sábado, 1 de março de 2014

M. Butterfly ("M. Butterfly", 1993) Na metamorfose da lagarta à borboleta, David Cronenberg encontra o simbolismo perfeito para o horror da transformação.

Assombroso e deprimente thriller psicológico, "M. Butterfly", um dos filmes menos vistos de David Cronenberg, respeita a sua tradição como o mestre absoluto do horror inteligente, um dos mais corajosos e ousados cineastas contemporâneos, que jamais se afastou de sua visão, e preteriu a sedução do cinema comercial em nome de filmes de arte mais densos, difíceis e marcantes. Da mesma maneira que fez com "Gêmeos Mórbida Semelhança", Cronenberg nos traz uma assustadora história baseada em fatos reais, onde muito do horror permanece adormecido por trás de sorrisos e olhares a se interpretar, e a mais ardilosa e perigosa das armas é o apego. Vagamente inspirado nos eventos do caso Boursicot, "M. Butterfly" se passa em Pequim, China, nos anos 60, e reúne astro e diretor de "Gêmeos Mórbida Semelhança". Jeremy Irons interpreta René Gallimard, um diplomata francês que mergulha no pesadelo que o próprio criou, ao se apaixonar por uma artista de ópera oriental, Song Liling, na verdade espiã do Império Chinês.

O ano é 1964. René Gallimard é um funcionário da embaixada francesa que segue as regras e é mal visto pelos colegas por se portar como um indivíduo incorruptível. Em mais uma noite de diversão entre os funcionários do governo francês em Pequim, Gallimard atende `a apresentação da ópera na companhia de sua chefe Frau Baden (Annabel Leventon). O espetáculo exibido é o de Madame Butterfly, de Giacomo Puccini, sobre uma garota japonesa que se casa com um americano oficial da Marinha, que parte e jamais volta, causando-lhe a dor que a leva a cometer suicídio com uma espada. Após a performance, Gallimard se apresenta à atriz que interpretou a garota japonesa, Song Liling, e os dois conversam. Gallimard lhe diz que o seu desempenho o ajudou a enxergar a beleza da história, a tristeza de sua morte, puro sacrifício. Song Liling é uma mulher de opiniões fortes. Ela crê que o sucesso da peça deva-se à fantasia dos ocidentais, sobre a mulher oriental submissa matando-se em nome do amor por um cruel homem branco desapegado. As suas opiniões fortes permitem que Gallimard compreenda as suas próprias contradições, e o embaixador fica admirado com a perspicácia da artista. Os dois flertam, e ao se despedir, Liling o convida a aparecer novamente na Ópera, para "aprofundar-se na sua educação".

Gallimard é casado com Jeanne, uma européia mimada que vive resfriada e despreza a cultura chinesa. Pela interação entre marido e esposa, quando Gallimard veste o pijama e se junta a Jeanne na cama, percebe-se que a vê mais como uma amiga, por ela não nutrindo nenhum sentimento mais profundo de paixão. René é um homem cujas fortes emoções foram congeladas, a sua capacidade adormecida em um lugar inalcançável de sua alma. Ele não imagina como a sua vida virará de ponta cabeça, com a chegada de Song Liling. Depois do primeiro encontro, René fica obcecado com a história escrita por Puccini - a da mulher virtuosa matando-se por amor, em nome de um sujeito que não merece tão belo sentimento - e passa a visitar o centro cultural e artístico de Pequim. De informação a informação, consegue rastrear a casa de atrações onde Liling estará desempenhando a ópera de Puccini. René a visita nos bastidores, explicando estar ali para "aperfeiçoar a sua educação". Ele a acompanha na caminhada para a vila. Pela primeira vez, Liling sinaliza estar igualmente interessada. Ele pede a René que acenda o seu cigarro de uma maneira provocante, e ao voltarem a falar sobre a fantasia imperialista por trás da ópera, homens fascinados pela submissão da mulher oriental, diz que às vezes, o submisso também se sente apegado ao opressor. René a deixa na porta de casa, e ela o convida a visitá-la qualquer dia. Ao esperar pela carona em uma riquixá, uma típica carruagem chinesa de tração humana, distrai-se com um homem local apanhando com uma rede as mais belas mariposas. René toma uma das mãos, e fica encantado com a elegância da criatura, que eventualmente voa para longe.

