sexta-feira, 7 de dezembro de 2012

Session 9: as vozes de Mary Hobbes e os demônios de Gordon Flemming


Olá, pessoal. Nesta oportunidade, discorrerei sobre aquele que a meu ver foi um dos melhores filmes de horror que conheci em toda a vida, um trabalho à altura de clássicos imortais tais como w delta z e Hellraiser. Classificá-lo como “filme de horror”, todavia, parece-me desmerecedor, porque a trama a ser abordada transcende um gênero específico, é muito mais do que um mero filme de terror. “Session 9” é um triunfo cinematográfico incomum, raro caso de convergência de elementos distintos e afiados que se somam em torno de um objetivo comum. O resultado é este filme, pelo qual o seu diretor Brad Anderson e o seu artista principal Peter Mullan serão para sempre lembrados.

Quando lecionava na faculdade de cinema, antes de começar a rodar filmes, o diretor Brad Anderson apanhava a Rodovia 93 para chegar ao campus mais rapidamente. No caminho, chamava-lhe a atenção o Hospital Psiquiátrico de Danvers, sempre ao longe, escondido entre colinas, silencioso e imponente. Anderson refletia sobre como o lugar parecia apropriado para sediar um filme de horror psicológico, principalmente em suas condições atuais, abandonado e decadente, mais semelhante a uma recordação distante, um gigante inerte e nostálgico, retrato dos tempos quando não se sabia como se tratar as pessoas que sofriam de transtornos mentais. Brad agregou ao seu desejo de filmar em Danvers uma história contemporânea verídica, um terrível homicídio ocorrido em Boston, alguns anos antes, em 1994, perpetrado por um homem absolutamente comum, um cavalheiro chamado Richard Rosenthal, vendedor de seguros, casado, um cidadão socialmente impecável. A esposa havia sofrido um aborto, e a perda do filho pareceu agravar o stress emocional advindo do trabalho como vendedor. Um dia, ao chegar em casa, e descobrir que a mulher havia queimado o jantar, ele a atacou violentamente e a esquartejou. Depois, distribuiu os membros pelos cantos da casa. Após o homicídio, deixou a casa como se nada importante tivesse acontecido, e retomou o dia a dia corrido da empresa. Insuspeito, Rosenthal apenas cessou de dormir em casa para passar as noites em um motel, como se tudo o que tivesse acontecido resumisse-se a uma costumeira briga de marido & mulher. Quando finalmente foi apanhado, afirmou que realmente não conseguia se lembrar do momento em que a executara e desossara. Havia enterrado o instante dentro de si, e sublimado os eventos. Era como se no momento do ódio, a faceta desconhecida de sua personalidade tivesse mostrado as garras feias, com as quais retalhou a esposa e pôs tudo a perder em um momento de insanidade absoluta, para depois retornar à obscuridade, quando a sua "parte normal" recuperou as rédeas da fachada.

Brad Anderson incorporou todos os elementos dramáticos e humanos deste horroroso caso da vida real, e a partir da premissa – elementos da história de Richard Rosenthal somados ao legado do Hospital Psiquiátrico de Danvers – começou a escrever o roteiro de seu melhor filme, “Session 9”. Encorajado por performances magistrais (não há dúvidas, todos os atores principais deram os desempenhos definitivos de suas carreiras) e cinematografia granulada (por Uta Briesewitz), que traz à fita um tom quase documental, às lentes o olhar do “cinema verdade”, Brad Anderson garante seu merecido espaço como uma das vozes mais importantes do cinema moderno. “Session 9” é a estória de homens comuns, ordinários, trabalhadores estilo “blue collar”, fadados à tragédia a partir do momento em que a equipe ganha a licitação da Prefeitura para realizar o trabalho de descontaminação e limpeza do Hospital Psiquiátrico de Danvers, a se dar no curso de uma fatídica semana onde tudo o que poderia dar errado dará.

