde do dia 17 de abril de 1975, quando soldados de Pol Pot foram recebidos nas ruas sob aplausos, os cidadãos não imaginavam o horror que cairia sobre suas cabeças como martelo. Qualquer resquício de esperança logo foi eliminado quando os soldados reagiram com agressividade e ordenaram que todos deixassem suas casas. Como gado, as pessoas foram cercadas e conduzidas sob ameaça a fazendas coletivas de trabalho forçado, onde Pol Pot esperava pôr em prática seu macabro projeto de engenharia social. O que se seguiu foi um período de absoluto horror, homens, mulheres e crianças submetidos a terrores inomináveis imortalizados no Museu de Tuol Sleng, com crânios de vítimas ainda hoje expostos no memorial para que novas gerações não se esqueçam. Quando esse canalha morreu em 1998, lembro-me de ter visto uma charge no jornal – Pol Pot aguardando a vez para entrar no inferno, porém ali no portão o Diabo em pessoa, afirmando Espere aí, aqui você não entra. Mesmo no inferno, temos nossos padrões, uma referência ao fato de que o ditador cretino fora um sujeito tão execrável que mesmo o inferno lhe seria pouco. Na época, não consegui interpretar a ilustração, mas ao ler sobre o período, entendo que o desenhista estava coberto de razão. A trajetória do Khmer Vermelho não é tão conhecida como outros genocídios tais como o Holocausto Judeu ou as matanças na China Maoista, mas representa um dos capítulos mais horrendos da História do Século XX. The Killing Fields foi lançado no Brasil e pode ser encontrado em DVD sob o título Os Gritos do Silêncio. Se os amigos se interessarem em saber mais do que os livros de História contam, procurem pelo DVD. A força do filme é incomum; mesmo hoje, assisto ao segmento em que o Khmer Vermelho marcha pela cidade e as pessoas inocentemente o aclamam com a mesma angústia da primeira vez. Era questão de tempo, algumas horas na verdade, para que soldados engrossassem o tom e ordenassem que as pessoas juntassem as coisas para marchar, um instante de absoluto terror, uma nação inteira sob a mira de armas, em vias de dar um passo rumo à escuridão do mais completo totalitarismo, literalmente de um dia para o outro. Citei o caso do Khmer Vermelho para ilustrar o meu ponto: há a versão oficial segundo a qual os Estados Unidos se meteu em uma guerra onde não pertencia e foi merecidamente derrotado, os comunistas deixados em paz para governar com harmonia e alavancar seus países rumo à prosperidade; e há a verdade, regimes totalitários que causaram o tipo de matança e sofrimento que filmes de horror nem têm como ambicionar reproduzir. Mesmo desprovido da relevância dramática ou importância histórica de The Killing Fields, Dead Presidents merece um lugar entre corajosos filmes que deram rosto ao genocídio no Sudeste da Ásia e denunciaram a hipocrisia envolvida no tratamento concedido a soldados que haviam colocado as vidas na linha de fogo em nome do país.

