



A Esposa. Ruth (Mary Beth Hurt) é uma sofrida senhora que passou a vida cuidando de Carl (Nick Searcy), o marido emocionalmente distante e desapegado. O casal mora em uma casa ao lado do trabalho de Carl, um parquinho de rent-a-storage, conjunto de pequenas unidades utilizadas como depósito. Carl é o responsável pelo atendimento e administração das facilidades, porém na maior parte das vezes recai sobre os ombros de Ruth o ônus do cansativo trabalho. Recentemente, o marido vem se distanciando mais de casa, sempre com desculpas de que precisa dirigir para espairecer um pouco, apenas para voltar dois ou três dias depois sem oferecer explicações para a desapontada esposa. Ruth acredita que Carl relaciona com prostitutas e depois traz para casa toda sorte de doenças. Por um acaso do destino, está para descobrir o horroroso segredo do marido. Uma noite, quando já está com chaves em mãos a caminho da porta, Ruth o interpela. Como de costume, Carl é evasivo nas respostas, e quando Ruth se irrita e questiona sobre quando pretende voltar, o marido diz não saber ainda. Ruth começa a chorar, lamentando não entender por que ele a odeia tanto. Chateado, certo de que nada do que possa fazer irá consolá-la, Carl parte para seu passeio de carro. Na manhã seguinte, conforme esperava, Ruth se vê tendo de conciliar afazeres domésticos com o atendimento no depósito, pois Carl ainda não retornou, e o rapaz que costuma ficar em seu lugar também não deu as caras. Dois cavalheiros se apresentam procurando por uma vaga, e meio a contragosto, Ruth apanha a chave de uma unidade qualquer disponível. Para sua surpresa, ao mexer em um dos armários, encontra um saco plástico lacrado contendo peças íntimas de mulheres. Ela logo se recompõe e os leva a uma outra unidade. Mais tarde, ao examinar melhor o "depósito secreto" de Carl, descobre sandálias e pares de tênis femininos, mais peças íntimas sujas de sangue e até mesmo a carteira de habilitação de uma jovem da Califórnia. Investigando as páginas policiais do jornal local, intriga-se com a notícia sobre a oitava vítima de um serial killer atacando na região. A vítima?A moça cuja carteira de habilitação encontrou nas coisas de Carl. Quando o marido retorna naquela noite, Ruth está assistindo ao telejornal. Para testar sua reação, deixou sobre o bar a notícia sobre a oitava vítima, dobrada. Ela vê quando, pensativo, Carl apanha as folhas e dá uma rápida conferida. Ao se juntar à esposa na sala de estar para assistir à televisão, Carl fala qualquer coisa sobre obras na estrada. Ela menciona os arranhões no pescoço, a que Carl justifica como resultado de uma briga no bar. A esposa não o poupa, e volta a acusá-lo de sair por aí para satisfazer "perversões" com prostitutas. Apesar de inicialmente negar, Carl perde a cabeça e grita para que o deixe em paz e vá cuidar da própria vida. Ele deixa a sala apressado, sob as ameaças da mulher, que lhe avisa saber o que tem aprontado. Pela janela da cozinha, Ruth ainda o enxerga abrindo o porta-malas para apanhar uma sacola, provavelmente as roupas de uma nova vítima. Ela acaba cochilando, e quando Carl finalmente retorna, agora com os ânimos mais calmos, prepara o jantar. Ruth faz parecer casual ao perguntar a Carl se conhece alguma daquelas garotas mortas, e ele se limita a dizer que não. Depois que o marido adormece, Ruth abre o depósito usado por Carl, e encontra roupas ensanguentadas de alguma pobre nova vítima. Ela reúne todos aqueles itens macabros que o implicam nos assassinatos, e parte com o carro. Àquela hora da noite, na estrada quase vazia, ao passar ao lado de uma caroneira no acostamento, não tem como deixar de pensar nos terríveis crimes cometidos por Carl. Por um momento, pensativa dentro do carro, defronte à delegacia de Polícia, parece hesitante em entregá-lo. Por mais que tenha sofrido ao lado de Carl, para melhor ou pior, ele é a sua única companhia na terceira idade. Ao final, o compromisso ao marido fala mais alto, e ao invés de denunciá-lo, leva os itens a um terreno baldio onde toca fogo nas provas, apagando seus rastros.




