terça-feira, 14 de outubro de 2014

"The Trigger Effect" (1996, David Koepp) Antes de "Uma Noite de Crime", existiu "The Trigger Effect"!

Matthew & Annie (Kyle MacLachlan & Elisabeth Shue) - um jovem casal buscando manter a chama da relação amorosa acesa após o nascimento da filha e as demandas da vida em comum – estão para enfrentar o maior desafio de suas vidas, um evento que colocará em teste a força de seu amor e até a que ponto estão dispostos a chegar para defender a si e à filhinha. The Trigger Effect começa em uma animada e comum noite de sexta-feira em Los Angeles. Em uma rara oportunidade, Matthew & Annie conseguiram tirar a noite só para si, pois deixaram a filhinha sob os cuidados da baby sitter para assistir a um filme no shopping. Rodado em 1995, muitos anos antes de uma série de dramas urbanos que viriam a explorar a forma como pessoas de diferentes alçadas veem-se entrelaçadas pelo peculiar senso de humor do destino (21 Gramas & Babel os melhores exemplos), o diretor David Koepp já abre o filme com uma cena que reforça a assertiva, quando vemos um rapaz "cortado" por uma moça sem educação na fila para a pipoca voltando de mau humor para a sala de cinema, onde se dará uma cena importante que estabelecerá a dinâmica do relacionamento entre os personagens principais.

Annie & Matthew estão assistindo ao filme, quando o rapaz em questão retorna à sala, bastante chateado. Ao contar o incidente ao amigo, Annie pede baixinho para que procure fazer silêncio, e o rapaz reage com grosseria, murmurando um palavrão qualquer e resmungando que não o amole. Matthew sugere para que se sentem mais para trás, e o casal deixa suas cadeiras para o fundão. Apesar de nada mais grave advir do atrito, a briguinha fica na cabeça de Matthew pelo restante da noite, e quando estão pagando o ticket do estacionamento para ir embora, vocaliza seu remorso ao murmurar desejar ter feito alguma coisa na hora, quando o rapaz foi áspero com Annie. O casal mora em um encantador bairro de classe média, mas a residência está passando por reformas, o que deposita peso extra sobre o stress da vida conjugal. Ao voltarem para casa, encontram a nenê um pouco chorosa por conta da infecção no ouvido que teima voltar.

Matthew liga para o médico, que pede para que os dois não se preocupem, apenas mantenham a aplicação das gotinhas pois ela melhorará. Trocando de roupa para deitar, conhecemos melhor a natureza do distanciamento entre os dois. Quando Matthew menciona um relógio seu desaparecido e fala sobre os homens da construção transitando livremente dentro da casa para finalizar a obra, sugere que algum dos rapazes tenha apanhado o relógio. Annie então recomenda que o marido os confronte a respeito, e Matthew tem uma mudança de tom, ao responder que não seria boa ideia acusá-los sem prova, o que apesar de uma boa razão evidencia a sua incapacidade de lidar com conflitos. A dificuldade de liderar vem minando a relação veladamente, e quando os dois quase começam a namorar naquela mesma noite mas a bebezinha acorda chorando, vemos que o descuido do casal em lidar com os desafios do dia a dia os está deixando cada vez mais alienados um do outro.

Em dado momento da madrugada, um maciço blecaute afunda a cidade na mais absoluta escuridão, e Matthew sai com a lanterna para dar uma averiguada. Ele encontra Steph, o vizinho da frente, que também não tem ideia do que aconteceu. Nenhum dos dois parece preocupado, pois acreditam que a energia voltará mais tarde. Matthew & Annie despertam na manhã de sábado para péssimas notícias: a energia não voltou e a infecção do ouvido da bebê piorou. As gotinhas acabaram, e Matthew apanha a chave do carro para buscar mais na farmácia. Ao ligar o rádio do automóvel, vê que até mesmo as faixas estão fora do ar. Na drogaria, Matthew é pego de surpresa quando o farmacêutico recusa-se a vender sem prescrição médica. Agora que as linhas telefônicas estão fora de serviço, Matthew nem sabe como contatar o pediatra para obter a prescrição. Ele discute com o vendedor, e volta frustrado para casa. Ao encontrar a bebê chorosa, Matthew decide resolver a situação "na marra". Ele ainda tenta conseguir a prescrição em um hospital público, mas ali somente encontra muita gente à frente. Desesperado, retorna para a drogaria, e em um momento de distração, furta as gotinhas. O farmacêutico vê, mas Matthew evade-se do local correndo, e mesmo perseguido, consegue entrar no carro a tempo de arrancar.