Enquanto está dormindo, Jeanne vasculha os bolsos do paletó e das calças do marido, cheia de suspeitas. Gallimard conta uma mentira qualquer sobre onde esteve na noite anterior. Ele retorna à vila, e toda a tensão sexual entre o europeu e a chinesa finalmente transborda. "Há um elemento de perigo em sua presença", Liling diz, referindo-se ao fato de René ser um embaixador francês casado. A cultura chinesa, conforme Liling, traz as raízes fincadas em um passado muito longínquo. A sua nação é essencialmente tradicional, e tudo guarda significado. Envolver-se com um europeu provocaria reações que nenhuma das partes seria capaz de imaginar. Ao entregar a xícara de chá ao europeu, as suas mãos se tocam. Os dois se beijam apaixonadamente, incapazes de resistir `a atração da carne.

René e Jeanne comparecem a uma festa na casa de um dos servidores da embaixada. Ele é acostado por quatro colegas, que sutilmente demonstram toda a antipatia pelos seus modos na repartição. Eles estão furiosos com o preciosismo de René, que tem dedurado os gastos excessivos e indiscrições dos colegas ao governo em Paris. Isolado, senta-se ao lado da esposa, no banco do piano, e a sua mente volta a divagar sobre Song Liling. René crê que seja prudente afastar-se por um tempo. Seis semanas se passam, até receber uma carta de Liling, contando sobre o quanto sente a sua falta. "Minha audiência sente falta do diabo branco por entre a névoa", escreve. No trabalho, os apelos de Liling deixam Gallimard dividido entre desejo e dever. Naquela manhã, René é chamado para uma reunião com o embaixador Toulon (Ian Richardson), que traz novidades. A França estará revitalizando a divisão de inteligência, face a turbulenta época que a China atravessa, e Toulon crê que não há ninguém melhor do que Gallimard, incorruptível e correto, para a posição de vice cônsul. Com essa maravilhosa novidade, René resolve ceder ao desejo, e procurar Song Liling, para lhe contar a notícia.

Ainda ressentida, Liling reage com frieza. René diz a Liling que quer ficar com ela. "Você é a minha borboleta?", René pergunta. Ele começa a recitar trechos de suas cartas, e Liling fica envergonhada, dizendo-se arrependida por ter entregado tão facilmente seu coração. Ele se ajoelha aos pés de Liling e a abraça, insistindo na questão. Song diz que sim, será a sua borboleta, e os dois se beijam apaixonadamente. Apesar de se abrir a suas investidas, Song pede para que René não a devasse daquela maneira, pois jamais esteve com um homem antes. Ela pede para manter o vestido. "Saiba que estamos agora adentrando no mais proibido dos amores, e eu temo pelo meu destino", fala, antes de ceder a seus encantos.

René assume a posição de vice cônsul, e reúne-se com os colegas, agora subordinados, meio que para apaziguar os ânimos, convidando-os a um melhor relacionamento. René e Liling, agora metidos em um tórrido romance, encontram-se aos pés da muralha da China, uma das sete maravilhas do mundo, que vista pelas lentes de Cronenberg chega a tirar o fôlego em razão de sua grandiosidade, uma construção erguida por mãos humanas, enorme e infinita, cortando montanhas como um traçado em direção ao infinito. Song pergunta a René por que a escolheu, logo ela, quando sua esposa europeia é uma linda mulher loira de olhos azuis atraente e cobiçada pelos demais agentes da embaixada. Gallimard explica que somente Song Liling encarna com perfeição a fantasia de "Madame Butterfly", a mulher de virtudes que por amor foi capaz de abdicar de seu mais precioso bem, a vida. O clima na embaixada é de paranoia. O Governo Chinês começa a desconfiar dos franceses, e Embaixador Toulon manda seus funcionários vasculharem os escritórios em busca de escutas. Eles encontram várias, inclusive sob os tapetes. Toulon conta a Gallimard que em razão de não disporem de inteligência na França, os norte americanos pediram aos franceses que cumpram a função de "olhos e ouvidos" dos Estados Unidos. O Presidente Lyndon Johnson estuda bombardear o Vietnã do Norte e o Laos, mas precisa antever como os chineses se comportariam em caso de conflito naquela região, e para isso precisam dos espiões franceses. Refletindo o seu caso de amor com Liling em sua compreensão da geopolítica, René diz que os chineses não se importariam tanto "Não dão a mínima para Ho-Chi-Min. Os chineses, bem no fundo, são atraídos por nós". Ele prossegue "Os orientais têm vocação para a submissão. Se os Estados Unidos invadirem, eventualmente os aceitarão como uma união de mútuos benefícios".