Um
dos últimos filmes da saudosa e inesquecível atriz Brittany
Murphy, A Garota Morta foi rodado em 2006, quando sua
carreira não vinha particularmente bem, e grandes projetos não
chegavam mais às mãos de seus agentes. Pouquíssimo visto, foi
exibido no circuito alternativo por apenas duas semanas, não recuperando nas bilheterias sequer os custos de produção, o que foi
mais um duro golpe do destino da atriz, vez que além de
drama fenomenal, traz seu definitivo desempenho. Triste, contundente,
sombrio e surpreendentemente humano, A Garota Morta é um
filme que merece ser redescoberto e admirado, principalmente por
cinéfilos que se recordam de Brittany Murphy
primordialmente por As Patricinhas de Beverly Hills. Seguindo uma generosa
tendência recente, A Garota Morta não se firma em uma única
protagonista. A sua força reside na teia de interessantes
personagens que cria em torno do mistério principal. Sustentado por
performances excepcionais de um vasto elenco de nomes muito
talentosos, o filme reafirma a crença de que não há papéis
pequenos, a todos concedida a oportunidade de brilhar.
Estilisticamente,
o filme adota a mesma proposta do ótimo Crash
No Limite, de Paul Haggis (não confundir com o
brutal suspense homônimo de David Cronenberg lançado em
1996), uma miscelânea de vidas perdidas que no curso de uma
noite se esbarram com resultados imprevisíveis pelas vias de Los Angeles. O que A Garota Morta
guarda como carta na manga é uma história mais trágica e sensível, em
torno da qual os diferentes dilemas de seus personagens orbitam. Um
verdadeiro mergulho no lado mais escuro e perverso da vida, a
experiência se torna mais claustrofóbica e poderosa graças à
competência com a qual o filme foi rodado. Demonstrando habilidade
em sua primeira vez atrás de uma produção de envergadura, a
diretora Karen Moncrieff cercou-se de uma equipe de primeira
para estrear com um trabalho verdadeiramente relevante, que lhe valeu
uma promissora carreira (ela dirige o novo filme da estrela Kate
Beckinsale, The Trials of Cate McCall) e ainda revelou o
potencial de muitos artistas que se tornariam astros nos anos por
vir (Kerry Washington & Rose Byrne & Josh Brolin).
Em
sua primorosa fotografia, reminiscente do extraordinário Menina
de Ouro, do diretor Clint Eastwood, A Garota Morta
parece em iguais, generosas doses granulado, melancólico e deprimente. O filme veste
um véu sombrio, mas ocasionalmente permite-se instantes de
pequenas, simples alegrias, que tão exponenciais face ao contexto
sufocante e desesperançoso mais se assemelham a momentos de
absoluta glória, a entrada de um sol radiante para afastar a escuridão, mesmo que por alguns frágeis minutos. O
filme segue nessa linha de montanha-russa de conflitantes emoções –
horror, desesperança, fé, alegria – e Moncrieff usa a
perícia de sua equipe ao máximo. Em seu segmento final, a história
da "garota morta", o filme me lembra a atmosfera criada
por Morten Soborg para o apavorante suspense w Delta z,
principalmente na cena em que Krista procura conversar com a
amiga por um telefonema que faz de uma cabine: você a enxerga ali,
diminuta, insignificante (o take é realizado a uma certa
distância), a noite fria e indiferente, postes muito altos deitando
uma luz fraca e amarelada sobre a cena, neon borrado vindo de
vitrines de comércios fechados, à beira da estrada, composição perfeita para um
cenário de abandono e oportunidades perdidas.