Ao voltar com as gotinhas e contar o que fez para consegui-la, Annie o beija, aliviada, e os dois começam a namorar ali mesmo na sala, até serem interrompidos por um visitante. Inicialmente assustados, logo relaxam ao ver que se trata de Joe (Dermot Mulroney), velho amigo do casal que assim como os demais parece confuso com o blecaute. Muitas teorias sobre a falta de energia andam circulando, mas Joe diz que o que o preocupa são histórias sobre saques a mercados e assaltos às casas, agora que Los Angeles mergulhou na "Idade das Trevas". A única forma de saber melhor seria andando pelo epicentro da confusão, downtown Los Angeles, e o trio dirige até lá para ver se descobre algo. Em downtown Los Angeles, somente encontram engarrafamento, brigas no meio das ruas, cidadãos estressados e semáforos imprestáveis. Durante o passeio, Annie faz um convite que parece incomodar o marido, ao chamar Joe para ficar com o casal até o blecaute passar. Será divertido, como uma festa de acampamento, ela brinca, e Joe diz que aceitaria o convite se Matthew não se importasse. Apesar de ressabiado, o marido retruca que não há problema e o amigo pode sim passar a noite em casa.

Agora que Joe se juntou ao casal, eles precisam discutir como se preparar para a noite. Como por ora não podem contar com cartões de crédito, juntam todo o dinheiro e fazem uma lista de prioridades. O rumor do helicóptero da Polícia, sobrevoando aquelas redondezas, deixa-os "espertos" quanto a necessidade de se protegerem dos assaltos. Joe e Matthew concordam que fariam melhor adquirindo uma arma para proteger a casa, mas Annie se coloca contrária à ideia. Apesar da oposição da mulher, os dois saem para adquirir uma arma de fogo. A relação competitiva entre os amigos azeda por causa de um comentário inocente feito por Matthew. Ele pede que Joe escolha a arma pois como trabalhador braçal do ramo de construções deve compreendê-las melhor. Em uma prova de como as pessoas podem mostrar o seu absoluto pior em situações críticas, o vendedor subiu o preço das mercadorias, e por um rifle e balas que não valem mais do que cem dólares, cobra trezentos. A dupla acaba cedendo e adquire o rifle e a caixa de munição.


A caminho do carro, Joe desabafa que não gostou de seu comentário. Procurando resgatar seu bom humor, Matthew brinca e retruca que Joe poderia passar por um verdadeiro homem das cavernas. Joe "vai na ferida" ao devolver Mas a sua mulher ficou feliz ao ver o homem das cavernas aqui! O diálogo explicita o motivo da competição entre os dois: apesar de mais bruto e resolutivo, Joe inveja a carreira de sucesso, a inteligência privilegiada, a casa em bairro nobre e a esposa bonita de Matthew. Provocante, Annie parece enxergar o conflito psicológico, e perigosamente joga lenha na fogueira. Naquela mesma noite, quando estão bebendo vinho bem no meio da sala, Annie atiça a rivalidade. Queixando-se de calor, usa poucas roupas, e o ciumento marido resmunga Tente permanecer vestida. Os três beberam um pouquinho além da conta, é questão de tempo para irromper uma discussão. Em dado momento, Matthew encontra os dois na cozinha, cochichando, e se enfurece quando Joe faz uma piadinha sobre se o rapaz não gostaria de saquear o mercado para trazer mais whisky. Annie contou ao amigo a parada da farmácia, na manhã daquele dia, desobedecendo o pedido do marido, e Matthew fica possesso. Ele começa a soar agressivo, quando Annie coloca panos frios e sugere que vão dormir, pois tiveram um dia cansativo e o stress obviamente subiu às suas cabeças.

