terça-feira, 14 de outubro de 2014

Hotel da Morte ("The Innkeepers", Ti West, 2011) Por trás de todo fantasma existe uma história sobre corações partidos.

Tido como um dos locais mais assombrados da América, o Yankee Pedlar Inn é um hotel de envergadura histórica. Localizado em Torrington, Connecticut, foi erguido em 1891 por um imigrante irlandês, e mesmo hoje sobrevive imponente em sua nostálgica arquitetura colonial remanescente de Nova Inglaterra. De seus 52 quartos, crê-se que o cômodo onde mais aconteça atividade paranormal seja o de número 353, onde a mulher do proprietário faleceu. Entre os rumores, existem relatos sobre aparições misteriosas e vozes desencarnadas atormentando os hóspedes. Em reconhecimento ao charme dessas histórias de fantasmas, os atuais proprietários zelam pela fama do Yankee Pedlar Inn: logo no lobby, foi deixada a cadeira de balanço usada pela esposa morta. Reza a lenda que a mesma pode ser casualmente vista balançando. É claro que uma história tão fantástica como essa não custaria a atrair um cineasta apaixonado pelo gênero Horror, o que nos leva a Ti West e o seu Hotel da Morte.

Sara Paxton, uma excelente atriz que lembra uma jovem Reese Witherspoon, estrela essa misteriosa história de fantasmas como Clare, uma das duas últimas pessoas do staff do Yankee Pedlar Inn, em seu último fim de semana de operações. O filme é dividido em 3 capítulos, e o primeiro se chama O Longo Fim de Semana. Vemos Clare chegando ao hotel para seus dois últimos dias de trabalho. Ela encontra o amigo Luke, o segundo membro restante. Ambos são fascinados pelo sobrenatural, e Luke preparou microfones com a esperança de capturar manifestações de EVP no curso dos próximos dias. Luke prega uma peça ao pedir que Clare assista a um fantástico vídeo que encontrou na internet, e quando ela vai ver, toma um baita susto, pois se trata de uma pegadinha de fantasmas!Prova do declínio do outrora luxuoso hotel, em seu último fim de semana, só há registros de um único hóspede. Os dois amigos revezam turnos no atendimento do lobby, e Clare sobe a seu quarto para descansar e se trocar. A caminho do quarto, conhece os hóspedes sobre os quais Luke falou, uma mãe e seu filho pequeno.

Luke & Clare recebem uma visita inesperada na forma de Leanne Rease-Jones, uma atriz decadente que um dia fez muito sucesso em um seriado de TV, na cidade para atender a uma convenção qualquer. A garota a reconhece imediatamente e fica encantada com sua presença. A atriz também parece gostar instantaneamente da menina, pois quando Clare sobe para entregar toalhas, recebe uma bela gorjeta. A noite chega, e Clare assume seu turno. Navegando na internet, procura se entreter, mas às altas horas da madrugada, fica sugestionada ao vasculhar o blog de Luke, dedicado a histórias do Yankee Pedlar Inn. Luke recheou o blog com fotos e vídeos feitos pelo próprio. O blog também conta as histórias por trás das principais assombrações do lugar, mais especificamente a de Madeline O'Malley, uma noiva que se suicidou muitas décadas atrás ao ser abandonada no altar. O relato enerva a garota, que se assusta ainda mais ao escutar barulhos que parecem vir do salão. Ao investigar, toma um terrível susto, mas não por causa de fantasmas: o desavisado Luke subitamente aparece às suas costas, perguntando o que aconteceu, dando risadas pela surpresa causada.

Capítulo 2. Madeline O'Malley. Enquanto a mãe está ocupada com qualquer coisa em seu quarto, o menininho hospedado escuta às histórias de Clare sobre os mais famosos "moradores" do lugar. Ela conta ao impressionável garotinho o caso de Madeline O'Malley. Aprendemos que Madeline se enforcou no dia do casamento após ser deixada pelo noivo. Certos de que a notícia seria um duro golpe para a fama do hotel, os proprietários da época esconderam o corpo no porão por 3 dias, antes de levá-lo para a baía. Quando os cidadãos da cidade descobriram o que havia acontecido, ficaram escandalizados, forçando os donos a venderem o lugar. O Yankee Pedlar Inn permaneceu fechado até a década de 60, quando foi comprado e reaberto. Desde então, as pessoas dizem ter visto o fantasma de Madeline O'Malley perambulando pelos corredores, buscando pelo noivo.

Quando a mãe do garotinho desce e a vê contando histórias de assombrações, consola o assustado garotinho e a cobre com desaforos. Sobra até para Luke, ao fuzilá-lo com cobranças sobre as toalhas para o quarto 225. Entediados, Luke e Clare lancham na abandonada cozinha do hotel, onde a garota lhe pergunta o que o fantasma de Madeline ainda desejaria no Yankee Pedlar Inn. Luke leva na brincadeira, afirmando ter desistido de tentar compreender mulheres, principalmente as mortas!Ele afirma já ter visto muito casualmente a noiva, mas ressalta que não se recorda muito do arrepiante encontro. Clare está determinada a gravar alguma evidência da existência de Madeline O'Malley antes que o Yankee Pedlar Inn feche as portas. Naquela noite, ao levar sacos de lixo para fora, a garota dá pela presença de Leanne na janela do quarto, a observando, pensativa, enquanto traga o cigarro.

Ao voltar, barulhos a atraem ao velho porão. Ali, descobre o antigo depósito do estabelecimento, mas o breu a dominar o lugar a deixa relutante em explorar. Clare retorna ao Yankee Pedlar Inn, e aí sim começa a investigar. Munida de microfones, começa pela lavanderia, onde espera capturar vozes desencarnadas. Seu primeiro encontro com o sobrenatural se dá no salão, onde enxerga o piano dedilhado por mãos invisíveis. Estupefata, ainda consegue escutar o rumor de vozes distantes, quase um chiado. Aterrorizada, golpeia a porta de Luke para contar a descoberta. O rapaz acredita que a amiga apenas foi vítima da própria sugestão, e a tranquiliza. Clare retorna resignada para o posto no lobby, quando cruza com Leanne no corredor. A atriz a convida a entrar, e lhe explica que poderá ajudá-la em sua busca. Ela explica que deixou a carreira de atriz há muitos anos e hoje se dedica a comunicar-se com espíritos. Clare pede à atriz que a ajude a contatar Madeline O'Malley. Leanne a ajuda a relaxar e pede a Clare que direcione suas perguntas diretamente à entidade. Leanne parece sentir a presença de espíritos, três deles para ser mais exato. A atriz segue em transe, vocalizando aquilo que os fantasmas lhe passam: houve uma tragédia no Yankee Pedlar Inn, algo relacionado ao porão. Clare faz a associação ao caso de Madeline O'Malley e passa a acreditar que um dos espíritos só pode ser mesmo o da noiva morta. Leanne a aconselha a jamais descer ao porão. Você não pode mais ajudá-la, eles tentaram, não conseguiram, a atriz murmura, antes de despertar do transe.

