sábado, 1 de novembro de 2014

A Garota Morta ("The Dead Girl", Karen Moncrieff, 2006) "Mas com filhos, não importa o que você tenha feito ou o quanto tenha errado, Deus sempre encontra um jeito de nos dar uma segunda chance".

Apresentado em cinco segmentos, este quebra-cabeça psicológico junta suas histórias para compor as circunstâncias da trágica morte da garota do título. Ao longo do filme, aprenderemos mais sobre a menina morta e, mais importante, como sua vida esteve intrinsecamente ligada a dos outros personagens a quem seremos apresentados. O primeiro segmento, A Estranha, trata de uma jovem chamada Arden (Toni Collette), que jamais teve a auto estima necessária para correr atrás de seus sonhos ou viver uma vida normal graças `a mãe inválida e abusiva (Piper Laurie), com quem mora em uma cidadezinha fora de Los Angeles, onde pouco acontece. Durante um passeio pelo leito do riacho, Arden topa com o corpo de uma garota, e comunica o ocorrido à Polícia. Logo, torna-se uma espécie de "celebridade local", para a frustração da mãe, que a repreende por não ter se mantido calada. Quando vai fazer compras no mercadinho local, chama a atenção de Rudy (Giovanni Ribisi), um dos funcionários do estabelecimento. O rapaz a ajuda a colocar os pacotes no carro, e parece genuinamente interessado em conhecê-la melhor. Ele a convida a sair naquela noite, quando deixar o trabalho por volta de 23:00. Enaltecida pelos elogios, Arden acaba cedendo depois de alguma relutância. Ao voltar para casa, pela primeira vez em um bom tempo, parece dar atenção à própria aparência. Ela pinta os cabelos e usa batom. Quando a mãe a vê com a toalha na cabeça, deduz que Arden está se preparando para um encontro. Amargurada, arremessa um copo de leite na cara da filha, e diz que Deus levou o filho errado (o irmão de Arden é falecido). A discussão vira briga, quando Arden finalmente reage à altura dos abusos que até então costumava escutar calada, e resolve se libertar daquele inferno particular. Ela põe as roupas na valise e deixa a idosa para trás. Um pouco depois de 23:00, ela comparece ao encontro com Rudy. No carro, o papo volta-se para a garota morta. Rudy faz perguntas sobre as circunstâncias da descoberta do corpo, e de um modo estranho parece saber bastante sobre o homicídio. Ele conta a história de outro serial killer local, o assassino da estrada 405, um maníaco que costumava atacar mulheres. Ao ser pego, a Polícia veio a descobrir que tinha uma extensa folha corrida, problemas datando de quando tinha apenas doze anos, e fora pego roubando peças íntimas de mulheres. Quando Arden lhe pergunta por que alguém cometeria tais assassinatos, Rudy responde que provavelmente o tenha feito por questões não resolvidas com a figura materna. Rudy a leva a um lugar isolado para namorar. A cena se desenrola como se a qualquer instante Rudy fosse revelar-se como o assassino da garota morta. Ocorre que não é nada disso, Rudy não é nenhum assassino, apenas tem interesse por crimes e toda a psicologia envolvida. Arden, no entanto, fantasia que será morta pelo estranho, e fragilizada por anos de abuso da mãe dominadora, parece gostar da ideia. Rudy fica perturbado com a entrega de Arden, que se despe e se deita de uma forma como se esperasse a morte. Ele explica que jamais pensou em lhe fazer mal, apenas a convidou pois estava interessado e gostaria de tê-la como namorada. O gesto do homem parece salvá-la do desespero, e Arden resolve seguir com a vida. Na manhã seguinte, antes de partir com Rudy, liga para a Delegacia, lhes explica que deixou a mãe doente sozinha, e que ela poderá vir a precisar de assistência. Dentro da cabine, Arden encontra um cartaz de pessoa desaparecida. A menina estampada no cartaz (que não é a garota morta encontrada por Arden) nos levará ao segundo segmento.

A Irmã. Leah (Rose Byrne) é uma jovem bonita e inteligente que teria motivos de sobra para curtir as coisas boas da vida. Uma tragédia de dezesseis anos atrás, todavia, custou-lhe uma existência comum e ensolarada. Leah depende de antidepressivos para funcionar normalmente no dia a dia. Ela é estudante de Criminologia forense, e apesar de seu colega (James Franco) demonstrar muito carinho e parecer querer algo mais que a amizade, sua vida emocional vai de mal a pior. Há dezesseis anos, a irmã de Leah, Jenny, foi abduzida de um parque, possivelmente por algum pedófilo. Apesar das buscas incessantes, a família jamais conseguiu elucidar o mistério do ocorrido no parque, naquela fatídica manhã. A mãe de Leah (Mary Steenburgen) parece não perceber o peso da cobrança depositada sobre os ombros da filha sobrevivente. Em uma conversa com a terapeuta, Leah confessa que tudo o que mais deseja é o fim daquele pesadelo. A resolução só viria quando o corpo fosse encontrado, recebesse um enterro digno, e então os pais e a irmã sobrevivente pudessem se abraçar, chorar e desabafar. Somente assim seria possível retomar algo mais próximo a uma vida normal. Uma pequena centelha de esperança surge na forma da garota morta ainda não identificada, que chega para reconhecimento. Leah crê que a moça guarda traços semelhantes ao de Jenny, e durante o exame prévio, uma discreta tatuagem no antebraço chama a atenção. A tatuagem traz grafada uma sequência, "12:13", e ao pôr o termo no Google, chega ao trecho bíblico de Gênesis 12:13, que fala algo sobre amor entre irmãs. Impressionada, Leah passa a acreditar que a busca da família está em vias de acabar, e que se de fato a identificação for confirmada, poderão finalmente dar a Jenny um enterro digno e enfrentar o luto saudavelmente. Ao discutir a possibilidade com os pais, a mãe se coloca irredutível. Ela chora e dá uma porção de desculpas para desacreditar a descoberta. "Os olhos não são os mesmos, o rosto também não", esbraveja, antes de ficar inconsolável. Essa senhora tornou o reencontro a missão de sua vida, e agora que deve levar em consideração a possibilidade de morte, não consegue lidar com os fatos. Visitando o quarto da irmã, Leah desabafa com o pai sobre o quanto é difícil acreditar que o pesadelo chegou ao fim. Fortalecida pela brisa de alento, Leah se recorda do convite do colega, e o surpreende ao comparecer a uma festa na sua casa, naquela noite. Feliz ao vê-la, o rapaz a leva ao balanço no quintal, onde conversam mais abertamente, e ela lhe revela que toma antidepressivos. Sensível, o rapaz vai quebrando a resistência, e acabam se beijando e depois fazendo amor. Na manhã seguinte, pela primeira vez em uma década, Leah acorda de bom humor, e o rapaz é carinhoso e doce quando precisam se despedir. Ele insiste para que Leah fique, mas ela precisa receber os laudos finais que confirmarão a identidade de Jenny. Em um duríssimo golpe do destino, testes apontam que a garota morta não é Jenny. O pesadelo não acabou. Leah é novamente arrastada para as trevas da depressão. Trancada no quarto escuro, Leah recusa os telefonemas do colega. Ela escuta às mensagens deixadas na secretária eletrônica, o rapaz igualmente devastado, louco para estar a seu lado naquele difícil momento para oferecer carinho e suporte. A depressão de Leah, todavia, deixou-a inteiramente inacessível. A família se reúne à mesa de uma diner para traçar a nova estratégia de busca, quando por não mais resistir à pressão Leah escancara a dura realidade na cara da mãe: ela deseja organizar uma cerimônia religiosa para Jenny, realizar um sepultamento de caráter simbólico, de modo que não apenas o espírito da menina como também seus familiares vivos possam reencontrar a paz. A mãe permanece resoluta, e retruca que não desistirá de Jenny, assim como jamais desistiria de Leah. Emocionalmente esgotada, a moça arranca de suas paredes todos os recortes sobre o caso e os queima. Como um lampejo de esperança, ela tem a humildade para ligar para o namorado e pedir ajuda, a aceitação como o primeiro passo para a recuperação.


A Esposa. Ruth (Mary Beth Hurt) é uma sofrida senhora que passou a vida cuidando de Carl (Nick Searcy), o marido emocionalmente distante e desapegado. O casal mora em uma casa ao lado do trabalho de Carl, um parquinho de rent-a-storage, conjunto de pequenas unidades utilizadas como depósito. Carl é o responsável pelo atendimento e administração das facilidades, porém na maior parte das vezes recai sobre os ombros de Ruth o ônus do cansativo trabalho. Recentemente, o marido vem se distanciando mais de casa, sempre com desculpas de que precisa dirigir para espairecer um pouco, apenas para voltar dois ou três dias depois sem oferecer explicações para a desapontada esposa. Ruth acredita que Carl relaciona com prostitutas e depois traz para casa toda sorte de doenças. Por um acaso do destino, está para descobrir o horroroso segredo do marido. Uma noite, quando já está com chaves em mãos a caminho da porta, Ruth o interpela. Como de costume, Carl é evasivo nas respostas, e quando Ruth se irrita e questiona sobre quando pretende voltar, o marido diz não saber ainda. Ruth começa a chorar, lamentando não entender por que ele a odeia tanto. Chateado, certo de que nada do que possa fazer irá consolá-la, Carl parte para seu passeio de carro. Na manhã seguinte, conforme esperava, Ruth se vê tendo de conciliar afazeres domésticos com o atendimento no depósito, pois Carl ainda não retornou, e o rapaz que costuma ficar em seu lugar também não deu as caras. Dois cavalheiros se apresentam procurando por uma vaga, e meio a contragosto, Ruth apanha a chave de uma unidade qualquer disponível. Para sua surpresa, ao mexer em um dos armários, encontra um saco plástico lacrado contendo peças íntimas de mulheres. Ela logo se recompõe e os leva a uma outra unidade. Mais tarde, ao examinar melhor o "depósito secreto" de Carl, descobre sandálias e pares de tênis femininos, mais peças íntimas sujas de sangue e até mesmo a carteira de habilitação de uma jovem da Califórnia. Investigando as páginas policiais do jornal local, intriga-se com a notícia sobre a oitava vítima de um serial killer atacando na região. A vítima?A moça cuja carteira de habilitação encontrou nas coisas de Carl. Quando o marido retorna naquela noite, Ruth está assistindo ao telejornal. Para testar sua reação, deixou sobre o bar a notícia sobre a oitava vítima, dobrada. Ela vê quando, pensativo, Carl apanha as folhas e dá uma rápida conferida. Ao se juntar à esposa na sala de estar para assistir à televisão, Carl fala qualquer coisa sobre obras na estrada. Ela menciona os arranhões no pescoço, a que Carl justifica como resultado de uma briga no bar. A esposa não o poupa, e volta a acusá-lo de sair por aí para satisfazer "perversões" com prostitutas. Apesar de inicialmente negar, Carl perde a cabeça e grita para que o deixe em paz e vá cuidar da própria vida. Ele deixa a sala apressado, sob as ameaças da mulher, que lhe avisa saber o que tem aprontado. Pela janela da cozinha, Ruth ainda o enxerga abrindo o porta-malas para apanhar uma sacola, provavelmente as roupas de uma nova vítima. Ela acaba cochilando, e quando Carl finalmente retorna, agora com os ânimos mais calmos, prepara o jantar. Ruth faz parecer casual ao perguntar a Carl se conhece alguma daquelas garotas mortas, e ele se limita a dizer que não. Depois que o marido adormece, Ruth abre o depósito usado por Carl, e encontra roupas ensanguentadas de alguma pobre nova vítima. Ela reúne todos aqueles itens macabros que o implicam nos assassinatos, e parte com o carro. Àquela hora da noite, na estrada quase vazia, ao passar ao lado de uma caroneira no acostamento, não tem como deixar de pensar nos terríveis crimes cometidos por Carl. Por um momento, pensativa dentro do carro, defronte à delegacia de Polícia, parece hesitante em entregá-lo. Por mais que tenha sofrido ao lado de Carl, para melhor ou pior, ele é a sua única companhia na terceira idade. Ao final, o compromisso ao marido fala mais alto, e ao invés de denunciá-lo, leva os itens a um terreno baldio onde toca fogo nas provas, apagando seus rastros.

