quarta-feira, 29 de maio de 2013

Ninja (2009) - Isaac Florentine é a melhor coisa que aconteceu ao gênero ação.


Casey (Scott Adkins) é um jovem norte-americano que, ainda criança, presenciou o suicídio do pai, que costumava surrar a sua mãe, e fugiu para o Japão. No Japão, Casey foi adotado pelo clã de Takeda (Togo Igawa), um velho guerreiro honrado e valente obstinado em manter vivo o legado dos ninjas. Sob a guarda de Takeda, estão a última armadura real dos ninjas e as suas armas de poderes lendários, entre elas a mortífera espada katana. Takeda promete que concederá o legado dos ninjas ao aluno que se provar imbuido dos melhores valores. Masazuka (Tsuyoshi Ihara), um guerreiro japonês que praticamente cresceu no lugar, julga-se detentor do direito natural à armadura e às armas, pois é veloz, perspicaz, destemido, em suma, um guerreiro forjado pela arte da guerra. Ocorre que Masazuka não reúne o caráter de Casey, que além de habilidades para combate, conduz-se com os mesmos valores inerentes aos verdadeiros ninjas: honra, respeito, compaixão, e coragem absoluta, mesmo sob as mais terríveis adversidades. Quando vê que Takeda o preterirá pelo estudante norte-americano, Masazuka fica cego pela raiva e, durante um treino de espadas, ataca Casey. Por seu descontrole, Takeda o expulsa do clã. Para Masazuka, não há punição pior. Dedicou toda a vida para se aperfeiçoar, para se tornar o último dos ninjas, e então, por um momento de descontrole emocional, pôs tudo a perder. O desapontamento o transforma em uma máquina de matar malévola disposta a acertar as contas com Casey, a quem culpa por toda a desgraça. Masazuka se torna um assassino perigosíssimo, a serviço de uma poderosa facção do crime organizado chamada O Círculo. Ele retorna para o dojo, para reclamar o espólio dos ninjas, mas Takeda se recusa a lhe entregar a armadura e a espada. Certo de que o ex-aluno voltará, o velho mestre incube CaseyNamiko, a filha, de levarem o baú para os Estados Unidos, onde o espólio dos ninjas poderá ser mantido bem distante das mãos de Masazuka. Conforme Takeda imaginara, Masazuka retorna ao dojo, mata os demais alunos e exige do mestre o baú. Quando Takeda recusa-se a ceder, mesmo sob a ameaça de morte, Masazuka o decapita. O assassino descobre que Casey e Namiko estão a caminho de Nova York, e parte para os Estados Unidos, para o confronto final entre os dois melhores ninjas do clã Takeda.

Este filme ágil e magistralmente executado revela os talentos de seu diretor Isaac Florentine e astros Scott Adkins e Tsuyoshi Ihara, todos destinados a grandes coisas em suas carreiras. Mesmo que filmado sob um orçamento modesto, dez milhões de dólares, o diretor Florentine, como de costume, parece multiplicar os recursos, criando um espetáculo de ação que parece maior do que o efetivo custo, de excelente fotografia, excitantes cenas de ação, e performances acima da média, algo incomum a obras do gênero. É impressionante a habilidade com que Florentine orquestra as cenas de luta, encantadoras aos olhos graças a suas diversificadas coreografias cinéticas e impossíveis. Arquitetar as lutas, todavia, não é sua única habilidade. Nos moldes de John Woo, Florentine imprime à ação impressionante sincronia, como se estivesse orquestrando um balé de violência, sendo várias as cenas em Ninja que provam a assertiva: a luta dentro dos vagões no metrô, o confronto com o ninja Masazuka sobre a cobertura de um prédio, e o tiroteio nas calçadas de Nova York, quando o herói por pouco escapa com a vida. Mesmo com o orçamento modesto, o olhar de Florentine traz muita beleza e energia, enaltecidas pelo efeito da câmera lenta, mais uma semelhança entre o cineasta e o grande John Woo. Novamente, Florentine se reúne ao astro principal Scott Adkins, com quem trabalhara no ótimo Undisputed II, e dele extrai uma carismática atuação. Um filme de ação é tão bom quanto o vilão, e aqui Florentine ganhou um valiosíssimo aliado em Tsuyoshi Ihara. Adkins é o herói, porém é Ihara quem se destaca. Filmes de ação tendem a valorizar exclusivamente as cenas movimentadas, as lutas, os tiroteios, não há muita atenção para construção de personagens, ou mesmo desenvolvimento. Com Ninja, a armadilha não se repetiu. O roteiro de Boaz Davidson tece uma trama um tanto quanto previsível, no entanto, são a habilidade do diretor e a atuação do elenco, mais especificamente de Ihara, o trunfo que alavanca o material a um mais sofisticado patamar. Deve-se ao talento e magnetismo de Ihara a capacidade de criar um personagem que nas mãos de um amador qualquer teria parecido um clichê redundante, mas que em suas mãos evolui para um vilão complexo e trágico. O seu Masazuka é um triste anti-herói. Ele encapsula o que há de mais letal na arte do combate mas seu senso de posse, de preferência quanto ao legado dos ninjas, desperta a inveja e a ambição que acabam por distanciá-lo do caminho dos verdadeiros guerreiros. Também dá profundidade ao personagem o fato de enxergar Takeda como pai, e portanto razão se sentir imperdoavelmente traído quando o mestre escolhe o norte-americano como o herdeiro da armadura e da katana. Ihara exala carisma e magnetismo no papel de Masazuka, parece letal em seus suaves movimentos, tais quais os de um tigre mortífero, e pelo desempenho impecável, força o que há de melhor em Adkins, que precisa estar à altura de tamanho desafio. Ninja foi rodado em Sofia, Bulgária, assim como a maioria das produções da companhia Nu Image. Olhos despreparados, todavia, não perceberão que o filme foi rodado na Europa, vez que sempre que a estória exige tomadas externas, supostamente nos Estados Unidos, o estúdio reproduz muito bem uma avenida novaiorquina. No momento (2013), encontra-se em pós-produção a continuação, Ninja 2,que felizmente foi regida por Florentine, e novamente estrelada por Scott Adkins. Se a contribuição original surpreendeu, só nos resta salivar de expectativa pelo lançamento da sequência. Procurem por Ninja nas locadoras. O DVD foi lançado sob o selo da California Filmes.

Todos os direitos autorais do trailer acima reservados a California Filmes. O uso do trailer é para efeito meramente ilustrativo da resenha.

quarta-feira, 15 de maio de 2013

Caçadores de Mentes ("Mindhunters", 2004) - Por um breve momento, Renny Harlin recupera a glória do passado.


Caçadores de Mentes” é a divisão do FBI que arregimenta profissionais habilidosos na arte de delinear os perfis e o modus operandi de assassinos em série. Buscando aperfeiçoá-los ainda mais nesta arte, o instrutor Jake Harris (Val Kilmer) os leva a uma ilha na costa da Virgínia, mantida pela Polícia Federal, que abriga uma cidade fictícia, onde uma série de diferentes cenários será arquitetada para testar o conhecimento e a habilidade dos jovens agentes. Harris elaborou todo um novo caso, envolvendo um serial killer que responde pela alcunha de titereiro, um maníaco que mata as vítimas e as dependura em ganchos, como se os mesmos fossem bonecos de ventríloquo. A tarefa dos agentes revolve compreender o modus operandi para apanhar o serial killerde mentirinha” através das pistas que as cenas dos crimes têm a oferecer. Depois que chegam a ilha, Harris lhes apresenta o lugar e parte no helicóptero, deixando-os por conta própria. Os agentes começam a investigar, e encontram, em uma típica diner, uma cena de homicídio forjada, um manequim “assassinado”, dependurado por ganchos no teto. Para a surpresa dos agentes, uma armadilha letal envolvendo nitrogênio líquido foi preparada, resultando na morte de um dos estudantes. Assustados, os agentes procuram pelo barco na doca, mas no momento em que correm pelo píer para apanhá-lo, a doca vai pelos ares. Agora, os mais habilidosos profilers do FBI se veem aprisionados à ilha, com um serial killer “de verdade”, e uma série de armadilhas desenhadas conforme as fraquezas de cada um. 