Asmática e impressionável, Clare precisa fazer uso daquelas bombinhas para não perder o fôlego. Tendo terminado o turno, ela procura relaxar tomando um banho quente e se recolhendo à cama. Em dado momento, ao se sentar sobre o colchão por um motivo qualquer, não repara quando uma figura sob um véu muito branco parece deslizar ao seu lado. Ao dar pela entidade, o véu escorrega de modo a revelar a figura da noiva suicida. Clare salta da cama e abre as luzes, mas não há sinal algum de Madeline O'Malley. Bastante chocada, desce as escadas à procura de Luke, não se dando conta de que ainda se encontra de camisola!A mulher chata do quarto 225 está na recepção, e ao vê-la em roupas íntimas, dá um novo escândalo. Para mim já chega, nós vamos voltar para seu pai! Ela resmunga para o garotinho, deixando os dois atendentes constrangidos no meio do saguão.

Capítulo 3. A Hóspede Final. Aqui o terror começa a ficar mais explícito!Luke prepara uma xícara de café para a amiga. Apesar de acreditar na moça, insiste que ao investigar fenômenos parecidos, a pessoa pode se envolver a ponto de enxergar coisas que não estão lá. A conversa é interrompida quando a campainha chama. Luke vai na frente atender o novo hóspede, enquanto Clare permanece sentada no escritório. Trata-se de um senhor de idade em busca de um quarto para passar a noite, até aí nenhum problema. Quando o senhor faz questão de ficar no quarto 353, Clare se intriga. Luke responde que os cômodos do terceiro andar foram desocupados há muito tempo, de modo que não há como atender o pedido. A insistência do idoso pelo 353, porém, não lhes dá outra alternativa. Há algo de enervante na pessoa do visitante. Ele explica que veio de muito longe para dormir no cômodo em questão. Os dois acabam cedendo, e Clare o acompanha ao 353. Antes de entrar, o senhor comenta com Clare que ali foi onde devia ter passado a lua de mel com a esposa, e que se sentia estranho ao voltar a um lugar que jamais julgara ter deixado.

Leanne chega da convenção um pouco depois na mesma noite, e Luke a convida a se juntar aos dois enquanto consomem algumas latinhas de cerveja. A atriz agradece mas se recusa, e o rapaz faz um comentário impróprio sobre ter escutado que Leanne era chegada em álcool. Clare não aprova a gracinha do colega, e deseja uma boa noite à atriz. A dupla inicia mais uma sessão para capturar EVP, e ao visitar o salão do piano, Luke sente o gostinho do próprio remédio quando é a amiga quem lhe prega uma peça, surgindo sob um lençol e o assustando por um brevíssimo momento!Levemente "altos" após as latinhas, os dois espairecem um pouco sobre as almofadas do lobby, quando Clare esboça um desenho de Madeline O'Malley e lhe pergunta se ele a acha mais bonita. O momento nos revela que Luke nutre pela colega um sentimento muito bonito que a garota parece não notar. Ele fala sobre o quanto a acha bela e especial. O rosto de Clare se ilumina ao ter uma ousada ideia: visitar o porão proibido do Yankee Pedlar Inn.

Uma vez no porão, a dupla visita o quarto onde o corpo da noiva teria sido escondido. Sentados no chão, Clare & Luke procuram contatá-la. A ampulheta do microfone oscila, indicando um rumor muito distante. Clare pergunta por que seu espírito não consegue descansar em paz. Agora em que estão à beira de um genuíno encontro com Madeline O'Malley, Luke se descontrola e sai correndo, Clare no seu encalço. Ela pergunta qual é o problema, mas Luke está decidido a partir. Convicto de que não quer mexer com forças que não compreende, o rapaz pega as coisas e antes de deixar o Yankee Pedlar Inn, abre o jogo e revela que jamais viu o fantasma de Madeline. Só costumava contar histórias da noiva porque sabia que a colega apreciava, e apenas queria agradá-la. Agora quando tudo leva a crer que o espírito da mulher morta realmente habita o porão, percebe que já levou o interesse pelo sobrenatural longe demais.

Agora que Luke se foi, Clare recorre à única pessoa capaz de ajudá-la. Leanne pede à jovem que a leve ao local onde sentiu a presença. Uma visita basta para que a sensitiva tome ciência do risco que ambas estão correndo no Yankee Pedlar Inn. Ao encontrar apressadamente a menina no corredor, ordena que arrume suas coisas para deixarem o lugar. Enquanto arruma a mochila, Clare se lembra do idoso no quarto 353, e grita para a sensitiva que a aguarde no saguão, pois também precisa avisá-lo. Ela bate à porta, e como ninguém responde, resolve entrar. Clare não o vê de imediato, mas segue explicando a gravidade da situação, até encontrá-lo morto, com pulsos cortados, dentro da banheira. A crise de asma volta com toda força. Em pânico, ainda enxerga o fantasma de Madeline O'Malley enforcado em meio ao breu, antes de descer as escadas.

Ela encontra Luke no saguão, e, histérica, atropela-se ao tentar contar sobre o fantasma de Madeline e o homem morto dentro do quarto. Luke voltou até ali para pedir desculpas por tê-la deixado tão subitamente. Ele pede que o espere, pois subirá para chamar Leanne, para que possam ligar para a polícia e deixar juntos o hotel. Ao deixar a vulnerável colega sozinha, o rapaz comete um grave erro. Ao escutar a uma voz gutural chamando-a pelo nome, Clare vai investigar, sendo atraída a uma das escadas de acesso ao enorme porão. Tomado pela escuridão, procura enxergar algum sinal de vida dentro do espaço com a lanterna, do topo da escada. Ao se virar, dá com o velho morto, de pé às suas costas. O susto a lança escada abaixo, e Clare se machuca na queda. Tomada pelo pavor, não consegue raciocinar direito, e se perde no emaranhado de corredores poeirentos e apertados do porão. Ela ainda vê o espírito do velho lhe abrindo os braços, ao fim do corredor, o que a lança ainda mais a fundo naquele labirinto. Eventualmente, Clare encontra a escada que leva a uma saída, todavia é a vez do fantasma de Madeline O'Malley surgir da escuridão. Pela primeira vez, a garota guarda uma imagem clara da tétrica aparição, uma figura triste e solitária, sob véu e grinalda, olhos muito escuros e grandes, lábios tomados por algo semelhante a um forte batom preto. Clare luta para subir os degraus, mas depara-se com a porta trancada. A crise de asma a apanha com toda a força, seu coração não resiste e ela sucumbe. Ao final, a jovem acabou se tornando a hóspede definitiva do Yankeee Pedlar Inn.

