








Durante os momentos finais de Audition, depois que Asami consegue imobilizar Aoyama e começa a trucidá-lo, Miike desafia as convenções do bom senso, e lamentavelmente, ao invés de sugerir por vias mais sutis o que está se sucedendo com os dois personagens, prefere colocar as lentes sobre a ferida. O que aos olhos provoca terrível impacto visual também enfraquece o conjunto. É como se nesse instante, toda a classe, elegância, mistério e beleza que Miike conseguiu estabelecer tão bem na primeira hora perdesse valor, graças a mais desnecessária exploração de escatologia e violência. Não é o suficiente para prejudicar substancialmente o filme de Miike, mas sem dúvidas o impede de decolar como o suspense impecável que a primeira hora prometera. A gratuidade da violência gerou protestos e afastou pessoas deste suspense que ironicamente e em sua maior parte veste elegância, mistério e eletricidade.

Miike é um cineasta cujo conturbado olhar cria imagens memoráveis e marcantes, mais eficientes do que qualquer violência gratuita posta na tela. Há um momento prova disto, muito contundente, mostra de sua criatividade melancólica, quando Aoyama, dividido pela culpa, vez que está se apaixonando novamente, sonha com a falecida esposa o observando detrás de uma árvore em um vasto campo, com o olhar cheio de dor e decepção. Esse breve momento perdura na memória, dada a incomum tristeza. A criatividade tétrica do diretor encontra absoluto suporte no provocante roteiro, que presenteia Miike com personagens psicologicamente aprofundados e difíceis com que possa trabalhar. É o caso dos protagonistas e, significantemente, de uma personagem periférica menor, que contribui para enriquecer a honestidade psicológica dessa trágica estória. Trata-se da secretaria de Aoyama, uma bonita jovem que inicialmente parece apenas mais uma personagem desimportante. Posteriormente, ao longo do filme, deduzimos que nutre sentimentos românticos secretos que jamais serão correspondidos pelo chefe. Em um momento bastante revelador, a garota aparece na porta do escritório para avisar que já está indo, e Aoyama, concentrado nos afazeres, levanta os olhos por sobre o monitor, para a moça, diz algo nas linhas de Oh está tudo bem, Senhorita Fulana de Tal, pode ir e volta a seus afazeres. Ela permanece na porta, silente, os olhos tomados pela amargura, tendo caído na real de que Aoyama sequer a enxerga sob a ótica da possibilidade de envolvimento amoroso. Essa menina foi “friendzonada” tão definitivamente que não apenas nesse instante como nos demais em que aparece mais para a frente, toda a dor da rejeição segue emanando de sua performance, cortesia do excelente desempenho da atriz.
Audition é um dos poucos filmes japoneses de horror que não recebeu o tratamento da refilmagem. Parte das produções refeitas nos Estados Unidos padecem quando comparadas aos originais. Se Audition tivesse sido refilmado da maneira correta, haveria muito a se agregar ao trabalho original de Takashi Miike. Uma considerável barreira que atrapalhou a tradução do material por um cineasta ocidental deveu-se ao cerne essencialmente nipônico. Na cultura patriarcal japonesa, as mulheres parecem lidar com maior repressão, com amarras mais apertadas que as prendem a valores machistas seculares e as mantêm sob o jugo dos homens. Se encararmos a questão por esse viés, o trabalho de Miike parece a catártica resposta feminista a questionamentos difíceis de serem respondidos, mas experimentados nas vidas individuais das pessoas que compõem a referida sociedade. O mesmo não se observa na sociedade ocidental, onde as mulheres obtiveram avanços que as colocaram em posição de “igualdade” com os homens, muito embora, particularmente, acredite que tais conquistas tenham sido desvirtuadas, e que suposta igualdade represente em última análise enganosa deturpação, que mais têm arruinado famílias do que as formado, que mais têm alienado do que unido, que mais têm gerado homens sensibilizados, fracotes, românticos, apologéticos e vulneráveis do que homens fortes, decididos, orgulhosos, corretos, honrados, que não aceitam ser capacho de mulher, e estão preparados para os desafios da vida. Pessoalmente, acredito que o equilíbrio está em algum lugar no meio.

Audition é uma saborosa "anomalia" do horror: desde quando, afinal de contas, os amigos já assistiram a um filme de terror que inicialmente se assemelha aos dramas românticos estrelados por Rachel McAdams, só que simultaneamente envolto por eletrizante atmosfera de suspeitas e expectativas, e que depois se torna um suspense surreal sem tréguas nos moldes de um pesadelo imaginado por David Cronenberg ou Clive Barker, com uma vilã metida em bizarra fantasia de couro sadomasoquista, que nos remete aos mesmos trajes a adornarem os cenobitas de "Hellraiser"?Ainda, quais foram os filmes, que não raríssimos casos, que apresentaram personagens tão psicologicamente densos e imprevisíveis como os que conhecemos nessa estória?Ou um roteiro que envolvesse um leque tão variado de contradições da psique humana?O debate a que esse filme convida jamais oferecerá respostas definitivas. No perigoso campo minado dos relacionamentos, as perguntas em aberto estão aí para serem resolvidas desde que o mundo é mundo, e é a busca por respostas que nos instiga adiante. A compreensão do que se passa na mente humana parece mais intrincada do que a do universo que nos rodeia. Como Shakespeare melhor diria, Alguns cupidos caçam com flechas; outros, com armadilhas.