Este suspense dirigido pelo experiente Renny Harlin (“12 Rounds”, “5 Dias de Guerra”) não oferece nada de novo ao gênero, mas a habilidade do cineasta acaba provando-se o diferencial que torna o produto final mais atraente e empolgante do que os suspenses similares que chegam aos cinemas todos os anos. O elenco é formado por grandes nomes (Val Kilmer, Christian Slater, Jonny Lee Miller), mas é a atriz Kathryn Morris, mais conhecida pela série Cold Case (e aqui basicamente reciclando a mesma personagem), quem se sobressai entre os colegas, no papel da relutante protagonista, que mostra pouco de si, mas esconde muito. Devo mencionar que fiquei espantado com a semelhança entre Morris e uma artista brasileira muito talentosa chamada Babi Xavier. Confiram, elas são parecidas!Muito bem produzido, Caçadores de Mentes é visualmente rico e atmosférico. O diretor de fotografia Robert Gantz (“Assalto a 13ª DP”) empresta o seu olhar elegante e caprichoso à produção, criando uma ambientação simultaneamente atraente e traiçoeira, familiar e surreal: enquanto a cidade erguida pelo FBI assemelha-se a uma típica e pacata small town do meio Oeste norte-americano, há algo de incongruente no lugar, a sensação de tragédia iminente, talvez causada pela aura que remete aos anos 50. A cidade parece saída diretamente do passado, com o agravante do isolamento e abandono, suas ruas e calçadas acumulando folhas, a diner com sorridentes bonecos representando cidadãos sentados às mesas com suas refeições, o cinema local exibindo “O 3° Homem”, de Orson Welles, e uma série de outros detalhes que arruínam a primeira boa impressão sobre o lugar e te deixam arrepiado. Se o roteirista Wayne Kramer não ganha prêmio algum por originalidade, ao menos consegue sustentar o ritmo e amarrar a colcha de retalhos a serviço do diretor, familiarizado ao gênero ação.Kramer cria interessantes situações similares às engenhosas armadilhas da série Jogos Mortais. Lamentavelmente, a falta de profundidade dos personagens, de motivações, os torna um tanto quanto unidimensionais, exagerados, subtraindo do filme parte de seu charme e poder. O diretor Renny Harlin, um dos mais expressivos diretores de filmes de ação dos anos 90, que perdeu a mão depois de uma série de produções caríssimas medíocres, parece somente agora recuperar a velha forma, justamente após perder o posto entre os principais cineastas de Hollywood. A sua carreira é similar a do excelente diretor chinês John Woo. Woo chamou a atenção de produtores norte-americanos com as obras-primas que rodou em seu país de origem, entre elas o extraordinário “Fervura Máxima” (assisti a este filme aos 15 anos, em 1995, no circuito de filmes de arte, uma das experiências cinematográficas mais emocionantes e inesquecíveis de minha vida, equivalente a um violento passeio pela mais aterrorizante montanha russa concebível). Uma vez em Hollywood, Woo não se saiu bem ao filmar dentro de um novo modelo, e seus trabalhos pareceram fracos e sem brilho, muito diferentes dos dias de glória na China. Foi apenas nestes últimos anos, ao retornar para o país de origem e recuperar a liberdade criativa para fazer o que ama, que o velho John Woo de “Fervura Máxima” renasceu com força total, em filmes maravilhosos tais como “A Batalha dos 3 Reinos”. É o caso de Harlin, que somente nestes últimos anos, dirigindo filmes menos ambiciosos tais como “12 Rounds” e “5 Dias de Guerra”, pareceu realmente se divertir em um set de filmagem, ao recuperar a magia “do primeiro olhar”, a paixão pelo que faz, a criatividade, algo nas linhas do que Julie Delpy diz em Antes do Pôr do Sol, próximo ao fim, ao chegar na vila onde mora, com Ethan Hawke, e lhe mostrar o gatinho que cria “Sabe o que eu mais admiro neste animalzinho?É que todas as manhãs, ele olha para esse jardim com o mesmo encanto como se o estivesse vendo pela primeira vez”. O problema com estes grandes diretores me parece evidente. Acredito que os produtores enxergam o talento de um cineasta, convidam-no a rodar um filme, disponibilizam orçamentos estratosféricos, porém “podam” o diretor, a sua criatividade, suas ambições artísticas pessoais, em nome da “segurança” do investimento, sob a expectativa do retorno financeiro. Esta receita para o desastre me parece o destino comum a maravilhosos cineastas impedidos de realizar o filme que gostariam, em nome da necessidade de assegurar retorno financeiro nas bilheterias. Aconteceu com John Woo nos Estados Unidos, e Renny Harlin na segunda metade dos anos 90. Recentemente, o talentoso cineasta brasileiro José Padilha foi recomendado para a direção de RoboCop. Parece caso semelhante aos exemplos ilustrados acima, produtores de um grande estúdio enxergam a paixão e o talento de um cineasta, que fez dois filmes extraordinários, Tropa de Elite 1 & 2, chamam-no para dirigir o seu roteiro, oferecem centenas de milhões para um trabalho tecnicamente confortável, porém, na hora em que o diretor procura transbordar  sua criatividade, sua paixão nas telas, os produtores imediatamente o “refream”, frustram-no, procuram mantê-lo “no cabresto”, para que não “ouse demais”, novamente em nome da necessidade de se assegurar retorno financeiro ao investimento de centenas de milhões. Só nos resta esperar que os produtores deem a este grande diretor a liberdade para fazer o RoboCop que deseja fazer, e não aquilo que os produtores do estúdio esperam. Quanto a Renny Harlin, torço que o seu renascimento artístico continue. Harlin está para lançar um projeto interessantíssimo, baseado em um aterrorizante caso real ocorrido na ex-União Soviética, chamado The Dyatlov Pass Incident, envolvendo OVNIs... Mas este filme ficará para uma próxima resenha. 

Todos os direitos autorais do trailer acima reservados a Dimension-Sony Pictures. O uso do trailer é para efeito meramente ilustrativo da resenha.

sexta-feira, 10 de maio de 2013

Atividade Paranormal ("Paranormal Activity", 2007) - Boa noite, bons sonhos, e agarrem-se a seus lençóis.


Katie e Micah vivem juntos há três anos, desde que começaram a namorar. Ultimamente, passam a notar estranhos e inexplicáveis fenômenos na casa onde moram. Ocorre que, na infância, aos oito anos de idade, Katie fora “perseguida” por uma entidade que costumava se materializar ao pé da cama para aterrorizá-la. Uma vez superada a adolescência e a perda da casa da família para um incêndio de razões desconhecidas, as manifestações paranormais deixaram de perturbá-la. Com o tempo, Katie esqueceu-se de parte dos terríveis eventos da infância, mas agora os fenômenos paranormais estão reaparecendo. Micah, que jamais testemunhou manifestações semelhantes, prepara os principais cômodos com câmeras, para capturar qualquer movimentação fora do comum. O que começa de maneira inocente e interessante – uma porta se movendo sozinha durante a noite, Micah descobrindo, no sótão, uma foto de quando Katie era criança, e que a moça julgava ter sido perdida durante o incêndio muitos anos antes – escala para maciço e furioso ataque físico. Depois que consultam um parapsicólogo, que os alerta sobre riscos que correm, o demônio se torna mais ameaçador, sujeitando o casal a toda sorte de tormentos, desde os lençóis da cama arrancados de seus corpos enquanto dormem ao arrebatamento de Katie pelo pé, que é arrastada pelos corredores, para o horror do namorado.

Este inesperado sucesso de 2009 deu origem a quatro continuações (a última prevista para lançamento em 2013) e incontáveis imitações inferiores, e revelou o talento do diretor Oren Peli, que veio a produzir os mais interessantes filmes de horror dos últimos três anos, tais como Sobrenatural. Filmado com baixo orçamento, Atividade Paranormal é alavancado pelo roteiro minimalista e atmosférico, que possibilita momentos bastante perturbadores, sem a necessidade de excessos para tanto. Exemplar do gênero “found footage”, o filme foi rodado sob o ponto de vista do casal de protagonistas. Felizmente, ao contrário de produções similares tais como Cloverfield, o fato de as câmeras se apoiarem sobre tripés dá às imagens estabilidade, o que torna o filme mais aprazível aos olhos. Os efeitos especiais são discretos, já que não foi a preocupação primordial do cineasta a de oferecer uma experiência que se limitasse a visuais impressionantes. Quando os mesmos se fazem necessários, nas cenas de ataque da entidade demoníaca, por exemplo, provam-se muito bem feitos, porém nada extravagantes. O grande trunfo reside na atmosférica trama e na maestria com que o diretor vai descortinando os eventos. Há um termo próprio para isso, que os norte-americanos usam para expressar semelhante ideia: Atividade Paranormal é um “slow burner”, um filme que “pega fogo lentamente”, ou seja, um trabalho onde o diretor faz bom uso do tempo, sem pressas, sem atropelos, tudo para desenvolver o horror com precisão, condicionando o sentimento de medo ao tempo correto. O assédio da entidade demoníaca começa sutil, até que os ataques passam a tornar a vida do casal impossível. Ainda mais importante, entre implacáveis cenas de assédio a Katie e Micah no quarto, à noite, Oren Peli pontua a produção com pequenos momentos premonitórios que contribuem muito para o sentimento tétrico que permeia o filme. A melhor cena envolve a visita de um parapsicólogo, Dr. Fredrichs, que após passear pelos cômodos da casa e escutá-los atentamente, deixa claro que o que está perturbando os dois não se deve à obra de espírito, mas a um demônio, e que o demônio alimenta-se de energia negativa. Fredrichs é enfático ao aconselhá-los a não antagonizar a entidade, e a procurar por um colega seu, especializado em questões semelhantes. Ele diz que não existe uma forma de fugirem do problema. Se mudarem de casa, a coisa os perseguirá. A maneira como o momento se desenrola, como Katie narra a sua história e Dr. Fredrichs a aconselha, assemelha-se a um jogo de xadrez tensamente conduzido. Sem dúvida, o diretor imprime ao referido pequeno momento muito suspense e expectativa. A cena baseia-se em atuação e diálogo, porém é o melhor segmento, o mais atmosférico, aquele que fez os cabelos de minha nuca eriçarem. Depois da visita, ocorre-nos a forte impressão de que esse casal está destinado à tragédia, e não há nada que possa retardar o processo. Essa impressão ganha respaldo mais tarde, quando Micah realiza uma pesquisa sobre as manifestações na internet e encontra um caso muito semelhante ao da namorada, ocorrido nos anos 60, com uma outra garota, que terminou de forma horrorosa, em possessão e morte.