Epílogo. É um novo dia. A ambulância está ali para recolher os corpos do senhor e de Clare. Abalado, Luke relata a um dos oficiais suas lembranças sobre o ocorrido. O rapaz ainda chegara a ouvi-la golpeando a porta, mas não fora forte o suficiente para abri-la. Silencioso, o Yankee Pedlar Inn agora parece um lugar ainda mais triste. Luke entra no hotel por uma última vez, para chamar Leanne e recolher os pertences. Os dois ainda têm uma breve conversa, quando Leanne lhe diz que nada poderia ter sido feito para evitar a tragédia. Agora com o hotel abandonado, um take nos leva ao longo de um deserto corredor até o quarto, onde a câmera estaciona por algum tempo antes de os créditos rolarem: se vocês prestarem muita atenção, poderão ver uma figura atravessando o cômodo. O fantasma de Madeline O'Malley? 

Ti West segue o sucesso de House of the Devil com O Hotel da Morte, um filme de fantasmas feito por quem/para quem ama coisas do tipo!Os cinéfilos que conhecem a sua obra - The Sacrament, VHS - sabem pelo que esperar, pessoas que ainda não se familiarizaram com seu estilo farão melhor lendo esta resenha antes de alugar o DVD. Parte da nova geração de cineastas de horror que começou a se firmar no circuito independente no final da década passada, Ti West cresceu assistindo aos antigos clássicos de horror dos anos 70/80, muito antes das facilidades de nossos tempos. Na sua época, assistir a filmes de horror, ao menos aos olhos de uma criança, representava um grande evento - lembrem-se que não existiam DVDs e internet - não apenas pela dificuldade de se conseguir pôr as mãos nas fitas mas também pela qualidade das produções. Eu faço parte da mesma geração de West, e sei que o diretor também deve ter se encantado com histórias de fantasma estilo A Dama de Branco, de Frank LaLoggia, ou clássicos como O Exorcista & Terror em Amityville (o primeiro, com James Brolin & Rod Steiger) & Hellraiser. Rodados em um período onde efeitos visuais ainda engatinhavam, diretores e roteiristas precisavam escrever histórias cujos "monstros" estivessem a serviço do absorvente drama principal, e não a tendência contrária de hoje, onde o espetáculo é sua própria justificativa.

Na mesma linha do que fez anteriormente com House of the Devil, West se preocupa em dar ao horror feições mais familiares, por mais fantástica que toda a premissa pareça. Tanto House of the Devil quanto Hotel da Morte flertam com o extraordinário, com a magia, no entanto o esmero com que o diretor roteiriza seus personagens e as situações pelas quais desenvolve o horror dão a suas obras um refrescante gostinho de ordinário, impossível de se reproduzir em filmes maiores ou produzidos dentro do esquema dos grandes estúdios. Ao contrário, Ti West imbui seus filmes da personalidade que lhe valeu um nome e lugar entre os novos cineastas mais promissores desta nova Era do Horror. Recomendei a leitura desta resenha às pessoas desconhecedoras de Ti West para que não levem "gato por lebre". Há os fãs que preferem o Horror mais extravagante, histórias de fantasmas cheias de reviravoltas, embates épicos entre forças do Bem & Mal. Aqueles que procurarem por semelhante espetáculo em Hotel da Morte darão com os burros n'água, por outro lado cinéfilos que guardam nostalgia pelos antigos clássicos dirigidos por Tobe Hooper terão uma grata surpresa. A impressão é a de que Hotel da Morte pode muito bem ter sido um filme rodado no começo dos anos 80, digamos, e somente agora lançado nos cinemas. O seu ritmo e o cuidado com atmosfera reportam-se especificamente a um tempo quando diretores não precisavam de sustentação forçada para segurar o interesse.

Tenho lido críticas desfavoráveis sobre Hotel da Morte, pessoas perguntando onde raios está a Madeline O'Malley durante a maior parte do filme, por que demora tanto a surgir. Os críticos carregaram nas tintas e adjetivaram-no como chato e lento, entre outros termos menos generosos. Eles parecem se esquecer que o enxergam por uma ótica que jamais interessou a West. Hotel da Morte não é uma história de fantasma, mas sim uma história com um fantasma - ela existe, mas faz apenas uma participação especial. De maneira surpreendente, a história transita por recantos mais familiares e humanos, parte história de amor não correspondido, parte história de pessoas à deriva, parte história de findas glórias do passado... Não por menos, custo a me recordar de outro filme de horror com semelhante bagagem de tristeza. Histórias comuns sobre fantasmas parecem colocar seus personagens a serviço de suas assombrações, mas aqui não. Madeline O'Malley soa como um eco distante e sem força de um tempo perdido, um pouquinho de mistério para testar a frágil relação entre personagens emocionalmente vulneráveis e feridos. Impressiono-me em como após a conclusão o filme nos deixa tantos pontos misteriosos a serem debatidos.

Um grande mestre de storytelling, West sabe como manter seus filmes envoltos em mistério, e consequentemente interessantíssimos. Um exemplo?Assistindo a Hotel da Morte, não tive como afastar um estranho pressentimento quanto ao senhor idoso que aparece justamente no último fim de semana de operações do Yankee Pedlar Inn, para repousar no quarto onde Madeline O'Malley originalmente se enforcou. Os amigos se recordam da breve história de Madeline O'Malley?Ti West não nos revela muito, porém solta algumas informações aqui e acolá. Sabemos que ela se suicidou no hotel, após deserdada pelo jovem noivo no altar. Poderia ser o velhinho o rapaz em questão?Será que teria retornado ao hotel consumido pela culpa, na expectativa de se redimir e finalmente se juntar a Madeline?Por que ao conversar com Clare menciona que foi ali onde devia ter passado a lua de mel?West não dá a resposta, mas sem dúvida brinca com a sugestão. Quando visto pela segunda ou terceira vez, Hotel da Morte nos intriga ao nos convidar a refletir se há mais por trás da história que ocupa o primeiro plano. O filme jamais impõe um ritmo energético ou incessante, e mesmo ao final, permite duas interpretações. É bem possível que o Yankee Pedlar Inn reúna muita energia ruim graças ao ocorrido com a tal noiva, mas também não podemos descartar a possibilidade de a figura assombrosa de Madeline O'Malley existir exclusivamente dentro da mente sugestionável de Clare.

