sábado, 28 de fevereiro de 2015

O Exorcista ("The Exorcist", 1973, William Friedkin) Encolha-se novamente de medo com um dos filmes mais aterrorizantes e queridos de nossa época, 40 anos após sua estreia!Como o tempo voa, não?!

E lá se vão pouco mais de 40 anos desde que William Friedkin abriu como mestre de cerimônias a mais prolífica, produtiva Era do Cinema Moderno, uma década onde blockbusters ainda tinham alma e eram dirigidos por cineastas com visão, um tempo que refletiu o turbilhão político & social de seu meio - e do de muitos outros países, mundo afora - com thrillers corajosos produzidos por estúdios ainda engajados com uma mensagem, e não necessariamente com a perspectiva de receitas financeiras. O sucesso de tais filmes nas bilheterias está para ser rivalizado, todavia, naquela época, dinheiro jamais ficou `a frente da criatividade e da expressão artística. Em todas as alçadas, o cinema fantástico se viu em franca ascensão. Os filmes rodados no regime dos grandes estúdios permitiam a seus diretores ampla liberdade criativa sobre o produto final, e o cinema alternativo independente, onde a contracultura encontrava substrato para sobreviver e até mesmo florescer, recebia o mesmo tratamento, tendo seus títulos ao lado dos de blockbusters na mesma marquise. Quando imaginaríamos filmes de baixo orçamento exibidos no mesmo teatro onde coisas grandiosas como "Star Wars" também atraiam multidões?Nos anos 70, a harmonia da diversidade deu o tom certo a mais saudosa década do cinema, quando as câmeras capturaram as contradições de um mundo e sociedade em plena, rápida transformação.

Friedkin "passou a tesoura na faixa", inaugurando os anos 70 com o primeiro legítimo arrasa quarteirões de Ação, "Operação França", o filme de 1971 que lhe valeu o Oscar de Melhor Diretor e deu autoridade para que rodasse o que quisesse em Hollywood. Brian De Palma surgiu logo após, para iniciar uma prolongada disputa com o italiano Dario Argento pelo lugar de mestre do suspense deixado vago por Hitchcock. No Canadá, David Cronenberg capturava suas peculiares obsessões, gerando um tipo de Horror mais visceral & psicodélico, completamente destoante dos clássicos poeirentos da Hammer, que viria a dominar com maestria mais tarde, ao exercitar a elegância e a contenção vindas naturalmente junto `a experiência. O britânico John Boorman adaptou o romance de James Dickey, dando-nos um dos filmes mais importantes de todos os tempos, "Deliverance", a epítome do Horror Homem vs. Natureza que consagrou Jon Voight como um dos atores mais importantes de sua geração, e transformou o então desconhecido Burt Reynolds em astro e campeão de Bilheteria daquele período, década de 70. Steven Spielberg & George Lucas surgiram como "sangue novo" de uma indústria que se reinventava de fora para dentro, adaptando-se aos moldes de uma entusiasmada sociedade que consumiria os arrasa quarteirões e transformaria os agentes de mudança em força criativa.

Quatro décadas mais tarde, evidências de semelhante renascimento artístico são observadas com a chegada desse novo pessoal que veio para tomar conta - James Wan o "Steven Spielberg" da nova geração de 2010 - porém com todas as proezas que hoje lotam as salas de multiplex, improvável que em nosso tempo voltemos a observar um fenômeno tão fantástico quanto aquele observado nos anos 70. E para compreendermos como funciona a mente desses novos talentosíssimos cineastas, precisamos revisitar os filmes responsáveis pela sua formação. Ao entrarmos no túnel no tempo para passear um pouco pelas alamedas da recordação, poderíamos nos perder tamanha a variedade de fantásticas fantasias que os mestres dos passados nos deixaram, mas se todas as estradas levam a Roma, então todos os túneis nos carregarão de volta a Junho de 1973, quando "O Exorcista" estreava nas salas do cinema para apavorar plateias e trazer dividendos na ordem de 441 milhões de dólares.

Norte do Iraque. Durante os trabalhos de escavação nas ruínas de um sítio histórico na fronteira com a Síria, Padre Lankaster Merrin (Max von Sidow) descobre, entre artefatos de pouco interesse, uma pequena carranca referente a um dos demônios expulsos por Deus do paraíso. Merrin é um incansável arqueologista que coloca a vida em risco pelas causas da Igreja, e vemos que a insalubridade do trabalho sob o Sol escaldante do deserto começa a pesar sobre sua saúde. Sentado em uma feira local, assistimos quando a um passo do infarto precisa tomar pílulas para o coração doente. De posse da carranca, ele se despede do responsável pela coordenação dos trabalhos. Habilidoso na arte de sugerir sem precisar mostrar, o diretor William Friedkin nos dá várias deixas de que logo o confronto do Bem contra o Mal começará: o idoso quase é atropelado por uma carroça quando os cavalos se descontrolam, e ao visitar o deserto por uma última vez para observar a estátua do demônio, chamado Pazuzu, cães se mordem em uma feroz briga de morte, como incitados por uma força maléfica invisível. Merrin sabe em seu íntimo que logo mais será chamado para a mais importante batalha de sua vida. A cena, um primor de montagem, consiste em um take apenas, que captura a figura do heroico idoso, fisicamente vulnerável mas com o espírito cheio de fé, ali sobre uma rocha, e na outra rocha, no oposto das escavações, a estátua do assustador demônio alado, enquanto ao fundo escutamos os grunhidos dos cães se matando, e vemos o Sol se pôr.

O filme corta para Georgetown, Washington. Chris McNeil (Ellen Burstyn) é uma atriz muito requisitada, passando uma temporada na cidade para rodar um drama estudantil filmado no campus da universidade. Consigo, Chris trouxe a filha Regan (Linda Blair), e as duas estão habitando uma linda casa vitoriana nas vizinhanças do campus. Chris é uma mulher que se desdobra para honrar com as demandas da carreira e manter-se uma mãe presente. Nem tudo é perfeito, contudo, há uma ruptura na família, a atriz e o marido passam por um processo de separação. Na medida do possível, a solitária adolescente Regan tem suas necessidades emocionais supridas pela mãe e pela secretária pessoal Sharon (Kitty Winn). Chris está repassando as falas para as filmagens no dia seguinte, quando barulhos no sótão lhe chamam a atenção. Ela vai verificar a filha, que está dormindo, e encontra as cortinas se batendo por causa do vento. Chris fecha as janelas e durante o café da manhã instrui o secretário Karl a preparar armadilhas, vez que roedores parecem a provável causa dos ruídos.

Burke Dennings (Jack McGowran) é o diretor do filme, e vemos sua equipe trabalhando em uma cena rodada no meio dos universitários, Chris fazendo um discurso para os estudantes, com o megafone. Quem está casualmente por ali para assistir `as filmagens é o Padre Karras (Jason Miller), um jovem sacerdote que, aprenderemos, será o grande herói dessa história. Ao final do dia, Chris dispensa o motorista e prefere caminhar para casa. É Outono, folhas amareladas caindo, arrancadas pela ventania forte. Pela primeira vez, escutamos a melodia para sempre vinculada a "O Exorcista", "tubular bells", acompanhando a atriz em sua caminhada pelas calçadas. Há uma cena muito significativa, quando Chris passa na frente da paróquia, e `a distância, pela primeira vez, enxerga o Padre Karras. Algo no sacerdote lhe chama a atenção, e mesmo `a distância, pelo pouco que escuta da conversa de Karras com um outro padre, a atriz percebe que ele parece um homem atormentado.

Na cena seguinte, quando Chris chega a casa, Friedkin nos introduz `a dinâmica do lar. Sharon, a secretária pessoal da atriz, faz as vezes de melhor amiga para a garota. A interação entre atriz e filha nos prova que Chris é uma mãe preocupada com seu bem estar, e Regan, uma jovem absolutamente saudável e feliz, espevitada como toda garota de sua idade. Regan está decidida a convencer a mãe a comprar um pônei, e Chris promete pensar a respeito quando voltarem para casa, após as filmagens. A garota rouba um biscoito de chocolate da jarra, e sai correndo, a mãe no encalço, as duas dando gargalhadas e brincando com muita descontração. Chris a apanha e as duas caem no chão, mãe tentando recuperar o biscoito da filha antes que o coma, ambas `as gargalhadas. A cena, é claro, terá ressonância mais tarde, pois voltaremos a vê-las lutando, não em brincadeira e descontração, mas em absoluto desespero, quando o trem sair dos trilhos.

Nova York. De passagem visitando a mãe, Padre Karras apanha o metrô para voltar para casa, e um mendigo de aparência misteriosa o interpela, perguntando se não teria uma moeda para um ex-coroinha. Karras visita sua adorável mãe, uma velhinha viúva que mora em um simplório apartamento no Brooklyn. Por fotos em porta-retratos, aprendemos um pouco sobre o passado de Karras; por exemplo, ele foi pugilista na juventude, e também guardou recordações de uma namorada que marcou sua vida antes que optasse pela vida de sacerdócio. Karras encontra a velhinha dormindo na cadeira de balanço da sala, diante do aparelho de rádio, e quando ela o vê, o cobre de carinho, tratando-o como se fosse um menino. A velhinha sofre de dores nas pernas, mas o pior se deve mesmo `a solidão. Karras não se sente bem por deixá-la ali, sempre solitária. Gostaria de levá-la para um asilo, um lugar onde pudesse receber cuidados de enfermeiras e médicos, mas a velhinha não aceita deixar o apartamento, o único lugar onde se sente segura. Quando Karras parte, já é tarde. A velhinha dorme na cadeira de balanço. Karras deixa um dinheiro sob o rádio e a beija na cabeça. Apesar de se esforçar para ser um bom filho, compreendemos a natureza da culpa que o consome. Ele deixa Nova York e volta para Georgetown.

No salão de jogos da casa de Chris, mãe e filha conversam descontraídas, e Regan lhe mostra uma figura feita de massa de modelar, criada pela própria. De alguma maneira, algo no boneco nos faz pensar nas formas da estátua do demônio Pazuzu, encontrada pelo Padre Merrin no Norte do Iraque. Chris descobre uma tábua Ouija, e pergunta onde a filha encontrou o brinquedo. Regan responde que achou a tábua assim como a todas as outras coisas do salão, por acaso. E não apenas isso, vem utilizando a tábua para conversar com seu mais novo "amigo", a quem chama "Capitão Howdy". Ela resolve mostrar `a mãe como funciona o diálogo com o "Capitão Howdy", e segurando o ponteiro sobre a tábua, pergunta se "Capitão Howdy" acha a mãe bonita. O ponteiro não se move. Regan explica que "Capitão Howdy" é tímido e não quer brincar com a mãe por perto. Nenhuma das duas imagina o horroroso perigo envolvido na "brincadeira" e as intenções de "Capitão Howdy", na verdade um demônio perigosíssimo que não demorará a mostrar suas intenções.

Há um doce momento entre Chris e Regan, quando a mãe põe a filha para dormir, e a menina vocaliza os temores de que ela se case com Burke. A mãe ri de tudo aquilo e garante que não passa de tolice, pois gosta de Burke, mas apenas como amigo. Chris revela que ainda ama o pai de Regan, porém, como sabemos, há muitos problemas pendentes entre os dois. Nesta cena, a vulnerabilidade da garota, porta perfeita para a entrada do demônio, fica patente: ela se sente culpada pela cisão no casamento.

