segunda-feira, 7 de abril de 2014

Atividade Paranormal: Marcados pelo Mal (Paranormal Activity: The Marked Ones, 2013) Se continuações raramente superam seus antecessores, este filme maravilhoso é motivo para celebração!Não percam!


Junho de 2012. Jesse Arista (Andrew Jacobs) está finalmente se graduando do Lincoln High School, em Oxnard, Califórnia, deixando família e amigos muito orgulhosos, cheios de esperanças para seu futuro. No discurso para os graduandos, o seu colega Oscar fala sobre o significado do momento: o começo de uma nova etapa, a concretização de sonhos individuais e a realização das expectativas que os familiares depositaram sobre seus ombros. Na saída da festa, Jesse tira fotos com a família e o melhor amigo, e dá um alô a Oscar e seu irmão Arturo, desejando-lhes um excitante e próspero verão. Jesse vive com o pai, a avó e a irmã. Também presente `a cerimônia de graduação, Hector (Jorge Diaz) prova-se o melhor e mais leal amigo. Eles moram no mesmo condomínio, um simpático conjunto de apartamentos, blocos habitacionais de dois andares na verdade, com uma pracinha de convivência ao centro, em um bairro essencialmente latino. Naquela mesma noite, a família e os amigos comemoram a graduação de Jesse, ocasião em que somos apresentados ao simpático, amoroso clã Arista: a avó Irma, uma bem humorada e maluca senhora obcecada por produtos inúteis de emagrecimentos, que se tornou praticamente amiga de todos os outros colegas de Jesse graças ao espírito jovial; o pai, um chefe de família batalhador que `a primeira vista parece durão e rígido, todavia assim o faz por reconhecer a importância do trabalho como o meio de se vencer as dificuldades da vida e desejar o melhor para o filho; a irmã Ivette, que apesar de viver implicando com o rapaz, sente-se orgulhosa e durante a festa lhe fala sobre o quanto aquele teria sido o melhor dia da vida da mãe, lamentavelmente já falecida; e o melhor e verdadeiro amigo Hector, um simplório e divertido garoto da mesma idade de Jesse, que também é o parceiro de travessuras. Marisol (Gabrielle Walsh), uma outra menina do condomínio por quem o protagonista nutre belo sentimento, também se junta `as festividades. Durante a comemoração, uma noite de muita salsa e música, Jesse e Hector falam sobre Ana, uma reclusa e misteriosa senhora que mora no andar de baixo, sob o apartamento da família Arista. Ana cobre as janelas com cortinas, e não interage com os demais condôminos. Jesse comenta que vez ou outra consegue escutá-la gemendo ou chorando, pelo duto de ventilação.

Com o dinheiro que ganha de presente do pai, Jesse compra uma câmera, e logo chama o amigo Hector para se juntar `as filmagens. Ele procura o amigo no serviço: Hector ganha um dinheirinho segurando cartazes e fazendo publicidade para uma oficina da região, nas calçadas. Ele mostra a filmadora para o amigo e, distraidamente, a dupla acaba capturando os membros de uma gangue local descendo do carro. Quando os delinquentes se aproximam e ordenam que Jesse entregue a câmera, os dois fogem correndo. O pobre Hector sujeita-se `as mais malucas ideias de Jesse, como se sentar em um balde, segurar a câmera e se jogar, tudo para filmar a descida pelos degraus à alta velocidade. É claro que Hector se esborracha todo.

Os dois escutam gritos vindos do apartamento de Ana. Hector e Jesse se assustam quando veem o apressado Oscar deixando o lugar com um semblante preocupado. Jesse procura conversar, mas Oscar o cumprimenta apenas de forma passageira, e trata de ir embora. Ana observa a tudo da porta, e depois volta para dentro. Hector acha o encontro esquisito, pergunta de onde Oscar e Ana se conhecem. Jesse não sabe dizer. Os amigos chegam `a cozinha quando vovó Irma está preparando algo para comer. Os meninos apanham a tequila do pai, certos de que a avó não vai dedurá-los. Até mesmo Irma toma duas doses, e fica um pouco "alta". Os três estão rindo e falando bobagens, quando escutam um barulho estranho vindo do andar inferior (o apartamento de Ana), semelhante a um barril sendo rolado. Jesse e Hector vão ao quarto do pai, de onde parte o duto de ventilação que dá direto na sala de Ana. Jesse sugere que desçam uma das câmeras pelo cabo HDMI ligado ao notebook, de modo a capturarem as imagens. Hector brinca dizendo que Ana deve estar bem no meio de algum encontro romântico. Enquanto Jesse vai ajustando a câmera, Hector acompanha as filmagens pelo notebook, e fica chocado com o que vê.