Gordon Flemming (Peter Mullan), imigrante irlandês de meia idade, administra a sua empresa Hazmat a duras penas. É o único trabalho que conhece, e o faz como ninguém. A sua equipe se especializou no tratamento de lugares abandonados, a limpeza e a remoção de materiais potencialmente nocivos à saúde, até mesmo cancerígenos, como o amianto. No curso dos últimos anos, sua presteza lhe valeu contratos lucrativos com a prefeitura de Boston no curso dos últimos anos. Ultimamente, porém, a empresa não anda bem das pernas. Para desestabilizar a frágil situação financeira, a mulher de Gordon acabou de dar à luz a primeira filha do casal, a bebê Wendy. Gordon jamais se imaginou no novo papel de papai, até porque a mulher também já passou do período fértil da maternidade, com seus (aparentes) quarenta e poucos anos. O irlandês quer o melhor para a esposa e a filha, e o sacrifício com que cuida da Hazmat é prova da sua preocupação em vê-las sempre financeiramente confortáveis. David Caruso interpreta Phil, o melhor amigo de Gordon, segundo homem no comando da Hazmat. Experiente e observador, Phil sabe que o amigo anda emocionalmente descompensado, e quando a turma vence a licitação para o trabalho de limpeza do gigantesco Hospital Psiquiátrico de Danvers, a se dar em tempo recorde de uma semana, teme pelo pior.

Completando a equipe, temos Jeff (Brian Sexton III), um adolescente ingênuo, generoso e de boa natureza, em seu primeiro verdadeiro trabalho, ele também é sobrinho de Gordon; Mike (Stephen Gevedon), ex-estudante de Direito, que recentemente abandonou o curso e foi repreendido pelo pai, brilhante advogado respeitado pela comunidade, que guardava grandes planos para o filho, por sua vez em busca da própria identidade, livre das pressões familiares; e Hank (Josh Lucas), o mais amargo da equipe. Desapontado com os rumos que a vida tomou, graças às próprias escolhas pobres, Hank sonha com a sorte grande, com a guinada no destino que finalmente virá para tirá-lo de um trabalho assalariado e torná-lo rico, da noite para o dia. Sua ambição selará seu terrível destino. Hank e Phil não se bicam, e para adicionar dor à miséria, Hank “roubou” a namorada de Phil. Você compreende imediatamente que o trabalho vindouro oferece os ingredientes certos para a panela de pressão: cada qual com as suas dores e dramas peculiares, e ao redor, o Hospital Psiquiátrico, um lugar que mesmo abandonado há décadas guarda uma carga negativa pesadíssima, esmagadora, principalmente para pessoas tão emocionalmente abertas a sugestões.

Desde o primeiro dia de trabalho, as coisas não vão bem. A tensão entre Phil e Hank eletriza a atmosfera. A área a ser contemplada é enorme, e o grupo precisará de muita sorte (e trabalho incessante) para acabar com a limpeza dentro do espaço de uma semana somente. Revirando caixas no depósito, Mike descobre uma que contém rolos antigos de filmes, nove rolos no total para ser exato, rotulados como Sessão um”, “Sessão dois”... O último rolo é a “Sessão nove”. Curioso, Mike passa a escutar os tapes. A partir daí, o diretor Brad Anderson parece traçar um paralelo entre o drama revelado nas fitas com a saga familiar que ocorre no presente, protagonizada por Gordon e os amigos. Pelas fitas, descobrimos o caso de uma garota chamada Mary Hobbes, uma menina comum, nos anos 50 ou 60 (jamais sabemos ao certo, mas definitivamente em um time frame entre as duas décadas), criada em um lar equilibrado e feliz, composto pelos pais e irmão Peter. Em uma noite de Halloween, o irmão pregou uma peça na menininha, dando-lhe um tremendo susto no porão. Mary caiu sobre a boneca de porcelana e cortou a mão. Naquele instante, o ódio tomou conta de sua alma. Mary apanhou a faca de escoteiro do irmão, trucidou-o sem dó, e depois eliminou os pais, que dormiam no quarto, insuspeitos. Depois de socorrida no hospital psiquiátrico, Mary não conseguia se recordar dos homicídios. Aparentemente, os eventos traumáticos fragmentaram a personalidade de Mary, e para se proteger da horrorosa realidade, desenvolveu mais 3 outros egos para escapar da culpa. Mary incorporava 3 personalidades: a menininha Princesa, que encapsula a doçura infantil, a simplicidade da época em que Mary e sua família haviam sido felizes; o garotinho Billy, que “tudo enxerga”; e finalmente o malévolo “Simon, o demônio”, a representação da maldade maliciosa e sem fim que efetivamente provocou o homicídio naquela noite de Halloween, tantas décadas atrás.