Em um bar local, Karras desabafa com o veterano Padre Tom. Ele fala sobre a culpa que sente em relação `a condição da mãe. Karras sugere a possibilidade de transferência para Nova York, onde poderia cuidar melhor da velhinha, pois não haveria mais o distanciamento, todavia Padre Tom insiste que mesmo em meio a uma crise de fé, Karras deve permanecer em Georgetown, pois é o melhor dos jovens padres. De volta `a casa dos McNeil, Chris está furiosa, ao telefone. Ela tenta uma ligação com o ex-marido, que está na Europa, mas a telefonista não consegue completar a chamada. Chris não acredita que ele foi capaz de se esquecer do aniversário de Regan. A atriz xinga a telefonista, enquanto, do corredor, Regan escuta a tudo, obviamente chateada pelo esquecimento. Durante a madrugada, Chris é despertada pelo telefonema de alguém da produção. A presença de Chris é requisitada para a filmagem de uma determinada cena do roteiro. Meio a contragosto, avisa que estará a caminho, e ao se virar na cama para levantar, vê que a filha dorme ao lado.

Aqui, surgem os primeiros indícios de que algo de errado acontece com a adolescente e a casa. Regan se queixa de que não consegue dormir na própria cama, pois "fica fazendo barulhos estranhos". Novamente, a atriz escuta ruídos vindo do sótão, e sobe para investigar, certa de que se tratam de ratos. Chris acende uma vela para enxergar melhor no breu. Nada particularmente sobrenatural acontece, porém a cena definitivamente eriça os cabelos da nuca. Há alguns bustos de manequins, e a imagem daquelas figuras em um lugar tomado pela escuridão parece enervante. Subitamente, a vela quase se torna uma tocha quando o fogo aviva sem motivo aparente. A cena foi homenageada pelo grande James Wan, em "Sobrenatural", onde recriou um momento muito parecido para a personagem de Rose Byrne. Os ruídos não se devem a ratos. As ratoeiras não foram sequer tocadas. Chris não faz ideia do que está acontecendo.

Friedkin sugere a presença de uma força demoníaca em Georgetown, pois naquela manhã, ao levar flores para o altar da paróquia, um sacerdote encontra a imagem de Maria terrivelmente vandalizada, com chifres saindo pelo peito, uma cauda pelo ventre. Friedkin não elabora quanto `as circunstâncias, e o filme não tocará novamente na  vandalização da imagem de Maria, mas sou tentado a acreditar que o deboche a tão sagrada representação seja obra da mesma força macabra agora ativa na vida da menina. Chris é ateísta, e logicamente procura a ajuda de médicos para os ainda discretos problemas da filha. No consultório, a menina é submetida a uma bateria de exames mais simples, como o exame de sangue, e o eletrocardiograma. Enquanto os aparelhos realizam a leitura da frequência de ondas cerebrais, Regan parece pensativa, contemplativa. Enxergaremos a primeira aparição do demônio Pazuzu, representado por um rosto muito branco com dentes afiados e expressão de puro ódio, pronunciado em meio `a mais pura escuridão. A aparição não dura mais do que um segundo, todavia a partir deste momento não duvidaremos de que os problemas da garota estão fora da alçada médica. Durante a bateria de testes, Regan se comporta de forma esquisita e até mesmo xinga o médico. Dr. Klein afirma a Chris que os problemas de Regan devem-se aos nervos, ou seja, aparentemente não há nada de anormal no corpo. A mente, no entanto, não vai bem. Chris pergunta se o stress causado pela separação pode somatizar no precário estado psíquico da menina, e Klein responde que provavelmente sim. Por ora, recomenda o uso de antidepressivos.

As coisas também não vão bem para Padre Karras. Ele é chamado `as pressas quando a mãe sofre uma piora. Quando vai procurá-la, descobre que foi internada na ala psiquiátrica de um hospital público. Preparando-se para entrar para vê-la, seu tio, sem intenção, faz um comentário que inflama ainda mais a culpa de Karras, algo nas linhas de que se tivesse optado pela Psiquiatria, e não pela vida do sacerdócio, seria hoje um médico muito rico proporcionando um fim de vida mais digno para a mãe. Para cada canto onde olha procurando algo que lhe devolva a fé, Karras somente encontra culpa e remorso. Naquele lugar triste, outras pacientes se aproximam com seus delírios, julgando-o um parente perdido. Com jeito, ele se desvencilha daquelas pessoas perdidas e doentes. O reencontro com a mãe o afunda ainda mais na depressão. A velhinha chora e pergunta como o filho foi capaz de metê-la em um hospital psiquiátrico. Karras tenta se explicar, os olhos cheios de lágrimas, mas a mãe não quer escutá-lo, e pede para que a deixe em paz. Karras procura a academia de boxe. Com murros no saco de pancadas, descarrega a fúria que sente por si mesmo, pela impotência em cuidar da própria mãe.

É noite de festa na casa em Georgetown. A atriz organizou um encontro para a equipe de filmagem, políticos e personalidades. Somos apresentados a um outro importante personagem, o jovem Padre Dyer. Ele é o melhor amigo de Karras, e com seu bom humor e irreverência, aparece em momentos cruciais para aconselhá-lo. Padre Dyer compreende Karras como poucos, portanto quando Chris tem a oportunidade de se sentar com Dyer para drinques, pergunta-lhe sobre Karras. Como sabemos, Chris só o viu uma única vez, o suficiente para deixar uma forte impressão. Dyer diz `a atriz que Karras é psiquiatra da paróquia, e que sua vida não anda nada bem. Dyer conta que a mãe de Karras morreu na noite anterior. Chris escuta a tudo pensativa, e parece genuinamente aborrecida ao saber sobre a perda de Karras.

Em outro lugar da festa, Burke Dennings está amolando a paciência do empregado Karl, chamando-o de nazista safado. Ele só se dá por satisfeito ao fazê-lo perder a cabeça. Chris e Sharon separam os dois, e põem Burke dentro de um táxi, pois o diretor bebeu além da conta e fará melhor descansando. Chris acredita que Regan dorme no andar superior, alheia `a festa. Os convidados se reúnem em volta do piano, enquanto o boa praça Padre Dyer o toca fabulosamente. Quando Regan subitamente aparece na porta, Chris e seus convidados se surpreendem. Como que hipnotizada, avisa a um astronauta presente "Você vai morrer lá em cima", e então urina nas calças. Chris se desculpa pela desagradável cena, e leva a filha para cima. Depois que a festa termina, Chris dá um banho em Regan e diz que tudo acabará bem. Ela a põe para dormir, mas a filha é assaltada por uma força invisível que sacode a cama. Chris a abraça, apavorada, a cama saltando do chão como se dotada de vontade própria.

Padre Dyer visita Karras no dormitório, trazendo consigo uma garrafa de whisky. Ele sabe o quanto o amigo se sente arrasado pela morte da velhinha, e está ali para lhe dar uma força e embebedá-lo um pouquinho, qualquer coisa para fazê-lo suportar a dor da primeira noite sem a mãe. Karras chora, queixando-se de que deveria ter sido um filho melhor, mas Dyer, com seu jeito brincalhão e positivo, imediatamente o silencia, "Cala a boca, não havia nada a ser feito, cale-se e vá dormir". Mesmo em sua pequena participação, Padre Dyer é uma figura muito querida. Sua irreverência o aproxima da linguagem dos mais jovens, o tipo do cara que consegue pregar a mensagem de Cristo  com o bom humor que torna seu alcance muito amplo, principalmente entre a juventude. Assistindo ao filme, gostei tanto de sua participação que me perguntei se Friedkin não poderia tê-lo usado melhor na segunda metade da história. Todas as suas intervenções, por mais breves que pareçam, oferecem ainda mais peso, dimensão e significado aos personagens centrais.


Aqui, a meu ver, vem uma das cenas mais queridas e memoráveis. A maioria das pessoas se recorda de "O Exorcista" por seus momentos mais inquietantes, todavia por mais estranho que pareça, a sutileza desta cena que descreverei permaneceu comigo ao longo dos anos. O diretor William Friedkin nos mostra Padre Karras pegando no sono, escorregando para uma noite de sonhos ruins e esquisitos. Nós vemos uma medalhinha - um dos apetrechos descobertos por Merrin no Norte do Iraque - caindo, e então um pesadelo onde, do outro lado de uma movimentada rua no Brooklyn, Karras assiste `a mãe ascendendo pelas escadas do metrô `a calçada, em uma movimentada manhã qualquer. Ele parece surpreso ao vê-la viva e acena desesperadamente para que o espere porque quer conversar. A velhinha o vê, mas parece se lamentar. Pela boca, vemos que ela está dizendo "Dimmy" (o primeiro nome de Karras é Damien, e em vida a mãe o chamava carinhosamente de "Dimmy"). Ela dá as costas e volta pelas mesmas escadas de onde surgiu,enquanto Karras fica berrando do outro lado, tentando atravessar a rua antes que a mãe desapareça no metrô. Há algo de memorável na sequência, talvez o seu silêncio (a cena se dá nas calçadas do Brooklyn, mas Friedkin subtrai o áudio) apenas realce a dor da perda de Karras. Eu tenho uma avó por quem sou louco, e ela é quase uma cópia da velhinha mãe do Karras. Não há um sábado que eu deixe de vê-la, sempre pela manhã, apenas para dizer que a amo, e mesmo hoje, tantos anos após assistir ao filme pela primeira vez, quando estou com minha avó, penso nessa sequência do Karras correndo desesperado pela rua enquanto a velhinha desaparece nas escadas do metrô. A vida segue indiferente, carros passando, gente caminhando normalmente, enquanto o padre acena como desesperado, suplicando para que o espere. Imagino que sua força se deva `a fidelidade com que retrata a dor da perda. Justamente no sono, por causa de um pesadelo, a ficha finalmente cai, e Karras se toca de que nunca mais a verá.

Enquanto Karras conduz a missa pela memória da mãe, Chris lida com o drama da filha. Dr. Klein crê que talvez Regan esteja com um tumor no lóbulo frontal, o que explicaria o comportamento esquisito e a cama saltitante. Novos exames são realizados, e nenhum tumor é acusado. O comportamento de Regan em casa piora violentamente. Quando Dr. Klein e seu colega aparecem para uma visita, encontram-na sofrendo convulsões. Não parece logicamente razoável que uma adolescente magrinha tenha força suficiente para se debater daquele modo. Dr. Klein se aproxima e é duramente golpeado. A menina começa a exclamar toda sorte de obscenidades. São precisos dois homens fortes para segurá-la de modo que Dr. Klein consiga administrar o calmante. Depois que os ânimos se acalmam, médicos e mãe conversam atônitos sobre o ocorrido. Chris pensa que talvez a filha esteja sofrendo de múltiplas personalidades, mas os médicos ainda querem realizar uma bateria de testes para excluir outras possibilidades físicas. Os resultados novamente não apontam problemas de saúde, e naquela noite ao voltar para casa, Chris resolve seguir a orientação do Dr. Klein. Chegou a hora de procurar um psiquiatra. No caminho para casa, aos pés das escadarias, Chris enxerga uma comoção, policiais e ambulâncias ali perto. Ela não dá muita atenção, só quer ficar perto da filha.