Na cena a seguir, descobrimos a verdadeira natureza de Song Liling. Ela está na cama, distraindo-se com um livro, quando revistas americanas são subitamente arremessadas contra as suas costas. Trata-se de Camarada Chin, uma mulher do Partido Comunista, furiosa com os novos prazeres de Liling. Chin abomina tudo ocidental, e quando vê aquelas revistas, com valores que antagonizam tudo o que foi apregoado por Mao, rotula o material como "lixo". Camarada Chin puxa um caderninho, e Liling revela que Gallimard começou a se abrir sobre as intenções dos norte-americanos para o Vietnã. Song Liling é uma espiã do Partido Comunista, não uma artista da Ópera. Ela usava as performances como disfarce, artifício, para capturar o coração de algum ocidental trouxa que pudesse se abrir quanto aos segredos dos franceses. Os norte-americanos pretendem incrementar a força de suas tropas no Oriente, e Song passa para Camarada Chin todos os números. Chin não consegue esquecer os modos "modernos" de Song, que se justifica "Camarada, para melhor servir o Estado, preciso exercitar a arte do disfarce". Na verdade, parece evidente que Song também está se apaixonando por Gallimard e a sua cultura arrojada e "proibida".

Enquanto mantém seu romance extraconjugal, Gallimard segue frequentando as noites de festas sem fim, em homenagem aos europeus entediados. Em uma dessas festas, Frau Baden o convida para a cama, e Gallimard, em um torpor alcoólico, aceita. O encontro é frio e sem resquícios de paixão. Somente em Liling, Gallimard encontra o mistério que mantém acesa a chama da paixão. Song conta a René que está grávida, e o amante se emociona, jurando amá-la e protegê-la. Song despede-se de René, e pega o trem para a província natal, onde espera dar à luz o bebê. Antes de deixar, promete retornar para a vida de Gallimard com a criança. Camarada Chin e Song Liling encontram-se em algum lugar distante de Pequim. A espiã enumera para a Camarada tudo de que precisa para manter a sua farsa. Para justificar aos olhos de René a história da gravidez, pede por uma criança chinesa, com traços europeus. Ao final do encontro, uma fala enigmática, que terá significado mais tarde. Liling declara "Por que na ópera de Pequim, os papéis femininos são tradicionalmente vividos por homens?É porque somente um homem sabe como uma mulher deve agir para seduzir".

Eclode a Revolução Cultural Chinesa, e as ruas são tomadas por partidários simpatizantes de Mao. Soldados da Guarda Vermelha são hostis com funcionários de embaixadas, ou intelectuais em geral. Livros tidos como "nocivos" à causa chinesa são queimados em praça pública. Pequim vive uma atmosfera de caça às bruxas. A ópera, epicentro da cultura, é saqueada pela Guarda Vermelha, as fantasias destruídas, arremessas à fogueira. O Embaixador Toulon lê um memorando sobre a atual situação do país, onde o governo só precisa dos motivos mais insignificantes para expulsar qualquer estrangeiro de suas terras. A regra agora, consoante Toulon, é a discrição. Uma noite, ao voltar para o apartamento, René encontra Song Liling com um bebezinho, nas escadas. Ela lhe apresenta o filho, e René fica tocado por reencontrá-la. Ele suplica para que não parta mais, e se casem. Ele se divorciará de Jeanne. Song explica que não pode casar, e dois guardas subitamente aparecem para escoltá-la. Liling explica que artistas são vistos como figuras nocivas à revolução cultural, e que precisou insistir com os guardas para que tivesse a oportunidade de conversar. Antes de partir, Song Liling desabafa e declara que foi somente com Gallimard que ela "realmente existiu". Gallimard é arrastado a um espiral de culpa e depressão. Toulon não tem escolha, a não ser enviá-lo de volta à casa, Paris. Antes de voltar para casa, retorna para a vila onde Liling morou, e encontra o lugar habitado por uma nova família. Ela agora está em um campo de trabalho forçado, onde escritores, artistas e intelectuais são "recuperados" pelo Governo, para contribuir à nova sociedade de uma maneira produtiva.