Quando assisti ao estupendo Session 9, de Brad Anderson, me encantei com a habilidade do cineasta em nos apresentar aquela gente - os membros da equipe de HazMat em sua fatídica semana de trabalho no abandonado hospital psiquiátrico de Danvers - como pessoas de nosso convívio, com dramas comuns à nossa realidade. Aqui, Ti West também criou personagens providos de camadas e mais camadas de complexidade, divertindo-se com o processo de nos fazer enxergar as suas contradições muito humanas. Ao examinar os personagens que no curso do fim de semana passam pelo Yankee Pedlar Inn, percebemos que todos apresentam em comum uma certa vulnerabilidade perante a vida. Por alguma razão, a sorte lhes pregou peças de modo a deixá-los em posições que os tornaram vulneráveis às forças do hotel. Aos seus trinta e tantos anos, Luke deixou a formação acadêmica por um trabalho menor no hotel que agora está em vias de fechar as portas, e por amor a Clare, prestou-se a contar uma porção de histórias impressionantes sobre encontros onde teria visto a noiva morta (mentira) apenas para despertar o interesse da colega; Leanne teve seus dias de glória ao atuar em um seriado de muito sucesso, todavia não lhe resta muito da fama do passado, e agora precisa se reinventar como médium para resgatar uma pequena parcela da evidência de outra época; a mãe e o filho encontram-se naquele limbo pois estão "fugindo" de casa; e a impressionável Clare é tão fragilizada quanto leva a crer sua figura de menininha magrela e assustada. Não podemos nos esquecer de um outro importante personagem, o Yankee Pedlar Inn. Nos seus tempos áureos grandioso e elegante, há algo na forma como o vemos encravado atemporal naquela esquina - ruas sempre muito vazias aos pés de suas calçadas, semáforos suspensos sacudidos muito discretamente ao sabor do vento, sinalizando para carros que mal passam mais por ali - que inspira um contundente sentimento de abandono e oportunidades desperdiçadas. Ti West consegue tirar máximo proveito do local, mais uma semelhança entre este filme e Session 9. Lembro-me do que Brad Anderson disse sobre todas as manhãs pegar a estrada a caminho da universidade em Boston, onde lecionava, e enxergar ao longe a imponente, abandonada silhueta do Hospital Psiquiátrico de Danvers. O apelo da tristeza evocada pelos prédios o afetou tanto que começou a escrever uma história em torno do lugar, e o mesmo deve ter acontecido a West quanto ao Yankee Pedlar Inn.

Por fim, não podemos deixar de falar sobre a convidada de honra, Madeline O'Malley, figura que apesar de ocupar o pôster e os materiais de publicidade não faz mais do que uma casual aparição, uma metáfora para as vidas sem rumo daquela meia dúzia de verdadeiras almas perdidas que se cruzam nos corredores do Yankee Pedlar Inn no curso do fim de semana. West ama tanto filmes de horror antigos que ao personificar a "aniversariante" da festa, foge de quaisquer clichês ou exageros. Ao contrário, é a sua aparência macabra mas contraditoriamente singela que surpreendentemente nos parte o coração. Com olhos tristes e pidões, metida em seu empoeirado e carcomido vestido de noiva tal qual uma boneca de pano abarrotada e deixada de escanteio, ela se tornou "residente fixa" da história do Yankee Pedlar Inn. Ao percorrer silenciosamente corredores que exibem apagada glória do passado, não oferece ameaça alguma, e sua razão de ser resume-se à ação de vagar até que os estilhaços de seu coração partido se reencontrem, única forma de silenciar ecos de uma história de amor mal resolvida que terminou tragicamente no dia em que seu noivo não apareceu. A atriz Brenda Cooney (foto) merece aplausos por ter feito de seu pequeno papel a força motriz de toda a mitologia envolvida, roubando a cena da mesma forma que Danielle Bisutti o fez em Sobrenatural 2. Ela divide o mérito com o diretor, que soube representá-la muito bem para a linguagem cinematográfica, repelindo efeitos especiais, fiando-se em uma proposta praticamente artesanal e eficiente. A imagem dessa "boneca de pano de olhos tristes" permanecerá nas cabeças dos senhores por um bom tempo!

Hotel da Morte é uma boa pedida para os cinéfilos que ainda não conhecem a obra de Ti West. Desde o seu primeiro filme, House of the Devil, o diretor tem formado uma base de fãs e se mantido consistente, com produções cada vez mais ambiciosas e surpreendentemente pessoais. O seu estilo jamais lhe valerá a direção de uma superprodução, porém assegurará uma posição confortável no circuito independente, onde poderá rodar filmes conforme seu gosto. Eu sempre acreditei que por trás de histórias de assombração, sempre existe um elemento de tristeza, de nostalgia. As demandas do público moderno têm tornado os novos filmes cada vez mais aleijados de sensibilidade. O fato de Hotel da Morte ter sido produzido sinaliza uma bem vinda abertura ao retorno de um estilo lamentavelmente incompreendido pela turma mais jovem. Mesmo modesto em sustos ou surpresas, deixa a sua marca, força da melancolia que esbanja, um peculiar charme de elegância decadente tão ressoante quanto a trágica história de amor de sua "boneca de pano" silenciosa e triste.
Todos os direitos autorais reservados a PlayArte. O uso do trailer é para efeito meramente ilustrativo da resenha.

"The Trigger Effect" (1996, David Koepp) Antes de "Uma Noite de Crime", existiu "The Trigger Effect"!

Matthew & Annie (Kyle MacLachlan & Elisabeth Shue) - um jovem casal buscando manter a chama da relação amorosa acesa após o nascimento da filha e as demandas da vida em comum – estão para enfrentar o maior desafio de suas vidas, um evento que colocará em teste a força de seu amor e até a que ponto estão dispostos a chegar para defender a si e à filhinha. The Trigger Effect começa em uma animada e comum noite de sexta-feira em Los Angeles. Em uma rara oportunidade, Matthew & Annie conseguiram tirar a noite só para si, pois deixaram a filhinha sob os cuidados da baby sitter para assistir a um filme no shopping. Rodado em 1995, muitos anos antes de uma série de dramas urbanos que viriam a explorar a forma como pessoas de diferentes alçadas veem-se entrelaçadas pelo peculiar senso de humor do destino (21 Gramas & Babel os melhores exemplos), o diretor David Koepp já abre o filme com uma cena que reforça a assertiva, quando vemos um rapaz "cortado" por uma moça sem educação na fila para a pipoca voltando de mau humor para a sala de cinema, onde se dará uma cena importante que estabelecerá a dinâmica do relacionamento entre os personagens principais.