Chris entra pela cozinha, com o telefone chamando insistentemente. Ao atender, a ligação cai. A luz oscila, ora acendendo, ora apagando, e William Friedkin cria um momento muito impressionante. Se os amigos prestarem atenção, verão, em um desses "vai-e-vem" da energia, a imagem do demônio sorridente ao fundo. Chris, claro, não enxerga o espírito macabro, mas sente a sua presença. A atmosfera de tensão é incomparável. Chris fica irritada por não encontrar Sharon em casa. Para piorar, dá pelas janelas do quarto de Regan abertas. Quando Sharon retorna, Chris a cobre de desaforos. A secretária disse que havia ido `a farmácia, e deixara Regan sob os cuidados de Burke Dennings, que aparecera por ali e topara ficar com a adolescente. Chris conta desanimada sobre os exames, quando alguém bate na campainha. O motorista aparece com péssimas notícias. Burke está morto. Caiu das escadarias e quebrou o pescoço. A situação, anteriormente explosiva, parece mais grave do que se pensava. Teria a adolescente participação na morte do diretor?Em estado de completo choque, Chris testemunha quando a filha desce as escadas de quatro e de costas.

Em uma sessão conduzida no quarto da menina e assistida por Chris e Dr. Klein, o psiquiatra procura encontrar explicações através da hipnose. Regan responde que sim, há uma pessoa dentro dela, a quem se refere como "Capitão Howdy". O demônio não é um segmento de sua imaginação, mas uma entidade em separado. Regan exala cheiros horrorosos pela boca, e suas feições de adolescente bonita subitamente tornam-se carrancas demoníacas. Nem mesmo o psiquiatra sabe como ajudar a garota, vez que a manifestação não se enquadra no quadro clássico de múltiplas personalidades.

Através de um belo take realizado `a distância, acompanhamos o Padre Karras correndo pela pista de atletismo do campus, observado pelo Tenente Kinderman (Lee J. Cobb). O tenente pergunta a Karras se sabe de algo sobre a morte de Burke Dennings. Karras conhece apenas o que leu no jornal, e Kinderman tem fortes motivos para suspeitar de que alguém de dentro da casa de Chris tenha cometido o homicídio. Ele não crê em acidentes. A forma como a cabeça de Burke foi encontrada virada sugere que o homem estava morto antes de ser lançado. Como psiquiatra da paróquia, Karras diz que não conhece ninguém que considere suspeito. O bonachão Kinderman ama cinema, e determinado a conquistar a confiança e amizade de Karras, convida-o para um filme. Karras promete que se se recordar de alguém que julgue capaz de ter cometido o assassinato, o procurará.

Uma junta médica se reúne, e a única solução encontrada parece ser a realização de um exorcismo. Como homem de ciência, o doutor não acredita em possessão demoníaca, mas crê que a sugestão do ritual libertará a mente da menina de seja lá o que for que a esteja possuindo. Kinderman aparece para prestar uma visita, depois de encontrar, na base das escadarias, uma figura feita de massa de modelar. No comentário gravado especialmente para o lançamento em DVD, William Friedkin refere-se `a cena a seguir - a visita de Kinderman - como sua predileta. Kinderman & Chris conversam `a mesa, entre goles de chá. Kinderman não diz tudo o que pensa, mas é óbvio que não acredita na hipótese de acidente. Em seu íntimo, Chris questiona se a filha teria forças para arremessá-lo pela janela, e obviamente não deseja mostrar fraqueza ao tenente, vez que não quer atrair atenção desnecessária. Durante a conversa, Chris acaba revelando que a filha se encontra doente, mas não toca na natureza do impasse. Na cozinha, Kinderman encontra mais bonecos de massa de modelar, e a convicção de que a menina esteja envolvida na morte de Dennings ganha forma. O tenente se despede, e a paz não dura muito. Regan manifesta a possessão, usando poderes telecinéticos para arremessar um armário contra a parede. Com o sotaque britânico de Burke, ela pergunta para Chris, em uma cadência alcoolizada, se a atriz imagina "o que a vadia da filha fez".

Será a partir daí que Padre Karras entrará na vida de Chris. A atriz marca um encontro com Karras, e a forma como inspira confiança a estimula a se abrir. Chris prefere levá-lo para casa, para que veja com os próprios olhos o que está se sucedendo com a filha. Apesar da chocante aparência visual, Padre Karras ainda crê que deva haver uma explicação psiquiátrica para o problema. Regan está com os pulsos amarrados e a aparência desfigurada. Malicioso, o demônio faz joguinhos psicológicos com Karras, imitando, por exemplo, o mendigo do começo do filme.  Regan vomita em jato no rosto do padre.

Chris lava e passa a camisa de Karras. Os dois têm a oportunidade de conversar melhor sobre a questão. Apesar do entusiasmo de Chris pela ideia do exorcismo, Karras trata de mantê-la com os pés no chão, lembrando-lhe as dificuldades envolvidas em conseguir autorização do Vaticano para o ritual. Para Karras, o melhor para Regan seria uma estadia de seis meses no melhor hospital psiquiátrico da América do Norte. Em seu âmago, Chris sabe que "aquela coisa lá em cima não é sua filha". O sofrimento de mãe acaba por mexer com a cabeça de Karras. Apesar de reticente, topa acompanhar o caso.

Karras se vê intrigado pelo fenômeno, e passa a noite no laboratório de áudio/imagem do campus, onde escuta a gravações da voz de Regan, datadas de tempos mais felizes, quando declarava amor ao pai. Ele não compreende como uma adolescente tão comum se transformou no monstro malicioso que encontrou amarrado `a cama. O estudo da voz de Regan após a possessão revela que, quando rodada ao contrário, o demônio clama algo nas linhas de "Dê-nos tempo!Merrin!". Pazuzu está convocando, portanto, o Padre Merrin para o confronto final. Quando Karras volta para vê-la, Regan fala perfeito latim, o que deveria ser impossível. Ela também move gavetas com o poder da mente. Da noite para o dia, seu abdômen surge grafado com o pedido "Ajudem-me". As evidências de possessão são riquíssimas, e Karras não custa a procurar seus superiores para obter autorização para o ritual. O nome do Padre Merrin logo é cogitado, e quando o descanso do sacerdote é interrompido, ao o vermos interpelado durante a caminhada matinal para receber um telegrama, sabemos que a hora da verdade chegou.

Em uma noite fria, o Padre chega à casa em Georgetown, para o confronto definitivo. Antes de começar, isola-se na sala, ao lado da lareira, para fazer uma prece a Maria. Ele faz uma preleção a Karras, antes de entrarem no quarto, e trata de alertá-lo a não dar ouvidos ao demônio. Merrin já enfrentou Pazuzu anteriormente, um caso na África que durou meses e quase lhe custou a vida. O demônio é ardiloso, e sabe misturar verdade com mentira para mexer com o psicológico dos sacerdotes. Em um emocionante instante, antes de entrarem, Chris olha para os dois, cheia de angústia e expectativa, do corredor. Merrin lhe dá um pequeno, confiante sorriso, certo de que tudo acabará bem.

Regan os recebe com os insultos de costume, escarrando a gosma cor de abacate no rosto de Merrin. O frio ali dentro é tremendo. Diante do poder da oração, o demônio se enfurece e começa a insultar a mãe de Karras, serpenteando a língua muito fina em vai e vem. A pesada cama levita bem diante dos olhos dos padres. A influência do demônio vai além do quarto. Mesmo no banheiro, Merrin é atormentado por portas de armário batendo insistentemente. A cabeça da menina gira em um ângulo impossível de 360 graus, e o demônio novamente lança sua metralhadora verbal sobre Karras, afirmando que sua falha em cuidar da mãe efetivamente causou sua morte. A batalha entre Bem & Mal segue indefinida, ora com os padres em vantagem, ora o demônio fazendo uso de poderes telecinéticos para arremessar coisas sobre os dois. Karras e Merrin descansam nos degraus da escada, preparando-se para a segunda rodada do confronto. O coração do idoso está para falhar, mas ele engole suas pílulas a tempo. Quando Karras volta ao quarto sozinho, ao invés de enxergá-la, vê a velhinha. Atado à cama, o demônio fala com a voz da idosa, e pede para que a desamarre. Karras perde as estribeiras e berra que o demônio não é sua mãe. Merrin ordena que deixe o quarto para se recompor emocionalmente.

Quando Karras retorna para o quarto, determinado a acabar com o impasse, encontra Padre Merrin morto. Seu coração não suportou o confronto. Ao enxergar o desalento no rosto de Karras, o demônio dá risadinhas de felicidade. O jovem padre avança como um expresso contra o demônio, e os dois saem rolando pelo chão. Karras desafia Pazuzu a possui-lo e, com isso, o demônio deixa o corpo da menina para tentar tomar conta do padre. Escutamos o choro e os pedidos de Regan pela mãe, com sua voz de adolescente. As feições de Karras se contorcem, o demônio definitivamente fazendo do rapaz sua nova morada. Reunindo toda a fé, mais intensa do que nunca após as adversidades, Karras consegue ser mais forte que Pazuzu, investindo contra a janela e arremessando-se das alturas, levando consigo o espírito maligno. Em seu heroico sacrifício, Karras arranca o demônio daquela casa, mas sofre uma terrível queda, indo parar aos pés da escadaria. Chris e Kinderman entram afoitos no quarto. Apesar de encontrarem Regan aos prantos, a menina finalmente está bem. Kinderman assiste à comovente reunião entre mãe e filha, abraçadas no chão, absolvidas do pesadelo. Uma multidão se forma aos pés da escadaria, e escutamos as sirenes das ambulâncias. Padre Dyer chega a tempo de conversar com seu amigo agonizante. Cheio de dor, ele se ajoelha ao lado de Karras, apertando-lhe as mãos e o absolvendo de todos os pecados terrenos. Redimido de seus erros e tendo realizado um feito verdadeiramente valoroso, Karras morre em paz como herói.

É um novo dia. Regan não se recorda de muito, e Chris é grata por isso. Mãe e filha estão arrumando as malas para deixar a casa em Georgetown. Sharon despede-se de Chris, as duas abraçando-se emocionadas, ambas marcadas pelos eventos. Apesar de algumas cicatrizes de cortes, Regan voltou a ser a linda menina que conhecemos no início do filme, antes da possessão. Padre Dyer aparece por ali para se despedir. William Friedkin fala com muito carinho sobre a próxima cena: apesar de não se recordar do que aconteceu, ao enxergar o detalhe da clesma - a gola branca sobre o fundo preto - Regan associa a figura do Padre a algo positivo e inspirador, e mesmo sem conhecê-lo, dá-lhe um abraço muito, muito apertado, e um beijo, antes de entrar no carro. No comentário gravado para o lançamento em DVD, Friedkin discorre sobre o quanto aprecia o discreto, significativo instante, como se o subconsciente de Regan tivesse preservado a lembrança do heroísmo de Karras e do sacrifício para livrá-las da influência nefasta do demônio. Padre Dyer vai se afastando, assim como o automóvel que leva mãe & filha. Quem o encontra nas imediações é tenente Kinderman. Após tanta tristeza & dor, o filme termina em uma nota bem humorada, Kinderman oferecendo a Padre Dyer um ingresso extra para um filme em cartaz.