Assistindo a Atividade Paranormal, eu me recordei de um outro antigo filme igualmente intrigante, chamado A Casa das Almas Perdidas, baseado em fatos verídicos que envolveram uma família que se mudou para um duplex, em uma cidadezinha da Pennsylvania, e passou a experimentar toda sorte de ataques inexplicáveis: manchas escuras surgindo nas paredes, arranhões deixados nos móveis, a mãe carregando o cesto de roupas para a lavanderia, e escutando a voz da sogra a chamando do andar de cima, ela subindo os degraus para checá-la e então a mesma voz chamando-a da lavandeira, entre outras sutis e discretas manifestações que apenas se tornaram mais ousadas com a passagem dos anos em que permaneceram na residência, de 1974 a 1989. O caso da família Smurl deu origem a um best-seller chamado “The Haunted”, de Michael Curran, e ao filme A Casa das Almas Perdidas, brilhantemente executado e bastante fiel aos eventos. Curiosamente, a família Smurl era composta pelos pais, os avós paternos, duas meninas, e mais duas outras filhas geradas quando os Smurl já tinham se mudado para a propriedade. Usei o termo curioso pois a questão das filhas tem algum significado em casos de poltergeist: coincidindo com o período em que as meninas entraram na puberdade, as manifestações se tornaram mais voláteis, o que parece ser bastante comum a casos da natureza, a turbulenta passagem pela adolescência. Qualquer que tenha sido a natureza dos fenômenos que perseguiram a família Smurl sem dó por todos estes anos, a entidade parecia conectada às garotas, e não à casa. Tanto que quando os Smurl deixaram o lugar, a moradora seguinte afirmou que jamais chegou a presenciar espécie alguma de manifestação incomum. A foto que os amigos veem na cabeça deste parágrafo é da família Smurl em frente à casa onde sofreram por tantos anos. Consigo me lembrar de outros casos verídicos que dariam extraordinárias adaptações para o cinema. Há todo um charme em se assistir a filmes baseados em eventos reais, vez que mais importante que o contexto extraordinário em que os dramas se desenrolam, gostamos de assistir a como pessoas tão comuns como a gente atravessam instantes tão aterrorizantes e reagem aos mesmos, talvez por nos ajudarem a compreender a nossa própria natureza. Ocorrem-me vários exemplos, como os casos de manifestação de poltergeist em Enfield, Inglaterra (1977-1978), em Rosenheim, Alemanha, no final dos anos 60, e o caso da Bruxa de Bell, uma entidade misteriosa que aterrorizou cruelmente a próspera família de um fazendeiro entre os anos de 1817 e 1821, em Adams, Tennessee.

O poltergeist de Enfield foi observado no período de agosto de 1977 a setembro de 1978, e envolveu uma família composta por uma mãe recém divorciada e os quatro filhos, duas meninas e dois meninos. Os estranhos fenômeno tiveram início na noite do dia 31 de agosto de 1977, de maneira suave, quando depois de pôr as crianças para dormir, a mãe viu a cama do quarto se movendo. Ela a empurrou ao lugar, mas a cama parecia manipulada por uma força invisível. Seguiu-se uma manifestação mais inocente, batidas leves nas paredes. A família reagiu com horror e chamou os vizinhos, para que testemunhassem a insólita situação. Naquela noite, os vizinhos escutaram as batidas na parede, e na manhã seguinte, quando a polícia foi convidada, uma oficial reportou que enxergou uma cadeira deslizar suavemente de um canto ao outro sem que ninguém a tivesse arremessado. À medida que as manifestações foram se intensificando, o interesse da mídia pelo drama da família alavancou o sensacional poltergeist às primeiras páginas do tablóide britânico Daily Mirror. Um fotógrafo do jornal afirmou ter sido atingido na testa por um bloco de brinquedo sem que nenhum dos presentes tivesse atirado a peça. Em resposta às súplicas da família, dois membros da Society for Psychical Research, Maurice Grosse e Guy Lyon Playfair, mudaram-se para a propriedade assombrada. O que era estranho ficou ainda mais bizarro quando Janet, uma das garotas, começou a entrar em transe e falar com uma voz autoritária e masculina, como que possuída por uma entidade. Quando incorporava a personalidade, afirmava que se chamava “Bill” e que morrera de derrame na poltrona. Janet xingava os interlocutores e pontuava a fala com palavras obscenas. Para a surpresa de Grosse e Playfair, posteriormente, os dois foram procurados por um rapaz, que se identificou como filho de um homem chamado Bill que de fato morrera de derrame naquela propriedade, alguns anos antes. Em setembro de 1978, os eventos refrearam e pareceram deixar a casa, porém as vidas de todas as pessoas envolvidas já haviam sido profundamente transformadas. Janet, a maior vítima do assédio do poltergeist, jamais conseguiu levar uma vida normal na fase adulta. Particularmente para Grosse, o caso foi emocionalmente devastador. O investigador perdera a filha um ano antes do caso, e naturalmente se afeiçoara às meninas da casa alvo do poltergeist. Grosse foi bastante criticado quanto à condução do caso, pois lhe teria faltado a objetividade para observar e compilar os fatos fria e analiticamente, até porque parecia querer acreditar de qualquer maneira na existência da vida após a morte, talvez movido inconscientemente pela dolorosa perda da filha, que jamais veio a superar. Guy Lyon Playfair escreveu um intrigante livro sobre o caso chamado This House is Haunted (“Esta Casa é Assombrada”).

Um outro caso que daria um suspense assombroso é o do poltergeist de Rosenheim, acontecido no Sul da Alemanha, tendo se iniciado no verão de 1967 e se prolongado a janeiro de 1968, no escritório de advocacia de um cavalheiro chamado Sigmund Adams. Durante a crise, lâmpadas ligavam e desligavam repetidamente até queimar, telefones chamavam insistentemente, em um ritmo que parecia improvável, sem que houvesse alguém do outro lado da linha quando atendidos, gavetas das escrivaninhas abriam-se frequentemente abertas sem serem tocadas, as lâmpadas rodavam nos soquetes e explodiam, quadros eram atirados no ar. Contas telefônicas apontavam dezenas de chamadas para o serviço horário, feitas em momentos em que não havia gente no escritório. Policiais, funcionários da companhia elétrica e telefônica e até mesmo mesmo cientistas do instituto Max Planck passaram pelo escritório para investigar, e foram os últimos que fizeram a conexão entre as manifestações e uma personagem peculiar, uma moça chamada Annemarie Schaberl, a secretária solteira de dezenove anos de Sigmund Adams. Por meio de câmeras, os cientistas registraram que bastava que Annemarie se encontrasse no escritório, para que as lâmpadas começassem a oscilar, e os telefones a chamar. Os fenômenos cessaram quando Annemarie saiu de férias. Quando retornou, o chefe preferiu dispensá-la. Foi reportado que por todos os lugares onde veio a trabalhar, os fenômenos a acompanharam. Quando o noivo terminou a relação durante um jogo de boliches, o painel de escores sofreu um colapso elétrico. Quando ela finalmente conheceu outra pessoa e se casou, o poltergeist cessou em definitivo.