Annie & Matthew estão assistindo ao filme, quando o rapaz em questão retorna à sala, bastante chateado. Ao contar o incidente ao amigo, Annie pede baixinho para que procure fazer silêncio, e o rapaz reage com grosseria, murmurando um palavrão qualquer e resmungando que não o amole. Matthew sugere para que se sentem mais para trás, e o casal deixa suas cadeiras para o fundão. Apesar de nada mais grave advir do atrito, a briguinha fica na cabeça de Matthew pelo restante da noite, e quando estão pagando o ticket do estacionamento para ir embora, vocaliza seu remorso ao murmurar desejar ter feito alguma coisa na hora, quando o rapaz foi áspero com Annie. O casal mora em um encantador bairro de classe média, mas a residência está passando por reformas, o que deposita peso extra sobre o stress da vida conjugal. Ao voltarem para casa, encontram a nenê um pouco chorosa por conta da infecção no ouvido que teima voltar.

Matthew liga para o médico, que pede para que os dois não se preocupem, apenas mantenham a aplicação das gotinhas pois ela melhorará. Trocando de roupa para deitar, conhecemos melhor a natureza do distanciamento entre os dois. Quando Matthew menciona um relógio seu desaparecido e fala sobre os homens da construção transitando livremente dentro da casa para finalizar a obra, sugere que algum dos rapazes tenha apanhado o relógio. Annie então recomenda que o marido os confronte a respeito, e Matthew tem uma mudança de tom, ao responder que não seria boa ideia acusá-los sem prova, o que apesar de uma boa razão evidencia a sua incapacidade de lidar com conflitos. A dificuldade de liderar vem minando a relação veladamente, e quando os dois quase começam a namorar naquela mesma noite mas a bebezinha acorda chorando, vemos que o descuido do casal em lidar com os desafios do dia a dia os está deixando cada vez mais alienados um do outro.

Em dado momento da madrugada, um maciço blecaute afunda a cidade na mais absoluta escuridão, e Matthew sai com a lanterna para dar uma averiguada. Ele encontra Steph, o vizinho da frente, que também não tem ideia do que aconteceu. Nenhum dos dois parece preocupado, pois acreditam que a energia voltará mais tarde. Matthew & Annie despertam na manhã de sábado para péssimas notícias: a energia não voltou e a infecção do ouvido da bebê piorou. As gotinhas acabaram, e Matthew apanha a chave do carro para buscar mais na farmácia. Ao ligar o rádio do automóvel, vê que até mesmo as faixas estão fora do ar. Na drogaria, Matthew é pego de surpresa quando o farmacêutico recusa-se a vender sem prescrição médica. Agora que as linhas telefônicas estão fora de serviço, Matthew nem sabe como contatar o pediatra para obter a prescrição. Ele discute com o vendedor, e volta frustrado para casa. Ao encontrar a bebê chorosa, Matthew decide resolver a situação "na marra". Ele ainda tenta conseguir a prescrição em um hospital público, mas ali somente encontra muita gente à frente. Desesperado, retorna para a drogaria, e em um momento de distração, furta as gotinhas. O farmacêutico vê, mas Matthew evade-se do local correndo, e mesmo perseguido, consegue entrar no carro a tempo de arrancar.

Ao voltar com as gotinhas e contar o que fez para consegui-la, Annie o beija, aliviada, e os dois começam a namorar ali mesmo na sala, até serem interrompidos por um visitante. Inicialmente assustados, logo relaxam ao ver que se trata de Joe (Dermot Mulroney), velho amigo do casal que assim como os demais parece confuso com o blecaute. Muitas teorias sobre a falta de energia andam circulando, mas Joe diz que o que o preocupa são histórias sobre saques a mercados e assaltos às casas, agora que Los Angeles mergulhou na "Idade das Trevas". A única forma de saber melhor seria andando pelo epicentro da confusão, downtown Los Angeles, e o trio dirige até lá para ver se descobre algo. Em downtown Los Angeles, somente encontram engarrafamento, brigas no meio das ruas, cidadãos estressados e semáforos imprestáveis. Durante o passeio, Annie faz um convite que parece incomodar o marido, ao chamar Joe para ficar com o casal até o blecaute passar. Será divertido, como uma festa de acampamento, ela brinca, e Joe diz que aceitaria o convite se Matthew não se importasse. Apesar de ressabiado, o marido retruca que não há problema e o amigo pode sim passar a noite em casa.

Agora que Joe se juntou ao casal, eles precisam discutir como se preparar para a noite. Como por ora não podem contar com cartões de crédito, juntam todo o dinheiro e fazem uma lista de prioridades. O rumor do helicóptero da Polícia, sobrevoando aquelas redondezas, deixa-os "espertos" quanto a necessidade de se protegerem dos assaltos. Joe e Matthew concordam que fariam melhor adquirindo uma arma para proteger a casa, mas Annie se coloca contrária à ideia. Apesar da oposição da mulher, os dois saem para adquirir uma arma de fogo. A relação competitiva entre os amigos azeda por causa de um comentário inocente feito por Matthew. Ele pede que Joe escolha a arma pois como trabalhador braçal do ramo de construções deve compreendê-las melhor. Em uma prova de como as pessoas podem mostrar o seu absoluto pior em situações críticas, o vendedor subiu o preço das mercadorias, e por um rifle e balas que não valem mais do que cem dólares, cobra trezentos. A dupla acaba cedendo e adquire o rifle e a caixa de munição.


A caminho do carro, Joe desabafa que não gostou de seu comentário. Procurando resgatar seu bom humor, Matthew brinca e retruca que Joe poderia passar por um verdadeiro homem das cavernas. Joe "vai na ferida" ao devolver Mas a sua mulher ficou feliz ao ver o homem das cavernas aqui! O diálogo explicita o motivo da competição entre os dois: apesar de mais bruto e resolutivo, Joe inveja a carreira de sucesso, a inteligência privilegiada, a casa em bairro nobre e a esposa bonita de Matthew. Provocante, Annie parece enxergar o conflito psicológico, e perigosamente joga lenha na fogueira. Naquela mesma noite, quando estão bebendo vinho bem no meio da sala, Annie atiça a rivalidade. Queixando-se de calor, usa poucas roupas, e o ciumento marido resmunga Tente permanecer vestida. Os três beberam um pouquinho além da conta, é questão de tempo para irromper uma discussão. Em dado momento, Matthew encontra os dois na cozinha, cochichando, e se enfurece quando Joe faz uma piadinha sobre se o rapaz não gostaria de saquear o mercado para trazer mais whisky. Annie contou ao amigo a parada da farmácia, na manhã daquele dia, desobedecendo o pedido do marido, e Matthew fica possesso. Ele começa a soar agressivo, quando Annie coloca panos frios e sugere que vão dormir, pois tiveram um dia cansativo e o stress obviamente subiu às suas cabeças.