Baseado no romance homônimo de William Peter Blatty, a seu turno inspirado em uma história real (pesquisem o caso "Robbie Mannheim"), "O Exorcista" ocupa a posição n. 03 dos 100 Filmes Mais Apavorantes de Todos os Tempos do Bravo Channel ("Audition" também participa desta lista, porém mais abaixo), e primeiro lugar como o mais aterrorizante, na opinião da Entertainment Weekly. Indicado a 10 Oscar, inclusive Melhor Filme (o primeiro filme de Horror a merecer a honra), "O Exorcista" pode ser considerado simultaneamente bênção e maldição para os artistas envolvidos. Em que pese as pessoas apenas sonharem em ter seus nomes associados a algo tão grandioso, legado da Era de Ouro de Hollywood, nenhum dos atores ou membros da equipe conseguiu deixar a sombra projetada pelo seu estrondoso sucesso. William Friedkin, que apenas dois anos antes ganhara o Oscar de Melhor Diretor por "Operação França", jamais voltou a produzir algo de semelhante importância, embora tenha revisitado ocasionalmente o gênero e feito o maravilhoso "A Árvore da Maldição", que mesmo muito inferior a "O Exorcista", foi um dos melhores suspenses da década de 90. Se os amigos não viram "A Árvore da Maldição", de William Friedkin, procurem assistir.

Antes de "O Exorcista", Max von Sidow, o veterano que dá vida a Padre Merrin, construíra sua carreira em conceituados filmes do celebrado Ingmar Bergman. Ao longo das décadas, von Sidow tem se mantido um ator muito cobiçado, presença em filmes importantes e premiados. A durabilidade de von Sidow me faz pensar na carreira de outro veterano, Christopher Plummer. Tanto von Sidow como Plummer são sobreviventes, e atuam tanto em obras primas, quanto em coisas menores e irrelevantes. No esquema maior, todavia, ambos sacramentaram seus rostos no riquíssimo imaginário do cinema mundial. Em grande filmes, dão performances merecedoras de aclamação e Oscar, e em filmes simplórios e sofríveis de ação, como vilões, tratam o material com a mesma seriedade e dedicação reservadas `as obras primas. Plummer & von Sidow são autênticos profissionais!

Talvez mais lembrado pelo papel de Padre Karras, os olhos tristes de Jason Miller deixaram uma marca duradoura, compondo com perfeição o turbilhão interno e a culpa que corroem a alma de seu personagem. Mais atuante como dramaturgo, Miller ganhou um Pulitzer pela sua peça "That Championship Season", e dedicou a vida ao teatro. Miller nos deixou prematuramente em 2001, aos 62 anos, vítima de um infarto. Os desdobramentos da escolha de Friedkin por Miller, para o papel de Karras, muito nos revelam sobre a turbulenta relação do diretor com um outro ator muito querido que também já partiu, Roy Scheider. Vocês se lembrarão de Scheider pelo seu mais famoso papel, o do Xerife Brody, herói de "Tubarão", de Steven Spielberg, o filme que o lançou ao estrelato em 1975. Pois bem, os caminhos de Scheider & Friedkin se cruzaram pela primeira vez em 1971, quando o ator trabalhou ao lado de Gene Hackman em "Operação França", sob a batuta de Friedkin. O diretor se recorda do profissionalismo e dedicação de Scheider `as duríssimas filmagens. Os dois criaram o tipo de confiança profissional que se vê apenas raramente em uma indústria tão volátil. Dois anos mais tarde, quando Friedkin iniciava o processo de casting para a adaptação do romance de Blatty, "O Exorcista", Scheider pediu ao diretor a chance de interpretar Padre Karras, um papel que a maioria dos atores daria mesmo o braço pela oportunidade. Por razões que interessam apenas a Friedkin, Miller & Scheider, o diretor acabou escolhendo Jason Miller. Sentindo-se traído, Scheider nunca mais o perdoou. Alguns anos se passaram, e com o sucesso inimaginável de "Tubarão", em 1975, Scheider se tornou um dos ícones do quintessencial blockbuster americano. Friedkin & Scheider se encontrariam novamente em 1977, quando Friedkin o contratou para viver o protagonista de "Sorcerer", um ambicioso filme rodado nas selvas da República Dominicana, sobre quatro prisioneiros que resolvem transportar um caminhão com a carga cheia de nitroglicerina, através de uma selva hostil, em troca do perdão de suas penas. Quando Friedkin & Scheider se reencontraram para rodar o filme, em 1977, Roy se tornara um astro de estatura, e não tendo esquecido que Friedkin o preterira para "O Exorcista", ambos transformaram as filmagens em um verdadeiro inferno. Inimigos atrás das câmeras, o fato de o filme ter sido terminado é um milagre. Independente de quem tenha razão, "Sorcerer", conhecido no Brasil como "Comboio do Medo", foi aclamado pela crítica como a última grande obra-prima dos anos 70, e permanece o trabalho preferido do cineasta, aquele do qual mais se orgulha. Scheider e Friedkin se tornaram inimigos velados e deixaram de se falar, contudo três décadas mais tarde, quando Scheider nos deixou, levado por câncer de pele, Friedkin escreveu uma bonita homenagem para o amigo/rival, finalmente em paz com as águas passadas, grande o suficiente para enaltecer as características que tornaram Scheider um astro tão duradouro, e não deixando que suas diferenças fossem mais importantes do que os bons momentos que haviam tido juntos ao rodarem "Operação França".

A carreira de Linda Blair reflete a de um outro ator profundamente marcado pelo seu mais famoso papel, Ralph Macchio por "Karatê Kid". Apesar de indicada ao prêmio da Academia pelo seu poderoso desempenho, Linda Blair jamais teve a oportunidade de encarar a diversidade de papéis que teria provado seu incontestável valor e oxigenado a carreira com merecida longevidade. Ao mesmo tempo, Macchio criou uma performance tão icônica em "Karatê Kid", como o garoto franzino vítima de bullying que encontra seu lugar no mundo graças aos ensinamentos de um sábio mestre oriental, que não permitiu que diretores o vissem fazendo algo diferente. Por um tempo, a fórmula funcionou, mas então depois de três filmes, a franquia não teve mais para onde correr. Se ícones queridos como Blair, Macchio, Christopher Reeve & Patrick Swayze precisaram batalhar duramente para deixar a sombra projetada pelos papéis maravilhosos e imortais que os tornaram notórios, outros artistas tiveram a sorte de explorar a diversidade, mantendo-se em ativa na Indústria. Se Sylvester Stallone deve praticamente toda a carreira ao Rocky, conseguiu interpretar uma variedade de personagens queridos que o mantiveram em evidência por outras coisas que não apenas o Rocky. Não obstante os fãs da talentosa Linda Blair falarem sempre sobre a carreira ainda maior que poderia ter dito, acho que devemos ser gratos por ter feito parte de um dos melhores, se não o melhor, filme de Horror de todos os tempos. Linda Blair já conquistou seu merecido lugar ao Sol nesta importante história sobre o mistério da fé, e na vida são poucas as pessoas que realmente têm chance de realizar os sonhos.

Ellen Burstyn interpreta a mãe de Regan, Chris McNeil, mas sua performance cativante a torna mãe de todos nós. Seu amor emana tão sinceramente que o dilema que se segue à influência do demônio se torna ainda mais tocante. Somente uma atriz tão capaz quanto Burstyn poderia construir uma personagem tão rica em camadas que se explicitam a cada passagem. Em um papel anteriormente oferecido a Jane Fonda, Shirley MacLaine e Anne Bancroft, é praticamente impossível hoje imaginar outra artista que não Ellen Burstyn como a Chris McNeil. Seu trabalho em "O Exorcista" é um testamento às mães capazes de se meterem de pé diante de um trem expresso em nome do amor aos filhos. Ellen ainda contou com todo um arco para trabalhar sua personagem, com maestria vivendo a transformação de uma mulher durona que não acredita em Cristo para a mãe batalhadora que passa por uma significante transformação espiritual. Quase trinta anos mais tarde, Burstyn seria indicada ao Oscar por semelhante papel, em "Réquiem para um Sonho". Em "Réquiem", já velhinha, ela mais lembrava a mãe do Padre Karras em "O Exorcista", e sua personagem partiu meu coração. Em "Réquiem para um Sonho", Burstyn vivia uma senhora viúva e solitária cuja razão de viver girava em torno do filho, interpretado por Jared Leto. Ele era dependente de drogas, e ganhava a vida no tráfico. Quando não tinha dinheiro para heroína e crack, furtava a televisão da mãe para empenhá-la. Apesar de todos os horrores a que o rapaz a submetia, jamais deixara de crer que se tornaria um homem de valor. No filme, a Jennifer Connelly interpretava a namorada do rapaz, e a Ellen Burstyn dizia aos dois que sua maior felicidade seria vê-los se casando e prosperando e vivendo uma existência saudável e comum, juntos. Para quem conhece "Réquiem para um Sonho", a inocência dessa mamãe interpretada pela Ellen Burstyn e a forma como a vida arruína os doces e ingênuos sonhos que alimenta equivalem a uma facada no peito. Um dos filmes mais tristes concebíveis, eis mais um exemplo do brilhantismo dessa veterana, e o começo da carreira de sucesso de Jennifer Connelly, que apenas um ano após "Réquiem para um Sonho" seria lançada ao estrelato absoluto por "Uma Mente Brilhante".

A direção de Friedkin caiu como uma luva a essa história. Grandes cineastas tiveram seus nomes cotados para ocupar a cadeira de diretor, entre eles Peter Bogdanovich & John Boorman (que recusou a oferta, mas veio a dirigir "O Exorcista 2 O Herege", 4 anos mais tarde). Blatty disse que Friedkin foi o homem certo para o trabalho, pois ao assistir a "Operação França", soube que precisava da mesma energia cinética na adaptação para as telas do romance. Após o trabalho em "O Exorcista", Friedkin tentou recapturar a glória do passado com uma porção de projetos que não foram bem recebidos. Não obstante os triunfos e fracassos, examinando-se a filmografia de Friedkin, ninguém jamais poderá acusá-lo de jogar seguro. Friedkin sempre atacou os temas explosivos que outros cineastas de envergadura sequer ousaram cogitar sob temor de terem suas carreiras arruinadas. O corpo de sua obra assemelha-se ao de outro arrojado cineasta, Brian De Palma. Ambos surgiram na mesma época, começo dos anos 70, e consagraram-se como os melhores no gênero Suspense/Horror. O que minou suas longevidades foi exatamente o mesmo "problema", o destemor com que atacavam a polêmica e rodavam filmes consoante seus instintos, nenhuma importância dada aos problemas que poderiam causar. Evidentemente, houve momentos quando suas aspirações refletiram o que se espera de um blockbuster, tanto que ambos contam com sucessos comerciais absolutos de bilheteria (Friedkin com "O Exorcista", De Palma com o primeiro "Missão: Impossível"). No grande esquema, porém, nenhum dos dois preteriu a expressão artística de seus anseios e fobias em favor do status de "diretor padrão" de produções caríssimas de grandes estúdios. Eu costumo chamar "diretores padrão" de "diretores de filme de James Bond". Eles são capazes, talentosos, porém não causam dores de cabeça ou turbulência aos grandes estúdios. Há um script, uma fórmula pronta, o "diretor padrão" se enquadra, chega ao set, posiciona as câmeras, e vai assistir às filmagens sob um toldo tomando xícaras de chá, consultando o relógio de pulso para ver se está perto da hora de ir para casa. Eles são polidos, cooperativos e morrem de medo de expressar o que realmente há dentro de seus corações. Ao contrário, tanto De Palma quanto Friedkin são cães selvagens, poetas malditos, meteoros se desintegrando em plena atmosfera, consumidos pelo próprio talento e a necessidade de atear fogo às telas. Caras como De Palma, Cronenberg, Clive Barker, Friedkin, Argento... Eles não consultam relógios para ver se chegou a hora de ir para casa. Cada passo que esses caras dão guarda um propósito, um significado, seus motivos regidos pela paixão, pela emoção, às favas com a lógica ou o que o estúdio espera. Todos encararam o custo da independência artística, e pagaram preços caríssimos pela autonomia, que não devia parecer algo raro, mas sim natural a todo artista, seja qual for seu viés de expressão.