De todos os casos que conheço, todavia, nenhum conseguiu me marcar mais do que o da “bruxa” que atormentou a família Bell entre 1817 a 1821, e somente pareceu se extinguir depois que conseguiu matar o patriarca, o fazendeiro John Bell. Tão notória a história, vários livros foram escritos sobre o caso, e em 2005 um filme chamado An American Haunting (Uma Assombração Norte-Americana) foi lançado nos cinemas, com Sissy Spacek e Donald Sutherland. Ainda assim, para as pessoas que leram sobre a “Bruxa de Bell”, o consenso foi o de que, em celulóide, o caso não foi tratado à altura. O caso original é tão rico de vida que somente algo épico honraria os fatos originais, e no caso do filme An American Haunting, lamentavelmente, os produtores pareceram se focar exclusivamente nos elementos de horror da história, deixando de fora um mundo de detalhes emocionalmente ricos e recompensadores que teria tornado a adaptação muito melhor. A história da “Bruxa de Bell” oferece de tudo. Além de um impressionante documento histórico sobre os Estados Unidos no início do século XIX, o caso pulsa de mistérios, tristezas, amores proibidos, aventuras, e reencontros, que nem mesmo as mais brilhantes mentes teriam a propriedade de conceber. O caso é respaldado por inúmeros testemunhos, registrados em manuscritos, conservados até os dias de hoje, e compilados em diários sobre os eventos. No início do séxulo XIX, John Bell mudou-se com a família da Carolina do Norte para Red River, recanto de Robetson County, Tennessee, que mais tarde veio a ser conhecido como Adams. Bell adquiriu muita terra e construiu uma confortável e grande casa para a família. Ao longo dos anos, Bell seguiu comprando mais terras para plantação, e prosperou. John e Lucy tiveram três filhos depois da mudança para Tennessee, Elizabeth (Betsy), nascida em 1806; Richard, em 1811; e Joel, em 1813. Os bizarros fenômenos a envolverem os Bell iniciaram sem sobreaviso, em um dia aparentemente normal de 1817. John Bell estava passeando pelo milharal quando encontrou um estranho bicho, o corpo assemelhado ao de um cachorro, a cabeça, à de coelho. John atirou na criatura, mas pareceu não acertá-la, e o animal desapareceu. Naquela mesma noite, os Bell começaram a escutar batidas nas paredes externas da casa.

A frequência e a intensidade das batidas escalavam a cada noite, porém todas as vezes em que Bell e os rapazes corriam para o alpendre, não encontravam o “travesso”. Nas semanas que seguiram, os eventos se agravaram. As crianças começaram a acordar aterrorizadas, reclamando de ratos que roíam os pés das camas. Também afirmavam que os lençóis e travesseiros eram atirados para fora das camas por uma entidade invisível. A ameaça desenvolveu voz própria, que os Bell inicialmente  identificaram como semelhante a sussurros muito baixos de uma mulher que parecia cantarolar uma modinha qualquer. À medida que a entidade foi ganhando força, identificou-se como um quarteto de espíritos, chamados “Blackdog”, “Mathematics”, “Cypocryphy” e “Jerusalém”. “Blackdog” falava com uma voz feminina autoritária, materna, e deixava claro que era ela quem mandava nos demais, “Mathematics” e “Cypocryphy” também tinham vozes femininas, mas as suas pareciam as de duas adolescentes, “Jerusalém” falava com o tom de um garotinho. A “Bruxa”, na verdade o quarteto de vozes desencarnadas, nutria ódio mortal pelo patriarca John Bell e a filha Betsy, uma jovem muito bonita, inteligente e cheia de vida, que se destacava entre as outras garotas da região. Eu li um dos melhores livros sobre o caso, The Bell Witch: The Full Account, de Pat Fitzhugh, há aproximadamente três anos. Depois de lê-lo, eu o dei de presente a meu irmão, no entanto, me lembro de boa parte da história. Uma das passagens que perduraram em minha memória se dá quando, passeando pela propriedade com uma amiga, Betsy Bell enxerga uma família – uma mulher, duas meninas e um garotinho – descansando casualmente pelos lados das cercas. Ela se aproxima, cumprimenta-os, mas não recebe uma resposta. Depois, os visitantes desaparecem. É um instante tétrico e misterioso porque, muito embora possa ter sido apenas uma família de imigrantes de passagem pelas cercanias da propriedade, você se lembra de que depois que a “Bruxa” se manifestou, ela o fez como o quarteto de vozes – a mãe (Blackdog), as duas adolescentes (Mathematics & Cypocryphy) e o menininho (Jerusalém). Até hoje, pensar nessa passagem me dá calafrios, porque é o exato e único momento em que Betsy pode muito bem ter enxergado a “Bruxa”.

O professor Richard Powell era onze anos mais velho do que Betsy, mas pela garota nutria muito amor. Lamentavelmente, seu sentimento jamais poderia ser correspondido, pois Betsy estava envolvida romanticamente com Joshua Gardner, um rapaz de família rica e influente, dona de uma das fazendas da região. Peculiarmente, a “Bruxa” mantinha conversação com as pessoas da casa através das vozes desencarnadas, e insistia para que Betsy não se casasse com Joshua Gardner, pois afirmava que jamais seria plenamente feliz. Em dezembro de 1820, após três anos de abuso nas garras do demônio ou fosse o que fosse o quarteto, John Bell adoeceu e não conseguiu mais deixar a cama. Uma manhã, a família o encontrou morto, e na ocasião do enterro, os familiares e amigos escutaram a algazarra, os gritos e gargalhadas da entidade, comemorando a morte. Em abril de 1821, a entidade visitou Lucy Bell, a viúva, e lhe avisou que partiria, mas regressaria sete anos mais tarde. Em 1828, conforme prometido, a “Bruxa” retornou, e visitou a casa de John Bell, Jr. por toda uma tarde, quando conversaram sobre uma série de assuntos, desde política à origem da vida. Nesta conversa, a “Bruxa” fez premonições impressionantes, tais como a eclosão da Grande Guerra Civil. Ao dizer adeus, a entidade prometeu regressar para visitar os descendentes da família Bell dentro de cento e sete anos, contudo, em 1935, data prevista para a visita, nada foi reportado pelos descendentes diretos de John Bell, Jr. Ainda hoje, fenômenos luminosos esquisitos e bizarros podem ser observados no lugar onde séculos atrás existia a propriedade dos Bell. Dizem que se você tira fotografias na caverna da “Bruxa”, os filmes jamais saem claros ou nítidos.