Produzido
com um orçamento modesto, A Garota Morta não parece apenas
um trabalho de amor para sua diretora. O elenco, composto por nomes
de peso, catapulta o filme a um patamar realmente invejável, não
deixando dúvida alguma de que aquelas pessoas estão
envolvidas por compartilhar do mesmo entusiasmo de Moncrieff pelo material. Famosos pelos grandes filmes em que atuaram –
quem não se recorda de Rose Byrne em Insidious, por exemplo? - os
atores devem ter aceitado o trabalho pelo pagamento de escala, apenas
pela oportunidade de terem seus nomes vinculados a uma obra tão
dramaticamente importante. Rose Byrne, cujos olhos tristes
sempre a tornam muito expressiva, dá uma grande performance como a
irmã Leah, uma jovem mulher que deixa a flor da juventude ir
embora anestesiada pelo luto que é forçada a vestir, graças à
incapacidade da mãe de aceitar os fatos da vida. Byrne
ilustra a batalha diária da vida a partir de momentos
absolutamente ordinários, através dos quais enxergamos como a depressão
vem corroendo e arruinando o período que teoricamente deveria ser o melhor,
mais produtivo de sua vida. Com muita dignidade, James Franco
dá vida ao colega de trabalho que consegue "enxergar além",
e, com muita paciência, desarmar a couraça que a personagem de
Byrne veste para conseguir conviver com a terrível dor. A
cena quando primeiro consegue "rachar" a armadura – os
dois no balanço, alheios à festa, quando Franco a beija –
só funciona em razão da honestidade que ambos investem na cena.
Diferente de filmes românticos onde tudo parece "muito
perfeito", aqui o primeiro beijo traz um gostinho especial de
sinceridade. Nenhum dos dois parece certo em dar o primeiro
movimento, e quando Franco a toca, o faz de maneira hesitante,
até o beijo acontecer. O natural constrangimento até o instante
em que seus lábios se conectam dá o tom ao tratamento que o roteiro
concederá ao restante de seus personagens e à forma como contará a
história: diferente das resoluções fáceis de produções maiores
e formuláicas, A Garota Morta captura a vulnerabilidade
humana e as contradições de seus personagens por lentes mais honestas. Nem sempre parece bonito, mas jamais soa desonesto ou falso. Em
papéis menores, veteranos como Bruce Davison, Mary
Steenburgen, Piper Laurie e Toni Colette prestam
valiosas contribuições. Mais lembrado pelo seu importante papel em
Longtime Companion, uma das primeiras produções a abordar o
impacto da AIDS na comunidade gay, Davison interpreta o pai de
Leah, o único capaz de enxergar o mal causado pela cega
obstinação da esposa em apegar-se à ilusão do retorno da filha. Em seus momentos ao lado de Byrne, Davison
emana o calor e a compreensão que a salva momentaneamente de seu
dilema. Piper Laurie basicamente resgata sua personagem
mais famosa, a Margareth White do primeiro Carrie, A
Estranha (a versão dirigida pelo grande Brian De Palma
nos anos 70). Aprisionada à cama por alguma enfermidade, sublima a
frustração cobrindo a filha de abusos verbais. Ainda assim, consegue
alternar a perversidade com pequenas, imprevisíveis revelações de vulnerabilidade, como quando descobrimos que tem medo de dormir
sozinha e só consegue repousar se a filha estiver presente. Toni
Colette ganhou notoriedade como a mãe solteira sofredora de O
Sexto Sentido, mas felizmente jamais pareceu o tipo de atriz que
ambicionava o "estrelato", optando por um caminho mais
artisticamente satisfatório. Em A Garota Morta, compõe com
muita sensibilidade a personagem de uma "criança" presa
ao corpo de mulher adulta. Os abusos psicológicos sofridos nas
mãos da mãe a aleijaram de qualquer ferramenta social necessária
para ao convívio em grupo, e o seu mundo parece resumir-se à enorme casa
ou ao mercadinho onde conhece o personagem de Giovanni Ribisi,
o homem que a incita a acessar a própria sexualidade e questionar
seu lugar no mundo. Mesmo com o pouco tempo que lhe foi concedido,
Mary Steenburgen causa forte impressão como a mãe apegada à irreal crença de que a filha desaparecida retornará. Ela acaba por
destruir a vida da outra filha, que insiste em ficar a seu lado na cruzada que
vem lhe custando uma existência normal e feliz. Outras magníficas performances também
enriquecem o filme, e Marcia Gay Harden & Kerry
Washington se completam maravilhosamente no penúltimo segmento,
quando começamos a nos aproximar da verdadeira identidade da garota morta.