A Mãe. Melora (Marcia Gay Harden) procura pela filha Krista (Brittany Murphy) desde 1993, quando aos 16 anos, decidida a deixar a casa dos pais, foi embora sem dar explicações. Eventualmente, Krista escrevia ou telefonava, todavia jamais pareceu inclinada a estreitar o relacionamento com a mãe. Melora sabia que Krista se mudara para Los Angeles, e agora está na cidade para tentar encontrar respostas. A Polícia a procura com informações de que pode tê-la encontrado. A garota morta achada por Arden, no primeiro segmento, é na verdade a filha perdida Krista. O delegado encarregado do caso procura assisti-la em todas as necessidades, e já que permanecerá na cidade por mais um dia, Melora resolve saber onde a filha morou pela última vez. Ela quer conhecer um pouco de sua vida naquele último ano. O delegado fornece o último endereço conhecido, um motel simples de beira de estrada. Melora procura o motel e conhece Rosetta (Kerry Washington), melhor amiga e ex-colega de quarto de Krista. Inicialmente identificando-se como repórter, Melora consegue se aproximar e, por uma quantia, tem franqueado acesso ao quarto que Rosetta e a filha costumavam dividir. Rosetta conta fatos da vida de Krista que Melora desconhece, como o fato de ter fugido de casa porque o padrasto costumava abusar sexualmente dela. Melora se divorciou alguns anos antes, porém jamais imaginou que o ex-marido estuprara a menina, ou que fora por sua causa que Krista fugira de casa. Para agravar o remorso, Melora ainda aprende que Krista sempre crera que a mãe sabia de tudo, e no entanto preferira o marido. Quando Melora começa a esvair-se em lágrimas, Rosetta percebe que a visitante não se trata de repórter, mas da mãe da falecida amiga. Assim como Rosetta, Krista fazia a vida na rua como garota de programa. O passado de Rosetta, também igualmente perturbador e cruel, jamais lhe deu escolhas. Apesar de durona e cínica, Rosetta consegue nutrir alguma empatia por Melora, abrindo-se mais a sua presença. Ela fica tocada quando a mulher se abraça a uma foto de Krista e começa a desabafar. Melora a leva para almoçar, quando as duas têm oportunidade de conversar melhor. Rosetta conta que, por um tempo, a vida de Krista pareceu entrar nos eixos. Ela havia deixado as drogas para trabalhar em um salão, e queria juntar dinheiro suficiente para trazer a filhinha Ashley para morar com as duas. Para isso, vinha acumulando o trabalho no salão com outros dois, o que com o tempo a deixou tão exausta que a estimulou a consumir drogas para segurar o rojão. Inevitavelmente, as drogas causaram a fricção que lhe custou o trabalho no salão e a devolveu à mesma difícil situação. Melora vislumbra a chance da redenção quando Rosetta menciona a existência de Ashley. A menininha havia sido deixada no modesto apartamento de uma senhora cheia de crianças, que por uma determinada quantia por mês, cuidava da garotinha. Mesmo distante, quando viva, Krista costumava visitar a filha e lhe escrever cartas, ainda que a criança não soubesse ler ainda. Ela não queria que a menina crescesse a odiando, Rosetta explica. Com muito cuidado, Melora abraça a menininha, e dá dinheiro à senhora como pagamento por seus serviços. Ela se apresenta como avó, e a leva consigo. De volta ao hotel onde ficará até o dia seguinte, quando deixará Los Angeles, ela consola a criança, dá banho, põe para dormir, e cuida de Ashley com amor de mãe, aliás, duas vezes amor de mãe, vez que é avó. Depois que Ashley pega no sono, Rosetta lhe pergunta se ficará com a garota. Melora responde que sim. Comovida, Rosetta conta que por várias vezes pensou em pegar a garota, e só não o fez por não conseguir se sustentar. Pela primeira vez, toda a fachada durona de Rosetta cai por terra, e ela também chora, vocalizando o remorso por não ter mostrado mais a Krista o quanto a amava. As duas se abraçam. Na manhã seguinte, Rosetta entrega a Melora um retrato de Krista, onde aparece feliz e sorridente. No banco traseiro, Ashley está animada, comendo salgadinho. Melora a levará e a criará como sua filha. Em um momento muito emocionante, Melora estende sua mão generosa à Rosetta, dizendo que se quiser pode vir morar com as duas, endireitar a própria vida. A única coisa que Melora não toleraria seria uso de drogas, mas se Rosetta se comprometesse a se esforçar, poderia vir morar com avó e neta. Por ora, Rosetta prefere esperar. De toda sorte, Melora lhe deixa o endereço, para que escreva quando quiser. Pelo retrovisor, Melora olha para a menininha, feliz e à vontade. Juntas, embarcam em direção a um novo amanhã ensolarado, em uma cena que após todas as trevas, conclui o drama da criança com uma promessa de esperança e felicidade.

Depois de conhecermos as histórias de tantas pessoas ligadas ao mistério principal, chega o segmento que nos revelará quem efetivamente era Krista, A Garota Morta. É manhã do dia do aniversário de Ashley, e faz muito tempo que Krista não a vê. Ela compra um lindo urso de pelúcia. Agora, só precisa de uma carona a Norwalk. Tarlow (Josh Brolin), o cafetão namorado, não parece muito inclinado a quebrar o galho. Nós os vemos no shopping, onde Tarlow lhe dá uma bela joia com a palavra "Comprometida". Apesar de encantada com o presente, ela confessa que preferiria uma carona, pois quer chegar a tempo de não deixar a data passar em branco. Na praça de alimentação, uma garotinha chega inocentemente a seu lado. Revelando um jeito especial com crianças, Krista faz uma brincadeira que faz a menininha rir. A mãe chama a garota, pedindo que não a incomode, mas Krista diz que está tudo bem. A moça conta que a filha tem três anos de idade, a mesma idade que Ashley estará completando naquela data. No carro, ela se recorda de uma ocasião na infância, quando disse a mãe que queria um boneco de ventríloquo em particular, e ela apareceu com um similar, mas muito tacanho, o que a deixou desapontada. Ela se lembra de ter fingido felicidade, porém conta que a mãe sempre procurava dar brinquedos ou coisas que fizessem parte de promoção de catálogo. Krista diz que deseja que Ashley tenha tudo o que quiser, não o tempo inteiro, para não ficar mimada, mas não quer que cresça com as mesmas desilusões. Vemos que apesar de a vida a ter colocado em uma delicada posição - Krista não tem emprego fixo, e precisa se prostituir para sobreviver - sonha em ser a melhor mãe possível, o que tornará seu fim especialmente trágico. Tarlow acaba cedendo aos pedidos, e ela não consegue conter a excitação de saber que logo mais estará vendo a filha. Eles estão passando a tarde na casa de Tarlow, Krista escrevendo um cartão para acompanhar o presente, quando o rapaz recebe um telefonema urgente do trabalho. Quando Tarlow se desculpa, Krista se enfurece. O cafetão insiste que se mandar o urso pelos Correios, chegará a tempo, mas a garota não quer saber. Os dois têm uma discussão feia: Tarlow sai de casa cantando os pneus, Krista apanha o urso de pelúcia e trata de se pôr a caminho. Ao voltar para o motel onde mora com Rosetta, a encontra toda machucada. Tom, o namorado, deu mais uma de suas habituais surras. Possessa, Krista promete retaliação. O vínculo que as une é muito forte, e Krista realmente a ama. Rosetta tenta argumentar para que Krista não se envolva, mas a namorada não se deixa demover. Ela pega a moto emprestada da senhoria, e dirige até a boca de fumo onde Tom costuma ficar com prostitutas. Em um primeiro momento, ela leva a pior, pois Tom a derruba com um murro, mas aproveitando um deslize, vira o jogo e o acerta com o cano. Ela ainda picha seu carro, quebra as janelas e jura matá-lo se voltar a tocar em Rosetta. Quando a moto morre, Krista se vê à beira da estrada, com a sacola do urso nas costas, solicitando carona. Ela ainda aproveita a oportunidade para ligar para Rosetta, quando muito emocionada conta que a vingou, e fala sobre o quanto a ama e o quanto gostaria de escutá-la dizer o mesmo. Exausta e toda dolorida por conta da surra, Rosetta não tem presença de espírito para corresponder a declaração, e pede para desligar, pois precisa dormir. Como sabemos, mais tarde, Rosetta se arrependerá amargamente por não ter dito que a amava, mas então não tinha como imaginar que foi a última vez que conversaria com Krista. É noite fechada, e fora luzes distantes do centro de Los Angeles e a duma amarelada dos postes altos, não há sinal de civilização, até que um carro estaciona ao lado do meio fio. Krista embarca no carro dirigido por Carl, o marido de Ruth que também é o insuspeito serial killer responsável pela morte de oito mulheres. Inocentemente, Krista comemora quando Carl se oferece para lhe dar carona para Norwalk. Já passa de meia noite, e com a voz embargada, Krista revela a natureza de sua tatuagem, "12:13", o horário em que Ashley nasceu. Ela segue tagarelando que estará ao lado da menininha quando acordar, fará brigadeiros para a menina, aproveitarão todos os momentos... Vemos o perfil de seu rosto bonito porém simultaneamente maltratado pela vida, iluminado pela alegria que a lembrança da filha lhe traz. Infelizmente, como sabemos, o destino não permitirá a reunião, e Krista jamais dará o urso e o abraço que tanto deseja, pois cometeu um terrível erro ao entrar no carro de Carl e sua vida se acabará tragicamente na data do aniversário da criança.

Um dos últimos filmes da saudosa e inesquecível atriz Brittany Murphy, A Garota Morta foi rodado em 2006, quando sua carreira não vinha particularmente bem, e grandes projetos não chegavam mais às mãos de seus agentes. Pouquíssimo visto, foi exibido no circuito alternativo por apenas duas semanas, não recuperando nas bilheterias sequer os custos de produção, o que foi mais um duro golpe do destino da atriz, vez que além de drama fenomenal, traz seu definitivo desempenho. Triste, contundente, sombrio e surpreendentemente humano, A Garota Morta é um filme que merece ser redescoberto e admirado, principalmente por cinéfilos que se recordam de Brittany Murphy primordialmente por As Patricinhas de Beverly Hills. Seguindo uma generosa tendência recente, A Garota Morta não se firma em uma única protagonista. A sua força reside na teia de interessantes personagens que cria em torno do mistério principal. Sustentado por performances excepcionais de um vasto elenco de nomes muito talentosos, o filme reafirma a crença de que não há papéis pequenos, a todos concedida a oportunidade de brilhar. 

Estilisticamente, o filme adota a mesma proposta do ótimo Crash No Limite, de Paul Haggis (não confundir com o brutal suspense homônimo de David Cronenberg lançado em 1996), uma miscelânea de vidas perdidas que no curso de uma noite se esbarram com resultados imprevisíveis pelas vias de Los Angeles. O que A Garota Morta guarda como carta na manga é uma história mais trágica e sensível, em torno da qual os diferentes dilemas de seus personagens orbitam. Um verdadeiro mergulho no lado mais escuro e perverso da vida, a experiência se torna mais claustrofóbica e poderosa graças à competência com a qual o filme foi rodado. Demonstrando habilidade em sua primeira vez atrás de uma produção de envergadura, a diretora Karen Moncrieff cercou-se de uma equipe de primeira para estrear com um trabalho verdadeiramente relevante, que lhe valeu uma promissora carreira (ela dirige o novo filme da estrela Kate Beckinsale, The Trials of Cate McCall) e ainda revelou o potencial de muitos artistas que se tornariam astros nos anos por vir (Kerry Washington & Rose Byrne & Josh Brolin).

Em sua primorosa fotografia, reminiscente do extraordinário Menina de Ouro, do diretor Clint Eastwood, A Garota Morta parece em iguais, generosas doses granulado, melancólico e deprimente. O filme veste um véu sombrio, mas ocasionalmente permite-se instantes de pequenas, simples alegrias, que tão exponenciais face ao contexto sufocante e desesperançoso mais se assemelham a momentos de absoluta glória, a entrada de um sol radiante para afastar a escuridão, mesmo que por alguns frágeis minutos. O filme segue nessa linha de montanha-russa de conflitantes emoções – horror, desesperança, fé, alegria – e Moncrieff usa a perícia de sua equipe ao máximo. Em seu segmento final, a história da "garota morta", o filme me lembra a atmosfera criada por Morten Soborg para o apavorante suspense w Delta z, principalmente na cena em que Krista procura conversar com a amiga por um telefonema que faz de uma cabine: você a enxerga ali, diminuta, insignificante (o take é realizado a uma certa distância), a noite fria e indiferente, postes muito altos deitando uma luz fraca e amarelada sobre a cena, neon borrado vindo de vitrines de comércios fechados, à beira da estrada, composição perfeita para um cenário de abandono e oportunidades perdidas.