Durante a madrugada, as coisas começam a se complicar. Joe entra na ponta dos pés no quarto do casal, e sussurra para Annie & Matthew que alguém invadiu a casa.  Atentos para não fazer barulho, Matthew & Joe flagram um rapaz furtando alguns itens da cozinha, e depois apanhando a chave do carro para partir. Quando tenta abri-lo, o alarme começa a apitar, e Joe & Matthew surgem da escuridão e o orientam a largar as coisas e dar o fora sem criar maiores complicações. Assustado, o invasor vai recuando, até ser abatido no meio da rua por um tiro de Steph, o vizinho da frente, que confundiu a faca que o garoto carregava com um revólver. Steph se desespera e diz que se contarem que o rapaz estava desarmado, estará encrencado. Ele volta para casa, e quando retorna para a rua, traz um revólver sem marcas. Steph coloca a arma nas mãos do rapaz para forjar a prova contra o invasor. Annie o reconhece como um dos homens da obra na cozinha. A polícia é chamada, e a versão de Steph soa convincente. Os moradores se reúnem na casa de um deles para discutir um plano de contingência para o risco de novos assaltos. Os vizinhos sugerem boas ideias, todavia, prova do egoísmo reinante, ninguém quer se comprometer; por exemplo, um cavalheiro sugere o bloqueio da rua com carros, mas ninguém está disposto a colocar o próprio automóvel na entrada do condomínio. Convencidos de que a reunião não irá a lugar algum, Annie, Matthew & Joe se despedem. Na saída, Steph chama Matthew no canto e pergunta "em que pé fica a situação entre os dois". Visivelmente magoado, agora Steph nutre animosidade contra o vizinho com certa razão, pois teme que o mesmo o entregue mais tarde, contando à Polícia sobre a arma que colocou na mão do delinquente. Depois da tentativa de assalto, o trio percebe que enquanto a energia não voltar, nem mesmo dentro de casa terão sossego. Após uma tensa conversa na cozinha, fica decidido que na manhã seguinte todos partirão para a casa dos pais de Annie.Encarar a estrada rumo a outra cidade oferecerá seus riscos, conforme o próprio Joe aponta. A distância de 530 milhas até o destino final pode ser coberta em um dia inteiro de jornada, todavia mesmo partindo com o tanque cheio, durante a viagem, eventualmente precisarão pôr as mãos em mais seis galões de gasolina. Postos estarão fechados, e mesmo se abertos, provavelmente cobrarão preços exorbitantes. Eles terão de conseguir combustível... De alguma forma. Com as variáveis escancaradas, o trio banca os riscos, e "pega a estrada". Na bagagem, o rifle para eventuais emergências.

A turma encara a free-way, e no comecinho da tarde, alcança uma diner de beira de estrada. Ali dentro, reencontramos o rapaz do começo do filme, aquele que ficou nervoso ao ser cortado na fila e depois tratou Annie mal. Eles não se reconhecem. O rapaz, chamado Raymond, se encontra ali para comer um lanche antes de seguir viagem. Enquanto come, aguarda por um familiar que foi se aliviar no toalete. Um homem chamado Gary (Michael Rooker) pede a atenção dos presentes e pergunta se alguém poderia lhe emprestar alguns galões de gasolina. Ele se aproxima da mesa do tenso Raymond, e pergunta se o rapaz tem como socorrê-lo. Em momento de crise, Raymond precisa pensar em si e em sua acompanhante, e agora que serviços essenciais como Polícia e Hospitais encontram-se sufocados por uma demanda absurda, não pode se dar o luxo de confiar em estranhos. Raymond se desculpa por não ter como ajudá-lo, e Gary reage com irritação. O rapaz está louco para voltar à estrada e seguir seu caminho. Todos estão com os nervos à flor da pele.