Apesar de não se poder falar propriamente em uma única
protagonista, ao lado de Brittany Murphy, Marcia Gay Harden
e Kerry Washington capitaneiam a linha de frente, e às duas recai a difícil missão de "definir
o jogo" com algumas das cenas mais difíceis e memoráveis. Depois de toda a dor que vimos nas histórias anteriores, cabe às duas atrizes "equilibrar a balança", e conseguir fazer brilhar algum tipo de centelha de alento, em meio à escuridão. Se a jornada até o encontro das duas foi extremamente melancólica, ao menos a escuridão serviu a seu propósito, pois somente nos momentos mais sombrios conseguimos enxergar o sol em toda sua glória ao retornar - e o sol sempre encontra o jeito de subir para expulsar as trevas. Washington & Gay Harden comunicam essa mensagem em instantes muito doces e especiais, como quando A Mãe (Gay Harden) & Rosetta (Washington) visitam o pequeno apartamento onde Krista deixou a filhinha, e a vemos chorosa e confusa em meio a uma porção de outras crianças de sua idade. A forma como Gay Harden a chama para si e a abraça como própria filha muito bem simboliza a ideia da entrada do sol após uma noite que parece ter durado mais do que devia; a mesma sensação requentada de redenção ocorre quando lhe assistimos dando um banho na menininha suja, vestindo-a com roupas novas, dando de comer e depois a colocando para dormir. Quando as duas se despedem, a história das duas personagens felizmente termina em uma nota positiva, Melora levando a neta para criá-la como filha, e deixando o cartão para que Rosetta a procure, se um dia desejar deixar a vida terrível de garota de programa. No segmento encabeçado pelas duas, eu me recordei de um outro filme igualmente pouco visto, mas bastante especial, chamado Freedomland, com Samuel L. Jackson. Em Freedomland, Samuel L. Jackson interpretava um policial veterano investigando o desaparecimento do filho de uma sofrida mãe solteira. Ele acaba descobrindo a verdade: o menino não havia sido sequestrado, mas morto. É que para poder sair com o namorado, a mãe acabou dando um comprimido para dormir para o filhinho, que morre por uma reação inesperada ao remédio. Cheia de remorso e horror, ela forjou toda a história, ao final desvendada pelo detetive. O filme não a retrata como vilã, na verdade sentimos muito pela sua situação. Há uma cena bonita, no final, quando Samuel L. Jackson vai visitá-la na prisão, e eles têm esse bonita conversa, onde ele procura colocar as coisas sob perspectiva e lhe convencer que ainda terá outra oportunidade na vida para ser uma mãe melhor para outro filho. Ele entende a dor da moça, pois o caso acabou por forçá-lo a refletir sobre a própria vida, onde reconhece que não foi um bom pai, e que é dificílimo colocar uma criança neste mundo e cuidar (no filme, apesar de um brilhante tira, o Samuel L. Jackson não conseguiu ser um pai presente na vida do filho, que acabou na cadeia por alguma delinquência qualquer). Eu transcrevo aqui essa linha de diálogo emocionante, ponto alto de Freedomland, e talvez o melhor momento da carreira de Samuel L. Jackson "... E
os meus amigos dizem, você não é culpado por ele ter parado na
prisão, ele tem que assumir a responsabilidade pelo que fez. Mas
cá entre nós, a culpa foi minha. Eu me sinto responsável porque
ele é o tipo de homem que eu o ensinei a ser: egoísta, fora de
controle. Eu nunca estive presente diariamente, e quando eu estava,
ficava brigando com a mãe dele. É sim, era assim que eu era. Na
época, eu não dava a mínima. Agora ele está na prisão, e
provavelmente vai entrar e sair da prisão pelo resto da vida. Já é
tarde demais, mas tudo o que eu quero agora é não abandoná-lo. Mas
com filhos, não importa o que você fez ou o quanto você errou,
Deus sempre acha o jeito de nos dar outra chance. Pode não ser com
aquele garoto em particular. O que eu estou tentando dizer é que a
graça de Deus é meio retroativa, e então todas as crianças dos casos em que trabalho são o meu filho, eles não têm o meu sangue, mas posso
conviver com isso. E sou feliz. Minha vida é boa".