Simultaneamente, no presente, estranhos eventos passam a amaldiçoar o progresso do trabalho dos homens, durante a semana em Danvers. Gordon parece à beira de um colapso nervoso, sempre esgotado e tristonho. Na noite do segundo dia, quando regressa aos corredores do hospital para saquear um cofre que descobrira no subterrâneo, Hank desaparece sem deixar pistas. Vozes desencarnadas parecem colocar ideias perigosas nas mentes fragilizadas dos homens. Estes começam a se voltar uns contra os outros. O horror vai se assentando gradualmente, como um lençol molhado, envolvendo-os em um pesadelo do qual não encontrarão saída, ao mesmo tempo que Mike segue escutando as fitas antigas e descobrindo os fatos por trás da história de Mary Hobbes, que jamais deixou o hospital, tendo morrido por ali já uma mulher de idade.

O elemento “vozmerece destaque neste filme. Os rolos de fita juntam as peças do caso de Mary Hobbes através do diálogo entre a moça e o psiquiatra. Também foi uma “voz” desencarnada que Gordon escutara, ao contemplar pensativo os compridos corredores do hospital durante o tour oferecido pelo servidor da prefeitura, em preparação para o trabalho, no início do filme. “Olá, Gordon. Você consegue me ouvir...”, saudara a voz. Isso pode sugerir a presença de uma energia sobrenatural no hospital psiquiátrico, talvez um espírito que motivado pela sensibilidade aguçada de Gordon conseguiu estabelecer contato. Ainda, a voz também pode ter se originado, ironicamente, de sua própria mente. Quando a menininha Mary matou o irmão e os pais, também escutou semelhante voz. O ódio falou mais alto do que a razão, e em um instante, os golpeou a facadas até a morte. Consoante a interpretação, “Simon” tanto pode ser tomado como um demônio, um espírito malévolo, quanto como uma faceta temerosa da psique de qualquer um de nós. Quando nos vemos presos em um engarrafamento, e realmente desejamos matar o motorista do carro mais à frente responsável pela lentidão – eis uma representação de nosso “Simon”. Acontece que, em seguida, sufocamos o pensamento ruim, reprimimos os nossos instintos mais primitivos, afinal a vida em sociedade assim o exige. Muito provavelmente, quando Mary caiu sobre a boneca de porcelana e cortou as mãos, a voz que lhe disse “mate os desgraçados” se deveu ao ódio dentro de si, e apenas não tenha conseguido desarmá-la a tempo de evitar as facadas.

Eu não conhecia o trabalho de Peter Mullan, mas então assisti a “Session 9”, e só tenho palavras de profunda admiração à performance majestosa deste artista excepcional. Jamais assisti a um desempenho que tenha provocado tantos sentimentos contraditórios em mim. O homem me fez chorar e solidarizar por toda a situação absurda a que seu personagem foi arrastado, um senhor de meia idade, cansado, movido por todas as boas intenções do mundo, destruído pelas surpresas horrorosas que a vida joga nas nossas caras. Há uma cena, jamais me esquecerei, onde eu pensei “Meu Deus, como pode, a Academia ter deixado passar despercebido o trabalho deste extraordinário ator?Esse homem merecia um Oscar!”. Refiro-me ao momento em que Gordon, exausto e psicologicamente drenado,descansa, sentando em um tronco de árvore derrubado, na encosta, em meio a um gramado muito vasto sem fim, às margens do Hospital, e o seu sobrinho aproxima-se para conversar, oferecer uma espécie de consolo, apoio moral. A forma como Peter reage ao carinho do sobrinho, a maneira como o rosto entrega que se encontra à beira das lágrimas, traz um nó a minha garganta. Sempre terei todo o respeito e admiração pelo grande Peter Mullan – esse senhor comanda “Session 9” e deixa um legado na forma de um personagem trágico que perdurará na imaginação de quem se presentear com a chance de assistir ao filme.