Durante a madrugada, as coisas começam a se complicar. Joe entra na ponta dos pés no quarto do casal, e sussurra para Annie & Matthew que alguém invadiu a casa.  Atentos para não fazer barulho, Matthew & Joe flagram um rapaz furtando alguns itens da cozinha, e depois apanhando a chave do carro para partir. Quando tenta abri-lo, o alarme começa a apitar, e Joe & Matthew surgem da escuridão e o orientam a largar as coisas e dar o fora sem criar maiores complicações. Assustado, o invasor vai recuando, até ser abatido no meio da rua por um tiro de Steph, o vizinho da frente, que confundiu a faca que o garoto carregava com um revólver. Steph se desespera e diz que se contarem que o rapaz estava desarmado, estará encrencado. Ele volta para casa, e quando retorna para a rua, traz um revólver sem marcas. Steph coloca a arma nas mãos do rapaz para forjar a prova contra o invasor. Annie o reconhece como um dos homens da obra na cozinha. A polícia é chamada, e a versão de Steph soa convincente. Os moradores se reúnem na casa de um deles para discutir um plano de contingência para o risco de novos assaltos. Os vizinhos sugerem boas ideias, todavia, prova do egoísmo reinante, ninguém quer se comprometer; por exemplo, um cavalheiro sugere o bloqueio da rua com carros, mas ninguém está disposto a colocar o próprio automóvel na entrada do condomínio. Convencidos de que a reunião não irá a lugar algum, Annie, Matthew & Joe se despedem. Na saída, Steph chama Matthew no canto e pergunta "em que pé fica a situação entre os dois". Visivelmente magoado, agora Steph nutre animosidade contra o vizinho com certa razão, pois teme que o mesmo o entregue mais tarde, contando à Polícia sobre a arma que colocou na mão do delinquente. Depois da tentativa de assalto, o trio percebe que enquanto a energia não voltar, nem mesmo dentro de casa terão sossego. Após uma tensa conversa na cozinha, fica decidido que na manhã seguinte todos partirão para a casa dos pais de Annie.Encarar a estrada rumo a outra cidade oferecerá seus riscos, conforme o próprio Joe aponta. A distância de 530 milhas até o destino final pode ser coberta em um dia inteiro de jornada, todavia mesmo partindo com o tanque cheio, durante a viagem, eventualmente precisarão pôr as mãos em mais seis galões de gasolina. Postos estarão fechados, e mesmo se abertos, provavelmente cobrarão preços exorbitantes. Eles terão de conseguir combustível... De alguma forma. Com as variáveis escancaradas, o trio banca os riscos, e "pega a estrada". Na bagagem, o rifle para eventuais emergências.

A turma encara a free-way, e no comecinho da tarde, alcança uma diner de beira de estrada. Ali dentro, reencontramos o rapaz do começo do filme, aquele que ficou nervoso ao ser cortado na fila e depois tratou Annie mal. Eles não se reconhecem. O rapaz, chamado Raymond, se encontra ali para comer um lanche antes de seguir viagem. Enquanto come, aguarda por um familiar que foi se aliviar no toalete. Um homem chamado Gary (Michael Rooker) pede a atenção dos presentes e pergunta se alguém poderia lhe emprestar alguns galões de gasolina. Ele se aproxima da mesa do tenso Raymond, e pergunta se o rapaz tem como socorrê-lo. Em momento de crise, Raymond precisa pensar em si e em sua acompanhante, e agora que serviços essenciais como Polícia e Hospitais encontram-se sufocados por uma demanda absurda, não pode se dar o luxo de confiar em estranhos. Raymond se desculpa por não ter como ajudá-lo, e Gary reage com irritação. O rapaz está louco para voltar à estrada e seguir seu caminho. Todos estão com os nervos à flor da pele.

À beira da estrada, Matthew, Annie & Joe estão tomando sorvete. Há outros carros estacionados nas imediações de um quiosque. Como a energia elétrica se foi, o dono do lugar gentilmente resolveu oferecer gratuitamente casquinhas de chocolate e baunilha para quem quiser, antes que todo o sorvete derreta. Parece que ainda há espaço para solidariedade no mundo!Naquele lugar deserto, só um sítio indica civilização. Quando Joe & Matthew veem um carro entrando na propriedade, comentam que a BMW "não combina" com o sítio. Ponderando o que há por trás da situação, divertem-se com teorias. Joe diz que provavelmente o motorista fugia de Los Angeles, até descobrir o sítio, invadir, matar os proprietários e tomar conta do lugar como se fosse seu!Matthew sorri e não o leva muito a sério, mas em meio à imprevisibilidade provocada pelo blecaute, não há como saber.

A turma volta à estrada, e consoante o previsto, o indicador de gasolina perigosamente se aproxima do "vermelho". Quando eles dão por um automóvel aparentemente abandonado no acostamento, param do outro lado da via para examinar o tanque e checar se há um pouco de combustível para aproveitarem.  Matthew se aproxima cautelosamente pelo lado do motorista, e toma um susto ao constatar que há uma pessoa dormindo no banco de trás. Gary desperta um pouco confuso, mas após o susto inicial, apresenta-se cordialmente. O motor falhou, deixando-o aprisionado pelo restante da tarde a aquele trecho da rodovia. O diálogo fica tenso quando Gary pergunta se há como lhe darem carona até a cidade mais próxima. Com a bebê dentro do automóvel, e ainda traumatizados pelo assalto da outra noite, o trio reage cismado. Annie indica discretamente com a mão que neguem o pedido e tratem de se pôr em movimento, quando Joe subitamente age mais extrovertido e declara que se fizerem os ajustes necessários com bagagens pode ser que sobre um lugar para Gary. Joe abre a traseira para mexer nas malas, e Annie lhe pergunta o que diabos está fazendo. Assustado, Joe diz que Gary carrega um revólver na cintura, e está agindo daquela maneira amigável apenas para apanhar o rifle e acertá-lo.


O nervosismo embaralha seu senso de julgamento. Apesar de armado, Gary não disse uma única palavra ameaçadora. Quando o trio inicialmente negou carona, mesmo desapontado, pareceu conformado. Ao enxergar uma ameaça inexistente e pegar o rifle, Joe, Matthew & Annie criaram uma situação explosiva que acabará pior. Reflexivamente, ao enxergar Joe fazendo menção de levantar o rifle em sua direção, Gary puxa o revólver da cintura. Joe é atingido na altura do ombro e cai no meio da estrada. Furioso, Gary começa amaldiçoá-los, perguntando aos gritos por que foram provocar confusão quando tudo o que pedira fora por uma simples carona à cidade mais próxima. Revoltado, toma as chaves e ordena que Annie desça imediatamente com a bebê. Gary arranca com o carro de Joe, deixando-os ali sozinhos com a criança de colo no asfalto quente, no meio do nada, com o rapaz baleado.