Há uma moça muito atraente, de pé e nua no meio da sala. Neste momento, a avó entra no quarto e os meninos tratam de expulsá-la imediatamente (Irma acha que estão vendo filmes imorais!). Ana aparece no enquadramento, igualmente despida (Hector brinca e diz, "Rapaz, até então eu estava interessado, mas agora que a Ana apareceu nua também, esqueça!"), e pinta um símbolo esquisito no abdômen da garota, com uma tinta vermelha. Um movimento mais desajeitado, e a câmera bate no duto, causando barulho e chamando a atenção das duas. Jesse imediatamente puxa o cabo. Mais tarde, discutem o ocorrido com Marisol, na lavanderia. Hector acha que Ana é uma cafetina, mas Jesse suspeita que a velha seja mesmo uma "bruja" (bruxa), assim como também creem os demais moradores do condomínio. Atrevidos, Jesse e Hector aprontam mais uma travessura para provocar a vizinha maluca. Eles pedem que Eber, um garotinho da vila, bata `a sua porta para importuná-la. Em sua ingenuidade, o molequinho de fato bate `a porta e a chama "Bruja, ei, bruja!". Jesse e Hector caem na gargalhada, bem no instante que Ana está voltando da feira. Furiosa, ela os xinga e ordena que se mandem dali. Os meninos caem fora, estourando de risadas. Naquela noite, resolvem acender um rasga latas sobre um depósito de lixo e filmar a experiência. Hector acende o pavio, mas o fogo de artifício não explode. Subitamente, um grande volume cai pesadamente sobre o depósito de lixo: é Oscar, que saltou de uma janela de um apartamento do condomínio. O rapaz sai correndo, apavorado, e os dois ficam olhando, atônitos. Em seguida, o rasga latas explode, dando-lhes o segundo grande susto da noite.

Uma comoção muito grande logo toma conta do quarteirão. Carros de polícia param em frente`a vila, e um helicóptero chega a sobrevoar o bloco com um canhão de luz. Ana foi encontrada morta dentro do apartamento. O pessoal da perícia aparece para remover o corpo. Jesse e Hector assistem a tudo com terror, e acham a situação muito misteriosa e esquisita. Quando Oscar saltou sobre o depósito, é porque pulou de uma das janelas, possivelmente a do apartamento de Ana, o que o colocaria na cena do crime. Na manhã seguinte, os dois comentam o que viram com Marisol. Jesse não compreende por que Oscar teria matado a velha: o cara se formou com louvor e foi orador da turma!Marisol pergunta se a dupla contou o que viu `a polícia, mas Jesse sabe melhor. O irmão de Oscar, Arturo, é o chefe da gangue da rua 805, e ele não quer antagonizar bandidos perigosos.

Fumando escondidos na sala de estar, um dos garotos surge com a ideia de entrarem no apartamento da bruxa. Mesmo isolado por cordões de polícia, os meninos são ousados o suficiente para entrar pelo outro lado, por uma janela menor. O interior do apartamento, agora abandonado, parece assustador. Eles chegam a encontrar um berço com uma boneca em meio a lençóis, o que os deixa alarmados. Dentro de um armário, examinam caixas onde foram guardadas muitas fitas de vídeo. Uma dela traz a etiqueta "Katie e Kristi, 1988" (uma alusão `as personagens principais da franquia). Escrita na parede, a frase desconexa "Ele vive". Jesse e Hector entendem que não se trata de tinta vermelha, mas de sangue. Antes de partir, Jesse tem a atenção capturada por um misterioso diário, que resolve levar consigo, para examinar mais tarde. No caminho para a saída, Jesse e Hector se deparam com Arturo. O gângster lhes avisa que o irmão não teve nada a ver com a morte de Ana, e que estão tentando incriminá-lo. 