À beira da estrada, Matthew, Annie & Joe estão tomando sorvete. Há outros carros estacionados nas imediações de um quiosque. Como a energia elétrica se foi, o dono do lugar gentilmente resolveu oferecer gratuitamente casquinhas de chocolate e baunilha para quem quiser, antes que todo o sorvete derreta. Parece que ainda há espaço para solidariedade no mundo!Naquele lugar deserto, só um sítio indica civilização. Quando Joe & Matthew veem um carro entrando na propriedade, comentam que a BMW "não combina" com o sítio. Ponderando o que há por trás da situação, divertem-se com teorias. Joe diz que provavelmente o motorista fugia de Los Angeles, até descobrir o sítio, invadir, matar os proprietários e tomar conta do lugar como se fosse seu!Matthew sorri e não o leva muito a sério, mas em meio à imprevisibilidade provocada pelo blecaute, não há como saber.

A turma volta à estrada, e consoante o previsto, o indicador de gasolina perigosamente se aproxima do "vermelho". Quando eles dão por um automóvel aparentemente abandonado no acostamento, param do outro lado da via para examinar o tanque e checar se há um pouco de combustível para aproveitarem.  Matthew se aproxima cautelosamente pelo lado do motorista, e toma um susto ao constatar que há uma pessoa dormindo no banco de trás. Gary desperta um pouco confuso, mas após o susto inicial, apresenta-se cordialmente. O motor falhou, deixando-o aprisionado pelo restante da tarde a aquele trecho da rodovia. O diálogo fica tenso quando Gary pergunta se há como lhe darem carona até a cidade mais próxima. Com a bebê dentro do automóvel, e ainda traumatizados pelo assalto da outra noite, o trio reage cismado. Annie indica discretamente com a mão que neguem o pedido e tratem de se pôr em movimento, quando Joe subitamente age mais extrovertido e declara que se fizerem os ajustes necessários com bagagens pode ser que sobre um lugar para Gary. Joe abre a traseira para mexer nas malas, e Annie lhe pergunta o que diabos está fazendo. Assustado, Joe diz que Gary carrega um revólver na cintura, e está agindo daquela maneira amigável apenas para apanhar o rifle e acertá-lo.


O nervosismo embaralha seu senso de julgamento. Apesar de armado, Gary não disse uma única palavra ameaçadora. Quando o trio inicialmente negou carona, mesmo desapontado, pareceu conformado. Ao enxergar uma ameaça inexistente e pegar o rifle, Joe, Matthew & Annie criaram uma situação explosiva que acabará pior. Reflexivamente, ao enxergar Joe fazendo menção de levantar o rifle em sua direção, Gary puxa o revólver da cintura. Joe é atingido na altura do ombro e cai no meio da estrada. Furioso, Gary começa amaldiçoá-los, perguntando aos gritos por que foram provocar confusão quando tudo o que pedira fora por uma simples carona à cidade mais próxima. Revoltado, toma as chaves e ordena que Annie desça imediatamente com a bebê. Gary arranca com o carro de Joe, deixando-os ali sozinhos com a criança de colo no asfalto quente, no meio do nada, com o rapaz baleado.


Matthew, o pacifista racional, agora se vê no papel de herói. Antes, contava com Joe para fazer as escolhas mais difíceis, agora a única salvação reside na sua capacidade de tomar as rédeas para si e conduzir o restante da jornada. Matthew precisa encontrar uma forma de salvar a família e chamar o atendimento médico a tempo. Matthew se recorda do sítio algumas milhas mais para baixo da estrada, e decide correr até lá para buscar ajuda. Antes de partir, Annie o chama de lado, desculpa-se pelo comportamento, o beija e abraça, e insiste que precisa muito que o marido volte são e salvo. Matthew promete retornar, e ao cair da tarde, parte correndo ao longo da vasta, deserta pista, em direção ao sítio. À medida que anoitece, o frio se intensifica. Joe delira, e Annie procura consolá-lo e esquentá-lo. Ao bater na porta, o ofegante Matthew é recebido por Raymond, que havia sido o primeiro a encontrar o sítio abandonado e se estabelecer ali dentro com um parente, até o fim da confusão e o retorno da energia. Confuso, aborrecido e desesperado, Matthew não consegue se explicar muito bem, e ao suplicar que Raymond lhes dê carona no seu carro ao hospital mais próximo, o rapaz procura argumentar que não o conhece, e teme que lhes façam algum mal. Prestativo, ainda oferece comida e água, mas insiste que não tem como abrir mão do automóvel. Matthew & Raymond acabam discutindo. Matthew regressa ao carro para apanhar o rifle e resolver a situação pela linguagem universal da violência.