Produzido com um orçamento modesto, A Garota Morta não parece apenas um trabalho de amor para sua diretora. O elenco, composto por nomes de peso, catapulta o filme a um patamar realmente invejável, não deixando dúvida alguma de que aquelas pessoas estão envolvidas por compartilhar do mesmo entusiasmo de Moncrieff pelo material. Famosos pelos grandes filmes em que atuaram – quem não se recorda de Rose Byrne em Insidious, por exemplo? - os atores devem ter aceitado o trabalho pelo pagamento de escala, apenas pela oportunidade de terem seus nomes vinculados a uma obra tão dramaticamente importante. Rose Byrne, cujos olhos tristes sempre a tornam muito expressiva, dá uma grande performance como a irmã Leah, uma jovem mulher que deixa a flor da juventude ir embora anestesiada pelo luto que é forçada a vestir, graças à incapacidade da mãe de aceitar os fatos da vida. Byrne ilustra a batalha diária da vida a partir de momentos absolutamente ordinários, através dos quais enxergamos como a depressão vem corroendo e arruinando o período que teoricamente deveria ser o melhor, mais produtivo de sua vida. Com muita dignidade, James Franco dá vida ao colega de trabalho que consegue "enxergar além", e, com muita paciência, desarmar a couraça que a personagem de Byrne veste para conseguir conviver com a terrível dor. A cena quando primeiro consegue "rachar" a armadura – os dois no balanço, alheios à festa, quando Franco a beija – só funciona em razão da honestidade que ambos investem na cena. Diferente de filmes românticos onde tudo parece "muito perfeito", aqui o primeiro beijo traz um gostinho especial de sinceridade. Nenhum dos dois parece certo em dar o primeiro movimento, e quando Franco a toca, o faz de maneira hesitante, até o beijo acontecer. O natural constrangimento até o instante em que seus lábios se conectam dá o tom ao tratamento que o roteiro concederá ao restante de seus personagens e à forma como contará a história: diferente das resoluções fáceis de produções maiores e formuláicas, A Garota Morta captura a vulnerabilidade humana e as contradições de seus personagens por lentes mais honestas. Nem sempre parece bonito, mas jamais soa desonesto ou falso. Em papéis menores, veteranos como Bruce Davison, Mary Steenburgen, Piper Laurie e Toni Colette prestam valiosas contribuições. Mais lembrado pelo seu importante papel em Longtime Companion, uma das primeiras produções a abordar o impacto da AIDS na comunidade gay, Davison interpreta o pai de Leah, o único capaz de enxergar o mal causado pela cega obstinação da esposa em apegar-se à ilusão do retorno da filha. Em seus momentos ao lado de Byrne, Davison emana o calor e a compreensão que a salva momentaneamente de seu dilema. Piper Laurie basicamente resgata sua personagem mais famosa, a Margareth White do primeiro Carrie, A Estranha (a versão dirigida pelo grande Brian De Palma nos anos 70). Aprisionada à cama por alguma enfermidade, sublima a frustração cobrindo a filha de abusos verbais. Ainda assim, consegue alternar a perversidade com pequenas, imprevisíveis revelações de vulnerabilidade, como quando descobrimos que tem medo de dormir sozinha e só consegue repousar se a filha estiver presente. Toni Colette ganhou notoriedade como a mãe solteira sofredora de O Sexto Sentido, mas felizmente jamais pareceu o tipo de atriz que ambicionava o "estrelato", optando por um caminho mais artisticamente satisfatório. Em A Garota Morta, compõe com muita sensibilidade a personagem de uma "criança" presa ao corpo de mulher adulta. Os abusos psicológicos sofridos nas mãos da mãe a aleijaram de qualquer ferramenta social necessária para ao convívio em grupo, e o seu mundo parece resumir-se à enorme casa ou ao mercadinho onde conhece o personagem de Giovanni Ribisi, o homem que a incita a acessar a própria sexualidade e questionar seu lugar no mundo. Mesmo com o pouco tempo que lhe foi concedido, Mary Steenburgen causa forte impressão como a mãe apegada à irreal crença de que a filha desaparecida retornará. Ela acaba por destruir a vida da outra filha, que insiste em ficar a seu lado na cruzada que vem lhe custando uma existência normal e feliz. Outras magníficas performances também enriquecem o filme, e Marcia Gay Harden & Kerry Washington se completam maravilhosamente no penúltimo segmento, quando começamos a nos aproximar da verdadeira identidade da garota morta. Apesar de não se poder falar propriamente em uma única protagonista, ao lado de Brittany Murphy, Marcia Gay Harden e Kerry Washington capitaneiam a linha de frente, e às duas recai a difícil missão de "definir o jogo" com algumas das cenas mais difíceis e memoráveis. Depois de toda a dor que vimos nas histórias anteriores, cabe às duas atrizes "equilibrar a balança", e conseguir fazer brilhar algum tipo de centelha de alento, em meio à escuridão. Se a jornada até o encontro das duas foi extremamente melancólica, ao menos a escuridão serviu a seu propósito, pois somente nos momentos mais sombrios conseguimos enxergar o sol em toda sua glória ao retornar - e o sol sempre encontra o jeito de subir para expulsar as trevas. Washington & Gay Harden comunicam essa mensagem em instantes muito doces e especiais, como quando A Mãe (Gay Harden) & Rosetta (Washington) visitam o pequeno apartamento onde Krista deixou a filhinha, e a vemos chorosa e confusa em meio a uma porção de outras crianças de sua idade. A forma como Gay Harden a chama para si e a abraça como própria filha muito bem simboliza a ideia da entrada do sol após uma noite que parece ter durado mais do que devia; a mesma sensação requentada de redenção ocorre quando lhe assistimos dando um banho na menininha suja, vestindo-a com roupas novas, dando de comer e depois a colocando para dormir. Quando as duas se despedem, a história das duas personagens felizmente termina em uma nota positiva, Melora levando a neta para criá-la como filha, e deixando o cartão para que Rosetta a procure, se um dia desejar deixar a vida terrível de garota de programa. No segmento encabeçado pelas duas, eu me recordei de um outro filme igualmente pouco visto, mas bastante especial, chamado Freedomland, com Samuel L. Jackson. Em Freedomland, Samuel L. Jackson interpretava um policial veterano investigando o desaparecimento do filho de uma sofrida mãe solteira. Ele acaba descobrindo a verdade: o menino não havia sido sequestrado, mas morto. É que para poder sair com o namorado, a mãe acabou dando um comprimido para dormir para o filhinho, que morre por uma reação inesperada ao remédio. Cheia de remorso e horror, ela forjou toda a história, ao final desvendada pelo detetive. O filme não a retrata como vilã, na verdade sentimos muito pela sua situação. Há uma cena bonita, no final, quando Samuel L. Jackson vai visitá-la na prisão, e eles têm esse bonita conversa, onde ele procura colocar as coisas sob perspectiva e lhe convencer que ainda terá outra oportunidade na vida para ser uma mãe melhor para outro filho. Ele entende a dor da moça, pois o caso acabou por forçá-lo a refletir sobre a própria vida, onde reconhece que não foi um bom pai, e que é dificílimo colocar uma criança neste mundo e cuidar (no filme, apesar de um brilhante tira, o Samuel L. Jackson não conseguiu ser um pai presente na vida do filho, que acabou na cadeia por alguma delinquência qualquer). Eu transcrevo aqui essa linha de diálogo emocionante, ponto alto de Freedomland, e talvez o melhor momento da carreira de Samuel L. Jackson "... E os meus amigos dizem, você não é culpado por ele ter parado na prisão, ele tem que assumir a responsabilidade pelo que fez. Mas cá entre nós, a culpa foi minha. Eu me sinto responsável porque ele é o tipo de homem que eu o ensinei a ser: egoísta, fora de controle. Eu nunca estive presente diariamente, e quando eu estava, ficava brigando com a mãe dele. É sim, era assim que eu era. Na época, eu não dava a mínima. Agora ele está na prisão, e provavelmente vai entrar e sair da prisão pelo resto da vida. Já é tarde demais, mas tudo o que eu quero agora é não abandoná-lo. Mas com filhos, não importa o que você fez ou o quanto você errou, Deus sempre acha o jeito de nos dar outra chance. Pode não ser com aquele garoto em particular. O que eu estou tentando dizer é que a graça de Deus é meio retroativa, e então todas as crianças dos casos em que trabalho são o meu filho, eles não têm o meu sangue, mas posso conviver com isso. E sou feliz. Minha vida é boa".

Esse comovente desfecho de Freedomland encapsula maravilhosamente a mensagem deixada após o fim de A Garota Morta, e fundamenta a minha opinião de que apesar de triste e sombria, essa história não deixa seu sofrimento obscurecer aquilo que a vida ainda tem a oferecer de belo, doce e generoso. Apesar do final trágico de Krista, a "garota morta", é através da menininha que deixa para trás que Deus encontra o jeito de dar uma segunda chance à mãe. Não exatamente a criança originalmente perdida - Krista - mas sua filhinha, neta de Melora, o que torna a segunda oportunidade uma bênção de Deus. Filmes podem ser ferramentas importantes pelo impacto com que transmitem uma mensagem, e entre os mais difíceis prefiro aqueles que encontram uma forma de homenagear as coisas boas da vida, por mais caótica e maluca que pareça. Eu me recordo de uma resenha que li sobre Boogie Nights Prazer Sem Limites, o filme com Burt Reynolds, sobre a ascensão e queda de um astro do cinema pornô dos anos 70 e a "família substituta" liderada pelo diretor interpretado por Burt Reynolds. O cavalheiro que escreveu a resenha - não me vem à memória seu nome - dizia que no cerne, se você conseguisse, como passe de mágica, subtrair toda a violência, as drogas, a sordidez e o sexo corrompido da história, o tema de Boogie Nights não diferiria de algo que você encontraria em um desenho da Disney estilo Rei Leão, por exemplo. Em desenhos da Disney, uma importante mensagem sempre é transmitida, e a mensagem subliminar de Boogie Nights parece clara: permaneça ao lado dos seus, vigilante e fiel a sua família, não deixe o poder corromper sua integridade, não torne seus pais os inimigos, o reino que se desune se destrói. Se você revisitar o filme, a mensagem parecerá convalidada pela trajetória de seus protagonistas: o personagem de Mark Wahlberg é acolhido pelo diretor e figura paterna interpretado por Burt Reynolds, juntos a turma se torna imbatível, e então chegam os anos 80, quando Mark Wahlberg & Burt Reynolds se separam após uma briga estúpida e os personagens vão se afundando em drogas e desespero, à medida que o mercado para o cinema pornô vai desaparecendo com a chegada da Era do Vídeo Cassete. A perspicaz descrição do autor cabe como luva ao filme A Garota Morta. Se os amigos conseguirem focar a mensagem principal, e não os elementos que o tornam uma jornada tão perturbadora, extrairão uma belíssima mensagem de fé e esperança.

Eu tirei tanto proveito de A Garota Morta para minha vida pessoal que mais tarde, quando ousei escrever a minha própria história, com meus próprios personagens, soube que precisava reutilizar o momento em que a mãe da garota morta consegue recuperar a netinha e levá-la consigo para uma vida melhor. Em meu roteiro, Nenhum Passo em Falso, escrevi o personagem principal, Eric Dudley, especialmente com Burt Reynolds em mente. Todo o trabalho nasceu do meu amor incondicional por estes dois, a Jennifer Connelly e o Burt Reynolds, e meu sonho de escrever algo exclusivamente para os dois. Eu queria escrever um protagonista que fosse um verdadeiro herói, um homem honrado, o tipo de cara que adoraria vê-lo interpretar, se um dia tivesse a chance de lhe oferecer o papel. Em linhas muito amplas, Nenhum Passo em Falso é um suspense sobre um publicitário viúvo (personagem de Reynolds) que após anos sofrendo secretamente pelo amor secreto que sente pela melhor amiga (a personagem da Jennifer Connelly), conhece uma nova moça durante o processo de casting para uma mini série, e se apaixona. Os dois começam um relacionamento, para a frustração da referida melhor amiga, e o homem passa a esquecê-la em favor dessa mulher, até que ela desaparece misteriosamente, e a história, que começa como drama/comédia romântica, assume tintas de filme de horror. Enfim, de toda forma, há um momento, em Nenhum Passo em Falso, quando Eric Dudley descobre o passado da namorada desaparecida (ela havia sido atriz pornô e dependente química), ele encontra a filhinha que ela costumava deixar aos cuidados de uma amiga, por uma determinada quantia mensal. Eric descobre onde a menininha está, a encontra sujinha e entristecida, e resolve levá-la consigo para criá-la como própria filha. Essa cena foi diretamente inspirada em A Garota Morta, a sua motivação a mesma: irradiar o facho de luz que repentinamente afugenta a escuridão quase predominante da história.