Os garotos levam o diário a Marisol, e a leitura do mesmo prova que se trata de uma coletânea de encantamentos, através dos quais se abriria uma passagem para "lugares profanos". Há um passo-a-passo para se abrir o referido portal. Jesse e os amigos concluem que quando filmaram a garota na sala de Ana, o que a velha procurava fazer era forjar o portal. Eles não imaginam o problema que conseguirão para suas vidas ao concordar em tentar "contatar" a entidade sobrenatural envolvida naquele lance de portais. Inocentes, compram um espelho, que será utilizado na "invocação" como meio para a passagem da entidade. Os três escapulam de seus apartamentos tarde da noite para realizar o ritual na igreja do bloco.

Inicialmente, após proferirem os passes, nada parece acontecer. Hector se cansa daquilo e vai embora. Depois que o amigo se vai, Jesse e Marisol escutam batidas vindo dos banheiros. Eles pensam que se trata de Hector, mas não há ninguém por ali. Depois de checarem as cabines e se certificarem que não há pessoa alguma, Jesse e Marisol se assustam quando uma nova forte pancada vem de dentro da cabine vazia. Os dois fogem em disparada. Hector acorda Jesse na manhã seguinte. Ele faz um desenho imoral com uma caneta porosa no rosto do rapaz, e Jesse não suspeita de coisa alguma!O rapaz diz que teve um estranho sonho na noite anterior, com uma porção de mulheres em uma fazenda. Ao comentário de Hector que o chama de sortudo, Jesse explica melhor, "Não, nada disso, era um monte de mulheres velhas". Hector vê sangue no lençol do amigo, e Jesse percebe que em seu antebraço há uma marca semelhante a uma dentada.

Jesse cuida de um cachorrinho chamado Chavo, que vemos ao longo do filme, um pequinês engraçadinho, o xodó da família. Em um primeiro sinal de que uma presença maligna se insinua na sua vida, quando Chavo o encontra na sala naquela manhã, começa a rosnar, e quando o mestre procura acariciá-lo, sai correndo, latindo. Ao invés de uma tábua Ouija, Jesse, Hector e Marisol estabelecem contato com a entidade através de um daqueles antigos brinquedos eletrônicos de memória, o "Genius". Eles percebem que ao fazer perguntas `a entidade, a mesma responde "Sim" com a luz verde, e "Não" com a vermelha. O grupo começa com perguntas tolas e engraçadas, e as respostas são perfeitas. Quando a avó os vê mexendo com o brinquedo, desliga o aparelho e o leva consigo, dizendo que é "do mal". Naquela mesma noite, mais tarde, Jesse desperta com o som de passos vindos do lado de fora do apartamento. Na sala, encontra Chavo, rosnando, mirando a porta. Ao abri-la para averiguar as escadas e a pracinha da vila, não encontra ninguém. Logo depois, o pai chega do trabalho, e Jesse lhe pergunta se havia alguém do lado de fora. O pai diz que não viu ninguém.

No dia seguinte, vemos Jesse, Hector e Marisol passeando pelo bairro, Hector devorando um chili, prato típico da comunidade, e pagando o preço pelo exagero na pimenta, quando a boca começa a arder e não há água por perto!Jesse confidencia com os amigos que desde que inventaram de prosseguir com o ritual, tem se sentido assediado por uma presença que o observa. Ao voltar para casa, Jesse encontra a supersticiosa avó derramando vinagre em todos os cômodos, para afastar os maus espíritos, enquanto o pai e a irmã acham que Irma está ficando maluca.

Hector e Jesse vão jogar basquete na quadra do bloco, e quando a noite cai, preparam-se para deixar o centro comunitário. Jesse se agacha para apanhar uma latinha da máquina de refrigerante, quando dois membros da gangue chegam para ameaçar os dois garotos. Eles são atacados pelos delinquentes, mas então os valentões são atirados ao ar por alguma força invisível, como se fossem bonecos de pano, na verdade a entidade que passou a assediar Jesse. Os meninos registram as impressionantes cenas e mais tarde as mostram para Marisol. Jesse consulta o "Genius" por uma segunda vez. Pergunta ao brinquedo se foi a entidade quem castigou os caras da quadra de basquete, e como resposta, a luz verde, o "Sim", aviva. Quando pergunta se a entidade é seu anjo da guarda, a luz vermelha sinaliza "Não". Ao ser indagada sobre se é um espírito do Bem, não dá resposta alguma.