Flagrado ao invadir a casa para pegar as chaves, Raymond e Matthew criam uma intensa situação onde se apontam revólveres, um gritando para o outro largar a arma. Felizmente, a filhinha de Raymond aparece assustada na sala e os dois homens recobram alguma sanidade. Matthew reitera que só deseja ajudar o amigo. Ele apanhará as chaves, levará Joe ao hospital e depois devolverá o carro a Raymond. Para mostrar sua boa fé e confiança, abaixa o rifle e dá as costas. Quando Matthew está para deixar, Raymond surge no alpendre de mãos dadas com a filha e diz que o ajudará. Pouco depois, os vemos juntos no trecho da estrada onde se deu a confusão, Joe recebendo atendimento médico, sendo levado ao Hospital, onde ficará bem. Ao examinar a carteira do amigo, Matthew fica tocado ao encontrar uma foto sua ao lado de Annie. Ele compreende que a natureza da rivalidade entre os dois não se devia à inveja, mas sim à admiração de Joe pelo companheirismo e as coisas bonitas que Annie & Matthew haviam construído juntos, e a uma enorme vontade de se sentir parte daquela família. Algum tempo se passa. Los Angeles resgatou um brilho ainda mais encantador à chegada da noite. Vemos Matthew voltando para casa depois de um dia de trabalho. A experiência aproximou marido e mulher, e hoje ambos reconhecem não apenas como não devem jamais subestimar o valor de todas as coisas boas que construíram juntos, como tampouco desperdiçar a segunda chance que Deus lhes deu.

Interessante e pouco visto suspense dirigido por David Koepp, aclamado roteirista que apenas três anos mais tarde rodaria o excelente Ecos do Além, com Kevin Bacon, e algum tempo depois, A Janela Secreta, baseado no conto de Stephen King. Aqui já exercitando o talento por trás das câmeras, Koepp fez um filme tenso em seu forte realismo, uma espécie de ensaio para produções de horror mais fantásticas que viriam nesta década, tais como a sensação do momento, Uma Noite de Crime. Lançado nos cinemas em agosto de 1996, The Trigger Effect logo desapareceu das salas de exibições. Apesar de fortalecido por resenhas favoráveis, as pessoas preferiram ver coisas mais movimentadas, e o "metabolismo" do filme de Koepp, mais apetecível a thrillers menos frenéticos como os da década de 70, não o ajudou a competir com superproduções daquele ano em particular. 

Provavelmente, a geração que hoje se entusiasma com Uma Noite de Crime 2, uma feroz montanha russa no curso de uma madrugada de caos, pouco terá com o que se excitar com The Trigger Effect, mas aqueles que prezam atmosfera em favor de cenas de ação conhecerão uma grata surpresa. Mais sutil e realista em seu envolvente estudo psicológico, em como pessoas de um meio tão variado como a cidade de Los Angeles podem se ver surpreendentemente conectadas pelas demandas do dia a dia, The Trigger Effect ainda se reveste de uma incomum, elegante tonalidade misteriosa, ao investigar o papel do destino em nossas vidas. Não por menos, o diretor foi inspirado a rodar The Trigger Effect depois de assistir a um excelente episódio de Além da Imaginação chamado The Monsters are Due at Maple Street, sobre os moradores de um harmonioso bairro de classe média alta que, após um inexplicável blecaute, voltam-se uns contra os outros. Ao final, é revelado que o meteoro que pensava-se ter causado a queda de energia era na verdade uma enorme nave alienígena, e vemos dois seres extraterrestres conversando sobre quão fácil seria conquistar o planeta Terra, vez que o ser humano volta-se contra si ao menor sinal de diferença entre seus interesses mesquinhos. É claro que no filme de David Koepp a questão dos "alienígenas" ficou de fora, no entanto a "mensagem" segue a mesma, velhos amigos capazes de irem na jugular do próximo, assim que uma ameaça exógena, no caso o inesperado blecaute, atribula a falsa superfície de harmonia.