Paris, 1968. Gallimard retornou para a Europa, mas jamais esqueceu o seu grande amor. Assistindo a uma versão da ópera de Puccini, lágrimas correm pela sua face, ao se recordar de sua "borboleta". Afogando as mágoas em um bar, Gallimard desabafa com um estranho sobre o quanto foi feliz com Song Liling, na China. Eles escutam o rumor vindo de fora, e pela janela, veem estudantes esquerdistas exibindo exemplares do livro vermelho de Mao, fazendo arruaça e balbúrdia. Uma grande confusão se inicia, quando tropas de choque chegam para abafar o movimento. Morando sozinho em um apartamento de acomodações franciscanas, Gallimard um dia é surpreendido pela visita de Song Liling, tantos anos depois, de mala em mãos. Ela diz que se sente péssima por voltar depois de tanto tempo. "E a sua esposa?", Song Liling pergunta. "Ela está aqui. Está aqui nos meus braços!", é a resposta de Gallimard, que a segura disposto a não deixá-la partir nunca mais.


O casal retoma a vida amorosa de onde havia deixado. Gallimard assume uma nova posição no Governo francês, como courier, transportando documentos sigilosos de Estado. Um dia, é acostado por três agentes da Inteligência, e acusado formalmente por espionagem. Levado a julgamento, a principal testemunha é conduzida ao estande, e vemos um jovem bem aparentado, metido em um elegante terno - Song Liling (John Lone). A "borboleta" de René, a sua "mulher ideal", era o tempo todo um homem, um habilidoso espião chinês. Ao subir no estande, Song conta toda a história de seu envolvimento com Gallimard, e que foi ele quem o convenceu a trabalhar como courier, pois assim ganharia acesso a documentos de Estado que de outra forma jamais teria como obter. Como trunfo, Liling utilizou o artifício do suposto filho do casal, chantageando René com a mentira de que o Partido Comunista estava cuidando da criança, e caso não repassassem tais documentos importantes, os camaradas dariam sumiço no bebê. A promotoria fica chocada com a capacidade de Song de manter toda a farsa, manipulando um homem obviamente inteligente por quase uma década. "O Senhor Gallimard não sabia que você era homem?". Song responde algo nas linhas de que René era apaixonado por uma fantasia, uma invenção que Song criou e a que René se apegou, sem questionamentos.

Durante o julgamento, os dois são transportados juntos. René e Song estão sentados frente a frente, Song caracterizado como homem. Constrangido pelo severo olhar de Gallimard, pergunta o que quer. René pergunta "Você é a minha borboleta?". "Você ainda me adora, não?", é a resposta de Song. "Ainda me quer. Mesmo eu estando dentro de um terno e gravata".René meneia negativamente com a cabeça, enojado, e responde a própria questão "Você não é a minha borboleta. Você não é nada". "Tem tanta certeza assim?", Song provoca, e sutilmente volta a encarnar a "borboleta" por quem Gallimard se apaixonou. "Venha a mim, pequenino", ele diz, enquanto vai se despindo. "O que está fazendo?", ele pergunta, revoltado. "Quero que veja através de minha fantasia". René se afasta e abaixa a cabeça, desolado. Song suplica a René que olhe para seu corpo, e Gallimard começa a chorar. "Você não é a minha borboleta", diz, pela última vez. Certo de que o seu domínio psicológico sobre René não existe mais, Song recolhe-se a um canto, humilhado, e também derrama lágrimas. Esta é a sequência mais marcante do filme, desempenhada com perfeição pelos seus dois astros. Jamais vulgar, Cronenberg lida com o delicadíssimo acerto de contas com o mesmo distanciamento e frieza com que lidou com a exposição da atriz Deborah Unger em "Estranhos Prazeres". Tanto com Unger quanto com Lone, Cronenberg foi bruto, cru e seco, mas jamais vulgar.