Jesse mostra a Hector os superpoderes que o espírito parece ter lhe dado. Ele cai para trás, porém uma força sobrenatural o suspende no ar. Hector fica maluco, e ainda não viu nada!Jesse sobe em uma cadeira e novamente lança-se para trás, sendo novamente amparado por uma força invisível. O divertido amigo procura fazer a mesma coisa, mas não é segurado por entidade alguma, e desaba com tudo, de costas para o chão. Em uma manifestação fantástica de poder, Jesse corre com o skate, dá um salto que o leva às alturas, cai sobre o corrimão das escadas do prédio e sai deslizando ao longo do mesmo, como em uma cena de "De Volta para o Futuro 2", como se o seu skate fosse capaz de voar. Simultaneamente, consegue encher um colchão inflável em um sopro, em menos de um segundo. Os meninos põem os vídeos das proezas no Youtube, e não demoram a conquistar mais de quatrocentas visualizações, atraindo até mesmo comentários de céticos, que atribuem as fantásticas proezas a efeitos especiais.

Cheio de si, Jesse pega o carro do pai emprestado, e parte com Hector para uma festa na quadra. Jesse pede um beijo no rosto para uma garota cuja beleza lhe chama a atenção, e quando ela vai lhe dar, engana-a e a beija na boca. Hector também tem sucesso ao "queixar" a outra amiga, e logo o quarteto está deixando a festa para aproveitar o restante da noite a sós. Quando voltam ao condomínio, Jesse sugere que entrem no apartamento de Ana, onde terão toda a privacidade para namorar. Hector avisa que a velha que morava ali foi assassinada, mas as meninas parecem tão bêbadas que não poderiam se importar menos!Jesse está se abraçando com a nova amiga no chão da sala, mas se toca de que não trouxe o preservativo. Ele se escusa para buscá-lo, deixando-a momentaneamente sozinha. Enquanto espera por Jesse, a jovem dá por um barulho esquisito logo abaixo do piso. Sob o tapete, há um fundo falso, que dá para um porão. Quando a moça abre o alçapão, é agarrada por uma mão. Ela consegue se desvencilhar, mas, aterrorizada, sai correndo, e chama a amiga. Quem a agarrou foi Oscar: o rapaz vinha se escondendo dentro do porão do apartamento de Ana!Ele deixa o esconderijo e desaparece do enquadramento da câmera.

Jesse retorna com o preservativo, mas não há sinal da namorada. É quando é surpreendido por Oscar. O rapaz parece possuído e delirante, os olhos injetados de preto, os braços cheios de dentadas. Oscar diz que assim como ele, Jesse agora também foi marcado. Ele explica que matou Ana por tê-lo amaldiçoado desde o nascimento. Oscar deixa o apartamento correndo, causando a comoção que chama a atenção de Hector, naquele instante retornando ao apartamento. Ele se depara com as meninas fugindo aos gritos, e em seguida Oscar, vindo logo atrás. Hector atravessa a rua, os dois ainda as veem ao longe. Não há mais sinal de Oscar. Quando Hector grita do outro lado da calçada, para Jesse, e pergunta onde Oscar se meteu, o seu corpo subitamente despenca de uma enorme altura, bem sobre o capô de um carro parado ao lado do meio-fio. Oscar morre instantaneamente. Jesse convence os amigos a retornarem ao apartamento de Ana para vasculharem o porão secreto. Eles ficam chocado com a descoberta, o porão totalmente sombrio cheio de apanhadores de sonhos por todos os lados e fotos da mãe de Jesse, grávida, ao lado de Ana, que afinal de contas foi a sua parteira, e de uma terceira mulher loira, chamada "Lois" (a avó de Katie e Kristi, do primeiro filme, Lois aparece em "Atividade Paranormal 3", como a matriarca de uma seita de bruxas que costuma raptar os filhos primogênitos para oferecê-los a uma entidade demoníaca em troca de favores). As fotos datam de 1994, o ano de seu nascimento. Há retratos de outros jovens, inclusive do próprio Oscar. Grafados nas tábuas, esquisitos símbolos pagãos de bruxaria. Enquanto se encontram no porão, escutam passos sobre as tábuas do piso. Eles se escondem, para não serem descobertos. Depois, pela pequena fresta que abrem no alçapão, enxergam uma jovem mulher de costas, abrindo a porta e partindo.