Os rostos de Kyle MacLachlan, Elisabeth Shue & Dermot Mulroney têm sido presença constante em filmes muito queridos, e aqui tiveram a oportunidade de merecer os holofotes. Todos muito capazes, David Koepp lhes confiou personagens complicados para destrinchar, e habitaram seus papéis confortavelmente. Mais famoso pela série de TV Twin Peaks, Kyle MacLachlan dá vida ao clássico herói relutante, visto inúmeras vezes em produções similares: o homem comum que por toda a vida evitou conflito, porém que em um momento de crise, para preservar aqueles a quem ama, encontra dentro de si bravura fora do comum. O ator Harrison Ford, por exemplo, construiu uma carreira dando vida a esse tipo de personagem. Com a carreira investida de novo fôlego após a indicação ao Oscar de Melhor Atriz por Despedida em Las Vegas, no ano anterior, Elisabeth Shue interpreta o elemento-chave do platônico triângulo amoroso. Ela tornou a transformação por que passa - de esposa insatisfeita à fiel companheira que ao final ganha novo respeito pelo marido - um prazer de se assistir. Desencorajada pelos pequenos probleminhas do dia a dia, amontoados de modo a sufocá-la, a ponto de flertar com o amigo como válvula de escape, Annie precisa de um terrível susto para reconhecer e valorizar todas as coisas boas que Deus lhe deu. Dermot Mulroney tem atuado em filmes de sucesso, em uma longa, prolífica carreira. Em breve, terá a chance de sua vida protagonizando Insidious 3, sequência de uma das franquias de horror recentes de maior sucesso, a ser lançada em 2015. Ele mantém o seu personagem uma incógnita até o momento certo. Quando vi o filme pela primeira vez, não imaginava o rumo que o enredo tomaria. Joe se revelaria um psicopata e aterrorizaria o casal durante a jornada? A excelente atuação de Mulroney mantém o personagem envolto em mistério, até finalmente compreendermos que a sua natureza é boa e apenas carecia de se sentir parte de uma unidade familiar, algo similar - porém em menor envergadura - ao dilema do personagem de Robin Williams em Retratos de uma Obsessão. A fotografia também merece aplausos. Conhecedores da obra de Koepp sabem que podem esperar grandes coisas do cineasta, no que importa a visuais. Assim como faria com Ecos do Além, o bairro, o meio onde os personagens interagem e vivem seus dramas merece todo o capricho que lhe é peculiar. Em The Trigger Effect, a fotografia do bairro nobre de Los Angeles, mergulhado em elegantes, suaves pinceladas de azul, contrasta com o amarelado das estradas sem lei. Três anos mais tarde, dedicaria o mesmo zelo ao filmar o bairro de trabalhadores blue collar de Chicago, onde situou seu arrepiante Ecos do Além.