Gallimard é condenado por espionagem e cumpre pena em um presídio onde se torna artista, desempenhando ocasionalmente os papéis da peça de Puccini em precárias apresentações teatrais. No final, caracterizado como uma gueixa, René dá a sua melhor performance como a trágica heroína da história original, a mulher virtuosa abandonada sem explicações pelo amado. Durante a cena do suicídio, os presos aplaudem-no pela excelente performance, desatentos ao fato de que René não apenas encenou, como efetivamente cortou o próprio pescoço com um pedaço de vidro, fechando o círculo de sua trágica história de amor com Song Liling. No começo, fomos levados a crer que Gallimard seria o europeu desapegado, e Liling a frágil dama abandonada. Ao final, é Liling quem parte, e René, efeminado e vestido como gueixa, a "borboleta" devastada que abre mão da própria vida por um amor impossível. Aqui, é importante destacar que o nome do filme de Cronenberg jamais foi "Madame Butterfly", mas sim "M. Butterfly", talvez pelo fato de "M" referir-se não a "Madame", mas sim a "Monsieur", a verdadeira natureza de Song Liling, como viemos a aprender ao final.

Excelente mas desprezado filme do diretor David Cronenberg, projeto de "consolação" do cineasta que, à época, início dos anos 90, pretendia rodar a sua adaptação para o romance de Brett Easton Ellis, "American Psycho", sem sucesso. Cronenberg voltou a sua atenção a esta história, que lhe deu a oportunidade de experimentar com os temas com que ao longo de sua filmografia sempre gostou de brincar. Reunindo-se ao artista principal de seu mais elogiado filme, "Gêmeos Mórbida Semelhança", Cronenberg nos traz, ao lado de Jeremy Irons, uma nova história sobre a absoluta destruição que somente o apego pode provocar. Pouco visto, "M. Butterfly" sofreu o mesmo destino que outro excitante thriller de Cronenberg, "ExistenZ": ambos os filmes foram lançados no pior momento possível, batendo de frente com produções de maior apelo comercial que exploravam temáticas semelhantes e que caíram na graça da crítica especializada com maior facilidade. "M. Butterfly" chegou aos cinemas um pouco depois de "The Crying Game", o thriller de Neil Jordan sobre um terrorista do IRA com consciência, que se torna amigo de seu refém, um soldado britânico, e depois de sua morte acidental, procura a namorada do rapaz, vindo a apaixonar-se, apenas para descobrir que se trata de um homem travestido de mulher. "ExistenZ", rodado em 1998, com Jennifer Jason Leigh, falava sobre uma designer de jogos virtuais envolvida em um mistério, onde era caçada por um culto, e lançava os pilares que seriam em seguida explorados em escala maior com "Matrix". Enquanto o filme dos Wachowski esbanjava ação e efeitos especiais, o de Cronenberg optava por um caminho mais lento e cerebral. Apesar destes dois excelentes filmes de Cronenberg terem recebido o reconhecimento justo da crítica, tal respeito não traduziu sucesso de bilheteria, e mesmo hoje, ambos permanecem largamente desconhecidos.