Jesse e a turma levam as descobertas à família, inclusive a foto de Ana com a mãe, durante os últimos meses da gestação. O pai não lhe dá muito crédito. Uma vez que a mãe de Jesse morreu no parto, ele passa a suspeitar que a parteira tem responsabilidade pela tragédia. Coisas estranhas continuam a acontecer a Jesse, que parece estar se transformando. Ele tira fios de cabelo dos olhos, e as luzes do banheiro começam a falhar diante de sua presença. Jesse e Marisol procuram por Arturo. Arturo é mais velho do que Oscar, então a premissa de um convento de bruxas praticando rituais em mulheres grávidas para "amarrar" os primogênitos parece não se aplicar ao caso de Oscar. Ocorre, Arturo explica, que Oscar havia sido adotado, ou seja, não era seu irmão natural. Para a mãe biológica, Oscar era de fato o primogênito. Arturo lhes conta sobre o lento processo de transformação de Oscar, que no começo da possessão passou a se barricar dentro do próprio quarto. Há uma porção de recortes estranhos nas paredes, materiais sobre crianças misteriosamente desaparecidas ao longo dos anos na vizinha cidade de Carlsbad, o que confere com a história do convento de bruxas à caça de crianças primogênitas para oferendas. Uma pequena nota onde há um nome e telefone rabiscados chama a atenção de Hector, que dobra o papel e o guarda no bolso.

O comportamento de Jesse se transforma. Em um supermercado, tem uma crise de ciúmes ao ver Marisol conversando com um colega de sala, e quando o dono do estabelecimento vai reclamar, toma o bastão e ameaça agredi-lo. Jesse diz que não se sente mais no controle. Ele volta ao "Genius", e pergunta se a coisa deseja alguma coisa sua. A entidade sinaliza que sim com a luz verde, e quando o garoto exige que o deixe em paz, responde com a vermelha. Naquela noite, Jesse escuta os ganidos de Chavo pelo duto de ventilação, e desce ao apartamento de Ana para recuperar o cãozinho, que pensa ter descido pela escada. Jesse deixa a câmera no chão e desce pelo alçapão (a câmera captura a silhueta de uma mulher o observando da porta). Chavo não está ali dentro, mas sim duas crianças de aparência sinistra. Ele tenta sair correndo, mas se atrapalha quando as luzes se apagam. Uma voz lhe diz "Ele está pronto para você", e o ataca de supetão. Jesse desmaia.

Na manhã seguinte, quando Hector procura por Jesse, o encontra em transe. Jesse começa a exibir sinais de possessão. Ele destrata o amigo, e menospreza o valor de sua amizade. Humilhado, Hector procura por Marisol, que também diz que Jesse a ignorou. Hector liga para o número no papel, e combina um encontro no parque com Ali Rey (a filha sobrevivente do filme "Atividade Paranormal 2", que traz informações valiosas). Quando lhe apresentam uma foto com os rabiscos esquisitos encontrados no porão, Ali lhes avisa que se trata do símbolo das "parteiras", o clã de bruxas que marca os bebês ainda nos úteros de suas mães com desenhos à sangue, e então esperam que cresçam o suficiente para finalmente serem arrebatados pelo demônio. Ela diz que a possessão é como uma infecção. Jesse está tentando combatê-la, sem sucesso. O inevitável fim para os marcados é um ritual a ser conduzido pelas bruxas, quando são definitivamente "substituídos" pela entidade do Mal.