Matthew, o pacifista racional, agora se vê no papel de herói. Antes, contava com Joe para fazer as escolhas mais difíceis, agora a única salvação reside na sua capacidade de tomar as rédeas para si e conduzir o restante da jornada. Matthew precisa encontrar uma forma de salvar a família e chamar o atendimento médico a tempo. Matthew se recorda do sítio algumas milhas mais para baixo da estrada, e decide correr até lá para buscar ajuda. Antes de partir, Annie o chama de lado, desculpa-se pelo comportamento, o beija e abraça, e insiste que precisa muito que o marido volte são e salvo. Matthew promete retornar, e ao cair da tarde, parte correndo ao longo da vasta, deserta pista, em direção ao sítio. À medida que anoitece, o frio se intensifica. Joe delira, e Annie procura consolá-lo e esquentá-lo. Ao bater na porta, o ofegante Matthew é recebido por Raymond, que havia sido o primeiro a encontrar o sítio abandonado e se estabelecer ali dentro com um parente, até o fim da confusão e o retorno da energia. Confuso, aborrecido e desesperado, Matthew não consegue se explicar muito bem, e ao suplicar que Raymond lhes dê carona no seu carro ao hospital mais próximo, o rapaz procura argumentar que não o conhece, e teme que lhes façam algum mal. Prestativo, ainda oferece comida e água, mas insiste que não tem como abrir mão do automóvel. Matthew & Raymond acabam discutindo. Matthew regressa ao carro para apanhar o rifle e resolver a situação pela linguagem universal da violência.


Flagrado ao invadir a casa para pegar as chaves, Raymond e Matthew criam uma intensa situação onde se apontam revólveres, um gritando para o outro largar a arma. Felizmente, a filhinha de Raymond aparece assustada na sala e os dois homens recobram alguma sanidade. Matthew reitera que só deseja ajudar o amigo. Ele apanhará as chaves, levará Joe ao hospital e depois devolverá o carro a Raymond. Para mostrar sua boa fé e confiança, abaixa o rifle e dá as costas. Quando Matthew está para deixar, Raymond surge no alpendre de mãos dadas com a filha e diz que o ajudará. Pouco depois, os vemos juntos no trecho da estrada onde se deu a confusão, Joe recebendo atendimento médico, sendo levado ao Hospital, onde ficará bem. Ao examinar a carteira do amigo, Matthew fica tocado ao encontrar uma foto sua ao lado de Annie. Ele compreende que a natureza da rivalidade entre os dois não se devia à inveja, mas sim à admiração de Joe pelo companheirismo e as coisas bonitas que Annie & Matthew haviam construído juntos, e a uma enorme vontade de se sentir parte daquela família. Algum tempo se passa. Los Angeles resgatou um brilho ainda mais encantador à chegada da noite. Vemos Matthew voltando para casa depois de um dia de trabalho. A experiência aproximou marido e mulher, e hoje ambos reconhecem não apenas como não devem jamais subestimar o valor de todas as coisas boas que construíram juntos, como tampouco desperdiçar a segunda chance que Deus lhes deu.

Interessante e pouco visto suspense dirigido por David Koepp, aclamado roteirista que apenas três anos mais tarde rodaria o excelente Ecos do Além, com Kevin Bacon, e algum tempo depois, A Janela Secreta, baseado no conto de Stephen King. Aqui já exercitando o talento por trás das câmeras, Koepp fez um filme tenso em seu forte realismo, uma espécie de ensaio para produções de horror mais fantásticas que viriam nesta década, tais como a sensação do momento, Uma Noite de Crime. Lançado nos cinemas em agosto de 1996, The Trigger Effect logo desapareceu das salas de exibições. Apesar de fortalecido por resenhas favoráveis, as pessoas preferiram ver coisas mais movimentadas, e o "metabolismo" do filme de Koepp, mais apetecível a thrillers menos frenéticos como os da década de 70, não o ajudou a competir com superproduções daquele ano em particular. 

Provavelmente, a geração que hoje se entusiasma com Uma Noite de Crime 2, uma feroz montanha russa no curso de uma madrugada de caos, pouco terá com o que se excitar com The Trigger Effect, mas aqueles que prezam atmosfera em favor de cenas de ação conhecerão uma grata surpresa. Mais sutil e realista em seu envolvente estudo psicológico, em como pessoas de um meio tão variado como a cidade de Los Angeles podem se ver surpreendentemente conectadas pelas demandas do dia a dia, The Trigger Effect ainda se reveste de uma incomum, elegante tonalidade misteriosa, ao investigar o papel do destino em nossas vidas. Não por menos, o diretor foi inspirado a rodar The Trigger Effect depois de assistir a um excelente episódio de Além da Imaginação chamado The Monsters are Due at Maple Street, sobre os moradores de um harmonioso bairro de classe média alta que, após um inexplicável blecaute, voltam-se uns contra os outros. Ao final, é revelado que o meteoro que pensava-se ter causado a queda de energia era na verdade uma enorme nave alienígena, e vemos dois seres extraterrestres conversando sobre quão fácil seria conquistar o planeta Terra, vez que o ser humano volta-se contra si ao menor sinal de diferença entre seus interesses mesquinhos. É claro que no filme de David Koepp a questão dos "alienígenas" ficou de fora, no entanto a "mensagem" segue a mesma, velhos amigos capazes de irem na jugular do próximo, assim que uma ameaça exógena, no caso o inesperado blecaute, atribula a falsa superfície de harmonia.