A Garota Morta permanecerá o momento definitivo da carreira da talentosa Brittany Murphy, uma atriz que partiu muito prematuramente, mas nos deixou a inesquecível marca registrada de seu sorrisinho sagaz e traquejos espevitados. Naquele distante 19 de julho de 1995, quando As Patricinhas de Beverly Hills estreou nos cinemas, Brittany dava o pontapé inicial em uma carreira que ficaria marcada, em grande parte, por comédias românticas despretensiosas que trariam alegria para muita gente. Seu papel em A Garota Morta veio em um momento difícil da carreira, quando grandes produções não passavam mais pelas suas mãos e uma nova geração de atrizes preparava-se para relegar as estrelas dos anos 90 `a margem da indústria. Muitas das atrizes da década de 90 se reinventaram - Alicia Silverstone, Jennifer Love Hewitt, Sarah Michelle Gellar - e encontraram na TV novos veículos, em aclamadas séries de muita qualidade; outras, insistiram nos filmes, e acataram com graciosidade a transição de filmes de estúdio para trabalhos no mercado direto-para-DVD ou papéis secundários em grandes produções. Curiosamente, A Garota Morta não foi nem filme para mercado direto-para-DVD, tampouco superprodução. Ao contrário, a diretora Karen Moncrieff financiou um belíssimo filme independente e concedeu a Brittany a oportunidade única de uma carreira para interpretar o centro moral dessa história sobre pais & filhos. Rodado em 2006, apenas três anos antes de sua morte, A Garota Morta só foi descoberto recentemente, após sua partida. O fato de o filme não ter merecido uma maior amplitude `a época do lançamento foi trágico - A Academia realmente ficou lhe devendo uma indicação a Melhor Atriz, em um momento que poderia ter engrenado não apenas uma reviravolta positiva para a vida profissional como para a pessoal. Coincidentemente, poucos meses após a morte de Brittany, foi a vez de Corey Haim, um outro jovem talento, perder tragicamente a vida. A morte de Corey Haim particularmente me assombrou por um tempo, pois apesar de eu guardar lembranças queridas de seus filmes na época do estrelato - Sem Licença para Dirigir & Os Garotos Perdidos - desconhecia a extensão dos problemas pessoais pelos quais atravessou, batalhando contra desemprego, ostracismo, problemas financeiros e dependência química, ao longo dos anos 90 e 2000. Na segunda metade dos anos 2000, o canal A&E produziu um reality show chamado The Two Coreys, que basicamente promovia o reencontro de Corey Haim & Feldman, astros dos anos 80, agora tantos anos após o estrelato já homens crescidos. Corey Haim, um ator desempregado, foi morar por um tempo na casa do melhor amigo, Feldman, um artista que ainda se mantinha ativo na indústria, e agora era homem casado e pai de família. Apesar de todas as confusões (a esposa do Feldman não suportava Haim), a amizade entre os dois realmente se destacava. O programa fez muito sucesso, deu-nos uma dimensão mais humana desses dois ícones do passado. Eu me recordo que passei a enxergá-lo de forma mais gentil, e que torci muito para que conseguisse reerguer a própria vida. Claro que não esperava que Corey Haim voltasse a ser super astro de Hollywood, mas gostava da ideia de vê-lo voltar a atuar em filmes menores, ou no teatro, na Broadway, quem sabe superar de vez os problemas da dependência, encontrar uma moça legal, casar, ter filhos… Foi um grande homem, Chico Xavier creio eu, quem disse algo nas linhas de você não ter como reescrever o passado, mas poder definir um novo desfecho para sua própria história. Por um tempo, eu achei que a vida do Corey Haim entraria nos eixos, mas apenas dois anos após o fim do reality veio a notícia de sua morte. As circunstâncias como tudo ocorreu ficaram grafadas na memória, pois eu ficava pensando nesse vídeo feito no final de 1989 onde ele falava sobre onde se via, dali a vinte anos, e dizia imaginar-se morando em uma casa de praia onde os dias seriam mais longos pois o sol sempre brilharia mais forte, e se distrairia vendo as ondas quebrando, os peixes brincando, enquanto seguiria fazendo filmes relevantes de sucesso. Vinte anos mais tarde, estava morando de aluguel com a mãe em Oakwood, um condomínio