Hector e Marisol visitam o apartamento de Jesse. Eles o veem fazendo uma brincadeira de mau gosto com Chavo, suspendendo-o no ar como se o bichinho fosse uma pena. Ele não machuca o animal, mas parece evidente que Chavo não está gostando, e Marisol e Hector pedem para que pare com aquela brincadeira estúpida. Os amigos acompanham a avó Irma a uma consulta a uma casa de orações, onde o sacerdote lhes orienta a realizar uma prece para Jesse, em uma tentativa de afugentar o demônio. Marisol, Hector e Irma convencem o cismado Jesse a participar da oração, todavia no meio da reza, o rapaz manifesta a possessão. A energia elétrica começa a oscilar e Jesse flutua no meio da sala, atirando móveis por todos os lados. Depois da incrível manifestação de poder, entra em um estado de inconsciência. Na manhã seguinte, Hector encontra Irma aos pés da escada, após uma queda aparentemente acidental, e Jesse em cima, assistindo à cena com um olhar diabólico. Hector e Marisol ligam para o 911, e Irma é levada a tempo para a UTI. Ivette e o pai de Jesse não fazem ideia de onde o rapaz se meteu, mas não têm muito tempo para pensar a respeito, pois precisam acompanhar a evolução do estado de saúde da idosa. 

Marisol crê que o rapaz deva se encontrar na casa indicada por Ali Rey, onde as bruxas praticam os rituais para a possessão definitiva. Hector e Marisol apanham o carro e dirigem para a vizinhança onde o suposto ritual se dará, mas a bateria falha misteriosamente, deixando-os presos a um beco escuro. Inesperadamente, Jesse surge e os ataca com violência. Ele golpeia a janela até quebrar o vidro, e arranca Hector da direção sem muito esforço. Hector teria sido morto, não fosse por Marisol, que chega por trás e o nocauteia com um cano. Os dois amigos o põem dentro do carro e partem em direção ao hospital mais próximo. Em um cruzamento, uma picape colide violentamente com o carro, deixando Hector e Marisol fora de ação. As pessoas dentro da picape descem rapidamente e resgatam Jesse, partindo com o rapaz enquanto os amigos assistem a tudo impotentes e desesperados.

Eles recorrem à ajuda de Arturo, que se arma até os dentes, com o suporte de Santo, um de seus capangas. Os quatro partem para a residência que identificamos como a casa exibida em "Atividade Paranormal 3", o antro das bruxas. Eles entram pelo jardim, e à primeira vista não parece haver ninguém por perto. Então, são surpreendidos por um monte de mulheres vestidas de preto, que partem para cima, armadas de facas. Arturo e Santo derrubam duas delas com tiros de escopetas, mas logo são dominados. Hector consegue se albergar dentro da casa. A caminho para dentro, encontra Jesse desacordado na soleira, e o puxa junto. Pela janela, vê as assustadoras bruxas se avolumando do lado de fora, preparando-se para invadir. Hector se distrai por um segundo - é o que basta para Marisol desaparecer. Ele chama por Marisol, até que o corpo da garota é arremessado através de uma janela, para dentro. Em seguida, uma bruxa horrorosa, que parece ser a líder espiritual das demais feiticeiras, aparece do nada, entoando uma cantiga em língua desconhecida. 

Explorando os muito corredores da casa, Hector acaba por encontrar Jesse em uma das salas. O rapaz avança contra Hector, que encontra tempo para subir as escadas e se trancar em um quarto. Inicialmente em um tom suave e familiar, Jesse pede para que o amigo abra a porta, pois não irá machucá-lo. Hector reluta, e o furioso Jesse a põe abaixo na base da violência. Hector não tem como evitar a investida de Jesse, que o arrebata com uma fúria tal que o deixa momentaneamente inconsciente. Quando Hector acorda, se dá conta de que se encontra em uma outra casa, o que parece inexplicável. Não entende ainda que conforme os ritos de magia descritos no diário, um portal para lugares profanos foi aberto, e tanto Hector quanto Jesse o atravessaram rumo a um outro espaço, a uma outra época. Apavorado, Hector enxerga uma moça descendo silenciosamente as escadas da nova casa, e ao abordá-la para perguntar o que se sucedeu, vemos que se trata da Katie do primeiro filme. O portal os levou de 2012 ao ano de 2006, quando se sucederam os acontecimentos mostrados no filme original - Katie possuída, gritando por ajuda, então Micah descendo as escadas para socorrê-la, apenas para ser brutalmente assassinado pela noiva. No primeiro filme, tal cena jamais é exibida com clareza, porém desta vez, o diretor nos leva ao exato momento, mostrando o que aconteceu naquela noite. Hector assiste a Katie assassinando o companheiro, e ao empreender fuga, é agarrado por Jesse, agora já na forma de demônio, no último estágio de possessão. A câmera cai no chão, e quem a recupera é a bruxa madrinha do convento, Lois, responsável por toda a maldição que aflige os "marcados" uma vez que completam dezoito anos de idade.