A Garota Morta permanecerá o momento definitivo da carreira da talentosa Brittany Murphy, uma atriz que partiu muito prematuramente, mas nos deixou a inesquecível marca registrada de seu sorrisinho sagaz e traquejos espevitados. Naquele distante 19 de julho de 1995, quando As Patricinhas de Beverly Hills estreou nos cinemas, Brittany dava o pontapé inicial em uma carreira que ficaria marcada, em grande parte, por comédias românticas despretensiosas que trariam alegria para muita gente. Seu papel em A Garota Morta veio em um momento difícil da carreira, quando grandes produções não passavam mais pelas suas mãos e uma nova geração de atrizes preparava-se para relegar as estrelas dos anos 90 `a margem da indústria. Muitas das atrizes da década de 90 se reinventaram - Alicia Silverstone, Jennifer Love Hewitt, Sarah Michelle Gellar - e encontraram na TV novos veículos, em aclamadas séries de muita qualidade; outras, insistiram nos filmes, e acataram com graciosidade a transição de filmes de estúdio para trabalhos no mercado direto-para-DVD ou papéis secundários em grandes produções. Curiosamente, A Garota Morta não foi nem filme para mercado direto-para-DVD, tampouco superprodução. Ao contrário, a diretora Karen Moncrieff financiou um belíssimo filme independente e concedeu a Brittany a oportunidade única de uma carreira para interpretar o centro moral dessa história sobre pais & filhos. Rodado em 2006, apenas três anos antes de sua morte, A Garota Morta só foi descoberto recentemente, após sua partida. O fato de o filme não ter merecido uma maior amplitude `a época do lançamento foi trágico - A Academia realmente ficou lhe devendo uma indicação a Melhor Atriz, em um momento que poderia ter engrenado não apenas uma reviravolta positiva para a vida profissional como para a pessoal. Coincidentemente, poucos meses após a morte de Brittany, foi a vez de Corey Haim, um outro jovem talento, perder tragicamente a vida. A morte de Corey Haim particularmente me assombrou por um tempo, pois apesar de eu guardar lembranças queridas de seus filmes na época do estrelato - Sem Licença para Dirigir & Os Garotos Perdidos - desconhecia a extensão dos problemas pessoais pelos quais atravessou, batalhando contra desemprego, ostracismo, problemas financeiros e dependência química, ao longo dos anos 90 e 2000. Na segunda metade dos anos 2000, o canal A&E produziu um reality show chamado The Two Coreys, que basicamente promovia o reencontro de Corey Haim & Feldman, astros dos anos 80, agora tantos anos após o estrelato já homens crescidos. Corey Haim, um ator desempregado, foi morar por um tempo na casa do melhor amigo, Feldman, um artista que ainda se mantinha ativo na indústria, e agora era homem casado e pai de família. Apesar de todas as confusões (a esposa do Feldman não suportava Haim), a amizade entre os dois realmente se destacava. O programa fez muito sucesso, deu-nos uma dimensão mais humana desses dois ícones do passado. Eu me recordo que passei a enxergá-lo de forma mais gentil, e que torci muito para que conseguisse reerguer a própria vida. Claro que não esperava que Corey Haim voltasse a ser super astro de Hollywood, mas gostava da ideia de vê-lo voltar a atuar em filmes menores, ou no teatro, na Broadway, quem sabe superar de vez os problemas da dependência, encontrar uma moça legal, casar, ter filhos… Foi um grande homem, Chico Xavier creio eu, quem disse algo nas linhas de você não ter como reescrever o passado, mas poder definir um novo desfecho para sua própria história. Por um tempo, eu achei que a vida do Corey Haim entraria nos eixos, mas apenas dois anos após o fim do reality veio a notícia de sua morte. As circunstâncias como tudo ocorreu ficaram grafadas na memória, pois eu ficava pensando nesse vídeo feito no final de 1989 onde ele falava sobre onde se via, dali a vinte anos, e dizia imaginar-se morando em uma casa de praia onde os dias seriam mais longos pois o sol sempre brilharia mais forte, e se distrairia vendo as ondas quebrando, os peixes brincando, enquanto seguiria fazendo filmes relevantes de sucesso. Vinte anos mais tarde, estava morando de aluguel com a mãe em Oakwood, um condomínio famoso entre atores novatos de passagem em Los Angeles para realizar audições, e que precisam de estadia barata por uma ou duas semanas. Depois de todo o sucesso nos anos 80, Corey terminava praticamente onde havia começado: um condomínio simplório usado por atores de passagem. Um rapaz que morava em Oakwood e falou com a imprensa após a morte de Corey disse que costumava vê-lo passeando pelo condomínio, como à procura de alguém para conversar. Na época, ele procurava se reerguer psicologicamente, pois precisava ser forte para a mãe, que enfrentava um câncer de mama. Na noite em que morreu, a mãe disse que ele havia acordado assustado, e perguntado se podia se deitar a seu lado, pois não estava se sentindo muito bem. Pouco depois, sofreu o ataque cardíaco que lhe custou a vida. Após a morte do Corey Haim, muitos colegas se manifestaram. Havia essa atriz canadense, Nicole Eggert, hoje uma senhora, que parecia particularmente devastada. Ela o havia conhecido no início dos anos 90, no auge da juventude e beleza, quando rodaram juntos um suspense. Eles se apaixonaram, Corey ficou de propô-la em casamento, mas por alguma razão os sonhos não se materializaram. Eles se distanciaram, e os anos foram se passando. Foi só recentemente, em uma entrevista, que Corey Feldman falou sobre as razões para o tormento do amigo. Ele dizia que estava revisitando fotos do álbum de fotografia, dos tempos em que ambos eram muito jovens, quinze, dezesseis anos de idade no máximo. Feldman viu essa foto de seu aniversário de quinze anos, onde aparecia sentado ao lado de Haim, e pela primeira vez caiu a ficha de que a maioria dos adultos que também constavam no retrato eram pedófilos ou predadores sexuais que mais tarde seriam pegos em indiscrições com outras vítimas. Somente tantos anos mais tarde, reavaliando a história com olhos de adulto, Feldman percebia o quanto, aos quinze anos, ambos pareciam alheios à toda aquela gente ruim em volta, à maneira como tiravam proveitos financeiro e sexual da falta de discernimento da dupla, e se perguntou horrorizado onde estavam seus pais, que os deixaram a mercê do pior tipo de escória. Há alguns paralelos entre as histórias de Corey Haim & Brittany Murphy, pois ambos parecem ter sido vítimas da traiçoeira aclamação passageira. A pressão do sucesso pode ser terrível, principalmente quando a indústria passa a descartar seus artistas mais queridos em favor das sensações do momento. Hoje, espero que tenha encontrado o caminho para a praia sobre a qual tanto falava, onde os dias seriam mais longos, o sol sempre quente, as marés frescas, e as ondas semelhantes a espumantes ao quebrarem na costa. Quando ele falou sobre como via a própria vida dali a vinte anos e fez essa descrição da praia, penso que é o tipo de coisa que um garoto diria, e talvez seja por isso que o fim destes dois atores pareça tão assombroso e semelhante. Eram pessoas muito jovens, e podiam fazer tanto ainda com suas vidas. Lamentavelmente, quando jovens, somos também ingênuos demais para saber melhor. Dia desses, eu vi um documentário muito interessante sobre a vida do Mike Tyson. Para mim, Tyson é tão fascinante quanto alguém como Burt Reynolds porque muito facilmente encontramos exemplos de pessoas que alçaram grandes voos e então aprenderam a descer graciosamente do topo para conviver saudavelmente com o "segundo lugar", mas apenas muito raramente conhecemos histórias de outras que estiveram sozinhas no topo, em uma classe só sua, para depois perderem absolutamente tudoTyson foi o fenômeno do boxe que por sete anos manteve-se imbatível - Marciano, Dempsey, Ali, não havia ninguém capaz de tocar sua graça - mas então perdeu tudo com o divórcio que ferrou sua cabeça e seu Waterloo particular, os punhos de James Buster Douglas. Burt Reynolds foi Número Um nas bilheteria por cinco anos consecutivos (1977-1981), e então tudo acabou com a chegada dos anos 80 e uma nova geração de astros de ação encabeçada por Stallone e Schwarzenegger. Mais ou menos na mesma época, sofreu uma fratura na mandíbula que transformou sua vida, pois não conseguia mais se alimentar normalmente, e emagreceu como um homem vitimado por doença terminal. Estamos falando de um tempo em que a AIDS parecia coisa de filme de horror. Não custou a invejosos plantarem rumores sobre ele estar morrendo de AIDS. No mesmo ano, a atriz Sally Field, ainda amargurada pelo fim do relacionamento, deu uma entrevista à revista Playboy, e ao ser perguntada sobre os rumores, disse algo nas linhas de que "onde há fumaça, há fogo", o que definitivamente causou mais dano `a sua carreira. Depois que a verdade finalmente apareceu - ele não tinha AIDS - o estrago havia sido feito, e se tornara definitivamente um ex-astro de ação. O fato de Tyson e Burt Reynolds terem sobrevivido a tantos altos e baixos, Reynolds inclusive ter sido atraiçoado pela mulher que um dia amou, é um testamento à força do espírito humano e sua capacidade de superação, e por isso gosto de prestar muita atenção ao que os dois têm a falar. De toda sorte, voltando ao ponto anterior - o quanto não sabemos muito quando jovens e o caríssimo preço que o desconhecimento nos custa - em dado momento do documentário, Tyson falava sobre o casamento com Robin Givens e como os anos lhe deram uma nova perspectiva sobre a própria história. Na época, eram garotos, ambos aos vinte e poucos. A imprensa o ilustrava como o homem mais violento e perigoso do mundo, e ela como uma alpinista social inescrupulosa interessada em dinheiro. No final, e após todos aqueles anos, percebia que não era nem uma coisa ou outra. Eram apenas garotos, jovens demais para saber melhor. Hoje, apesar das circunstâncias, depois que a fachada de mito caiu por terra com as derrotas que se seguiram, distanciado da glória do passado e pai de 8 crianças, consegue enxergar o mundo com mais clareza e gratidão. Em 1989, quando começou a se perder, e pensava saber tudo sobre as pessoas, Robin era a vilã e inimiga. Agora, como pai, reconhecia que então ambos eram praticamente crianças, em um mundo que pode ser implacável para ingênuos e despreparados. Somente o tempo poderia tê-los salvo, pois com os anos, teria vindo junto o discernimento que lhes permitiria compreender que por maiores que os problemas parecessem, depois de um tempo, não passariam de bobagem, já que em um contexto mais amplo, a vida sempre se prova muito maior. Muitos - Corey Haim, Brittany Murphy - não conseguiram resistir `a pressão do sucesso, mas aqueles que de fato sobreviveram `a loucura - Tyson ou o próprio Burt Reynolds - exibem a recompensa inestimável de enxergar tudo o que se passou sob uma perspectiva mais generosa e gentil. Por mais tarde que pareça, como o próprio personagem de Samuel L. Jackson em Freedomland disse, a graça de Deus é retroativa, e por mais que tenha errado, Ele sempre nos dá a oportunidade de fazer dos limões uma limonada. Desde o lançamento de As Patricinhas de Beverly Hills em meados de 1995, o começo de sua história de sucesso, até a despedida, em 2009, Brittany Murphy teve praticamente 15 anos de experiências para desenvolver um novo tipo de percepção que falta a todos no início da jornada. Apesar de nos ter deixado já mulher adulta, espero que assim como a Haim, Deus a tenha preservado como a mesma menina do começo. É bem verdade que viver equivale a perder. Os anos se asseguram de arrancar camadas e mais camadas de superficialidade, levando junto a beleza ou as posses ou a saúde ou as falsas bajulações até nos restar o absolutamente essencial: caráter, coração, capacidade de empatia pelo próximo, aquilo que verdadeiramente nos humaniza. Apesar de este doloroso processo de aprendizagem fazer parte de nossas vidas, espero que após a partida, Deus tenha conservado aqueles que se foram cedo demais em um momento antecedente `a perda das ilusões, no caso de Brittany, aquele verão de 1995 quando As Patricinhas de Beverly Hills estreava, preservado como inseto em âmbar, quando um ano custava a eternidade para se acabar, a vida inteira estava por vir, e dias alegres costumavam vir acompanhados pelo mais caloroso sol possível. Apesar de sensacional enxergar o mundo pelos olhos de adulto, jamais nos sentiremos tão bem quanto uma tarde qualquer em 1995, quando o mundo era expectativas, e éramos garotos.

Todos os direitos autorais reservados a Lakeshore Pictures. O uso do trailer é para efeito meramente ilustrativo da resenha.

terça-feira, 14 de outubro de 2014

Hotel da Morte ("The Innkeepers", Ti West, 2011) Por trás de todo fantasma existe uma história sobre corações partidos.

Tido como um dos locais mais assombrados da América, o Yankee Pedlar Inn é um hotel de envergadura histórica. Localizado em Torrington, Connecticut, foi erguido em 1891 por um imigrante irlandês, e mesmo hoje sobrevive imponente em sua nostálgica arquitetura colonial remanescente de Nova Inglaterra. De seus 52 quartos, crê-se que o cômodo onde mais aconteça atividade paranormal seja o de número 353, onde a mulher do proprietário faleceu. Entre os rumores, existem relatos sobre aparições misteriosas e vozes desencarnadas atormentando os hóspedes. Em reconhecimento ao charme dessas histórias de fantasmas, os atuais proprietários zelam pela fama do Yankee Pedlar Inn: logo no lobby, foi deixada a cadeira de balanço usada pela esposa morta. Reza a lenda que a mesma pode ser casualmente vista balançando. É claro que uma história tão fantástica como essa não custaria a atrair um cineasta apaixonado pelo gênero Horror, o que nos leva a Ti West e o seu Hotel da Morte.