Depois de discorrer sobre todos esses casos, eu recomendo que leiam sobre as histórias tratadas e procurem por A Casa das Almas Perdidas. Assisti ao filme quando criança, no começo dos anos 90, em fita de vídeo. O filme jamais foi lançado em DVD, porém creio que deva ser fácil encontrá-lo na internet. Apesar da temática perturbadora, é um filme elegante e bem feito, memorável e arrepiante, sem a necessidade do barato expediente de cenas de violência ou derramamento de sangue. O filme também conclui com a importante mensagem de que somente a união em família a tudo suporta e os maiores obstáculos transpõe. Há uma cena interessante que encapsula a grande mensagem – e, por que não, de todos estes notórios casos - quando o pai conversa com o padre sobre as razões de aquela entidade estar assediando impiedosamente a família, e o padre responde nas linhas de O amor que vocês têm uns pelos outros e a sua fé em Deus são as coisas que o Mal mais gostaria de arruinar, pois são exatamente as únicas coisas que podem vencer o Mal. Se você analisar o caso da Bruxa de Bell, a mensagem parece a mesma, a conquista do amor sobre todas as adversidades e coisas malévolas. Ao final do livro de Fitzhugh, o que também me chamou a atenção foi o fato de que, uma vez que se consegue enxergar além dos elementos aterrorizantes e espetaculares do caso, o que resta da narrativa é uma tocante história de amor, porque o professor, Richard Powell, nutria um sincero e belo sentimento pela garota, Betsy Bell, e realmente queria vê-la bem. A diferença de idade e classes sociais (ele era pobre) distanciavam seus mundos. Quando ela se torna noiva de Joshua, o namorado da adolescência e bom partido de Red River, Powell escolhe partir, para não sofrer e não a atrapalhar. Ele inclusive chega a se despedir da moça e do rapaz e lhes deseja toda a sorte do mundo, durante um piquenique à beira do córrego que os amigos de Betsy haviam organizado para celebrar o anúncio do noivado. O professor parte para uma outra cidade, dando as costas para toda a confusão – os extraordinários eventos relacionados à “bruxa”, o amor incondicional não correspondido pela menina. Depois que vai embora, ele se envolve romanticamente com uma outra mulher, e anos depois, prospera como político. O que eu acho tocante é que em nome de seu sentimento, Powell abdica da própria felicidade em razão da felicidade da garota, como o heróico e trágico protagonista escrito por Dickens em A Tale of Two Cities. Mais tarde, quando a moça amadurece e compreende que também se sente da mesma forma pelo professor, ela deixa o noivo rico, e parte para encontrar o único homem que um dia realmente a amou incondicionalmente, sem sentimentos de posse ou ciúmes. Aqui, eu estou escrevendo sobre o caso em linhas muito resumidas e amplas, porém, no livro de Pat Fitzhugh, e na versão romantizada An American Haunting, de Brent Monahan, parece uma história de amor tão extraordinária, tão rica em detalhes peculiares a grandes sagas de amor, que me vem à mente filmes dramáticos e românticos como Diário de uma Paixão. Se você analisar o caso em toda a sua extensão, desde os elementos mais aterrorizantes ao fim da jornada, quando a “Bruxa” vai embora, passando por todos os encontros e desencontros enfrentados por duas pessoas que queriam ficar juntas, o que chama a atenção é a história de amor que há por trás do fantástico poltergeist. Acredito que uma adaptação fidedigna aos eventos, que não se concentrasse exclusivamente nos detalhes espetaculares do poltergeist que assombrou os Bell, seria melhor servida por um maior escopo, e se pareceria com algo semelhante ao filme Diário de uma Paixão, com o diferencial dos elementos sobrenaturais e aterrorizantes, que tornariam o produto final mais sombrio, melancólico e nostálgico. Consigo imaginar Rachel McAdams no papel de Betsy Bell e Rupert Friend como Richard Powell. Ainda, no que se refere à história real, acho importante registrar que Powell e Betsy casaram-se, permaneceram unidos, e tiveram oito filhos. Assim como verdadeiros casais fazem, aproveitaram ao máximo os anos felizes, e foram unidos e corajosos nos menos prósperos. O amor os ajudou a vencer novos desafios, tais como a morte de quatro das oito crianças, e as dificuldades financeiras. Betsy permaneceu ao lado do marido como esposa devota e honrada, mesmo depois que ele sofreu um derrame e ficou inválido. Após a morte de Powell, Betsy vestiu o luto até o fim da vida. Estudiosos do caso acreditam que a “Bruxa” era produto de ressentimentos e traumas da infância de Betsy, que havia ganhado “voz própria” e, por que não, dissociado-se da moça e criado vida própria. Quando o quarteto a atormentava para não se casar com Joshua Gardner, era como se o poltergeist estivesse dando voz a um sentimento que já existia dentro de Betsy, a sua parte que amava o professor e sabia que jamais seria feliz com outro homem apenas pela fortuna. Sabe-se que, muito idosa, foi morar com uma das filhas, Eliza Jane Powell, que se recusava a falar sobre o assédio da “Bruxa” ocorrido entre os anos de 1817 a 1821, e que jamais dormia sozinha ou na escuridão. Betsy Bell morreu aos oitenta e dois anos de idade, mas a sua história com Richard Powell é um testamento sobre o poder do amor e sobrevive até hoje, época em que não se encontram mais exemplos parecidos.

Gostaria de concluir minha resenha enaltecendo o serviço que o time de Oren Peli tem prestado para o gênero, nos últimos anos. Após o sucesso de Atividade Paranormal, a dedicação ao gênero por parte de Peli e Jason Blum, seu co-produtor habitual, tem permitido que obras refrescantes como Insidious – Sobrenatural e A Entidade imprimam nova força ao horror nas telas dos cinema. Para cada temporada, a dupla guarda uma interessante novidade, e basta o rápido exame dos projetos dos dois para que fiquemos bastante empolgados pelo que está por vir. Em especial, gostaria de fazer referência às produções cujas datas de estreia não estão muito distantes: Dark Skies – Os Escolhidos e The Conjuring – Invocação do Mal. As temáticas dos filmes divergem, porém os arrepios comuns às obras de Oren Peli decerto estarão presentes. Em Dark Skies, uma família – os pais e dois meninos – é assediada por estranhos eventos, que assim como em casos de poltergeist começam de maneira incipiente (um alarme de segurança que soa à noite sem que ninguém tenha invadido a propriedade, por exemplo), porém logo se tornam extremamente agressivos. Diferente dos demônios em Atividade Paranormal e Insidious – Sobrenatural, o horror advém de visitantes extraterrestres que “cismaram” com aquela família em particular. O filme é estrelado por uma atriz muito talentosa, conhecida pela série Felicity, e deve estrear no Brasil em julho de 2013. Em The Conjuring – Invocação do Mal, o diretor James Wan traz às telas os eventos de uma investigação paranormal conduzida por Ed e Lorraine Warren nos anos 70, quando uma família que se muda para uma casa de campo em Rhode Island passa a ser assaltada por manifestações sobrenaturais. O novo filme do diretor James Wan estreia nas salas brasileiras em setembro de 2013. Estes filmes darão aos fâs do gênero o que esperam, aquilo que o grande Clive Barker comentou sobre o apelo de obras do tipo: convidar-nos a lidar com o horror de uma "forma segura", participar apenas como observadores da experiência, enquanto os personagens na tela são os únicos assaltados pelo Mal. A menos que estejamos falando sobre os casos verídicos tais como o dos Smurl ou dos Bell, onde - e essa é a parte assustadora - o horror começou aleatória e inocentemente, sem avisos.

Boa noite, bons sonhos, e agarrem-se a seus lençóis.

domingo, 28 de abril de 2013

Cemitério Maldito ("Pet Sematary", 1989) - Mesmo após tantos anos, este filme perdura como a mais apavorante adaptação cinematográfica de uma obra do mestre Stephen King.


A família Creed muda-se de Chicago para a pequena cidadezinha de Ludlow, Maine. Louis é médico, e aceitou o cargo de diretor do Departamento de Medicina no campus da universidade. Com a sua inteligente e bonita esposa Rachel, Louis faz o melhor para cuidar bem dos filhos, a espevitada menininha Ellie e o bebê Gage. Acompanhando a família, o gato dos Creed, um dócil British Shorthair chamado Church. Depois da mudança, tornam-se amigos do senhor Jud, um velhinho que mora na casa defronte, do outro lado da estrada, e que os leva para passear no “cemitério de animais”, logo atrás da nova propriedade dos Creed, onde as crianças da época de Jud costumavam enterrar os bichinhos mortos. Pelo fato de a autoestrada atravessar a região, o número de mortes de animais de estimação sempre foi muito grande. Para além do cemitério de animais, existe um vasto bosque, e Jud promete a Louis lhe contar mais sobre o lugar que foi terra da extinta tribo dos MicMac.

Um dia, um jovem estudante chamado Victor Pascow é trazido para a emergência do campus após um horroroso acidente automobilístico onde sofreu fratura craniana. O jovem morre, porém antes de partir, avisa ao médico para não se aventurar no bosque. O estudante se dirige a Louis pelo nome e toda a situação parece inverossímil ao médico, vez que jamais haviam se conhecido. Na mesma noite, tem um terrível pesadelo, que parece muito real, onde Victor visita Louis e diz que para além dos bosques existe o solo onde os índios enterravam os mortos, e que jamais deve andar por ali.

Church, o gatinho de Ellie, é morto ao ser atingido por um caminhão na estrada defronte à casa. Isso acontece quando Ellie, Rachel e Gage se encontram em Chicago, visitando os pais de Rachel. Jud pede para que Louis coloque o animal morto em um saco e o acompanhe através do bosque, até a terra dos MicMac, para além do bosque, onde enterram Church. Naquela noite, Church regressa dos mortos, ligeiramente diferente de como se comportava antes do acidente. Parece mais lento e malévolo, como uma paródia de si, e chega a estranhar o dono. Jud conta a Louis sobre o lugar, que foi o mesmo solo que lhe devolveu o cachorro morto, quando criança, e que fez aquilo porque sabia o quanto Ellie amava o gatinho e sofreria com sua morte.

Algum tempo depois, Gage é apanhado em cheio por uma carreta, na mesma traiçoeira estrada. Destroçado pela culpa e dor, Louis pondera desenterrar a criança e levá-la às terras dos MicMac. Jud procura dissuadi-lo, conta-lhe o caso de Timmy Baterman, um rapaz local que morrera durante a Segunda Grande Guerra. Devastado pela dor, o pai de Tim resolveu enterrá-lo no solo indígena para além dos bosques, e o corpo reanimado de Timmy retornou à cidade, aterrorizando os moradores locais. Jud e mais três amigos precisaram atear fogo na casa com Timmy dentro, para acabar com aquela horrorosa situação. O pai, cego de amor pelo filho, correu para dentro da propriedade e morreu ao lado de Timmy no incêndio.