Surpreendente continuação de uma das franquias de horror de maior sucesso da história do cinema, recaiu sobre "Atividade Paranormal: Marcados pelo Mal" a ingrata missão de revitalizar uma ideia que vinha dando sinais de cansaço. O filme cumpriu o seu objetivo com louvor!Pouquíssimas vezes, uma sequência honrou as ideias ou temas propostos pela fonte original, e ainda mais dificilmente, superou o antecessor. Posso citar "Hellraiser", a obra prima de Clive Barker, que deu origem a "Hellbound: Hellraiser II", em todos os sentidos um triunfo. Desconsiderando-se o exemplo acima, não me ocorre nenhum outro filme, e portanto, "Atividade Paranormal: Marcados pelo Mal" é motivo de celebração. Ao invés de caírem na armadilha de rodar um novo filme de maneira linear, os produtores resolveram ambientar a trama em um meio completamente diferente, ao mesmo tempo respeitando a mitologia exaustivamente desenvolvida ao longo dos quatro anteriores. O enorme sucesso da franquia muito deve ao seu apelo nos países latinos e, assim, nada mais justo do que realocar o enredo para uma comunidade onde a religiosidade e a crença em Deus são, felizmente, elementos tão predominantes em suas vidas.

Tomando como ponto de partida a premissa ventilada no terceiro filme da série (a de um convento secreto de bruxas dedicado à adoração de uma Entidade demoníaca), o diretor Christopher Landon constrói com muita habilidade este suspense sempre empolgante e muito bem humorado, apoiado em um roteiro que costura as pistas de sua trama aos poucos, e em performances inesquecíveis de um elenco formado por jovens e talentosos rostos, de quem ainda escutaremos muito nos anos por vir. Apesar de a grande atração caber ao misterioso e onipresente ser invisível, a inserção do convento como a força motriz responsável pela manifestação é uma bem vinda sacada. Há muito, produções de horror não exploram bruxas como forças maquiavélicas, e conforme Rob Zombie demonstrou habilidosamente com "The Lords of Salem", a depender da execução, feiticeiras podem sim ser presenças absolutamente aterrorizantes!

No filme de Zombie, a mera sugestão da presença de bruxas foi a massa a partir da qual o diretor modelou uma trama psicologicamente perturbadora. As suas "Senhoras de Salem" aparecem em flashbacks, porém o eco de suas mortes na fogueira e a influência maléfica de suas ideias subversivas reverberam no enriquecido e curioso imaginário visual de Zombie, um ousado artista que carrega nas tintas, obviamente inspiradas nas cores, texturas e extravagâncias do britânico Ken Russell (cujo maior momento foi o fantástico "Women in Love", de 1969, com Glenda Jackson e Oliver Reed) e o italiano Dario Argento. O diretor Landon não imprime a mesma agressividade ao seu "Atividade Paranormal: Marcados pelo Mal" (o filme de Zombie é n vezes mais atrevido e bizarro, perfilhado de cenas muito explícitas de nudez feminina, por exemplo), todavia, ainda assim, tira proveito da sacada e, ao final, traz um "monstro" tão ou talvez mais assustador do que a presença invisível, na forma das misteriosas mulheres metidas em vestidos pretos que se jogam a Marisol, Hector e Arturo como os zumbis dos filmes de George Romero.