Sara Paxton, uma excelente atriz que lembra uma jovem Reese Witherspoon, estrela essa misteriosa história de fantasmas como Clare, uma das duas últimas pessoas do staff do Yankee Pedlar Inn, em seu último fim de semana de operações. O filme é dividido em 3 capítulos, e o primeiro se chama O Longo Fim de Semana. Vemos Clare chegando ao hotel para seus dois últimos dias de trabalho. Ela encontra o amigo Luke, o segundo membro restante. Ambos são fascinados pelo sobrenatural, e Luke preparou microfones com a esperança de capturar manifestações de EVP no curso dos próximos dias. Luke prega uma peça ao pedir que Clare assista a um fantástico vídeo que encontrou na internet, e quando ela vai ver, toma um baita susto, pois se trata de uma pegadinha de fantasmas!Prova do declínio do outrora luxuoso hotel, em seu último fim de semana, só há registros de um único hóspede. Os dois amigos revezam turnos no atendimento do lobby, e Clare sobe a seu quarto para descansar e se trocar. A caminho do quarto, conhece os hóspedes sobre os quais Luke falou, uma mãe e seu filho pequeno.

Luke & Clare recebem uma visita inesperada na forma de Leanne Rease-Jones, uma atriz decadente que um dia fez muito sucesso em um seriado de TV, na cidade para atender a uma convenção qualquer. A garota a reconhece imediatamente e fica encantada com sua presença. A atriz também parece gostar instantaneamente da menina, pois quando Clare sobe para entregar toalhas, recebe uma bela gorjeta. A noite chega, e Clare assume seu turno. Navegando na internet, procura se entreter, mas às altas horas da madrugada, fica sugestionada ao vasculhar o blog de Luke, dedicado a histórias do Yankee Pedlar Inn. Luke recheou o blog com fotos e vídeos feitos pelo próprio. O blog também conta as histórias por trás das principais assombrações do lugar, mais especificamente a de Madeline O'Malley, uma noiva que se suicidou muitas décadas atrás ao ser abandonada no altar. O relato enerva a garota, que se assusta ainda mais ao escutar barulhos que parecem vir do salão. Ao investigar, toma um terrível susto, mas não por causa de fantasmas: o desavisado Luke subitamente aparece às suas costas, perguntando o que aconteceu, dando risadas pela surpresa causada.

Capítulo 2. Madeline O'Malley. Enquanto a mãe está ocupada com qualquer coisa em seu quarto, o menininho hospedado escuta às histórias de Clare sobre os mais famosos "moradores" do lugar. Ela conta ao impressionável garotinho o caso de Madeline O'Malley. Aprendemos que Madeline se enforcou no dia do casamento após ser deixada pelo noivo. Certos de que a notícia seria um duro golpe para a fama do hotel, os proprietários da época esconderam o corpo no porão por 3 dias, antes de levá-lo para a baía. Quando os cidadãos da cidade descobriram o que havia acontecido, ficaram escandalizados, forçando os donos a venderem o lugar. O Yankee Pedlar Inn permaneceu fechado até a década de 60, quando foi comprado e reaberto. Desde então, as pessoas dizem ter visto o fantasma de Madeline O'Malley perambulando pelos corredores, buscando pelo noivo.

Quando a mãe do garotinho desce e a vê contando histórias de assombrações, consola o assustado garotinho e a cobre com desaforos. Sobra até para Luke, ao fuzilá-lo com cobranças sobre as toalhas para o quarto 225. Entediados, Luke e Clare lancham na abandonada cozinha do hotel, onde a garota lhe pergunta o que o fantasma de Madeline ainda desejaria no Yankee Pedlar Inn. Luke leva na brincadeira, afirmando ter desistido de tentar compreender mulheres, principalmente as mortas!Ele afirma já ter visto muito casualmente a noiva, mas ressalta que não se recorda muito do arrepiante encontro. Clare está determinada a gravar alguma evidência da existência de Madeline O'Malley antes que o Yankee Pedlar Inn feche as portas. Naquela noite, ao levar sacos de lixo para fora, a garota dá pela presença de Leanne na janela do quarto, a observando, pensativa, enquanto traga o cigarro.

Ao voltar, barulhos a atraem ao velho porão. Ali, descobre o antigo depósito do estabelecimento, mas o breu a dominar o lugar a deixa relutante em explorar. Clare retorna ao Yankee Pedlar Inn, e aí sim começa a investigar. Munida de microfones, começa pela lavanderia, onde espera capturar vozes desencarnadas. Seu primeiro encontro com o sobrenatural se dá no salão, onde enxerga o piano dedilhado por mãos invisíveis. Estupefata, ainda consegue escutar o rumor de vozes distantes, quase um chiado. Aterrorizada, golpeia a porta de Luke para contar a descoberta. O rapaz acredita que a amiga apenas foi vítima da própria sugestão, e a tranquiliza. Clare retorna resignada para o posto no lobby, quando cruza com Leanne no corredor. A atriz a convida a entrar, e lhe explica que poderá ajudá-la em sua busca. Ela explica que deixou a carreira de atriz há muitos anos e hoje se dedica a comunicar-se com espíritos. Clare pede à atriz que a ajude a contatar Madeline O'Malley. Leanne a ajuda a relaxar e pede a Clare que direcione suas perguntas diretamente à entidade. Leanne parece sentir a presença de espíritos, três deles para ser mais exato. A atriz segue em transe, vocalizando aquilo que os fantasmas lhe passam: houve uma tragédia no Yankee Pedlar Inn, algo relacionado ao porão. Clare faz a associação ao caso de Madeline O'Malley e passa a acreditar que um dos espíritos só pode ser mesmo o da noiva morta. Leanne a aconselha a jamais descer ao porão. Você não pode mais ajudá-la, eles tentaram, não conseguiram, a atriz murmura, antes de despertar do transe.

Asmática e impressionável, Clare precisa fazer uso daquelas bombinhas para não perder o fôlego. Tendo terminado o turno, ela procura relaxar tomando um banho quente e se recolhendo à cama. Em dado momento, ao se sentar sobre o colchão por um motivo qualquer, não repara quando uma figura sob um véu muito branco parece deslizar ao seu lado. Ao dar pela entidade, o véu escorrega de modo a revelar a figura da noiva suicida. Clare salta da cama e abre as luzes, mas não há sinal algum de Madeline O'Malley. Bastante chocada, desce as escadas à procura de Luke, não se dando conta de que ainda se encontra de camisola!A mulher chata do quarto 225 está na recepção, e ao vê-la em roupas íntimas, dá um novo escândalo. Para mim já chega, nós vamos voltar para seu pai! Ela resmunga para o garotinho, deixando os dois atendentes constrangidos no meio do saguão.

Capítulo 3. A Hóspede Final. Aqui o terror começa a ficar mais explícito!Luke prepara uma xícara de café para a amiga. Apesar de acreditar na moça, insiste que ao investigar fenômenos parecidos, a pessoa pode se envolver a ponto de enxergar coisas que não estão lá. A conversa é interrompida quando a campainha chama. Luke vai na frente atender o novo hóspede, enquanto Clare permanece sentada no escritório. Trata-se de um senhor de idade em busca de um quarto para passar a noite, até aí nenhum problema. Quando o senhor faz questão de ficar no quarto 353, Clare se intriga. Luke responde que os cômodos do terceiro andar foram desocupados há muito tempo, de modo que não há como atender o pedido. A insistência do idoso pelo 353, porém, não lhes dá outra alternativa. Há algo de enervante na pessoa do visitante. Ele explica que veio de muito longe para dormir no cômodo em questão. Os dois acabam cedendo, e Clare o acompanha ao 353. Antes de entrar, o senhor comenta com Clare que ali foi onde devia ter passado a lua de mel com a esposa, e que se sentia estranho ao voltar a um lugar que jamais julgara ter deixado.

Leanne chega da convenção um pouco depois na mesma noite, e Luke a convida a se juntar aos dois enquanto consomem algumas latinhas de cerveja. A atriz agradece mas se recusa, e o rapaz faz um comentário impróprio sobre ter escutado que Leanne era chegada em álcool. Clare não aprova a gracinha do colega, e deseja uma boa noite à atriz. A dupla inicia mais uma sessão para capturar EVP, e ao visitar o salão do piano, Luke sente o gostinho do próprio remédio quando é a amiga quem lhe prega uma peça, surgindo sob um lençol e o assustando por um brevíssimo momento!Levemente "altos" após as latinhas, os dois espairecem um pouco sobre as almofadas do lobby, quando Clare esboça um desenho de Madeline O'Malley e lhe pergunta se ele a acha mais bonita. O momento nos revela que Luke nutre pela colega um sentimento muito bonito que a garota parece não notar. Ele fala sobre o quanto a acha bela e especial. O rosto de Clare se ilumina ao ter uma ousada ideia: visitar o porão proibido do Yankee Pedlar Inn.

Uma vez no porão, a dupla visita o quarto onde o corpo da noiva teria sido escondido. Sentados no chão, Clare & Luke procuram contatá-la. A ampulheta do microfone oscila, indicando um rumor muito distante. Clare pergunta por que seu espírito não consegue descansar em paz. Agora em que estão à beira de um genuíno encontro com Madeline O'Malley, Luke se descontrola e sai correndo, Clare no seu encalço. Ela pergunta qual é o problema, mas Luke está decidido a partir. Convicto de que não quer mexer com forças que não compreende, o rapaz pega as coisas e antes de deixar o Yankee Pedlar Inn, abre o jogo e revela que jamais viu o fantasma de Madeline. Só costumava contar histórias da noiva porque sabia que a colega apreciava, e apenas queria agradá-la. Agora quando tudo leva a crer que o espírito da mulher morta realmente habita o porão, percebe que já levou o interesse pelo sobrenatural longe demais.

Agora que Luke se foi, Clare recorre à única pessoa capaz de ajudá-la. Leanne pede à jovem que a leve ao local onde sentiu a presença. Uma visita basta para que a sensitiva tome ciência do risco que ambas estão correndo no Yankee Pedlar Inn. Ao encontrar apressadamente a menina no corredor, ordena que arrume suas coisas para deixarem o lugar. Enquanto arruma a mochila, Clare se lembra do idoso no quarto 353, e grita para a sensitiva que a aguarde no saguão, pois também precisa avisá-lo. Ela bate à porta, e como ninguém responde, resolve entrar. Clare não o vê de imediato, mas segue explicando a gravidade da situação, até encontrá-lo morto, com pulsos cortados, dentro da banheira. A crise de asma volta com toda força. Em pânico, ainda enxerga o fantasma de Madeline O'Malley enforcado em meio ao breu, antes de descer as escadas.

Ela encontra Luke no saguão, e, histérica, atropela-se ao tentar contar sobre o fantasma de Madeline e o homem morto dentro do quarto. Luke voltou até ali para pedir desculpas por tê-la deixado tão subitamente. Ele pede que o espere, pois subirá para chamar Leanne, para que possam ligar para a polícia e deixar juntos o hotel. Ao deixar a vulnerável colega sozinha, o rapaz comete um grave erro. Ao escutar a uma voz gutural chamando-a pelo nome, Clare vai investigar, sendo atraída a uma das escadas de acesso ao enorme porão. Tomado pela escuridão, procura enxergar algum sinal de vida dentro do espaço com a lanterna, do topo da escada. Ao se virar, dá com o velho morto, de pé às suas costas. O susto a lança escada abaixo, e Clare se machuca na queda. Tomada pelo pavor, não consegue raciocinar direito, e se perde no emaranhado de corredores poeirentos e apertados do porão. Ela ainda vê o espírito do velho lhe abrindo os braços, ao fim do corredor, o que a lança ainda mais a fundo naquele labirinto. Eventualmente, Clare encontra a escada que leva a uma saída, todavia é a vez do fantasma de Madeline O'Malley surgir da escuridão. Pela primeira vez, a garota guarda uma imagem clara da tétrica aparição, uma figura triste e solitária, sob véu e grinalda, olhos muito escuros e grandes, lábios tomados por algo semelhante a um forte batom preto. Clare luta para subir os degraus, mas depara-se com a porta trancada. A crise de asma a apanha com toda a força, seu coração não resiste e ela sucumbe. Ao final, a jovem acabou se tornando a hóspede definitiva do Yankeee Pedlar Inn.