famoso entre atores novatos de passagem em Los Angeles para realizar audições, e que precisam de estadia barata por uma ou duas semanas. Depois de todo o sucesso nos anos 80, Corey terminava praticamente onde havia começado: um condomínio simplório usado por atores de passagem. Um rapaz que morava em Oakwood e falou com a imprensa após a morte de Corey disse que costumava vê-lo passeando pelo condomínio, como à procura de alguém para conversar. Na época, ele procurava se reerguer psicologicamente, pois precisava ser forte para a mãe, que enfrentava um câncer de mama. Na noite em que morreu, a mãe disse que ele havia acordado assustado, e perguntado se podia se deitar a seu lado, pois não estava se sentindo muito bem. Pouco depois, sofreu o ataque cardíaco que lhe custou a vida. Após a morte do Corey Haim, muitos colegas se manifestaram. Havia essa atriz canadense, Nicole Eggert, hoje uma senhora, que parecia particularmente devastada. Ela o havia conhecido no início dos anos 90, no auge da juventude e beleza, quando rodaram juntos um suspense. Eles se apaixonaram, Corey ficou de propô-la em casamento, mas por alguma razão os sonhos não se materializaram. Eles se distanciaram, e os anos foram se passando. Foi só recentemente, em uma entrevista, que Corey Feldman falou sobre as razões para o tormento do amigo. Ele dizia que estava revisitando fotos do álbum de fotografia, dos tempos em que ambos eram muito jovens, quinze, dezesseis anos de idade no máximo. Feldman viu essa foto de seu aniversário de quinze anos, onde aparecia sentado ao lado de Haim, e pela primeira vez caiu a ficha de que a maioria dos adultos que também constavam no retrato eram pedófilos ou predadores sexuais que mais tarde seriam pegos em indiscrições com outras vítimas. Somente tantos anos mais tarde, reavaliando a história com olhos de adulto, Feldman percebia o quanto, aos quinze anos, ambos pareciam alheios à toda aquela gente ruim em volta, à maneira como tiravam proveitos financeiro e sexual da falta de discernimento da dupla, e se perguntou horrorizado onde estavam seus pais, que os deixaram a mercê do pior tipo de escória. Há alguns paralelos entre as histórias de Corey Haim & Brittany Murphy, pois ambos parecem ter sido vítimas da traiçoeira aclamação passageira. A pressão do sucesso pode ser terrível, principalmente quando a indústria passa a descartar seus artistas mais queridos em favor das sensações do momento. Hoje, espero que tenha encontrado o caminho para a praia sobre a qual tanto falava, onde os dias seriam mais longos, o sol sempre quente, as marés frescas, e as ondas semelhantes a espumantes ao quebrarem na costa. Quando ele falou sobre como via a própria vida dali a vinte anos e fez essa descrição da praia, penso que é o tipo de coisa que um garoto diria, e talvez seja por isso que o fim destes dois atores pareça tão assombroso e semelhante. Eram pessoas muito jovens, e podiam fazer tanto ainda com suas vidas. Lamentavelmente, quando jovens, somos também ingênuos demais para saber melhor. Dia desses, eu vi um documentário muito interessante sobre a vida do Mike Tyson. Para mim, Tyson é tão fascinante quanto alguém como Burt Reynolds porque muito facilmente encontramos exemplos de pessoas que alçaram grandes voos e então aprenderam a descer graciosamente do topo para conviver saudavelmente com o "segundo lugar", mas apenas muito raramente conhecemos histórias de outras que estiveram sozinhas no topo, em uma classe só sua, para depois perderem absolutamente tudo. Tyson foi o fenômeno do boxe que por sete anos manteve-se imbatível - Marciano, Dempsey, Ali, não havia ninguém capaz de tocar sua graça - mas então perdeu tudo com o divórcio que ferrou sua cabeça e seu Waterloo particular, os punhos de James Buster Douglas. Burt Reynolds foi Número Um nas bilheteria por cinco anos consecutivos (1977-1981), e então tudo acabou com a chegada dos anos 80 e uma nova geração de astros de ação encabeçada por Stallone e Schwarzenegger. Mais ou menos na mesma época, sofreu uma fratura na mandíbula que transformou sua vida, pois não conseguia mais se alimentar normalmente, e emagreceu como um homem vitimado por doença