O legado de "O Exorcista" perdura nos filmes que hoje lotam as salas de cinema. M. Night Shyamalan aprendeu muito com a sensibilidade com que Friedkin tratou os personagens, e ao filmar "O Sexto Sentido", o sucesso que o projetou no cenário cinematográfico, procurou delinear seus personagens com um pouco do mesmo esmero, no caso a mãe sofredora do garotinho que vê gente morta, vivida por Toni Colette. A cisão familiar, tão sutilmente sugerida em "O Exorcista", também integra a dinâmica entre mãe e filho em "O Sexto Sentido". Parece que por trás de histórias tétricas sobre demônios e fantasmas há outras tantas sobre sentimentos mal resolvidos. A tábua Ouija como o canal de comunicação entre o mundo dos vivos & o dos mortos mereceu um filme só seu, com o recente, ótimo "Ouija O Jogo dos Espíritos". A influência de uma força satânica sobre as cabeças dos fracos e vulneráveis serviu de espinha dorsal para "Session 9", de Brad Anderson, o melhor filme da década de 2000, o mais próximo que qualquer cineasta esteve da perfeição alcançada por "O Exorcista". Parece-me que os melhores filmes conservaram consigo um pouco da fórmula `a toda prova bolada por Friedkin.

Assistindo novamente a "O Exorcista", agora mais velho, não pude deixar de concluir que após todos esses anos o filme tenha se tornado menos sobre o Horror, e mais sobre a poderosa mensagem. Apesar de inquietante, o Horror não consegue suplantar a homenagem que rende ao mistério da fé. Eu fui criado como católico, e se os amigos me perguntassem sobre crença, eu diria que apesar de não mais me considerar católico, eu definitivamente acredito em Deus e sou um defensor da Igreja. Mesmo com todas as justas ressalvas, a Igreja permanece o último bastião de defesa dos valores cristãos que vêm se perdendo. Pouquíssimas vezes antes se viu sob tamanho ataque como acontece nos dias de hoje, quase como uma propaganda velada para arruiná-la, insidiosa ao se dar na surdina, mas definitivamente presente. Prova da inteligência maquiavélica com que esse processo de eliminação se sucede, poucas pessoas sabem, mas recentemente, por exemplo, em Santa Mônica, Califórnia, foi aprovada uma lei que proíbe a exibição de presépios em espaços públicos, durante o Natal. No Brasil, escuta-se sobre a eliminação de qualquer referência ao termo "Deus" das cédulas. Há um movimento muito real de aniquilação da Fé, varrida da vida pública, um esforço para empurrá-la cada vez mais para o âmbito privado, onde seria mais simples exterminá-la, junto com a religião. Raríssimos são filmes que falam sobre todo o Bem que a Igreja fez. Lembro-me de uma entrevista de um cineasta independente, que rodou um filme sobre um herói alemão beatificado pela Igreja, Padre Rupert Mayer, conhecido como O Apóstolo de Munique. Durante a ascensão do nazismo na Alemanha, Rupert Mayer pregou ativamente contra as atrocidades cometidas por Hitler, e consequentemente foi vítima de toda sorte de perseguição. Rupert Mayer denunciou os inomináveis crimes que o regime cometia contra judeus, homossexuais,ciganos e estrangeiros, e sua coragem foi tamanha que os próprios nazistas não tiveram escolha a não ser libertá-lo, pois temiam que sua morte o tornasse um mártir. O diretor do filme se perguntava por que não foi outro cineasta, alguém mais capacitado e com maior orçamento, que contou antes tão importante história, e por que as pessoas vêm se esquecendo anestesiadas de todo o Bem, vindo da Igreja. Filmes como "O Exorcista" resgatam a fé na instituição, e quando disse que com a maturidade passei a vê-lo mais pela mensagem do que a "embalagem" de filme de Horror, foi porque à medida que envelhecemos e camadas de superficialidade vão ficando pelo caminho, passamos a enxergar o sacrifício que nossos pais fazem por nós, e portanto também o sacrifício de Karras pela mãe, inquebrantáveis atos de coragem e de fé. Maturidade muda bastante o jeito como enxergamos e nos recordamos das coisas. Foi Mike Tyson, recentemente, hoje praticamente esquecido, quem disse algo sobre a época em que estava no topo e demolia os adversários no ringue com malícia e nenhuma atenção dada aos danos que podia causar. Genuinamente arrependido, Tyson falava algo nas linhas de que naquele tempo não se importava em machucar as pessoas, "Mas naquela época, eu ainda não era Pai, então eu não tinha respeito algum pelo próximo". Quando eu o vi falando tão assertivamente, eu pensei, "Rapaz, a Vida tem batido muito nesse cara". Você só enxerga a vida tão claramente assim quando criança, e mais tarde, quando adulto, depois de apanhar muito. Quem assistiu ao filme com a faixa de comentários de William Friedkin se recordará de que o diretor afirma, ao final, que a maioria das pessoas que vê "O Exorcista" tira do filme a mesma mensagem. Se você crê que o mundo não passa de uma grande rocha estéril onde nada pode ser mais importante do que se dar bem `as custas dos outros, provavelmente o prognóstico de sua vida parecerá tão sombrio quanto a ideia; se você acredita que há uma regência de causa e consequência comandando nossas existências, que ainda vale à pena manter-se decente, e que só se pode compreender Deus por pedacinhos, cada um de nós uma determinada peça do quebra cabeça, então mesmo que o destino lance surpresas desagradáveis na sua cara, será possível contornar a tormenta, e aqui me recordo daquela cena em "Um Violinista no Telhado", de Norma Jewinson, quando o herói conversa com Deus, "Você pode tornar o caminho difícil, Deus, mas não o torne impossível". "O Exorcista" completa quarenta anos mais pertinente do que nunca, e saibam que ao alcançar os 100, quando não estivermos mais presentes, as pessoas ainda conseguirão enxergam além do Horror para compreendê-lo como um testamento `a capacidade do ser humano para o Bem, encapsulada na cena em que Karras consegue dobrar o demônio e derrotá-lo com seu sacrifício pessoal. Para mim, a referida cena - Karras se lançando pela janela para salvar a garota e se redimir da culpa, as sirenes e as pessoas aos pés da escadaria após a queda, Padre Dyer apertando a mão do amigo para absolvê-lo dos pecados e libertar sua alma - equivale, em termos simbólicos, a outros instantes do cinema que viverão para sempre, Billy Casper sublimando os horrores da infância ao treinar seu pequeno falcão em "Kes", de Ken Loach, ou o décimo quarto round de "Rocky Um Lutador", quando Rocky, que jamais tivera mesmo a chance de ganhar, consegue levar o Campeão Mundial ao décimo quarto round em uma luta disputadíssima, superando todas as expectativas, até que o Apollo o derruba com o gancho. Ele se afasta, braços erguidos em vitória, satisfeito porque está tudo acabado. Mickey, o treinador, grita para Rocky "Deitado, deitado, fique deitado!". Rocky rasteja agonizante até `as cordas para se apoiar e conseguir levantar a tempo de vencer a contagem. Apollo Creed se vira e quando assiste a tudo aquilo, Rocky se erguendo para continuar, abaixa os braços, surpreso, incrédulo que o adversário não se dê por vencido. Rocky acena para Apollo, como que dizendo "Venha me pegar", e Apollo sacode a cabeça, seu olhar abismado exprimindo "Esse filho da puta não vai se render!" e também uma porção de outras coisas, como frustração, medo, respeito, admiração, tudo simultaneamente. Significativamente, a imagem que abre "Rocky Um Lutador" é uma de Cristo com os braços abertos, no pequeno clube onde Rocky aparece lutando nos tempos de pobreza. A imagem não está ali por acaso. O processo pelo qual os personagens passam, assim como os de "O Exorcista", é por um de redenção, desde Rocky - o pugilista medíocre que todos julgavam um zero `a esquerda, mas que naqueles 15 rounds contra o Campeão Mundial mostra algo que ninguém conhecia sobre seu caráter final - a Mickey - o treinador que antes só pensava em reviver a glória do passado através da chance de Rocky quando Apollo o escolhe aleatoriamente para uma luta de exibição, mas que naquele instante do "Deitado, deitado, fique deitado!" também encontra a redenção, ao transcender a necessidade de fama e reconhecimento, rejeitando a chance de glória e escolhendo o bem-estar de Rocky, a quem Mickey vem a amar como filho, suplicando que desista para não se machucar ainda mais. Esses 3 filmes, "Rocky Um Lutador", "Kes" & "O Exorcista" não poderiam parecer mais diferentes, mas acreditem, no final, são a mesma coisa - Karras se jogando pela janela para derrotar Pazuzu, Rocky se levantando e chamando Apollo para continuar, Billy Casper com seu falcãozinho. No comentário, por inúmeras vezes, William Friedkin repete "Esse meu filme é sobre o mistério da fé". E ele estava coberto de razão.

sábado, 31 de janeiro de 2015

"As Above So Below" (John Erick Dowdle, 2014) Dentro de catacumbas logo abaixo de Paris repousa o segredo para a vida eterna.

Scarlett Marlowe (Perdita Weeks) é uma ambiciosa arqueologista movida pela missão pessoal de reparar o legado do pai, um respeitado pesquisador que dedicou a vida para encontrar a lendária Pedra Filosofal, tendo se suicidado ao fracassar. Rezam os escritos que a Pedra Filosofal é uma substância capaz de transformar metais em ouro, bem como conceder vida eterna a quem dela se apoderar. Na Alquimia, a Pedra Filosofal representa o objetivo maior entre os estudiosos, por séculos consumindo as vidas dos aventureiros obcecados em sintetizá-la. Conforme registros históricos, somente um homem, um francês chamado Nicolas Flamel, a teria formulado e alcançado a imortalidade. No início do filme, acompanhamos a corajosa Scarlett entrando clandestinamente na fronteira do Irã, determinada a explorar um complexo de túneis onde estaria a Pedra de Roseta, um fragmento em rocha essencial para a tradução dos símbolos mais complexos da Alquimia Clássica. Com a ajuda de Reza, um morador da região, ela tem acesso a uma passagem secreta para o complexo de túneis das escavações, justamente às vésperas de o governo iraniano pretender implodir o lugar.