David Caruso é o ator mais conhecido do elenco. Muitas pessoas dizem que ele é um artista de uma nota só, mas apreciei seu desempenho como o melhor amigo. Em “Session 9”, Mullan é a emoção, Caruso a voz da razão. Caruso é quem tenta evitar que toda a situação se perca de vez. Os demais atores estão excelentes, com especial menção a Stephen Gevedon, que compõe com delicadeza o complicado “Mike”, o rapaz que deu um tempo no curso de Direito para buscar a própria identidade. Gevedon, aliás, tem uma das melhores cenas do filme, quando compartilha os conhecimentos sobre a história do Hospital de Danvers com os companheiros, e explica por que o mesmo foi fechado em meados dos anos 80, citando o caso de uma tal Patrícia Willard e a síndrome do ritual satânico de abuso sexual que foi febre nos consultórios psiquiátricos nos anos 80.

Brad Anderson aproveita ao máximo o potencial do Hospital. O sentimento de abandono que perfila o filme emana como quentura através da tela. Por sobre as cabeças dos personagens, paira o sentimento da solidão, da tristeza, vidas perdidas e desperdiçadas ao sabor da lâmina da guilhotina. Durante as filmagens, o ator Peter Mullan desabafou sobre as dificuldades de atuar em um lugar tão carregado. Disse que quando faziam uma cena na cobertura do prédio principal, ocorreu-lhe o que aconteceria se simplesmente pulasse. Peter disse que não tinha motivos para se matar, não estava deprimido, porém ao realizar a cena no telhado, o sentimento simplesmente o invadiu. Ele falou que estava convencido de que a sugestão partira do lugar. Isso pode ser visto em um dos extras do DVD norte-americano de “Session 9”.

O diretor fez excelente uso do áudio. As sessões reveladas baseiam-se exclusivamente nas conversas travadas entre Mary Hobbes e o psiquiatra, mas ainda assim podem ser pontuadas como as mais atmosféricas e arrepiantes cenas. Os diálogos inusitados onde Mary alterna as personalidades, transitando entre a garotinha Princesa, o menino Billy, e por fim Simon, o demônio, representam um espetáculo a parte, e reforçam a perspectiva de desalento que o filme já veste desde a primeira cena (uma tomada de ponta cabeça de um corredor abandonado onde ao final resta uma cadeira desocupada, uma imagem verdadeiramente evocativa).

É importante salientar que mesmo 5 minutos antes dos créditos, você se verá à beira da poltrona roendo as unhas sem antecipar como o drama terminará. Finalmente, quando conclui, “Session 9” nos deixa com o sabor amargo que todas aquelas pessoas que viveram em Danvers devem ter experimentado em uma base diária: a desesperança, a falta de crença na redenção, o horror de almas fragilizadas em um mundo que afinal de contas nada mais é do que uma versão infinita de um Hospital psiquiátrico sem regras, cheio de loucos ainda mais perigosos, que há muito se desumanizaram e deixaram de olhar para os semelhantes vulnerabilizados. Na ausência de Deus, pela via da falibilidade humana, o Diabo faz a festa. Como diz Simon, o demônio, na assombrosa tomada final de “Session 9”: Eu vivo nas pessoas fracas e feridas, Velhinho.

Todos os direitos autorais referentes ao trailer acima pertencem a Universal-USA Films. O uso do vídeo é apenas para o propósito de ilustrar a resenha.

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