terminal. Estamos falando de um tempo em que a AIDS parecia coisa de filme de horror. Não custou a invejosos plantarem rumores sobre ele estar morrendo de AIDS. No mesmo ano, a atriz Sally Field, ainda amargurada pelo fim do relacionamento, deu uma entrevista à revista Playboy, e ao ser perguntada sobre os rumores, disse algo nas linhas de que "onde há fumaça, há fogo", o que definitivamente causou mais dano `a sua carreira. Depois que a verdade finalmente apareceu - ele não tinha AIDS - o estrago havia sido feito, e se tornara definitivamente um ex-astro de ação. O fato de Tyson e Burt Reynolds terem sobrevivido a tantos altos e baixos, Reynolds inclusive ter sido atraiçoado pela mulher que um dia amou, é um testamento à força do espírito humano e sua capacidade de superação, e por isso gosto de prestar muita atenção ao que os dois têm a falar. De toda sorte, voltando ao ponto anterior - o quanto não sabemos muito quando jovens e o caríssimo preço que o desconhecimento nos custa - em dado momento do documentário, Tyson falava sobre o casamento com Robin Givens e como os anos lhe deram uma nova perspectiva sobre a própria história. Na época, eram garotos, ambos aos vinte e poucos. A imprensa o ilustrava como o homem mais violento e perigoso do mundo, e ela como uma alpinista social inescrupulosa interessada em dinheiro. No final, e após todos aqueles anos, percebia que não era nem uma coisa ou outra. Eram apenas garotos, jovens demais para saber melhor. Hoje, apesar das circunstâncias, depois que a fachada de mito caiu por terra com as derrotas que se seguiram, distanciado da glória do passado e pai de 8 crianças, consegue enxergar o mundo com mais clareza e gratidão. Em 1989, quando começou a se perder, e pensava saber tudo sobre as pessoas, Robin era a vilã e inimiga. Agora, como pai, reconhecia que então ambos eram praticamente crianças, em um mundo que pode ser implacável para ingênuos e despreparados. Somente o tempo poderia tê-los salvo, pois com os anos, teria vindo junto o discernimento que lhes permitiria compreender que por maiores que os problemas parecessem, depois de um tempo, não passariam de bobagem, já que em um contexto mais amplo, a vida sempre se prova muito maior. Muitos - Corey Haim, Brittany Murphy - não conseguiram resistir `a pressão do sucesso, mas aqueles que de fato sobreviveram `a loucura - Tyson ou o próprio Burt Reynolds - exibem a recompensa inestimável de enxergar tudo o que se passou sob uma perspectiva mais generosa e gentil. Por mais tarde que pareça, como o próprio personagem de Samuel L. Jackson em Freedomland disse, a graça de Deus é retroativa, e por mais que tenha errado, Ele sempre nos dá a oportunidade de fazer dos limões uma limonada. Desde o lançamento de As Patricinhas de Beverly Hills em meados de 1995, o começo de sua história de sucesso, até a despedida, em 2009, Brittany Murphy teve praticamente 15 anos de experiências para desenvolver um novo tipo de percepção que falta a todos no início da jornada. Apesar de nos ter deixado já mulher adulta, espero que assim como a Haim, Deus a tenha preservado como a mesma menina do começo. É bem verdade que viver equivale a perder. Os anos se asseguram de arrancar camadas e mais camadas de superficialidade, levando junto a beleza ou as posses ou a saúde ou as falsas bajulações até nos restar o absolutamente essencial: caráter, coração, capacidade de empatia pelo próximo, aquilo que verdadeiramente nos humaniza. Apesar de este doloroso processo de aprendizagem fazer parte de nossas vidas, espero que após a partida, Deus tenha conservado aqueles que se foram cedo demais em um momento antecedente `a perda das ilusões, no caso de Brittany, aquele verão de 1995 quando As Patricinhas de Beverly Hills estreava, preservado como inseto em âmbar, quando um ano custava a eternidade para se acabar, a vida inteira estava por vir, e dias alegres costumavam vir acompanhados pelo mais caloroso sol possível. Apesar de sensacional enxergar o mundo pelos olhos de adulto, jamais nos sentiremos tão bem quanto uma tarde qualquer em 1995, quando o mundo era expectativas, e éramos garotos.
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