Não bastasse o fato de ter sido amplamente ignorado, o filme de Cronenberg também foi malignamente apedrejado por parte daqueles que o procuraram esperando por um novo "The Crying Game". As pessoas não conseguiam compreender, "Como esse sujeito passa todo um filme vivendo uma história de amor que só existe em sua cabeça, apaixonado por uma mulher que na verdade é um homem, e ainda convicto de que era o pai de um bebê?". Parte das pessoas que conhece "M. Butterfly" e o enxerga sob este prisma parece se esquecer dos temas mais recorrentes de sua carreira, e que nesta adaptação da obra de David Henry Hwang só veste novas roupagens, figurada e literalmente. "M. Butterfly" não pode ser analisado sob a ótica pragmática, baseada em conclusões que as aparências levam a crer. O seu cerne é pura e exclusivamente o de um thriller psicológico sobre a devastadora força do apego e como a carência embaralha o julgamento, e deforma o conceito do que é ou não Real. A batalha psicológica desenrola-se em um campo onde impressões só levam a pistas falsas, e só se ganha quem consegue ler sorrisos e olhares, interpretar as entrelinhas. Se três anos mais tarde, com "Estranhos Prazeres", Cronenberg revisitaria o fascinante tema, cinco anos antes de "M. Butterfly" já havia feito o mesmo, com "Gêmeos Mórbida Semelhança". Não apenas em razão de terem sido vividos pelo mesmo ator, os personagens dos dois filmes são praticamente os mesmos. Tanto Beverly Mantle ("Gêmeos Mórbida Semelhança") quanto René Gallimard ("M. Butterfly") são homens emocionalmente "mortos" para sentimentos, profissionais de sucesso, acima de qualquer suspeita, que escolheram afastar-se das fortes emoções, de encontros e escolhas que viessem a ameaçar o "status quo". Quando um elemento estranho à equação é adicionado a suas vidas e desperta sentimentos de paixão e apego que sequer poderiam antever, o próprio apego os lança em uma rota inexorável de colisão onde a única catarse virá com a auto destruição absoluta, as suas percepções e conceitos outrora sacramentados e inamovíveis finalmente reformados pelo fogo da submissão, humilhação, dor e masoquismo. As vilãs também se assemelham. Claire Niveau, interpretada por Geneviève Bujold, e Song Liling, por John Lone, não guardam a força física para destruir as suas presas, Beverly e Gallimard, respectivamente. Para machucar, as duas precisam da arma que só as suas vítimas têm como lhes entregar: o coração. Com a sua fleuma britânica, Jeremy Irons voltou a emprestar a sua elegância a personagens atormentados em distintos momentos de sua carreira. Ao se falar no protagonista emocionalmente frígido que ao tomar contato com as emoções humanas negligenciadas joga-se à destruição, seria injusto não citar o seu filme "Damage", de Louis Malle, onde praticamente revisita os mesmos heróis atribulados das suas contribuições com Cronenberg.

Sobre a fantasia que Gallimard cria para si e passa a habitar, Cronenberg ofereceu a sua visão da problemática. Ao rodar o filme, compreendeu melhor o dilema ao conhecer as pessoas envolvidas nos eventos que inspiraram "M. Butterfly", principalmente Bernard Boursicot, o diplomata francês a quem Jeremy Irons interpreta (no filme, o personagem se suicida com o espelho quebrado, mas na vida real, cumpriu toda a sua pena e deixou a prisão). Cronenberg diz que do momento em que o filme começa e vemos o nome de "John Lone", sabemos de antemão que Song Liling é um homem, e eis o ponto: todos sabem, platéia e personagens, que na verdade a sedutora artista é um homem, menos o personagem de Irons, ou Bernard Boursicot, se preferirem. Em síntese, Boursicot era um homem que se apaixonou por outro homem, todavia incapaz de aceitar os seus sentimentos, apegou-se a frágil fantasia de que o objeto de seu amor era "a sua borboleta", e até o último momento não acreditou no que as pistas levavam a crer. De muitas formas, esta interpretação nos faz pensar em "Session 9", em que o personagem vivido pelo magnífico Peter Mullan comete todos os assassinatos, porém custa a entender os seus atos, em razão da dissociação de personalidade engatilhada pelo esgotamento emocional.

Curiosamente, Cronenberg não foi o diretor que o produtor de "M. Butterfly", David Geffen, tinha originalmente na cabeça para o projeto. Peter Weir, o cineasta australiano que rodou o seminal "Picnic at Hanging Rock", em 1974, esteve por um tempo associado `a produção, até Cronenberg "subir a bordo". Na reunião com Geffen, em que se candidatou ao trabalho, Cronenberg diz que Geffen confidenciou que jamais considerou o seu nome para a empreitada. Via-o mais como um diretor de filmes de horror, associando o seu nome a trabalhos como "Scanners" e "Videodrome". Cronenberg explicou que, de uma forma ou de outra, todos os seus filmes, em especial "Gêmeos Mórbida Semelhança", falavam sobre o horror da transformação, e mesmo que de maneira mais natural e menos extravagante, menos fantástica, "M. Butterfly" sublinhava ansiedades parecidas. O seu discurso teve um efeito positivo sobre Geffen, e Cronenberg conseguiu ocupar a vaga.