Scarlettt consegue encontrar parte da Pedra de Roseta, onde restam traduzidos os símbolos da Alquimia. Alarmes de sirenes os alertam para a iminente implosão dos túneis, e vez que o governo iraniano desconhece a presença dos dois intrusos, Scarlett e Reza correm graves riscos permanecendo no local por muito tempo. O formato da estrutura - grafada em aramaico associado aos símbolos da Alquimia - os deixa assustados, uma estátua em tamanho real de um touro. Reza insiste que o tempo se esgotou, e terminarão soterrados na caverna se não voltarem de imediato pela passagem. Scarlett realiza filmagens da estátua do touro, de modo a registrar todo aquele "compêndio" em aramaico para posterior análise, e por pouco escapa com vida do complexo, no exato minuto em que a passagem acaba soterrada pela explosão das dinamites. Inexplicavelmente, durante a comoção, Scarlett enxerga o corpo de um homem oscilando na forca, uma referência a seu pai suicida. Estaria enxergando coisas?Prova do suspense por vir, o diretor John Erick Dowdle abre o filme em grande tensão. A combinação de lanternas vermelhas predominantes ao longo das passagens na caverna, a busca de Scarlett pela saída a tempo e os avisos intermitentes pelo sistema de alarme do complexo durante a contagem para a implosão os colocará roendo as unhas!

O filme corta para um sítio de escavações em Paris. Scarlett dá um depoimento para a câmera, quando temos a oportunidade de conhecer melhor suas impressionantes qualificações - entre doutorados em Arqueologia & Simbologia, o domínio de quatro línguas faladas e duas mortas e a faixa preta em artes marciais - e de onde vem a vocação para a aventura. Desde criança, escutava as fantásticas histórias contadas pelo pai sobre Nicolas Flamel e sua Pedra Filosofal, e agora mulher adulta, pretende suceder onde o pai fracassou. Acompanhada pelo operador de câmera, Scarlett realiza um tour pela pequena rua da residência onde Flamel teria sintetizado a Pedra Filosofal e alcançado vida eterna. A arqueologista explica que após a morte do alquimista, ladrões haviam vilipendiado o túmulo em busca da substância mágica, tendo encontrado somente um sepulcro vazio, o que definitivamente fortaleceu a aura de mistério em torno de Flamel e a Pedra Filosofal. No cemitério de Paris, Scarlett nos conduz ao mausoléu do Alquimista para exibir a placa que o próprio preparara para si quando em vida. Há símbolos muito distintos que estudiosos de sua obra jamais conseguiram compreender. Essa revelação faz um link com a sequência inicial, pois deduzimos que ao filmar a Pedra de Roseta nas escavações do Irã, Scarlett buscava por um "dicionário" para pôr fim ao mistério do "recado" deixado por Flamel. Ela crê que os símbolos tragam um "passo a passo" de como mapear a localização da Pedra Filosofal.

Scarlett sabe que não conseguirá atingir seus objetivos sozinha. Ela precisa do suporte do velho amigo George (Ben Feldman), ainda ressentido pela "última aventura", que acabou lhe rendendo uma estadia em uma prisão turca. A moça o encontra na catedral de Paris. George tem como hobby invadir sorrateiramente as mais famosas igrejas europeias apenas pela satisfação pessoal de consertar suas torres de sinos, e depois, do alto, testemunhar o encanto das pessoas quando os mesmos voltam a soar ao meio dia. Quando Scarlett o rastreia até a essa catedral em particular, George acabou de finalizar mais uma obra. Eles saem pelo paço da torre, e da beirada, assistem à alegria dos transeuntes ao sabor da oscilação dos sinos, de volta à ativa depois de 284 anos parados. Diante da insistência da amiga, George topa ajudá-la a traduzir a placa de Nicolas Flamel. Com a ajuda de George, Scarlett tira a pesada placa do suporte, e fazendo uso de produtos químicos próprios, livra a superfície de uma película invisível, o que acaba por lhes revelar um texto. George fotografa a pedra, para que possam proceder ao trabalho de tradução longe dali, mais tranquilamente.

Scarlett e George traduzem o texto, e tentam fazer sentido da confusão. Depois de discutirem diferentes interpretações, concordam que já que os alquimistas acreditavam que 741 era o número do Diabo, e que a Pedra Filosofal estaria a meio caminho entre Céu, Terra e Inferno, ou seja, a uma distância de 370,5 pés abaixo da terra, deveriam se preparar para "cavar". Paris oferece as condições ideais para se penetrar 370,5 pés abaixo da terra graças às catacumbas, um labirinto de mais de 200 quilômetros abaixo da "Cidade das Luzes", guardando os restos mortais de seis milhões de cadáveres. A 370,5 pés abaixo do túmulo de Flamel, portanto, repousa intocada a Pedra Filosofal.

Scarlett e George justapõem dois mapas: o da cidade, onde fixam o túmulo de Nicolas Flamel no cemitério de Paris, e o do complexo de catacumbas. A justaposição indica que os túneis chegam muito perto, mas não passam exatamente sob o epicentro desejado, o túmulo de Flamel. Ao repassar o histórico sísmico daquela região metropolitana, alvo de 3 colapsos registrados ao longo dos últimos séculos, e que no entanto manteve Paris firme e forte acima, o rapaz conclui que deva existir uma câmara oculta não prevista por mapa algum. Em uma "missão de reconhecimento", Scarlett e George visitam o trecho das catacumbas acessível aos turistas, quando a historiadora lhes conta mais sobre a origem dos túneis. Foi no começo do século XVIII que por questão de saúde pública os cadáveres precisaram ser desenterrados do velho cemitério e relocados para as catacumbas. O passeio é assustador, paredes inteiras ornamentadas por crânios humanos. Scarlett comunica a seu operador de câmera, Benji, que precisam encontrar um caminho para a área fora dos limites turísticos. Um rapaz os aconselha a procurarem por um cara de nome Papillon em um clube parisiense chamado La Vitrine. Scarlett momentaneamente se distrai quando a guia pede que não se afaste do grupo, e ao olhar para trás, não encontra mais sinal do misterioso estranho.

Naquela mesma noite, Scarlett, George e Benji prestam uma visita ao Le Vitrine, uma casa noturna às margens do Rio Sena. Na entrada, Benji tem a atenção capturada por uma moça de olhar muito penetrante que chega a desconcertá-lo. Ele não tem tempo para lhe dirigir a palavra, pois a estranha deixa a Le Vitrine a passos rápidos. Ao perguntar por Papillon, o grupo é dirigido ao lounge do nightclub, onde encontra o único homem conhecedor de quase todos os segredos das catacumbas. Inicialmente, Papillon opõe alguma resistência, declarando não ser nenhum guia turístico. Scarlett retruca perguntando-lhe se parecem os turistas usuais. Scarlett cita a câmara oculta, e desperta o interesse do explorador ao falar sobre as riquezas que por ali se encontrariam preservadas.

Papillon reúne o time habitual, e na manhã seguinte, partem para as imediações que dão acesso `as catacumbas. Uma série de detalhes merece atenção, desde os riscos de contato com morcegos `a falta d'água. Debaixo da terra, qualquer deslize pode levar `a morte. Com o senso de dever cumprido, George se despede de Scarlett e lhe deseja sorte, mas a moça insiste que os acompanhe. `A margem do túnel de acesso, o grupo veste as lanternas frontais. Subitamente, os guardas chegam e os surpreendem. Sem opção, George, que não queria se envolver, acaba tendo de seguir os demais para dentro das catacumbas, para não ser preso. Após o entrevero, George agora definitivamente faz parte de uma jornada rumo ao desconhecido. Em um discreto momento entre Benji e Scarlett, ela explica ao operador de câmera que o rapaz evita cavernas em razão de um trauma de infância: quando pequeno, seu irmãozinho se afogou em uma gruta, deixando-o marcado. Pessoas aversas a lugares apertados não se divertirão. A partir desse ponto, "As Above So Below" se passa exclusivamente dentro de passagens muito estreitas, grutas muito apertadas. A sensação de sufoco é muito pesada, e assistindo ao produto final, não temos como deixar de imaginar as dificuldades enfrentadas pelo diretor John Erick Dowdle e seus atores para rodar o filme.

Os primeiros túneis revelam pichações, algumas feitas pelo próprio Papillon, registrando sua passagem por ali quando de outras incursões. Apesar de arriscado, aquele ponto do labirinto ainda é um lugar visitado por exploradores experientes, ou seja, em que pese o aperto de corredores e o desconforto de se caminhar por poças sujas, ainda há a possibilidade de se voltar pela passagem e encarar a Polícia. Movidos pela missão de encontrar a Pedra Filosofal, todavia, a turma segue com a descida. No caminho, em uma das grutas, encontra uma seita misteriosa orando reservadamente. Depois de um prolongado tempo de descida, o grupo chega a uma encruzilhada, onde enxerga diante de si dois caminhos distintos que em tese desembocariam no mesmo lugar, um deles aprovado por Papillon, outro preferido por Scarlett. Papillon crê que o túnel sugerido pela moça seja uma péssima aposta, declarando que outras pessoas que se meteram pela passagem jamais foram vistas novamente. Ele cita o caso de "La Taupe", um ex-integrante da equipe que resolveu descer sozinho pela rota alternativa, apenas para desaparecer misteriosamente. O discurso de Papillon tem um forte efeito sobre os demais, e acaba acordado que seguirão mesmo pela rota mais longa, todavia mais segura.

A rota segura acaba por se revelar problemática. De uma estranha maneira, o grupo liderado por Papillon não a encontra do jeito que a haviam explorado antes, por mais que haja grafites com a assinatura do explorador nas paredes. Ele jura que não se recorda do túnel com aquela configuração. Para deixá-los ainda mais confusos, chamados insistentes de um telefone passam a ecoar pelos túneis. Papillon afirma que há cinquenta anos a Prefeitura retirou as linhas telefônicas do subterrâneo, e portanto não há explicação lógica para o fenômeno. Mais adiante, George aponta para Scarlett a indicação esculpida nos blocos, "Barriere d'enfer", o ponto onde os prédios desabaram e centenas de pessoas caíram para suas mortes no século passado. As surpresas inusitadas apenas começaram, porque um pouco mais adiante, o grupo encontra um piano bem no meio da cripta. Alguém chega a sugerir uma explicação lógica, racionalizando que seria um piano pertencente a um dos prédios, que acabou permanecendo ali. George se surpreende com a semelhança entre o piano e aquele onde ele e o irmão costumavam brincar quando crianças, mesmo que não soubessem tocar. George menciona uma determinada tecla que não funcionava, e então dá conta de que assim como o piano de sua recordação, aquele também traz a mesma tecla falha.

Seguindo os chamados do telefone, assim como ocorreu com o piano na cripta anterior, o grupo encontra um aparelho em outro ponto do complexo. Ao atender, Scarlett choca-se ao escutar a voz do falecido pai lhe perguntando por que deixaram de conversar. Quem eles encontram os observando, ali parado na escuridão, é "La Taupe", o desaparecido membro do time de exploração, tido como morto pelos demais. "La Taupe" avisa que o grupo cometeu um erro ao se aventurar pelas catacumbas, e acusa Papillon de jamais ter vindo procurá-lo. Antes que possam pedir mais explicações, os exploradores precisam seguir "La Taupe" de imediato, pois o instável túnel começa a trincar. "La Taupe" afirma algo enigmático, "A única saída é para baixo". "La Taupe" lhes mostra um poço muito profundo entre os sistemas leste e sul do complexo, que dá para o lugar onde Scarlett calculou existir a câmara oculta. Só ao descer pelas cordas os exploradores dão pela real profundidade. Durante a descida, Benji quase despenca, porém felizmente só machuca a mão.