Rachel suplica ao marido que a acompanhe com Ellie para Chicago, mas o ressentimento de Louis pelo sogro Irwin ainda está muito à flor da pele. Com a esposa e a filha distantes, Louis desenterra a criança. A todo instante, enxerga o espírito de Pascow, que suplica para que não cometa tamanha insanidade. Durante a estadia na casa dos avós, Ellie tem um assustador pesadelo, onde Pascow procura alertá-la de que o pai está em vias de fazer algo muito ruim, e que resolveu ajudar o médico porque, no passado, Louis tentou salvar a sua vida. Rachel se assusta com a conversa da filha, porque se recorda do rapaz atropelado, no entanto, não imagina como a filha o conheceria. Ela liga para Jud, atrás de Louis, e o velho imediatamente compreende que o vizinho levará adiante o intento de enterrar Gage na terra MicMac. Rachel resolve retornar imediatamente ao Maine.

Louis carrega o corpo da criança enrolado em um lençol através do fantasmagórico bosque. Durante a travessia, tem a certeza de avistar ao longe as formas do assustador demônio Wendigo, observando-o sorridente. Depois de enterrar a criança no solo MicMac, o médico regressa pela mesma trilha para sua casa. Ao chegar, cai exausto e inconsciente na cama. Horas mais tarde, durante a madrugada fechada, Gage entra no quarto, abre a maleta do médico e apanha o bisturi. O corpo reanimado entra então na casa de Jud e mata o velho. Quando Rachel está para subir o alpendre, depois de ter feito todo o caminho de volta ao Maine, escuta a voz da falecida irmã vindo da propriedade do outro lado da estrada. Zelda, a irmã de Rachel, falecera na infância vitimada por meningite, e Rachel jamais esquecera as terríveis lembranças de como a irmã doente apreciara atormentá-la para descontar a frustração pela saúde debilitada. Rachel entra na casa de Jud e fica chocada ao encontrar o filhinho Gage. Ela o abraça, sem perceber que a criança está munida de um bisturi afiado.

Louis desperta na manhã seguinte, e ao se deparar com as pequeninas pegadas lamacentas no carpete, compreende que o filho retornou da terra dos MicMac e andou pela casa enquanto o pai dormia. Mais preocupante ainda, mexeu na sua maleta e levou o bisturi. É quando o telefone começa a chamar. Do outro lado da linha, o corpo reanimado de Gage avisa ao pai que terminou de brincar com o corpo da mãe, e que agora é a sua vez. Louis prepara várias doses de morfina e segue para a casa do velho. No quintal, dá com Church, o gato reanimado, e sacrifica o animalzinho com uma das doses. Ele então adentra na propriedade, e repentinamente o corpo de Rachel, aberto a golpes de bisturi, despenca sobre o médico. Gage ataca o pai e chega a acertá-lo com alguns golpes, com a lâmina, mas Louis é mais ágil, e penetra o pescoço da criança com a injeção de morfina. Louis banha a casa de gasolina e ateia fogo, levando consigo apenas o corpo de Rachel. O espírito de Pascow observa a cena, e pela última vez implora para que Louis não visite o terreno dos índios. O médico racionaliza que Gage voltou maléfico pois demorou a levar o corpo do filho. Com a mulher, será diferente. Naquela mesma noite, Louis espera pelo regresso da esposa morta jogando cartas no chão da cozinha. À meia-noite, Rachel retorna, o rosto outrora belo ligeiramente diferenciado pelos golpes de bisturi e pela sujeira de terra. Ela sorri ao marido, e os dois se abraçam.

Filme incômodo e aterrorizante, ao mesmo tempo surpreendentemente sensível e humano. Baseado no extraordinário romance de Stephen King, é uma adaptação em sua maior parte fiel à fonte original. A diretora Mary Lambert, que lamentavelmente após a produção jamais voltou a comandar sucesso semelhante, soube como condensar o extenso conteúdo do romance em 100 minutos de duração, sustentando a tensão e o suspense o tempo inteiro. Diferente da maioria dos filmes de mesmo gênero, Lambert também obteve êxito em fortalecê-lo com os momentos de tristeza, doçura e emoção, tão comuns à prosa de King. Quem leu o romance original compreenderá que Stephen King jamais foi simplesmente um “escritor de horror”. Muito embora saiba ambientar os personagens em impressionantes tramas envolvendo o sobrenatural, o seu assertivo olhar sobre a condição humana nos fala a um nível bastante pessoal, em uma intimidade que poucos autores souberam reproduzir na escrita. Normalmente, você seria levado a pensar que tiramos pouco proveito de filmes de horror para nossas vidas individuais. Realmente, um bom filme de horror cumpre sua proposta ao provocar apreensão e medo, no entanto, obras de King são mais ambiciosas e gratificantes, e das mesmas tiramos enorme proveito, pois vão um pouco mais além.

O cerne do filme – a influência de um demônio oriundo da mitologia das tribos indígenas da América do Norte sobre o território anteriormente ocupado pelos MicMac – é fantástico e próprio ao gênero horror, todavia os dramas particulares que orbitam o referido núcleo sobrenatural nos parecem familiares e reveladores e, portanto, imprimem à estória incomum e inesperada profundidade psicológica, até mesmo nos convidando à reflexão. Mais acentuadamente no romance original, porém também presente na adaptação cinematográfica, Pet Sematary aborda temas atemporais e importantes, válidos para discussão, questões que nos ajudam a pensar em nossas próprias vidas. A começar pela doença terminal de Zelda e a morte do gatinho Church, King nos estimula a simpatizar com os personagens, até porque suas dificuldades também se assemelham `as nossas. Creio que todos nós conhecemos a dor da perda de um parente amado levado por uma doença terminal. O horror de Rachel ao falar sobre a morte parece justificável, face ao que passou com a irmã doente, e a forma aterrorizante com que se recorda de Zelda talvez se deva muito ao fato de que era uma criança quando toda a confusão aconteceu, quando a morte da irmã deixou uma marca indelével na sua personalidade, trauma que parece mais explícito hoje, já mulher crescida, esposa e mãe de duas crianças. Os sentimentos de Rachel pela irmã parecem contraditórios: ela a ama, pois Zelda é, afinal de contas, sua irmã, apenas uma criança tomada por uma horrorosa e letal moléstia, e nada fez para merecer um destino tão triste; ela a odeia, porque, por causa da doença, Zelda se tornou uma criatura monstruosa, horrorosa, vingativa, maliciosa e assustadora, os olhos cheios de ressentimentos contra Rachel. Zelda não tem como deixar de ressenti-la: Rachel terá toda uma vida pela frente, Zelda jamais terá a oportunidade de começar a própria. Ainda acerca da maneira como lidamos com a morte, a forma como Louis reage à perda de Church parece dolorosamente familiar. Quase todos descobrimos sobre a morte quando crianças, através de bichinhos de estimação. Todos conhecemos a sensação, não é mesmo?Quando criança, cuidamos de um bichinho e lhe devotamos carinho e amor incondicionais, e o animal retribui com ainda mais afeição, até que os fatos da vida nos atingem na cara pela primeira vez quando morrem mais cedo do que esperávamos. É como um “preparatório” para a vida adulta, quando passamos a perder pessoas – não mais animais - que amamos, e, ironicamente, nos sentimos igualmente confusos e perdidos como quando havíamos perdidos os nossos animaizinhos.

No romance de King, a cena em que Louis encontra o gatinho morto é brilhantemente construída, e o talento do escritor nos permite compreender a extensão do amor do médico pelo animalzinho, e a tristeza pela sua morte. King escreve “Pela primeira vez tomava consciência de que amava Church — talvez não com o mesmo fervor de Ellie, mas a seu próprio modo. Nas semanas que se seguiram à castração, Church tinha se modificado, ficara gordo e indolente, caíra num perambular rotineiro entre a cama de Ellie, o sofá e a vasilha de comida. Raramente saía de casa. Agora, morto, olhava para Louis como o velho Church. A boca, pequena e ensangüentada, cheia dos seus dentes de felino, afiados como agulha, parecia congelada num rosnado de ataque. Os olhos sem vida, mesmo assim pareciam furiosos. Era como se depois da curta e estúpida fase de uma existência como eunuco, Church redescobrisse sua verdadeira natureza no momento da morte”.