Cronenberg recorda-se das filmagens na China com muito carinho. A sua equipe rodou as cenas externas no período da noite, em uma época do ano onde a temperatura ia às alturas. Às vezes, conta Cronenberg, ficavam filmando até as 03:00. Em especial, em suas reminiscências, ao discorrer sobre a receptividade do povo chinês, revela que certa feita estava a dirigir uma cena externa, em uma vila na periferia que foi usada como a casa de Song Liling, quando uma curiosa criancinha local sentou-se espontaneamente em seu colo para observar, com Cronenberg, pelo monitor, o resultado da cena filmada.Os interiores foram rodados em sets de Toronto, mas a transposição de takes externos para internos parece tão suave, cortesia da cenografia de Carol Spier (colaboradora habitual de Cronenberg), que você não se aperceberia. Lançado nos cinemas em outubro de 1993, a performance de "M. Butterfly" foi paupérrima: o filme não fez mais do que parcos um milhão e meio de dólares na bilheteria. Cronenberg ficou alguns anos sem dirigir, até voltar com força total com o tétrico "Estranhos Prazeres", que lhe valeu a Palma de Ouro em Cannes. Com o tempo, as pessoas que deixaram passar a oportunidade de conferir este maravilhoso suspense nos cinemas descobriram-no em VHS, e muito recentemente, em 2009, a Warner Brothers concedeu ao filme um caprichoso lançamento em DVD, onde a fotografia de Peter Suschitzky transluz cores pulsantes, um amálgama de sensações, um instante de uma época que não volta mais, preservado em celuloide.

As atuações estão fantásticas, Irons e Lone superando-se a cada embate, sendo o grande destaque o britânico sir Ian Richardson, um dos talentos mais brilhantes da era de ouro do teatro inglês, aqui no papel do Embaixador Toulon. Mesmo com pouco tempo em cena, Richardson incrementa o valor de "M. Butterfly", assim como Barbara Sukowa, no papel da mimada e desagradável Jeanne Gallimard. David Cronenberg é um cineasta disputadíssimo por atores, e Holly Hunter, prova disso: ela praticamente deu um ultimato a seu agente e disse "Trate de me colocar no próximo filme de Cronenberg, seja qual for!", e o resultado foi a médica ninfomaníaca com fetiche por carros, de "Estranhos Prazeres". Análise cuidadosa das trágicas almas que compõem histórias tipicamente "cronenberguianas" expõe uma série de recantos muito desconhecidos e assustadores da mente humana, que artistas ousados se voluntariam a explorar, tornando justificável a atração. 

"M. Butterfly", um estranho conto sobre os desconhecidos caminhos da mente, nos lembra que para as pequenas e grandes armadilhas de nossas vidas, somos nós quem voluntariamente caminhamos em direção `as gaiolas onde experimentamos os infernos emocionais. Ao final da experiência, permanecem as perguntas, mas não há respostas fáceis, ou talvez, as que existam sejam tão indecifráveis quanto a ópera de Puccini, ou impenetráveis quanto os caminhos do coração. Gallimard desejava a paixão que justificava o seu fascínio pela ópera "Madame Butterfly"... E conseguiu. Aqui, vale o ditado: cuidado com aquilo que você toma como o seu maior desejo. Ele pode acabar sendo atendido.

Todos os direitos autorais reservados a Warner Brothers. O uso do trailer é para efeito meramente ilustrativo da resenha.

2 comentários:

  1. Lindo demais! E triste. Obrigado. Eu sempre tive curiosidade sobre essa história, que vi em forma de comédia no Chapolin Colocarado (e hoje graças ao seu texto, e a outro que li, sei que no Chapolin fala sobre a ópera).
    O seu texto está mais completo, e graças a ele eu entendi a diferença entre a ópera e a história do filme.
    É realmente um filme de horror. Eu faço psicologia, e é fascinante um homem namorar com outro homem sem saber. Afinal, não sei se foi no seu texto ou no outro, li que as relações sexuais entre os dois era sempre bastante reservada. E ele achava que era algum costume oriental "dela".

    Muito obrigado. Descreveu de forma incrível esta belíssima e triste história.

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    1. Grato pela generosidade de seu comentário. É uma honra saber que a resenha foi de ajuda. Muito obrigado, e volte sempre.

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