Scarlett e os rapazes chegam ao ponto onde deveria existir a câmara oculta. Inicialmente confusos ao encontrar um beco sem saída, as dúvidas logo se dissipam quando Scarlett traduz os sinais grafados nas paredes. George e a amiga creem que a câmara se encontre, isso sim, escondida por trás de uma parede falsa, no mesmo estilo que as civilizações antigas faziam com os túmulos dos faraós nas pirâmides. O texto soa como um teste de raciocínio lógico, algo que somente duas pessoas altamente estudiosas teriam como decifrar. Scarlett e George unem forças para solucionar o teste, e chegando a uma resposta plausível, arrancam um determinado bloco que acaba por revelar uma passagem secreta para a cripta de mais de 500 anos. Em uma impressionante revelação, deparam-se com o corpo de um cavaleiro templário, preservado ao longo dos séculos, deitado sobre o mausoléu. Scarlett pede que desliguem as lanternas, o que lhes permite enxergar uma superfície translucida do outro lado da gruta, acessível por um lago interno. Conforme esperado, a passagem dá para uma cela cheia de barras de ouro e a pedra filosofal, um objeto semelhante a um amuleto. Tão encantada com a descoberta, Scarlett não percebe quando os demais exploradores começam a saquear todo o ouro que conseguem carregar. Ela ainda exclama para que não toquem no tesouro, mas já é tarde. A parte superior da gruta desmorona sobre suas cabeças.

Surpreendente prova do poder da pedra filosofal, Scarlett esfrega o amuleto nas palmas das mãos e depois aperta o braço machucado de uma das moças participantes da equipe. Os ferimentos imediatamente cicatrizam. Embora tenham supostamente encontrado a pedra filosofal, o desmoronamento os obriga a procurarem por uma saída alternativa. De fato, existe tal passagem, onde restam declinados trechos próprios da Alquimia. "Assim no Céu como abaixo" significa que embora desejem voltar para a superfície de Paris, a única porta existente encontra-se a seus pés. Os exploradores descobrem mais um poço, que os leva ainda mais pelas entranhas da terra. George interpreta o aviso na entrada, "Abandone toda a esperança, vós que entrais aqui". De acordo com a mitologia, a mensagem está escrita na entrada do inferno. Ao adentrar pela "passagem", a garota membro da equipe é atacada e morta, a cabeça repetidamente batida contra a rocha por "La Taupe" (ou seu fantasma). No caminho para as profundezas, o grupo segue descendo por infindáveis poços. Benji é o próximo a morrer, empurrado em um buraco pela moça misteriosa que nos lembramos de ter visto no início, quando Scarlett, George e Benji visitaram o La Vitrine. À medida que exploram o complexo, compreendem que o lugar usa seus segredos mais inconfessáveis para desestabilizá-los. O rapaz que sugeriu a Scarlett o nome de Papillon como candidato a guia ressurge. Aprendemos que é um fantasma do passado de Papillon, um garoto que morreu tragicamente dentro de um carro em chamas, acidente causado não intencionalmente pelo guia. Nós o vemos ardendo dentro de um carro envolto em chamas, e ao se deparar com a surreal cena, Papillon grita que a culpa não foi sua. O guia é arrastado por sombras demoníacas que o carregam para dentro do fogo enquanto protesta inocência. George é atormentado por aparições do irmãozinho afogado, mas Scarlett procura lembrá-lo de que as catacumbas estão usando seus traumas para mexer com a cabeça.

A esta altura, só restam três pessoas nas catacumbas - George, Scarlett e Zed, o "Segundo em Comando" de Papillon. Com o cerco das trevas se fechando, George se abre para Scarlett e lhe confessa que a semana que passou a seu lado na Turquia foi a melhor de sua vida. O labirinto não custa a afetar a cabeça de Zed também. Na sequência mais apavorante, o trio se depara com uma criança metida em capuz, sentada em uma cadeira. Zed a reconhece como um filho indesejado: no passado, engravidara a namorada, porém despreparado para as responsabilidades, preferira deixar o bebê sob os cuidados da mãe, deixando ambos para trás. Agora, o remorso voltou para consumi-lo. Gárgulas assustadoras ganham vida, uma delas mordendo George no pescoço, a ponto de tirar carne. Seriamente ferido, George precisa do milagre da Pedra Filosofal. Ao usar o amuleto em vão, Scarlett percebe que foi vítima de um ardil. Ela apanhou um amuleto falso, não a verdadeira Pedra Filosofal. Ela suplica que Zed cuide do companheiro enquanto retorna pelo labirinto, para a cripta original, de onde pretende encontrar a verdadeira Pedra e assim salvá-lo. A sequência do retorno de Scarlett pelo labirinto rivaliza com outro excelente filme de John Erick Dowdle, "Quarentena", sobre o vírus da Raiva em um condomínio fechado tornando os moradores zumbis. O puro desespero também merece os mesmos elogios que o segmento "Safe Heaven", de "V/H/S 2" (quem assistiu ao filme ou leu minha resenha a respeito entenderá do que estou falando). O labirinto canhoneia a exploradora com imagens sinistras, a mais bizarra quando encontra uma figura balançando sob a corda, e ao retirar o capuz pensando tratar-se do pai vê a si mesma. Ela acaba encontrando a verdadeira Pedra Filosofal através do reflexo de um espelho, e cumprindo o intento do desafio - rezam os símbolos inscritos na tumba "Pela retificação, encontrarás a pedra escondida" - finalmente fazendo as pazes com o passado ao se deparar com o corpo do pai e lhe pedindo desculpas por não ter atendido o telefone na noite em que se suicidou, tornando-se legítima possuidora da Pedra Filosofal.

Scarlett consegue voltar pelo labirinto ao ponto onde deixou George. Ela o beija apaixonadamente, e repentinamente todo o sangue e as feridas desaparecem. Há uma única saída somente, um profundíssimo poço que parece não ter fim. Scarlett explica que os três precisarão saltar, mas antes precisam se perdoar pelos eventos do passado. Ela revela a George que o rapaz só consegue enxergar o irmãozinho porque algo na morte do mesmo o atormenta, e agora precisa confessar o que exatamente aconteceu para efetivamente se libertar. "Quando meu irmão ficou com a perna presa, eu prometi que voltaria com ajuda, mas me perdi no caminho e ele se afogou", George confessa, cheio de dor. Zed desabafa sobre o filho abandonado e o quanto se arrepende por jamais ter sido o pai que o garotinho precisou. Libertados pelo poder da verdade, saltam no poço, uma queda vertiginosa e imprevisível. Milagrosamente, eles saem por um bueiro nas calçadas de Paris, vivos e gratos pela Segunda Chance. Depois de todo o Horror, só a verdade foi capaz de tirá-los das trevas. O trio se abraça emocionado, cada um com uma longa missão de reparar os equívocos do passado pela frente.

John Erick Dowdle, diretor de "Poughkeepsie Tapes", mantém vivo o estilo "found footage" com mais uma inventiva, original obra, um mix curioso de intriga internacional com tonalidades sobrenaturais. Prova da maturidade de Dowdle, "As Above So Below" mostra um cineasta bem mais à vontade e menos afoito, seguro de si e do potencial do intrigante roteiro escrito pelo próprio, que em uma única oportunidade costura elementos de grandes sucessos tão queridos, como "Os Caçadores da Arca Perdida" & "O Código Da Vinci" em um cenário semelhante ao de "O Exorcista". As pessoas apreciadoras de envolventes intrigas em torno de releituras de fatos históricos se fascinarão com essa interessante fantasia sobre a busca da Pedra Filosofal. Entusiasta confesso do estilo "found footage", Erick Dowdle, que vinha aperfeiçoando a técnica com "Poughkeepsie Tapes" & "Quarentena", realiza seu melhor trabalho até agora dentro do sistema dos grandes estúdios. Apesar de inferior a "Poughkeepsie Tapes", seu primeiro e mais impressionante filme, "As Above so Below" disputa acirradamente o "primeiro lugar de 2014" com outra obra "found footage" igualmente relevante, o fantástico "Afflicted", de Clif Prowse & Derek Lee. Não apenas rodados conforme a proposta "found footage", ambos os filmes também se parecem em termos de ambientação, com protagonistas aventurando-se em tramas internacionais cheias de mistério; "Afflicted", com seus dois melhores amigos viajando pela Europa até um deles ser mordido e virar vampiro, "As Above so Below" com a heroína na busca pela Pedra Filosofal que a leva de cavernas no Irã aos encantos da eletrizante "Cidade das Luzes", e depois `as catacumbas. 

A atriz britânica Perdita Weeks dá vida à protagonista com a entusiasmada energia de quem reconhece como um papel poderá alavancar sua promissora carreira. Mais conhecida pela performance no aclamado "The Tudors", Perdita Weeks recebeu de John Erick Dowdle seu primeiro papel de envergadura na grande tela. Aqui lembrando-me uma jovem "Katherine Heigl britânica", Perdita oferece uma performance digna de nota ao fugir de armadilhas fáceis, interpretando a personagem com modos mais suaves, agradáveis e elegantes. Em filmes parecidos, onde as rédeas acabam nas mãos de personagens femininas, os diretores tendem a construi-las como super heroínas capazes de empunhar armas de fogo ou realizar movimentos acrobáticos em cenas de luta irreais. O clichê torna-se cansativo. O diretor John Erick Dowdle e sua atriz principal evitaram a cilada, com uma protagonista que jamais soa artificial. Ao contrário, a doçura com que Perdita dá vida à Scarlett talvez represente a verdadeira "Pedra Filosofal" de Dowdle, que definitivamente contou com a pessoa e o desempenho corretos para capitanear a produção.

John Erick Dowdle ganhou uma chance no sistema dos blockbusters graças a seu inquestionável talento. Apesar de pouco visto (até hoje inédito em DVD), seu "Poughkeepsie Tapes" se tornou a lenda sobre a qual fãs de horror cochichavam. Ironicamente, foi esse pequeno filme de horror "maldito" de 2007 que despertou a atenção de gente como M. Night Shyamalan, que o escolheu a dedo para rodar "Devil". Mesmo se tratando de sistemas de trabalho tão distintos - filmar uma produção independente diverge completamente de realizar um blockbuster para a Universal -  há algo de "Poughkeepsie Tapes" que sobrevive nas incursões de Dowdle pelo cinema comercial, como "Quarentena", "Devil" e "As Above so Below", talvez o amor do diretor por clássicos do passado, impresso em discretos pequenos instantes de seus filmes, como quando em "Poughkeepsie Tapes" a melhor amiga de Cheryl Dempsey diz algo nas linhas de que "foi difícil me recordar da garota que eu amava e conhecer a mulher que voltou", que nos faz pensar em quão bons e intrigantes eram os suspenses de nossa infância, e constatar a maestria com que Dowdle sabe endereçar semelhantes sentimentos. Não apenas com suas raízes cinematográficas fincadas firmemente no fértil terreno das décadas de 70&80, quando Cronenberg, Barker, De Palma e Argento eram Reis, Dowdle se expressa com um rebuscado sabor a mais, provavelmente a melancolia tão inerente a quem ama o gênero.