Epílogo. É um novo dia. A ambulância está ali para recolher os corpos do senhor e de Clare. Abalado, Luke relata a um dos oficiais suas lembranças sobre o ocorrido. O rapaz ainda chegara a ouvi-la golpeando a porta, mas não fora forte o suficiente para abri-la. Silencioso, o Yankee Pedlar Inn agora parece um lugar ainda mais triste. Luke entra no hotel por uma última vez, para chamar Leanne e recolher os pertences. Os dois ainda têm uma breve conversa, quando Leanne lhe diz que nada poderia ter sido feito para evitar a tragédia. Agora com o hotel abandonado, um take nos leva ao longo de um deserto corredor até o quarto, onde a câmera estaciona por algum tempo antes de os créditos rolarem: se vocês prestarem muita atenção, poderão ver uma figura atravessando o cômodo. O fantasma de Madeline O'Malley? 

Ti West segue o sucesso de House of the Devil com O Hotel da Morte, um filme de fantasmas feito por quem/para quem ama coisas do tipo!Os cinéfilos que conhecem a sua obra - The Sacrament, VHS - sabem pelo que esperar, pessoas que ainda não se familiarizaram com seu estilo farão melhor lendo esta resenha antes de alugar o DVD. Parte da nova geração de cineastas de horror que começou a se firmar no circuito independente no final da década passada, Ti West cresceu assistindo aos antigos clássicos de horror dos anos 70/80, muito antes das facilidades de nossos tempos. Na sua época, assistir a filmes de horror, ao menos aos olhos de uma criança, representava um grande evento - lembrem-se que não existiam DVDs e internet - não apenas pela dificuldade de se conseguir pôr as mãos nas fitas mas também pela qualidade das produções. Eu faço parte da mesma geração de West, e sei que o diretor também deve ter se encantado com histórias de fantasma estilo A Dama de Branco, de Frank LaLoggia, ou clássicos como O Exorcista & Terror em Amityville (o primeiro, com James Brolin & Rod Steiger) & Hellraiser. Rodados em um período onde efeitos visuais ainda engatinhavam, diretores e roteiristas precisavam escrever histórias cujos "monstros" estivessem a serviço do absorvente drama principal, e não a tendência contrária de hoje, onde o espetáculo é sua própria justificativa.

Na mesma linha do que fez anteriormente com House of the Devil, West se preocupa em dar ao horror feições mais familiares, por mais fantástica que toda a premissa pareça. Tanto House of the Devil quanto Hotel da Morte flertam com o extraordinário, com a magia, no entanto o esmero com que o diretor roteiriza seus personagens e as situações pelas quais desenvolve o horror dão a suas obras um refrescante gostinho de ordinário, impossível de se reproduzir em filmes maiores ou produzidos dentro do esquema dos grandes estúdios. Ao contrário, Ti West imbui seus filmes da personalidade que lhe valeu um nome e lugar entre os novos cineastas mais promissores desta nova Era do Horror. Recomendei a leitura desta resenha às pessoas desconhecedoras de Ti West para que não levem "gato por lebre". Há os fãs que preferem o Horror mais extravagante, histórias de fantasmas cheias de reviravoltas, embates épicos entre forças do Bem & Mal. Aqueles que procurarem por semelhante espetáculo em Hotel da Morte darão com os burros n'água, por outro lado cinéfilos que guardam nostalgia pelos antigos clássicos dirigidos por Tobe Hooper terão uma grata surpresa. A impressão é a de que Hotel da Morte pode muito bem ter sido um filme rodado no começo dos anos 80, digamos, e somente agora lançado nos cinemas. O seu ritmo e o cuidado com atmosfera reportam-se especificamente a um tempo quando diretores não precisavam de sustentação forçada para segurar o interesse.

Tenho lido críticas desfavoráveis sobre Hotel da Morte, pessoas perguntando onde raios está a Madeline O'Malley durante a maior parte do filme, por que demora tanto a surgir. Os críticos carregaram nas tintas e adjetivaram-no como chato e lento, entre outros termos menos generosos. Eles parecem se esquecer que o enxergam por uma ótica que jamais interessou a West. Hotel da Morte não é uma história de fantasma, mas sim uma história com um fantasma - ela existe, mas faz apenas uma participação especial. De maneira surpreendente, a história transita por recantos mais familiares e humanos, parte história de amor não correspondido, parte história de pessoas à deriva, parte história de findas glórias do passado... Não por menos, custo a me recordar de outro filme de horror com semelhante bagagem de tristeza. Histórias comuns sobre fantasmas parecem colocar seus personagens a serviço de suas assombrações, mas aqui não. Madeline O'Malley soa como um eco distante e sem força de um tempo perdido, um pouquinho de mistério para testar a frágil relação entre personagens emocionalmente vulneráveis e feridos. Impressiono-me em como após a conclusão o filme nos deixa tantos pontos misteriosos a serem debatidos.

Um grande mestre de storytelling, West sabe como manter seus filmes envoltos em mistério, e consequentemente interessantíssimos. Um exemplo?Assistindo a Hotel da Morte, não tive como afastar um estranho pressentimento quanto ao senhor idoso que aparece justamente no último fim de semana de operações do Yankee Pedlar Inn, para repousar no quarto onde Madeline O'Malley originalmente se enforcou. Os amigos se recordam da breve história de Madeline O'Malley?Ti West não nos revela muito, porém solta algumas informações aqui e acolá. Sabemos que ela se suicidou no hotel, após deserdada pelo jovem noivo no altar. Poderia ser o velhinho o rapaz em questão?Será que teria retornado ao hotel consumido pela culpa, na expectativa de se redimir e finalmente se juntar a Madeline?Por que ao conversar com Clare menciona que foi ali onde devia ter passado a lua de mel?West não dá a resposta, mas sem dúvida brinca com a sugestão. Quando visto pela segunda ou terceira vez, Hotel da Morte nos intriga ao nos convidar a refletir se há mais por trás da história que ocupa o primeiro plano. O filme jamais impõe um ritmo energético ou incessante, e mesmo ao final, permite duas interpretações. É bem possível que o Yankee Pedlar Inn reúna muita energia ruim graças ao ocorrido com a tal noiva, mas também não podemos descartar a possibilidade de a figura assombrosa de Madeline O'Malley existir exclusivamente dentro da mente sugestionável de Clare.

Quando assisti ao estupendo Session 9, de Brad Anderson, me encantei com a habilidade do cineasta em nos apresentar aquela gente - os membros da equipe de HazMat em sua fatídica semana de trabalho no abandonado hospital psiquiátrico de Danvers - como pessoas de nosso convívio, com dramas comuns à nossa realidade. Aqui, Ti West também criou personagens providos de camadas e mais camadas de complexidade, divertindo-se com o processo de nos fazer enxergar as suas contradições muito humanas. Ao examinar os personagens que no curso do fim de semana passam pelo Yankee Pedlar Inn, percebemos que todos apresentam em comum uma certa vulnerabilidade perante a vida. Por alguma razão, a sorte lhes pregou peças de modo a deixá-los em posições que os tornaram vulneráveis às forças do hotel. Aos seus trinta e tantos anos, Luke deixou a formação acadêmica por um trabalho menor no hotel que agora está em vias de fechar as portas, e por amor a Clare, prestou-se a contar uma porção de histórias impressionantes sobre encontros onde teria visto a noiva morta (mentira) apenas para despertar o interesse da colega; Leanne teve seus dias de glória ao atuar em um seriado de muito sucesso, todavia não lhe resta muito da fama do passado, e agora precisa se reinventar como médium para resgatar uma pequena parcela da evidência de outra época; a mãe e o filho encontram-se naquele limbo pois estão "fugindo" de casa; e a impressionável Clare é tão fragilizada quanto leva a crer sua figura de menininha magrela e assustada. Não podemos nos esquecer de um outro importante personagem, o Yankee Pedlar Inn. Nos seus tempos áureos grandioso e elegante, há algo na forma como o vemos encravado atemporal naquela esquina - ruas sempre muito vazias aos pés de suas calçadas, semáforos suspensos sacudidos muito discretamente ao sabor do vento, sinalizando para carros que mal passam mais por ali - que inspira um contundente sentimento de abandono e oportunidades desperdiçadas. Ti West consegue tirar máximo proveito do local, mais uma semelhança entre este filme e Session 9. Lembro-me do que Brad Anderson disse sobre todas as manhãs pegar a estrada a caminho da universidade em Boston, onde lecionava, e enxergar ao longe a imponente, abandonada silhueta do Hospital Psiquiátrico de Danvers. O apelo da tristeza evocada pelos prédios o afetou tanto que começou a escrever uma história em torno do lugar, e o mesmo deve ter acontecido a West quanto ao Yankee Pedlar Inn.

Por fim, não podemos deixar de falar sobre a convidada de honra, Madeline O'Malley, figura que apesar de ocupar o pôster e os materiais de publicidade não faz mais do que uma casual aparição, uma metáfora para as vidas sem rumo daquela meia dúzia de verdadeiras almas perdidas que se cruzam nos corredores do Yankee Pedlar Inn no curso do fim de semana. West ama tanto filmes de horror antigos que ao personificar a "aniversariante" da festa, foge de quaisquer clichês ou exageros. Ao contrário, é a sua aparência macabra mas contraditoriamente singela que surpreendentemente nos parte o coração. Com olhos tristes e pidões, metida em seu empoeirado e carcomido vestido de noiva tal qual uma boneca de pano abarrotada e deixada de escanteio, ela se tornou "residente fixa" da história do Yankee Pedlar Inn. Ao percorrer silenciosamente corredores que exibem apagada glória do passado, não oferece ameaça alguma, e sua razão de ser resume-se à ação de vagar até que os estilhaços de seu coração partido se reencontrem, única forma de silenciar ecos de uma história de amor mal resolvida que terminou tragicamente no dia em que seu noivo não apareceu. A atriz Brenda Cooney (foto) merece aplausos por ter feito de seu pequeno papel a força motriz de toda a mitologia envolvida, roubando a cena da mesma forma que Danielle Bisutti o fez em Sobrenatural 2. Ela divide o mérito com o diretor, que soube representá-la muito bem para a linguagem cinematográfica, repelindo efeitos especiais, fiando-se em uma proposta praticamente artesanal e eficiente. A imagem dessa "boneca de pano de olhos tristes" permanecerá nas cabeças dos senhores por um bom tempo!

Hotel da Morte é uma boa pedida para os cinéfilos que ainda não conhecem a obra de Ti West. Desde o seu primeiro filme, House of the Devil, o diretor tem formado uma base de fãs e se mantido consistente, com produções cada vez mais ambiciosas e surpreendentemente pessoais. O seu estilo jamais lhe valerá a direção de uma superprodução, porém assegurará uma posição confortável no circuito independente, onde poderá rodar filmes conforme seu gosto. Eu sempre acreditei que por trás de histórias de assombração, sempre existe um elemento de tristeza, de nostalgia. As demandas do público moderno têm tornado os novos filmes cada vez mais aleijados de sensibilidade. O fato de Hotel da Morte ter sido produzido sinaliza uma bem vinda abertura ao retorno de um estilo lamentavelmente incompreendido pela turma mais jovem. Mesmo modesto em sustos ou surpresas, deixa a sua marca, força da melancolia que esbanja, um peculiar charme de elegância decadente tão ressoante quanto a trágica história de amor de sua "boneca de pano" silenciosa e triste.
Todos os direitos autorais reservados a PlayArte. O uso do trailer é para efeito meramente ilustrativo da resenha.

"The Trigger Effect" (1996, David Koepp) Antes de "Uma Noite de Crime", existiu "The Trigger Effect"!

Matthew & Annie (Kyle MacLachlan & Elisabeth Shue) - um jovem casal buscando manter a chama da relação amorosa acesa após o nascimento da filha e as demandas da vida em comum – estão para enfrentar o maior desafio de suas vidas, um evento que colocará em teste a força de seu amor e até a que ponto estão dispostos a chegar para defender a si e à filhinha. The Trigger Effect começa em uma animada e comum noite de sexta-feira em Los Angeles. Em uma rara oportunidade, Matthew & Annie conseguiram tirar a noite só para si, pois deixaram a filhinha sob os cuidados da baby sitter para assistir a um filme no shopping. Rodado em 1995, muitos anos antes de uma série de dramas urbanos que viriam a explorar a forma como pessoas de diferentes alçadas veem-se entrelaçadas pelo peculiar senso de humor do destino (21 Gramas & Babel os melhores exemplos), o diretor David Koepp já abre o filme com uma cena que reforça a assertiva, quando vemos um rapaz "cortado" por uma moça sem educação na fila para a pipoca voltando de mau humor para a sala de cinema, onde se dará uma cena importante que estabelecerá a dinâmica do relacionamento entre os personagens principais.

Annie & Matthew estão assistindo ao filme, quando o rapaz em questão retorna à sala, bastante chateado. Ao contar o incidente ao amigo, Annie pede baixinho para que procure fazer silêncio, e o rapaz reage com grosseria, murmurando um palavrão qualquer e resmungando que não o amole. Matthew sugere para que se sentem mais para trás, e o casal deixa suas cadeiras para o fundão. Apesar de nada mais grave advir do atrito, a briguinha fica na cabeça de Matthew pelo restante da noite, e quando estão pagando o ticket do estacionamento para ir embora, vocaliza seu remorso ao murmurar desejar ter feito alguma coisa na hora, quando o rapaz foi áspero com Annie. O casal mora em um encantador bairro de classe média, mas a residência está passando por reformas, o que deposita peso extra sobre o stress da vida conjugal. Ao voltarem para casa, encontram a nenê um pouco chorosa por conta da infecção no ouvido que teima voltar.