The Trigger Effect padece quando comparado à incessante sequência de emoções de Uma Noite de Crime 2, todavia o que faz muito bem é reinventar um estilo de suspense sacramentado nos anos 70, do qual Deliverance (foto), de John Boorman, e Straw Dogs, de Sam Peckinpah, foram seus melhores expoentes. Mais de trinta anos desde seu lançamento nos cinemas, a graça de Deliverance segue impecável. O filme lançou as carreiras de Jon Voight, Ned Beatty, Ronny Cox & Burt Reynolds (no melhor desempenho de sua vida) e inaugurou uma tendência de horrores baseados no tema Homem versus Natureza. Em 2008, foi eleito pela National Film Registry para preservação na Library of Congress pela sua relevância estética, cultural e histórica. Baseado no romance de James Dickey, Deliverance narra a história de quatro amigos que vão se aventurar em um rio selvagem às vésperas do represamento. Quando dois deles param às margens para descansar e são assaltados por dois colonos, o personagem de Burt Reynolds chega por trás e mata um dos assaltantes com um disparo de arco e flecha. O outro escapa. O quarteto precisa enterrar o cadáver, descer o restante das corredeiras, caçar o segundo assaltante, matá-lo, e despistar a Polícia Rodoviária assim que alcançarem a cidadezinha mais próxima. Mesmo cobertos de razão (o assassinato se deu em autodefesa), os amigos sabem que se forem associados ao desaparecimento dos colonos e submetidos a júri, provavelmente acabarão condenados a penas terríveis naquela cidadezinha de fim de mundo. Roteirizada pelo próprio Dickey (que faz uma participação como o xerife), a versão dirigida pelo britânico John Boorman foi um dos grandes clássicos dos anos 70, indicado aos prêmios de Melhor Filme, Diretor e Edição (Deliverance perdeu para O Poderoso Chefão, mas foi superior em todos os sentidos; a não-indicação de Burt Reynolds ao Oscar de Melhor Ator Coadjuvante pelo seu papel foi um dos mais desastrosos erros da Academia). The Trigger Effect inspira-se fortemente no clássico de Boorman ao analisar a reação de pessoas comuns metidas em situações de conflito extremo. Assim como os amigos que descem as corredeiras em Deliverance, as escolhas de Annie, Matthew & Joe nem sempre parecem as melhores, porém não nos cabe criticá-los, pois a aventura se desenrola de uma forma tão realista que chegamos a considerar nossas próprias reações em situações similares. Neste sentido, ambos os filmes encontram no realismo a força que falta a superproduções movimentadíssimas que banalizam a violência. Na ação recente, assistimos ao herói eliminando os vilões a uma velocidade tão supersônica que tudo perde o impacto, nada nos choca mais. Por outro lado, se você assiste a algo como Deliverance - onde só há três mortes no curso da aventura - tudo guarda um efeito amplificado e mais poderoso. Tomemos como exemplo a cena em que um dos colonos é morto com um disparo de flecha que o apanha nas costas e se pronuncia para fora do peito. Boorman filma a cena com uma incômoda intimidade que nos faz cair a ficha: é o fim da linha para esse cara, está acabado. A morte chega inesperadamente, com suas profundas implicações legais & filosóficas. Perdemos o impacto de momentos assim em filmes de ação modernos que tratam tiroteios como jogos de videogame, tudo muito ridículo e inofensivo. Deliverance continua um suspense relevante pela maestria com que foi conduzido e seus temas atemporais, e poucos rivalizam a sua visceral honestidade. Também em termos de estrutura narrativa, The Trigger Effect recicla a fórmula de Deliverance, onde após matar um dos colonos, o personagem de Reynolds, a figura de estoicismo, força e autoridade, sofre uma fratura exposta na coxa, transferindo ao hesitante Voight a missão de caçar o segundo, matá-lo e tirá-los da garganta do vale. Em The Trigger Effect, Mulroney encarna o homem endurecido à vontade com conflitos, inesperadamente retirado de combate por um disparo de arma de fogo, o que força o pacifista MacLachlan a salvar suas vidas. Com The Trigger Effect, David Koepp moldou seu trabalho nos autênticos suspenses que fizeram dos anos 70 a Era de Ouro do Cinema Moderno e nos deram talentos como Dario Argento & Brian De Palma. Os amigos que prezam suspenses intrigantes e diferenciados não sabem o que estão perdendo!The Trigger Effect foi lançado em DVD no Brasil com o título Efeito Dominó (não confundir com o outro filme de mesmo nome estrelado pelo ator Jason Statham) e pode ser facilmente adquirido. Não percam!

Todos os direitos autorais reservados a Universal Pictures. O uso do trailer é para efeito meramente ilustrativo da resenha.

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