A dinâmica de casal entre Rachel e Louis é impecável. Parece evidente no filme, mas na fonte original salta aos olhos ainda mais explícita. Você sente que estes dois são reais e aprofundados, complexos como as pessoas que conhecemos e com quem nos relacionamos no dia a dia. Na estória, são jovens pais, aos trinta e poucos anos, superando unidos as pequenas dificuldades diárias. Com dois filhos, a vida do casal pareceu focar-se em criá-los bem, no entanto, ainda assim encontram oportunidades para reacender a chama da paixão. No livro, há tocantes momentos que jovens casais, pais de primeira viagem, ao lê-los, reagirão com sorriso familiar e conhecedor, tais como quando Louis a presenteia com um colar de safiras, e Rachel se emociona, prometendo que vai usá-lo quando fizerem amor naquela noite. No romance, King escreve:

Abriu o presente sentada num degrau, viu a caixa da Tiffany e quase deu um grito de satisfação. Removeu o enchimento de algodão e ficou imóvel, de boca ligeiramente aberta.
Bem? — ele perguntou ansioso. Era a primeira vez que lhe comprava uma verdadeira joia e estava nervoso. — Você gosta?
Ela estendeu a fina corrente de ouro nos dedos e voltou a pequena safira para a luz do corredor. Depois girou-a lentamente e a pedra pareceu atirar frios raios de luz azulada.
Oh, Louis, é tão maravilhoso...
Rachel começou a chorar e Louis se sentiu ao mesmo tempo comovido e alarmado.
Ei, meu bem, não faça isso — disse. — Ponha o cordão no pescoço.
Louis, nós não podemos... Você não pode comprar...
Chiií — disse ele. — Consegui guardar algum dinheiro desde o Natal passado... E não foi assim tão caro...
Quanto custou, Louis?
Nunca vou dizer, Rachei — respondeu solenemente. — Nem um exército de torturadores chineses conseguiria me fazer contar... Dois mil dólares.
Dois mil...!
Ela o abraçou com tanta força e tão de repente que quase o fez rolar pela escada.
Louis, você está louco!
Ponha no pescoço — ele pediu de novo.
Rachel obedeceu. Louis ajudou-a no fecho. Depois ela se virou com um sorriso.
Quero subir e dar uma olhada no espelho — disse. — Quero me curtir um pouco.
Então se curta um pouco — disse ele. — Vou colocar o gato lá fora e apagar as luzes.
Quando fizermos amor — disse Rachel, olhando tristemente nos olhos dele —, vou tirar tudo, menos isto.
Apronte-se, então — disse Louis, e ela riu.

Semelhante ternura também é evocada quando Rachel aproveita que os meninos estão fora de casa e prepara um banho para Louis e os dois terminam fazendo amor. Estes momentos jamais parecem vulgares, e carregam um tipo de delicadeza que casais verdadeiros os invejariam. Apesar da pouca idade, ambos aos trinta e poucos, Rachel e Louis têm uma bela história para contar, onde uma série de percalços teve de ser superada para que ficassem juntos, entre eles o antagonismo que o pai de Rachel, Irwin, sente pelo genro. No romance, as motivações de Irwin parecem originar-se da frustração pelo fato de Louis ter “carregado” a filha para longe da casa dos pais. Rachel sendo a filha sobrevivente, parece natural que os pais tenham se apegado tanto à moça, porém Irwin realmente ressente o genro de uma maneira doentia e, mais tarde, chega ao cúmulo de responsabilizá-lo pela morte do bebê Gage. No livro, Irwin cospe o ódio ao genro com palavras devastadoras, que foram recriadas para o filme Já sabia disso quando ela se casou com você. “Vai comer o pão que o diabo amassou e muito mais”, eu disse. E agora olhe isso... Este caos. Sempre tive certeza de que as coisas acabariam assim... Assim ou de forma parecida. Percebi o tipo de homem que você era desde a primeira vez que o vi. - Goldman se inclinou para a frente, exalando um bafo de scotch. - Você nunca me enganou, seu medicozinho metido a besta... Induziu minha filha a um casamento estúpido, irresponsável, depois a transformou numa lavadora de pratos, depois deixou o filho dela ser atropelado na estrada como um... um animal.

Na versão para o cinema, a diretora Mary Lambert conseguiu reproduzir a magnífica química entre Louis e Rachel graças a seus dois atores principais, absolutamente perfeitos para os papéis e, talvez mais importante, perfeitos um para o outro. O resultado do filme depende diretamente da maneira como os dois atores principais reagem um ao outro, uma escolha equivocada teria funcionado como o beijo da morte para a produção, a estória jamais teria decolado, não teríamos acreditado por um minuto no drama que os protagonistas atravessam. Felizmente, Lambert não poderia ter escolhido pessoas melhores. Estes dois realmente pertencem ao mesmo frame.

As instigantes questões filosóficas propostas tanto pelo livro quanto pelo filme provocariam interessantíssimas discussões e jamais seria possível chegar-se a uma resposta satisfatória. Se por um lado enterrar o gato Church e, depois, o filho Gage no território MicMac vai de encontro à ordem natural da vida, por outro, eu compreendi as escolhas equivocadas de Louis, e devo dizer que somente saberíamos como teríamos agido se passássemos por uma catástrofe familiar semelhante. Certamente, não concordo com suas atitudes, mas compreendo a dor e o desespero que o levaram a tamanha insanidade. Do momento em que chegam à cidadezinha, a família Creed parece condenada a toda a tragédia que vem mais tarde, talvez até mesmo pela influência da energia malévola que perdura na região, que parece se alimentar da curiosidade dos desavisados, ou mesmo da necessidade do ser humano de passar adiante os segredos tão mágicos da terra secular de origem indígena. Por maior que fosse o seu carinho e apego pela família Creed, o vizinho Jud, um senhor bondoso e solícito por natureza, não teve como deixar de contar sobre a magia do território MicMac. Quando o gato aparece morto, atropelado, Jud poderia ter deixado a questão se resolver por si - a garotinha Ellie precisaria mesmo, um dia, aceitar os fatos da vida, a morte de animaizinhos e pessoas queridas um desses duros fatos – porém, a energia do lugar e do Wendigo foi mais forte, e Jud tagarelou sobre o solo. Uma vez que Church retorna à vida, e Louis compreende que o poder da terra é bastante real, parece-me que o Wendigo usa de seu encanto e fascínio sobre o médico como alavanca para arremessar a família em um pesadelo de loucura e morte, o momento definitivo a manhã do piquenique em que o menininho Gage sai correndo atrás de uma pipa, sem que os pais distraídos deem pelo perigo. Sabemos que o menino acaba apanhado em cheio pela carreta na estrada. O Wendigo é um espírito maléfico, e portanto sua razão de existir fundamenta-se em perpetuar o mal. A sua sedutora promessa falsa de devolver um ente querido à vida é a força motriz de seu diabólico apelo. Stephen King escreve:

Ela (Rachel) ergueu o rosto inchado.
O Gage nem estava sendo malcriado, Louis. Pra ele tudo não passava de uma brincadeira... O caminhão veio na hora errada... A Srta. Dandridge telefonou enquanto eu ainda estava chorando. Leu no American de Ellsworth que o motorista tentou se matar.
Quê?!
Tentou se enforcar na garagem da casa dele. Segundo o jornal, está em estado de choque e com uma depressão profunda...
Pena que não conseguiu morrer — disse Louis brutalmente, mas a voz pareceu distante aos seus próprios ouvidos. Sentiu um calafrio tomando conta do corpo. O lugar tem poder, Louis... Foi cheio de força no passado e estou com medo de que esteja voltando a ter pleno poder. — Meu filho está morto e esse motorista foi solto por uma fiança de mil dólares... Vai continuar se sentindo deprimido e com vontade de morrer até que um juiz qualquer casse a carteira dele por noventa dias e na saída lhe aperte o punho dizendo que está tudo bem.
A Srta. Dandridge diz que a mulher pegou as crianças e foi embora —Rachel falou sombriamente. — Não leu isso no jornal, mas soube por alguém que conhece um vizinho dele. Não estava bêbado. Não estava drogado. Nunca teve multas por excesso de velocidade. Mas disse que quando entrou em Ludlow, simplesmente teve vontade de pisar fundo no acelerador. Disse que não sabe como aconteceu. Simplesmente aconteceu.
Simplesmente teve vontade de pisar fundo no acelerador.
O lugar tem poder...