Larenz Tate protagoniza Dead Presidents e a sua performance merece aplausos. Através de um desempenho de primeira, ele torna a transformação de Anthony - que começa como um jovem americano cheio de ilusões e que ainda enxerga a vida sob um prisma generoso e termina como um homem amargurado e cheio de revolta por todas as armadilhas que o levaram ao inferno do Vietnã e finalmente à prisão perpétua – uma jornada que apreciamos realizar juntamente ao personagem. Chris Tucker se tornou um astro muito famoso de filmes de ação, mas assim como acontece a uma porção de atores de ação, esse pequeno drama, filmado em 1994-1995, quando ainda não tinha fama, perdura como seu melhor momento, o primeiro papel dramático, o tipo de personagem cheio de nuances que diretores lamentavelmente jamais voltariam a lhe confiar. Rose Jackson é um prazer de se assistir, como a garota da vizinhança e namoradinha do protagonista, que mais tarde se torna mãe/esposa desiludida e sofredora. Ela veste uma qualidade que poucas atrizes guardam – dessa nova geração, só me vem à mente a Kristen Bell – e ocupa muito à vontade o papel da girl next door: ela é linda & adorável, mas jamais sofisticada demais para nos lembrar que estamos diante de uma superestrela de cinema. Muito pelo contrário, são a sua naturalidade & charme suave que a tornam encantadora, o tipo de garota que você realmente acredita que poderia ter sido a menina por quem se apaixonou nos tempos de colégio, e então foram amadurecendo e crescendo juntos, daí se casaram e filhos se seguiram. A grande surpresa vem através da interpretação de Bookem Woodbine. Presença constante em filmes mais modestos de ação, ele rouba as cenas em que aparece como o perigosíssimo psicopata Cleon. A alegria estampada no rosto enquanto causa todo tipo de destruição no Vietnã chega a parecer cômica!A energia de sua interpretação revisita o tipo de vilão anteriormente aperfeiçoado pelo ator Joe Pesci em Os Bons Companheiros & Cassino: louco, imprevisível, engraçado e assustador, tudo ao mesmo tempo. Cleon nos faz dar gargalhadas com uma tirada engraçada, mas no próximo segundo está decepando a cabeça de uma pessoa com um facão ou explodindo os miolos de um vietnamita enquanto cita passagens bíblicas. Woodbine realmente ofusca os personagens principais enquanto em cena. Curiosamente, tive o prazer de ver parte da turma de Dead Presidents junta nas telas em Ray, de 2004, estrelado por Jamie Foxx. Em Ray, temos a grata satisfação de encontrar Larenz Tate, o Anthony, no papel do compositor Quincy Jones, bem como muitos outros nomes do elenco original. Bookem Woodbine faz um dos personagens secundários, e há performances de Terrence Howard e Clifton Powell!Além de bom filme, Ray pôde trazer parte da turma de volta, muito embora a meus olhos sempre serão o Pelotão de Reconhecimento Cobra.

A passagem de tantos anos desde seu pouco alardeado lançamento naquele outubro de 1995 serviu-lhe bem, afinal não há prazer como o de descobrir uma joia cinematográfica do passado. Assim como os fãs do gênero precisam redescobrir obras como O Mestre das Ilusões, de Clive Barker, ou Showgirls, de Paul Verhoeven, Dead Presidents faz parte desta seleção. Parte drama de guerra, parte empolgante thriller de ação, o filme flui naturalmente com seus muito temas, a ponto de nem vermos o tempo passar, tão envolvido ficamos com a narrativa. Épico e longo, Dead Presidents é dono de uma elegância que nem mesmo ao filmar Do Inferno os irmãos Hughes conseguiram repetir. Quem conhece a graphic novel A History of Violence concordará que o grande David Cronenberg rodou uma magistral versão para cinema, ocorre que algo foi perdido na tradução dos quadrinhos em preto e branco para as telas. Um importante segmento do filme - a infância do personagem principal Tom McKeena nas ruas do Bronx nos anos 60 - foi subtraído do roteiro para suavizar o tempo de projeção. Ironicamente, Dead Presidents, que nada tem a ver com a obra de John Wagner, redime todo o segmento deixado de fora por Cronenberg, através da saga de Anthony & seus amigos. O ponto alto da graphic novel - as ruas do Bronx, a inocência de se crescer em uma época mais libertária, enquanto gangsters compunham a dinâmica social do bairro, dias escaldantes, prédios pequenos e decadentes, calçadas iluminadas pelos raios do sol forte em tardes abrasivas, enquanto meninos brincam de baseball nas ruas ou mesmo fazem a festa graças ao hidrante quebrado, a ingenuidade do primeiro amor, a completa imprevisibilidade da violência - ensaia um retorno triunfal ao écran, graças às lentes dos irmãos Hughes, neste filme que até hoje perdura como a obra cinematográfica que mais próxima chegou do espírito e estilo de uma graphic novel noir. As imagens deste filme dos irmãos Hughes e as páginas abarrotadas e em preto e branco de A History of Violence guardam uma influência enorme sobre o meu imaginário, e quando escrevi Nosebleed, procurei capturar um pouco o espírito de todas essas coisinhas que me marcaram. Para os amigos que desejam conhecer uma parte pouco conhecida da guerra do Vietnã, Dead Presidents tem muito a agregar; para aqueles que não querem ler muito nas entrelinhas e apenas desligar o cérebro com um suspense eletrizante que te agarra pelo pescoço e não solta, também é a opção correta. Guarnecido por uma das melhores trilhas sonoras já concebidas para um filme, Dead Presidents é um excitante passeio pelo túnel do tempo, uma janela para os anos 70, para dias em que se usava calças boca de sino e camisas abertas até o peito, drogas e discoteca eram tendência, Barry White cantava Just The Way You Are, e Burt Reynolds era Rei.

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