Matthew liga para o médico, que pede para que os dois não se preocupem, apenas mantenham a aplicação das gotinhas pois ela melhorará. Trocando de roupa para deitar, conhecemos melhor a natureza do distanciamento entre os dois. Quando Matthew menciona um relógio seu desaparecido e fala sobre os homens da construção transitando livremente dentro da casa para finalizar a obra, sugere que algum dos rapazes tenha apanhado o relógio. Annie então recomenda que o marido os confronte a respeito, e Matthew tem uma mudança de tom, ao responder que não seria boa ideia acusá-los sem prova, o que apesar de uma boa razão evidencia a sua incapacidade de lidar com conflitos. A dificuldade de liderar vem minando a relação veladamente, e quando os dois quase começam a namorar naquela mesma noite mas a bebezinha acorda chorando, vemos que o descuido do casal em lidar com os desafios do dia a dia os está deixando cada vez mais alienados um do outro.

Em dado momento da madrugada, um maciço blecaute afunda a cidade na mais absoluta escuridão, e Matthew sai com a lanterna para dar uma averiguada. Ele encontra Steph, o vizinho da frente, que também não tem ideia do que aconteceu. Nenhum dos dois parece preocupado, pois acreditam que a energia voltará mais tarde. Matthew & Annie despertam na manhã de sábado para péssimas notícias: a energia não voltou e a infecção do ouvido da bebê piorou. As gotinhas acabaram, e Matthew apanha a chave do carro para buscar mais na farmácia. Ao ligar o rádio do automóvel, vê que até mesmo as faixas estão fora do ar. Na drogaria, Matthew é pego de surpresa quando o farmacêutico recusa-se a vender sem prescrição médica. Agora que as linhas telefônicas estão fora de serviço, Matthew nem sabe como contatar o pediatra para obter a prescrição. Ele discute com o vendedor, e volta frustrado para casa. Ao encontrar a bebê chorosa, Matthew decide resolver a situação "na marra". Ele ainda tenta conseguir a prescrição em um hospital público, mas ali somente encontra muita gente à frente. Desesperado, retorna para a drogaria, e em um momento de distração, furta as gotinhas. O farmacêutico vê, mas Matthew evade-se do local correndo, e mesmo perseguido, consegue entrar no carro a tempo de arrancar.

Ao voltar com as gotinhas e contar o que fez para consegui-la, Annie o beija, aliviada, e os dois começam a namorar ali mesmo na sala, até serem interrompidos por um visitante. Inicialmente assustados, logo relaxam ao ver que se trata de Joe (Dermot Mulroney), velho amigo do casal que assim como os demais parece confuso com o blecaute. Muitas teorias sobre a falta de energia andam circulando, mas Joe diz que o que o preocupa são histórias sobre saques a mercados e assaltos às casas, agora que Los Angeles mergulhou na "Idade das Trevas". A única forma de saber melhor seria andando pelo epicentro da confusão, downtown Los Angeles, e o trio dirige até lá para ver se descobre algo. Em downtown Los Angeles, somente encontram engarrafamento, brigas no meio das ruas, cidadãos estressados e semáforos imprestáveis. Durante o passeio, Annie faz um convite que parece incomodar o marido, ao chamar Joe para ficar com o casal até o blecaute passar. Será divertido, como uma festa de acampamento, ela brinca, e Joe diz que aceitaria o convite se Matthew não se importasse. Apesar de ressabiado, o marido retruca que não há problema e o amigo pode sim passar a noite em casa.

Agora que Joe se juntou ao casal, eles precisam discutir como se preparar para a noite. Como por ora não podem contar com cartões de crédito, juntam todo o dinheiro e fazem uma lista de prioridades. O rumor do helicóptero da Polícia, sobrevoando aquelas redondezas, deixa-os "espertos" quanto a necessidade de se protegerem dos assaltos. Joe e Matthew concordam que fariam melhor adquirindo uma arma para proteger a casa, mas Annie se coloca contrária à ideia. Apesar da oposição da mulher, os dois saem para adquirir uma arma de fogo. A relação competitiva entre os amigos azeda por causa de um comentário inocente feito por Matthew. Ele pede que Joe escolha a arma pois como trabalhador braçal do ramo de construções deve compreendê-las melhor. Em uma prova de como as pessoas podem mostrar o seu absoluto pior em situações críticas, o vendedor subiu o preço das mercadorias, e por um rifle e balas que não valem mais do que cem dólares, cobra trezentos. A dupla acaba cedendo e adquire o rifle e a caixa de munição.


A caminho do carro, Joe desabafa que não gostou de seu comentário. Procurando resgatar seu bom humor, Matthew brinca e retruca que Joe poderia passar por um verdadeiro homem das cavernas. Joe "vai na ferida" ao devolver Mas a sua mulher ficou feliz ao ver o homem das cavernas aqui! O diálogo explicita o motivo da competição entre os dois: apesar de mais bruto e resolutivo, Joe inveja a carreira de sucesso, a inteligência privilegiada, a casa em bairro nobre e a esposa bonita de Matthew. Provocante, Annie parece enxergar o conflito psicológico, e perigosamente joga lenha na fogueira. Naquela mesma noite, quando estão bebendo vinho bem no meio da sala, Annie atiça a rivalidade. Queixando-se de calor, usa poucas roupas, e o ciumento marido resmunga Tente permanecer vestida. Os três beberam um pouquinho além da conta, é questão de tempo para irromper uma discussão. Em dado momento, Matthew encontra os dois na cozinha, cochichando, e se enfurece quando Joe faz uma piadinha sobre se o rapaz não gostaria de saquear o mercado para trazer mais whisky. Annie contou ao amigo a parada da farmácia, na manhã daquele dia, desobedecendo o pedido do marido, e Matthew fica possesso. Ele começa a soar agressivo, quando Annie coloca panos frios e sugere que vão dormir, pois tiveram um dia cansativo e o stress obviamente subiu às suas cabeças.

Durante a madrugada, as coisas começam a se complicar. Joe entra na ponta dos pés no quarto do casal, e sussurra para Annie & Matthew que alguém invadiu a casa.  Atentos para não fazer barulho, Matthew & Joe flagram um rapaz furtando alguns itens da cozinha, e depois apanhando a chave do carro para partir. Quando tenta abri-lo, o alarme começa a apitar, e Joe & Matthew surgem da escuridão e o orientam a largar as coisas e dar o fora sem criar maiores complicações. Assustado, o invasor vai recuando, até ser abatido no meio da rua por um tiro de Steph, o vizinho da frente, que confundiu a faca que o garoto carregava com um revólver. Steph se desespera e diz que se contarem que o rapaz estava desarmado, estará encrencado. Ele volta para casa, e quando retorna para a rua, traz um revólver sem marcas. Steph coloca a arma nas mãos do rapaz para forjar a prova contra o invasor. Annie o reconhece como um dos homens da obra na cozinha. A polícia é chamada, e a versão de Steph soa convincente. Os moradores se reúnem na casa de um deles para discutir um plano de contingência para o risco de novos assaltos. Os vizinhos sugerem boas ideias, todavia, prova do egoísmo reinante, ninguém quer se comprometer; por exemplo, um cavalheiro sugere o bloqueio da rua com carros, mas ninguém está disposto a colocar o próprio automóvel na entrada do condomínio. Convencidos de que a reunião não irá a lugar algum, Annie, Matthew & Joe se despedem. Na saída, Steph chama Matthew no canto e pergunta "em que pé fica a situação entre os dois". Visivelmente magoado, agora Steph nutre animosidade contra o vizinho com certa razão, pois teme que o mesmo o entregue mais tarde, contando à Polícia sobre a arma que colocou na mão do delinquente. Depois da tentativa de assalto, o trio percebe que enquanto a energia não voltar, nem mesmo dentro de casa terão sossego. Após uma tensa conversa na cozinha, fica decidido que na manhã seguinte todos partirão para a casa dos pais de Annie.Encarar a estrada rumo a outra cidade oferecerá seus riscos, conforme o próprio Joe aponta. A distância de 530 milhas até o destino final pode ser coberta em um dia inteiro de jornada, todavia mesmo partindo com o tanque cheio, durante a viagem, eventualmente precisarão pôr as mãos em mais seis galões de gasolina. Postos estarão fechados, e mesmo se abertos, provavelmente cobrarão preços exorbitantes. Eles terão de conseguir combustível... De alguma forma. Com as variáveis escancaradas, o trio banca os riscos, e "pega a estrada". Na bagagem, o rifle para eventuais emergências.

A turma encara a free-way, e no comecinho da tarde, alcança uma diner de beira de estrada. Ali dentro, reencontramos o rapaz do começo do filme, aquele que ficou nervoso ao ser cortado na fila e depois tratou Annie mal. Eles não se reconhecem. O rapaz, chamado Raymond, se encontra ali para comer um lanche antes de seguir viagem. Enquanto come, aguarda por um familiar que foi se aliviar no toalete. Um homem chamado Gary (Michael Rooker) pede a atenção dos presentes e pergunta se alguém poderia lhe emprestar alguns galões de gasolina. Ele se aproxima da mesa do tenso Raymond, e pergunta se o rapaz tem como socorrê-lo. Em momento de crise, Raymond precisa pensar em si e em sua acompanhante, e agora que serviços essenciais como Polícia e Hospitais encontram-se sufocados por uma demanda absurda, não pode se dar o luxo de confiar em estranhos. Raymond se desculpa por não ter como ajudá-lo, e Gary reage com irritação. O rapaz está louco para voltar à estrada e seguir seu caminho. Todos estão com os nervos à flor da pele.

À beira da estrada, Matthew, Annie & Joe estão tomando sorvete. Há outros carros estacionados nas imediações de um quiosque. Como a energia elétrica se foi, o dono do lugar gentilmente resolveu oferecer gratuitamente casquinhas de chocolate e baunilha para quem quiser, antes que todo o sorvete derreta. Parece que ainda há espaço para solidariedade no mundo!Naquele lugar deserto, só um sítio indica civilização. Quando Joe & Matthew veem um carro entrando na propriedade, comentam que a BMW "não combina" com o sítio. Ponderando o que há por trás da situação, divertem-se com teorias. Joe diz que provavelmente o motorista fugia de Los Angeles, até descobrir o sítio, invadir, matar os proprietários e tomar conta do lugar como se fosse seu!Matthew sorri e não o leva muito a sério, mas em meio à imprevisibilidade provocada pelo blecaute, não há como saber.

A turma volta à estrada, e consoante o previsto, o indicador de gasolina perigosamente se aproxima do "vermelho". Quando eles dão por um automóvel aparentemente abandonado no acostamento, param do outro lado da via para examinar o tanque e checar se há um pouco de combustível para aproveitarem.  Matthew se aproxima cautelosamente pelo lado do motorista, e toma um susto ao constatar que há uma pessoa dormindo no banco de trás. Gary desperta um pouco confuso, mas após o susto inicial, apresenta-se cordialmente. O motor falhou, deixando-o aprisionado pelo restante da tarde a aquele trecho da rodovia. O diálogo fica tenso quando Gary pergunta se há como lhe darem carona até a cidade mais próxima. Com a bebê dentro do automóvel, e ainda traumatizados pelo assalto da outra noite, o trio reage cismado. Annie indica discretamente com a mão que neguem o pedido e tratem de se pôr em movimento, quando Joe subitamente age mais extrovertido e declara que se fizerem os ajustes necessários com bagagens pode ser que sobre um lugar para Gary. Joe abre a traseira para mexer nas malas, e Annie lhe pergunta o que diabos está fazendo. Assustado, Joe diz que Gary carrega um revólver na cintura, e está agindo daquela maneira amigável apenas para apanhar o rifle e acertá-lo.


O nervosismo embaralha seu senso de julgamento. Apesar de armado, Gary não disse uma única palavra ameaçadora. Quando o trio inicialmente negou carona, mesmo desapontado, pareceu conformado. Ao enxergar uma ameaça inexistente e pegar o rifle, Joe, Matthew & Annie criaram uma situação explosiva que acabará pior. Reflexivamente, ao enxergar Joe fazendo menção de levantar o rifle em sua direção, Gary puxa o revólver da cintura. Joe é atingido na altura do ombro e cai no meio da estrada. Furioso, Gary começa amaldiçoá-los, perguntando aos gritos por que foram provocar confusão quando tudo o que pedira fora por uma simples carona à cidade mais próxima. Revoltado, toma as chaves e ordena que Annie desça imediatamente com a bebê. Gary arranca com o carro de Joe, deixando-os ali sozinhos com a criança de colo no asfalto quente, no meio do nada, com o rapaz baleado.