Assim como aconteceu em sua obra The Shining, em que a energia negativa de um hotel isolado nas montanhas do Colorado usa das vulnerabilidades e segredos de um ex-alcoólatra para voltá-lo contra a esposa e o filho sensitivo pequeno, em Pet Sematary, o demônio Wendigo assume a forma dos maiores horrores dos protagonistas. Para Rachel, o Wendigo se manifesta através da aparição da irmã doente – tanto no romance quanto na adaptação para o cinema – e para Jud (no romance), o Wendigo se materializa como a falecida esposa do senhor. Uma das cenas mais arrepiantes envolve Rachel reencontrando Gage, possuído pelo Wendigo, surgindo para a mãe vestido a caráter, de cartola, capa e bengala. Quando o demônio assim o faz, está jogando com a cabeça de Rachel: o vestido usado pela criança corresponde a uma pintura de Zelda, feita quando criancinha, anos antes da meningite. Tudo o que o Wendigo faz parece ardilosamente orquestrado para incutir absoluto horror às pessoas vítimas de sua influência. Outro ponto em comum entre The Shining e Pet Sematary é a natureza amorfa dos males que aterrorizam os personagens. Em Pet Sematary, pouco se sabe sobre o Wendigo. Basicamente, conhecemos apenas que o Wendigo compõe parte da rica mitologia indígena, descrito como um demônio canibal que habita a natureza, e entra na mente de pessoas vulnerabilizadas pela fome, sugerindo-lhes a prática do canibalismo, no entanto jamais chegamos a vê-lo, permanece como uma entidade abstrata e misteriosa. Em The Shining, a energia malévola do hotel Overlook deve-se a dois fatores preponderantes: primeiro, o fato de ter sido erguido sobre terras indígenas, segundo, a natureza pérfida e cruel das pessoas que ao longo dos anos passaram pelo lugar. O homem que o ergueu - um playboy bissexual notório pelos seus excessos, com laços com a máfia, e cujos tentáculos alcançavam uma variedade de investimentos, de hotelaria e cassinos a estúdios de cinema - é só a ponta do iceberg na sinistra história do lugar. Uma série de coisas horrorosas ocorreu no hotel, desde escândalos sexuais, mortes por overdose, assassinatos encomendados pelo crime organizado, a toda sorte de escândalos violentos e revoltantes. É como se a energia reminiscente de todo esse pessoal que ou por ali passou ou morreu em suas dependências seguisse nos corredores do hotel, assombrando-o, como uma força conjunta e impiedosa, que jamais é vista plenamente, mas identificada apenas em sinais, principalmente pelo menininho sensitivo, que tem um encontro aterrorizante com o espírito da mulher morta do quarto 237, vê as duas irmãs gêmeas assassinadas a machadadas pelo pai no corredor, e é assediado por um homem bem aparentado que veste a fantasia de cachorro. A mulher morta do quarto 237 havia sido abandonada pelo companheiro, e veio a se matar com o uso de barbitúricos, em 1975. No filme de Stanley Kubrick, o espírito do quarto 237 assume a forma de uma velha decrépita, mas no romance de Stephen King, é descrita como uma mulher que aparenta seus 35-40 anos, habita o quarto e emerge da banheira sempre que alguém entra no lugar. King refere-se a ela como Senhorita Massey. A sequência em que Danny a encontra é inesquecível, um dos instantes mais apavorantes do livro. King não descreve o desenrolar do encontro, interrompe a narrativa bem no instante em que a mulher sai da banheira, depois que o menino se vê preso dentro do quarto com a estranha. Na cena seguinte, a mãe o encontra no corredor, em estado de choque, chupando o polegar, os olhos vidrados, cheio de marcas no corpo, resultado da surra que levou da mulher. O homem vestido de cachorro representa mais um dos tristes e tétricos personagens que passaram pelo Overlook no passado, e se chama Roger, amante de Horace Derwent, o playboy bilionário dono do hotel com conexões com o crime organizado e a indústria do jogo de Vegas. Aparentemente, os dois tiveram um breve romance homossexual, mas logo Derwent lhe deu um chute no traseiro. Apaixonado, Roger passou o resto da vida tentando reatar com o magnata ex-namorado. A fantasia que veste, de cachorro, é uma alusão a um baile de máscaras que ocorreu por ali, nos idos de 1945, quando esteve no Overlook para procurar se reconciliar com Derwent. Tanto a Senhorita Massey quanto Roger são figuras claramente trágicas e tristes, símbolos do amor não retribuído, não correspondido. São estas as duas manifestações que mais frequentemente atormentam a criança durante sua estadia no hotel. Há ainda os outros espíritos, centenas deles, gente que em vida celebrou o baile de máscaras de 1945 e cujos espíritos vagam pelos corredores encorajando visitantes vulneráveis a cometerem violência contra familiares ou contra si. De muitas maneiras, as pessoas elegantes, refinadas, cruéis e maquiavélicas do baile de máscaras de 1945 parecem ter marchado diretamente de um pesadelo de David Cronenberg, no sentido de que a violência psicológica que impõem aos visitantes chega a se mostrar tão esmagadora que acaba por levá-los primeiro à mais absoluta loucura e então à morte.

Ainda em comum, Pet Sematary e The Shining dependem de flashbacks que nos permitem compreender melhor a natureza do mal. Em Pet Sematary, é Jud quem faz essa ponte entre o presente, quando a família do vizinho Louis se torna alvo do assédio do Wendigo, e o passado, quando Jud, ainda menino, descobriu sobre o lugar pelas mesmas razões que contou o segredo para Louis, depois que o gato do médico morreu: no passado, foi a morte do cachorro que levou um andarilho a lhe explicar que sabia de um lugar que amenizaria sua dor. Em The Shining, por meio de recortes de jornais, Jack Torrance vai montando as peças do quebra-cabeças do passado do Overlook, porém é no extravagante baile de máscaras de 1945 que toda a aura de glamour do mundo dos ricos e privilegiados ganha vida, em descrições vívidas de muitas cores e belas formas. Evidentemente, a riqueza de detalhes é particularmente forte nos romances originais. Os filmes perdem um pouco das ideias de King, de modo que somente a leitura integral dos livros poderá oferecer uma experiência completa.

Recentemente, foi anunciado pela Paramount que a refilmagem de Pet Sematary encontra-se em concepção. A produção ainda está em fase de elaboração de roteiro, e não há menção a nomes quanto a direção ou a elenco. Acredito que o talentoso James Wan reúna talento e paixão necessários para a cadeira de diretor. Talvez o aspecto mais delicado recaia sobre a escalação de elenco. Dale Midkiff e Denise Crosby fizeram um trabalho tão magnífico nos papéis de Louis e Rachel que mesmo tantos anos após o primeiro filme parece complicado repensar em novos artistas para os personagens. A questão vai além do talento necessário para os papéis, vez que tão importante quanto capacidade individual é a química entre o par, que foi o que tornou o filme de Mary Lambert tão ímpar. O excelente ator Colin Firth parece reunir as qualidades mais importantes para o trabalho, porém, recentemente, ao assistir ao ótimo 5 Dias de Guerra, do diretor Renny Harlin, fiquei impressionado com o artista Rupert Friend, cujo carisma me fez enxergá-lo como um jovem Burt Reynolds. Acho que a difícil escolha deveria se dar entre Colin Firth e Rupert Friend, dois homens sob medida para Louis Creed. Jennifer Connelly faria uma ótima Rachel, até porque traz tristeza no olhar, difícil de se reproduzir – é uma tristeza só sua, evidente em todos os papéis que faz. Rose Byrne também ofereceria algo de refrescante à personagem, pois sempre agrega valor a todos as obras em que atua. Byrne também conhece o gênero horror e já colaborou com Wan, tendo ambos nos brindado com o excepcional Insidious – Sobrenatural. Mesmo em um estágio tão inicial, nós fãs de filmes de horror temos muito o que celebrar!Gostaria de concluir a resenha transcrevendo o inesquecível desfecho do romance Pet Sematary, um momento magistral saído da imaginação de Stephen King que jamais será transposto às telas com o mesmo impacto:

A polícia veio no fim da tarde. Fizeram perguntas, mas não levantaram suspeitas. As cinzas ainda estavam quentes e ainda não tinham sido revolvidas. Louis respondeu às perguntas. Eles pareceram ficar satisfeitos. Conversaram do lado de fora e ele usava um chapéu. Isso era bom. Se tivessem visto seu cabelo branco, poderiam ter feito mais perguntas. O que seria mal. Ele usava luvas de jardinagem, o que também era bom. As mãos estavam ensanguentadas e muito machucadas. Jogou cartas sozinho até bem depois da meia-noite. Estava começando uma nova rodada quando ouviu a porta de trás se abrir. “Você arranjou a coisa, ela é sua, e mais cedo ou mais tarde acaba voltando às suas mãos”, Louis Creed pensou.
Não se virou, continuou olhando as cartas, enquanto os passos lentos, rangentes se aproximaram. Viu a rainha de espadas. Pôs a mão em cima dela.
Os passos cessaram bem nas suas costas.
Silêncio.
A mão fria caiu no ombro de Louis. A voz de Rachel era um chiado que parecia cheio de terra.
Querido — disse a coisa.