Os rostos de Kyle MacLachlan, Elisabeth Shue & Dermot Mulroney têm sido presença constante em filmes muito queridos, e aqui tiveram a oportunidade de merecer os holofotes. Todos muito capazes, David Koepp lhes confiou personagens complicados para destrinchar, e habitaram seus papéis confortavelmente. Mais famoso pela série de TV Twin Peaks, Kyle MacLachlan dá vida ao clássico herói relutante, visto inúmeras vezes em produções similares: o homem comum que por toda a vida evitou conflito, porém que em um momento de crise, para preservar aqueles a quem ama, encontra dentro de si bravura fora do comum. O ator Harrison Ford, por exemplo, construiu uma carreira dando vida a esse tipo de personagem. Com a carreira investida de novo fôlego após a indicação ao Oscar de Melhor Atriz por Despedida em Las Vegas, no ano anterior, Elisabeth Shue interpreta o elemento-chave do platônico triângulo amoroso. Ela tornou a transformação por que passa - de esposa insatisfeita à fiel companheira que ao final ganha novo respeito pelo marido - um prazer de se assistir. Desencorajada pelos pequenos probleminhas do dia a dia, amontoados de modo a sufocá-la, a ponto de flertar com o amigo como válvula de escape, Annie precisa de um terrível susto para reconhecer e valorizar todas as coisas boas que Deus lhe deu. Dermot Mulroney tem atuado em filmes de sucesso, em uma longa, prolífica carreira. Em breve, terá a chance de sua vida protagonizando Insidious 3, sequência de uma das franquias de horror recentes de maior sucesso, a ser lançada em 2015. Ele mantém o seu personagem uma incógnita até o momento certo. Quando vi o filme pela primeira vez, não imaginava o rumo que o enredo tomaria. Joe se revelaria um psicopata e aterrorizaria o casal durante a jornada? A excelente atuação de Mulroney mantém o personagem envolto em mistério, até finalmente compreendermos que a sua natureza é boa e apenas carecia de se sentir parte de uma unidade familiar, algo similar - porém em menor envergadura - ao dilema do personagem de Robin Williams em Retratos de uma Obsessão. A fotografia também merece aplausos. Conhecedores da obra de Koepp sabem que podem esperar grandes coisas do cineasta, no que importa a visuais. Assim como faria com Ecos do Além, o bairro, o meio onde os personagens interagem e vivem seus dramas merece todo o capricho que lhe é peculiar. Em The Trigger Effect, a fotografia do bairro nobre de Los Angeles, mergulhado em elegantes, suaves pinceladas de azul, contrasta com o amarelado das estradas sem lei. Três anos mais tarde, dedicaria o mesmo zelo ao filmar o bairro de trabalhadores blue collar de Chicago, onde situou seu arrepiante Ecos do Além.

The Trigger Effect padece quando comparado à incessante sequência de emoções de Uma Noite de Crime 2, todavia o que faz muito bem é reinventar um estilo de suspense sacramentado nos anos 70, do qual Deliverance (foto), de John Boorman, e Straw Dogs, de Sam Peckinpah, foram seus melhores expoentes. Mais de trinta anos desde seu lançamento nos cinemas, a graça de Deliverance segue impecável. O filme lançou as carreiras de Jon Voight, Ned Beatty, Ronny Cox & Burt Reynolds (no melhor desempenho de sua vida) e inaugurou uma tendência de horrores baseados no tema Homem versus Natureza. Em 2008, foi eleito pela National Film Registry para preservação na Library of Congress pela sua relevância estética, cultural e histórica. Baseado no romance de James Dickey, Deliverance narra a história de quatro amigos que vão se aventurar em um rio selvagem às vésperas do represamento. Quando dois deles param às margens para descansar e são assaltados por dois colonos, o personagem de Burt Reynolds chega por trás e mata um dos assaltantes com um disparo de arco e flecha. O outro escapa. O quarteto precisa enterrar o cadáver, descer o restante das corredeiras, caçar o segundo assaltante, matá-lo, e despistar a Polícia Rodoviária assim que alcançarem a cidadezinha mais próxima. Mesmo cobertos de razão (o assassinato se deu em autodefesa), os amigos sabem que se forem associados ao desaparecimento dos colonos e submetidos a júri, provavelmente acabarão condenados a penas terríveis naquela cidadezinha de fim de mundo. Roteirizada pelo próprio Dickey (que faz uma participação como o xerife), a versão dirigida pelo britânico John Boorman foi um dos grandes clássicos dos anos 70, indicado aos prêmios de Melhor Filme, Diretor e Edição (Deliverance perdeu para O Poderoso Chefão, mas foi superior em todos os sentidos; a não-indicação de Burt Reynolds ao Oscar de Melhor Ator Coadjuvante pelo seu papel foi um dos mais desastrosos erros da Academia). The Trigger Effect inspira-se fortemente no clássico de Boorman ao analisar a reação de pessoas comuns metidas em situações de conflito extremo. Assim como os amigos que descem as corredeiras em Deliverance, as escolhas de Annie, Matthew & Joe nem sempre parecem as melhores, porém não nos cabe criticá-los, pois a aventura se desenrola de uma forma tão realista que chegamos a considerar nossas próprias reações em situações similares. Neste sentido, ambos os filmes encontram no realismo a força que falta a superproduções movimentadíssimas que banalizam a violência. Na ação recente, assistimos ao herói eliminando os vilões a uma velocidade tão supersônica que tudo perde o impacto, nada nos choca mais. Por outro lado, se você assiste a algo como Deliverance - onde só há três mortes no curso da aventura - tudo guarda um efeito amplificado e mais poderoso. Tomemos como exemplo a cena em que um dos colonos é morto com um disparo de flecha que o apanha nas costas e se pronuncia para fora do peito. Boorman filma a cena com uma incômoda intimidade que nos faz cair a ficha: é o fim da linha para esse cara, está acabado. A morte chega inesperadamente, com suas profundas implicações legais & filosóficas. Perdemos o impacto de momentos assim em filmes de ação modernos que tratam tiroteios como jogos de videogame, tudo muito ridículo e inofensivo. Deliverance continua um suspense relevante pela maestria com que foi conduzido e seus temas atemporais, e poucos rivalizam a sua visceral honestidade. Também em termos de estrutura narrativa, The Trigger Effect recicla a fórmula de Deliverance, onde após matar um dos colonos, o personagem de Reynolds, a figura de estoicismo, força e autoridade, sofre uma fratura exposta na coxa, transferindo ao hesitante Voight a missão de caçar o segundo, matá-lo e tirá-los da garganta do vale. Em The Trigger Effect, Mulroney encarna o homem endurecido à vontade com conflitos, inesperadamente retirado de combate por um disparo de arma de fogo, o que força o pacifista MacLachlan a salvar suas vidas. Com The Trigger Effect, David Koepp moldou seu trabalho nos autênticos suspenses que fizeram dos anos 70 a Era de Ouro do Cinema Moderno e nos deram talentos como Dario Argento & Brian De Palma. Os amigos que prezam suspenses intrigantes e diferenciados não sabem o que estão perdendo!The Trigger Effect foi lançado em DVD no Brasil com o título Efeito Dominó (não confundir com o outro filme de mesmo nome estrelado pelo ator Jason Statham) e pode ser facilmente adquirido. Não percam!

Todos os direitos autorais reservados a Universal Pictures. O uso do trailer é para efeito meramente ilustrativo da resenha.