Matthew, o pacifista racional, agora se vê no papel de herói. Antes, contava com Joe para fazer as escolhas mais difíceis, agora a única salvação reside na sua capacidade de tomar as rédeas para si e conduzir o restante da jornada. Matthew precisa encontrar uma forma de salvar a família e chamar o atendimento médico a tempo. Matthew se recorda do sítio algumas milhas mais para baixo da estrada, e decide correr até lá para buscar ajuda. Antes de partir, Annie o chama de lado, desculpa-se pelo comportamento, o beija e abraça, e insiste que precisa muito que o marido volte são e salvo. Matthew promete retornar, e ao cair da tarde, parte correndo ao longo da vasta, deserta pista, em direção ao sítio. À medida que anoitece, o frio se intensifica. Joe delira, e Annie procura consolá-lo e esquentá-lo. Ao bater na porta, o ofegante Matthew é recebido por Raymond, que havia sido o primeiro a encontrar o sítio abandonado e se estabelecer ali dentro com um parente, até o fim da confusão e o retorno da energia. Confuso, aborrecido e desesperado, Matthew não consegue se explicar muito bem, e ao suplicar que Raymond lhes dê carona no seu carro ao hospital mais próximo, o rapaz procura argumentar que não o conhece, e teme que lhes façam algum mal. Prestativo, ainda oferece comida e água, mas insiste que não tem como abrir mão do automóvel. Matthew & Raymond acabam discutindo. Matthew regressa ao carro para apanhar o rifle e resolver a situação pela linguagem universal da violência.


Flagrado ao invadir a casa para pegar as chaves, Raymond e Matthew criam uma intensa situação onde se apontam revólveres, um gritando para o outro largar a arma. Felizmente, a filhinha de Raymond aparece assustada na sala e os dois homens recobram alguma sanidade. Matthew reitera que só deseja ajudar o amigo. Ele apanhará as chaves, levará Joe ao hospital e depois devolverá o carro a Raymond. Para mostrar sua boa fé e confiança, abaixa o rifle e dá as costas. Quando Matthew está para deixar, Raymond surge no alpendre de mãos dadas com a filha e diz que o ajudará. Pouco depois, os vemos juntos no trecho da estrada onde se deu a confusão, Joe recebendo atendimento médico, sendo levado ao Hospital, onde ficará bem. Ao examinar a carteira do amigo, Matthew fica tocado ao encontrar uma foto sua ao lado de Annie. Ele compreende que a natureza da rivalidade entre os dois não se devia à inveja, mas sim à admiração de Joe pelo companheirismo e as coisas bonitas que Annie & Matthew haviam construído juntos, e a uma enorme vontade de se sentir parte daquela família. Algum tempo se passa. Los Angeles resgatou um brilho ainda mais encantador à chegada da noite. Vemos Matthew voltando para casa depois de um dia de trabalho. A experiência aproximou marido e mulher, e hoje ambos reconhecem não apenas como não devem jamais subestimar o valor de todas as coisas boas que construíram juntos, como tampouco desperdiçar a segunda chance que Deus lhes deu.

Interessante e pouco visto suspense dirigido por David Koepp, aclamado roteirista que apenas três anos mais tarde rodaria o excelente Ecos do Além, com Kevin Bacon, e algum tempo depois, A Janela Secreta, baseado no conto de Stephen King. Aqui já exercitando o talento por trás das câmeras, Koepp fez um filme tenso em seu forte realismo, uma espécie de ensaio para produções de horror mais fantásticas que viriam nesta década, tais como a sensação do momento, Uma Noite de Crime. Lançado nos cinemas em agosto de 1996, The Trigger Effect logo desapareceu das salas de exibições. Apesar de fortalecido por resenhas favoráveis, as pessoas preferiram ver coisas mais movimentadas, e o "metabolismo" do filme de Koepp, mais apetecível a thrillers menos frenéticos como os da década de 70, não o ajudou a competir com superproduções daquele ano em particular. 

Provavelmente, a geração que hoje se entusiasma com Uma Noite de Crime 2, uma feroz montanha russa no curso de uma madrugada de caos, pouco terá com o que se excitar com The Trigger Effect, mas aqueles que prezam atmosfera em favor de cenas de ação conhecerão uma grata surpresa. Mais sutil e realista em seu envolvente estudo psicológico, em como pessoas de um meio tão variado como a cidade de Los Angeles podem se ver surpreendentemente conectadas pelas demandas do dia a dia, The Trigger Effect ainda se reveste de uma incomum, elegante tonalidade misteriosa, ao investigar o papel do destino em nossas vidas. Não por menos, o diretor foi inspirado a rodar The Trigger Effect depois de assistir a um excelente episódio de Além da Imaginação chamado The Monsters are Due at Maple Street, sobre os moradores de um harmonioso bairro de classe média alta que, após um inexplicável blecaute, voltam-se uns contra os outros. Ao final, é revelado que o meteoro que pensava-se ter causado a queda de energia era na verdade uma enorme nave alienígena, e vemos dois seres extraterrestres conversando sobre quão fácil seria conquistar o planeta Terra, vez que o ser humano volta-se contra si ao menor sinal de diferença entre seus interesses mesquinhos. É claro que no filme de David Koepp a questão dos "alienígenas" ficou de fora, no entanto a "mensagem" segue a mesma, velhos amigos capazes de irem na jugular do próximo, assim que uma ameaça exógena, no caso o inesperado blecaute, atribula a falsa superfície de harmonia.

Os rostos de Kyle MacLachlan, Elisabeth Shue & Dermot Mulroney têm sido presença constante em filmes muito queridos, e aqui tiveram a oportunidade de merecer os holofotes. Todos muito capazes, David Koepp lhes confiou personagens complicados para destrinchar, e habitaram seus papéis confortavelmente. Mais famoso pela série de TV Twin Peaks, Kyle MacLachlan dá vida ao clássico herói relutante, visto inúmeras vezes em produções similares: o homem comum que por toda a vida evitou conflito, porém que em um momento de crise, para preservar aqueles a quem ama, encontra dentro de si bravura fora do comum. O ator Harrison Ford, por exemplo, construiu uma carreira dando vida a esse tipo de personagem. Com a carreira investida de novo fôlego após a indicação ao Oscar de Melhor Atriz por Despedida em Las Vegas, no ano anterior, Elisabeth Shue interpreta o elemento-chave do platônico triângulo amoroso. Ela tornou a transformação por que passa - de esposa insatisfeita à fiel companheira que ao final ganha novo respeito pelo marido - um prazer de se assistir. Desencorajada pelos pequenos probleminhas do dia a dia, amontoados de modo a sufocá-la, a ponto de flertar com o amigo como válvula de escape, Annie precisa de um terrível susto para reconhecer e valorizar todas as coisas boas que Deus lhe deu. Dermot Mulroney tem atuado em filmes de sucesso, em uma longa, prolífica carreira. Em breve, terá a chance de sua vida protagonizando Insidious 3, sequência de uma das franquias de horror recentes de maior sucesso, a ser lançada em 2015. Ele mantém o seu personagem uma incógnita até o momento certo. Quando vi o filme pela primeira vez, não imaginava o rumo que o enredo tomaria. Joe se revelaria um psicopata e aterrorizaria o casal durante a jornada? A excelente atuação de Mulroney mantém o personagem envolto em mistério, até finalmente compreendermos que a sua natureza é boa e apenas carecia de se sentir parte de uma unidade familiar, algo similar - porém em menor envergadura - ao dilema do personagem de Robin Williams em Retratos de uma Obsessão. A fotografia também merece aplausos. Conhecedores da obra de Koepp sabem que podem esperar grandes coisas do cineasta, no que importa a visuais. Assim como faria com Ecos do Além, o bairro, o meio onde os personagens interagem e vivem seus dramas merece todo o capricho que lhe é peculiar. Em The Trigger Effect, a fotografia do bairro nobre de Los Angeles, mergulhado em elegantes, suaves pinceladas de azul, contrasta com o amarelado das estradas sem lei. Três anos mais tarde, dedicaria o mesmo zelo ao filmar o bairro de trabalhadores blue collar de Chicago, onde situou seu arrepiante Ecos do Além.

The Trigger Effect padece quando comparado à incessante sequência de emoções de Uma Noite de Crime 2, todavia o que faz muito bem é reinventar um estilo de suspense sacramentado nos anos 70, do qual Deliverance (foto), de John Boorman, e Straw Dogs, de Sam Peckinpah, foram seus melhores expoentes. Mais de trinta anos desde seu lançamento nos cinemas, a graça de Deliverance segue impecável. O filme lançou as carreiras de Jon Voight, Ned Beatty, Ronny Cox & Burt Reynolds (no melhor desempenho de sua vida) e inaugurou uma tendência de horrores baseados no tema Homem versus Natureza. Em 2008, foi eleito pela National Film Registry para preservação na Library of Congress pela sua relevância estética, cultural e histórica. Baseado no romance de James Dickey, Deliverance narra a história de quatro amigos que vão se aventurar em um rio selvagem às vésperas do represamento. Quando dois deles param às margens para descansar e são assaltados por dois colonos, o personagem de Burt Reynolds chega por trás e mata um dos assaltantes com um disparo de arco e flecha. O outro escapa. O quarteto precisa enterrar o cadáver, descer o restante das corredeiras, caçar o segundo assaltante, matá-lo, e despistar a Polícia Rodoviária assim que alcançarem a cidadezinha mais próxima. Mesmo cobertos de razão (o assassinato se deu em autodefesa), os amigos sabem que se forem associados ao desaparecimento dos colonos e submetidos a júri, provavelmente acabarão condenados a penas terríveis naquela cidadezinha de fim de mundo. Roteirizada pelo próprio Dickey (que faz uma participação como o xerife), a versão dirigida pelo britânico John Boorman foi um dos grandes clássicos dos anos 70, indicado aos prêmios de Melhor Filme, Diretor e Edição (Deliverance perdeu para O Poderoso Chefão, mas foi superior em todos os sentidos; a não-indicação de Burt Reynolds ao Oscar de Melhor Ator Coadjuvante pelo seu papel foi um dos mais desastrosos erros da Academia). The Trigger Effect inspira-se fortemente no clássico de Boorman ao analisar a reação de pessoas comuns metidas em situações de conflito extremo. Assim como os amigos que descem as corredeiras em Deliverance, as escolhas de Annie, Matthew & Joe nem sempre parecem as melhores, porém não nos cabe criticá-los, pois a aventura se desenrola de uma forma tão realista que chegamos a considerar nossas próprias reações em situações similares. Neste sentido, ambos os filmes encontram no realismo a força que falta a superproduções movimentadíssimas que banalizam a violência. Na ação recente, assistimos ao herói eliminando os vilões a uma velocidade tão supersônica que tudo perde o impacto, nada nos choca mais. Por outro lado, se você assiste a algo como Deliverance - onde só há três mortes no curso da aventura - tudo guarda um efeito amplificado e mais poderoso. Tomemos como exemplo a cena em que um dos colonos é morto com um disparo de flecha que o apanha nas costas e se pronuncia para fora do peito. Boorman filma a cena com uma incômoda intimidade que nos faz cair a ficha: é o fim da linha para esse cara, está acabado. A morte chega inesperadamente, com suas profundas implicações legais & filosóficas. Perdemos o impacto de momentos assim em filmes de ação modernos que tratam tiroteios como jogos de videogame, tudo muito ridículo e inofensivo. Deliverance continua um suspense relevante pela maestria com que foi conduzido e seus temas atemporais, e poucos rivalizam a sua visceral honestidade. Também em termos de estrutura narrativa, The Trigger Effect recicla a fórmula de Deliverance, onde após matar um dos colonos, o personagem de Reynolds, a figura de estoicismo, força e autoridade, sofre uma fratura exposta na coxa, transferindo ao hesitante Voight a missão de caçar o segundo, matá-lo e tirá-los da garganta do vale. Em The Trigger Effect, Mulroney encarna o homem endurecido à vontade com conflitos, inesperadamente retirado de combate por um disparo de arma de fogo, o que força o pacifista MacLachlan a salvar suas vidas. Com The Trigger Effect, David Koepp moldou seu trabalho nos autênticos suspenses que fizeram dos anos 70 a Era de Ouro do Cinema Moderno e nos deram talentos como Dario Argento & Brian De Palma. Os amigos que prezam suspenses intrigantes e diferenciados não sabem o que estão perdendo!The Trigger Effect foi lançado em DVD no Brasil com o título Efeito Dominó (não confundir com o outro filme de mesmo nome estrelado pelo ator Jason Statham) e pode ser facilmente adquirido. Não percam!

Todos os direitos autorais reservados a Universal Pictures. O uso do trailer é para efeito meramente ilustrativo da resenha.