Ao situar boa parte da história de "As Above so Below" no labirinto abaixo de Paris, John Erick Dowdle parece prestar uma homenagem a um clássico muito querido do passado, "Hellbound: Hellraiser 2". Assistindo ao sufoco vivido pela turma liderada por Scarlett, recordei-me da violentíssima última hora de "Hellbound: Hellraiser 2", quando as protagonistas exploram o domínio de Leviathan, o inferno descrito como um estéril, cinzento labirinto, um "coliseu infinito" perenemente mergulhado nas sombras, sobre o qual paira girando o Leviathan, uma figura gigantesca e indiferente em forma de tetraedro. Embora haja mais espaço para fantasia e imaginação no filme dirigido por Tony Randel e produzido por Clive Barker, "As Above so Below" também recaptura a claustrofobia de se penetrar em um reino onde regras de Lógica e Física não se aplicam. Em ambos os filmes, ainda mais em "Hellbound: Hellraiser 2", pesando sobre as imagens delirantes, um clima tétrico e pesado acompanha os personagens ao longo da "descida". Não obstante o diretor Dowdle mirar nos blockbusters mais clássicos estilo "Os Caçadores da Arca Perdida", "As Above so Below" quase ensaia o impacto de "Hellbound: Hellraiser 2". Mesmo quase trinta anos após o lançamento, todavia, a crueldade e a força de suas imagens simultaneamente gráficas e erotizadas ainda estão para ser rivalizadas, e talvez ciente disso, Dowdle nem tentou, limitando-se a discretamente a acenar com o chapéu para um dos clássicos que definitivamente fizeram parte de sua formação de cineasta.

O "rebuscado sabor a mais" a que me refiro alguns parágrafos acima se destaca na primeira metade de "As Above so Below", antes da descida às catacumbas. Como poucos diretores conseguem, Dowdle aproveita ao máximo as oportunidades que a ambientação da história permite. Há algo no Velho Continente, em cidades tão românticas quanto Paris, que faz o gênero se ver "em casa" novamente. Não só dos antigos filmes de Dario Argento me recordei, como também experimentei um tipo de eletricidade que revisito todas as vezes que leio a coletânea de Clive Barker "Books of Blood". De certa forma, "La Femme du Vème" foi outro suspense recente que também reuniu as qualidades que o aproximaram das tintas do mestre britânico do Horror. As catacumbas podem parecer o último lugar que você gostaria de visitar se fosse fazer turismo em Paris, mas então por que virou ponto turístico a ponto de atrair backpackers de todos os cantos do mundo?Existe um estranho apelo romântico na coexistência de um lugar que há séculos serviu de morada final para as pessoas vitimadas pela Peste & as delicadas ruas com pequenos, antiquíssimos prédios, seus cafés e tabacarias, a ideia da Morte convivendo harmoniosamente com a criativa boemia artística e os encantos da "Cidade das Luzes" acima.

Os dois contos que mais têm sua linguagem traduzida para celuloide são "The Life of Death" & "New Murders in the Rue Morgue". As catacumbas como pano de fundo remetem a "The Life of Death", uma gótica história sobre uma mulher aos seus 30 e tantos chamada Elaine, que recentemente teve o útero extirpado para livrar-se de um tumor. Profundamente deprimida, evita a companhia dos colegas de trabalho e rechaça as investidas do ex-noivo, que deseja reatar. Quando o tumor no útero havia sido descoberto, ele terminou o relacionamento, justificando-se no desejo de ser pai e a impossibilidade de realizar o sonho agora que o problema no útero a impediria de gerar vida. Apesar de arrependido, seu remorso não basta para demovê-la do ressentimento. Mesmo livre do câncer, Elaine se mantém distante e reservada, e os colegas constantemente a flagram de olhos marejados. Uma manhã, ela é atraída pelo rumor de trabalho da Prefeitura, demolindo uma antiga igreja de uma pracinha, no centro de Londres. Curiosa, Elaine visita o cenário e conhece um cavalheiro muito educado, que lhe conta que ali se encontra para visitar o lugar por uma última vez, pois logo a Prefeitura interditará a praça por uma questão de saúde pública: os trabalhos de demolição instabilizaram a fundação, e abaixo da igreja, há catacumbas usadas na época da Peste Negra para guardar os mortos. Naquela noite, intrigada com a conversa sobre catacumbas, Elaine retorna à pracinha, e tirando proveito da distração dos funcionários, ultrapassa as faixas e desce até às mesmas. Ao enxergar os restos fossilizados daquela gente, descobre que a Morte não é tão chocante assim. Inesperadamente, após a experiência, retorna para casa revigorada e até mesmo feliz. Ela redescobre o prazer de viver, permite aflorar a sexualidade, e vez ou outra, ao regressar `a pracinha, encontra seu admirador, com quem segue conversando e paquerando docemente. Enquanto Elaine volta à vida com muita saúde e disposição, os colegas do trabalho passam a cair, um a um, vitimados por uma estranha doença semelhante à Peste. Barker jamais responde a questão proposta, mas nos guia sutilmente à conclusão de que o cavalheiro galanteador não seria nada menos do que A Morte. Vários elementos da escrita de Clive Barker me deixam boquiaberto, talvez os mais impressionantes a habilidade para sustentar suspense a ponto de tornar duas mídias tão distintas - literatura & cinema - praticamente a mesma coisa, a naturalidade com que mescla o absolutamente fantástico aos dramas banais do cotidiano, e a maneira apaixonante com que escreve personagens femininas. Barker afasta as fórmulas fáceis, com seu jeito de escrever mulheres inesquecíveis, jamais vulgares, sempre contradições vivas. Ao ler "The Life of Death", praticamente vi passar diante de meus olhos o "filme" que Barker estava "rodando". Enxerguei nitidamente a atriz Naomi Watts como "Elaine Ryder", a interação desajeitada mas contraditoriamente confortável e asseguradora entre a Elaine e o cavalheiro, quando se conhecem pela primeira vez, e o desenrolar da trama, a cada página mais intrigante, mais atmosférica. Não apenas o espírito melancólico evocado por Dowdle ao filmar "As Above so Below" juntou as peças na minha cabeça, como também a questão das catacumbas, tão proeminentes em ambas as histórias, uma escrita & a outra contada por imagens em movimento. A influência de Edgar Allan Poe sobre o imaginário de Clive Barker jamais foi questionada pelos estudiosos de sua obra; em "New Murders in the Rue Morgue", o escritor britânico escancara a admiração pelo artista do macabro que o antecedeu readaptando um de seus mais conhecidos textos, "Os Assassinatos na Galle Morgue", sobre um detetive que investiga uma série de bizarros assassinatos a golpes de navalha, e vem a descobrir que o maníaco era um pobre e confuso gorila, que perdera o controle ao encontrar uma navalha. Em "New Murders in the Rue Morgue", Barker contava a história de três amigos - dois homens e uma mulher - que haviam passado a melhor época de suas vidas, a juventude, na Paris pré-guerra, e agora se reencontravam na "Cidade das Luzes" muitas décadas após as férias que tinham mudado suas vidas, em circunstâncias sombrias. Lewis, o protagonista, jamais deixara se apagar a centelha do amor por Catherine, irmã de Philippe. Muitos anos mais tarde, agora aos 73 anos, Lewis é procurado por Catherine. Philippe foi preso, acusado de estraçalhar a golpes de navalha a jovem amante. Ao mergulhar fundo nas investigações e escutar histórias sobre um cavalheiro encorpado e monossilábico que fede à excesso de perfume, Lewis descortina lentamente a horrorosa verdade. Philippe crescera com as histórias de Lewis sobre o conto de Edgar Allan Poe, "Os Assassinatos na Galle Morgue", na cabeça. Ele costumava escutar eletrizado à maneira como o amigo falava sobre o gorila e a navalha, o que semeara na sua mente perturbada a ideia de tentar a mesma empreitada. Paciente e secretamente, treinou um gorila para portar-se como cavalheiro, criando um monstro nos moldes da criatura descrita por Edgar Allan Poe. Dado a moças novas, Philippe se apaixonou por uma sedutora estudante parisiense de Medicina, para quem arrumou um apartamento para os encontros amorosos. Quando o gorila - agora uma besta de natureza travestida, metido em trajes de cavalheiro vitoriano e capaz de articular frases menos complexas - assistiu ao amor de seu mestre pela mulher, ficou enlouquecido, estraçalhando a estudante de Medicina e dando início ao massacre, assassinando muitas prostitutas da região conforme o mesmo modus operandi. O proveito magistral de Paris e seu clima de mistérios e magia salta das páginas, e pelas lentes de John Erick Dowdle, na primeira metade de "As Above so Below", salta das telas, colocando-nos de imediato bem no meio dessa melancólica jornada que poderia muito bem ter saído da mente angustiada de um poeta tão atormentado quanto Barker ou Poe. Quando Scarlett e os exploradores descem às catacumbas, um certo desânimo abateu-se sobre minhas expectativas, pelo menos por um breve momento. Eu temia que a parte fotográfica tão maravilhosamente capturada por Dowdle, como na cena entre Scarlett e George ao alto da catedral, assistindo ao encanto dos parisienses quando os sinos voltam a bater, ou o ritmo ágil de empolgação e mistério deixassem saudades, ficassem para trás. Felizmente, Dowdle sustentou o ritmo, mas não há como negar a supremacia da primeira parte sobre o segmento final.

Para quem jamais se esqueceu daquelas saudosas aventuras sobre tesouros e civilizações perdidas e também "aprecia o prato" com uma pitadinha de Horror, "As Above so Below" é o filme da vez, um motivo de celebração. Filmes do tipo acontecem raramente. Adicionem ao desinteresse dos grandes estúdios a marcação cerrada que fazem sobre "diretores artísticos", ou seja, cineastas que prezam por imprimir identidade à obra, por maior que seja a escala de produção, e compreenderão o milagre da existência de "As Above so Below". O mesmo diretor deve lançar seu próximo filme em breve, "The Coup" (ou "O Golpe"), estrelando Owen Wilson, sobre uma família norte-americana viajando por um país estrangeiro, de férias, quando um golpe de Estado derruba o governo e causa caos, os rebeldes executando sumariamente os estrangeiros. Aproveitando o ensejo, 2015 deverá ser um ano maravilhoso para o gênero, que segue na curva ascendente graças à nova geração de diretores que trouxe consigo o melhor dos mestres do passado. Entre os diversos filmes interessantes, há os de lançamento mais imediato, e outros a que só nos resta aguardar. Entre os mais próximos, eu acho que "Unfriended" deixará uma forte impressão, sobre seis adolescentes perseguidos pelo fantasma de uma moça que se suicidou um ano atrás, depois que os amigos a haviam filmado alcoolizada, postado o vídeo na internet como brincadeira e a chamado de palavras de baixo calão. De muitas maneiras, a proposta se assemelha `a do ótimo "Ouija O Jogo dos Espíritos". Mais distante, no grande esquema das coisas, há "Jacqueline Ess", a adaptação de um dos melhores contos de Clive Barker, um veículo para a atriz Lena Headey, a Cersei de "Game of Thrones", que viverá a heroína da história, a "Jacqueline Ess", uma mulher que somatiza as frustrações do casamento e as traições do marido no poder telecinético sobre a matéria. Barker jamais escreveu com tanta propriedade sobre mulheres excepcionais. Resta imaginar se o diretor da adaptação enxergará os detalhes que tornam o escritor - e as mulheres concebidas por sua mente - tão singulares.