Enquanto aos quatro filmes anteriores foram impostas limitações em razão de ambientações  internas, "Atividade Paranormal: Marcados pelo Mal" move-se a uma velocidade mais cinética. Pelas câmeras manejadas por Jesse e Hector, somos levados a uma variedade de cenários - o simpático condomínio, o bairro latino, a religiosidade da igrejinha, a quadra de basquete, o centro comercial de Oxnard, a high school - e a movimentação não apenas permite que o diretor explore uma porção de possibilidades como garante que o filme jamais perca o pique. "Atividade Paranormal: Marcados pelo Mal" faz sentir-se "mais filme", "mais espetáculo", ao contrário dos anteriores, que reduzidos a ambientações exclusivamente internas pareceram mais experimentais.

Se é a soma de detalhes que se traduz ou não em sucesso, e "Atividade Paranormal: Marcados pelo Mal" já é um dos filmes imperdíveis do ano. O diretor Christopher Landon merece aplausos por ter cuidado tão bem das pequenas peças, dos detalhes aos quais me refiro, somados para compor a ambientação perfeita para essa história de bruxaria e possessão. O olhar do cineasta à comunidade latina jamais beira o clichê, e parece bastante autêntico, trazendo todas as facetas da vida dessa gente tão vivaz e calorosa que busca o "sonho americano" em um país que tende a relegar os imigrantes às margens de seus projetos. Essa receita - a adição de um elemento exógeno a uma cultura diferente da sua - já foi explorada em suspenses anteriores, com muito êxito. Aconteceu, por exemplo, com "Straw Dogs", de 1971, de Sam Peckinpah, sobre um professor de matemática pacifista que se muda com a esposa britânica para a cidadezinha do interior onde a mulher nasceu, na Inglaterra, e se torna alvo de toda sorte de zombaria por parte dos hooligans locais. Desdenhado pela esposa e desrespeitado pelos valentões, é quando acolhe um doente mental dentro de casa que finalmente traça os próprios limites. Os hooligans batem à porta do professor "fracote" vivido por Dustin Hoffman exigindo que lhes entregue o doente mental para linchamento, e Hoffman se nega a obedecer. É quando o professor de matemática finalmente põe as mãos no rifle e resolve lutar como um cão feroz que redescobre a própria masculinidade, reparando a honra, destruindo os membros da gangue que o tomaram como fraco e desprezando a esposa ao final. Quem conhece o interior da Grã-Bretanha, quem já andou não apenas  por Londres, mas pelo "interiorzão", dará crédito `a veracidade com que Peckinpah, ironicamente um norte-americano, trata o material: os seus pubs, os moradores locais, a sexualidade latente e reprimida e a hostilidade contida nos olhares, o ressentimento dedicado a todo elemento que "não pertence" a aquele meio. Em "Atividade Paranormal: Marcados pelo Mal", o "invasor" é a entidade demoníaca que desencadeia a série de eventos até o aterrorizante final, e a comunidade latina, o meio, o contexto em que se dá todo o horror. Visto pelas impressões de uma cultura cujos traços permanecem ligados à religiosidade e superstição, o Horror em "Atividade Paranormal: Marcados pelo Mal" é significativamente mais rico e palpitante. Emprestando energia e cor à produção, os seus atores principais, na maioria desconhecidos e iniciantes, esbanjam o carisma com que muitos veteranos apenas sonham. As performances desse pessoal tocarão a todos que se recordam com saudosismo de seus dezessete, dezoito anos, quando tudo na vida ainda estava por vir, tudo era o futuro, "O que farei da minha vida, onde estarei daqui a dez, vinte anos", e o mundo parecia resumir-se ao pequeno vale onde nascemos. Andrew Jacobs, que aqui lembra um jovem Benjamin Bratt, interpreta o protagonista, um rapaz correto e de bem com a vida que se vê às voltas com o mistério que lentamente vai corroendo o seu dia a dia. Jorge Diaz é Hector, o atrapalhado e leal melhor amigo que junto a Jesse mete-se desavisadamente em todas as frias, mas intenciona bem e está sempre disposto a lhe estender a mão. Gabrielle Walsh interpreta Marisol, e para entender o seu papel nessa história de rito de passagem, basta que os amigos procurem se recordar de suas primeiras grandes paixões dos tempos de colégio. O mesmo acontece aqui, com o poder mágico da mocinha sobre o protagonista, que pela garota dedica os mais belos e cristalinos sentimentos. Renee Victor equilibra as tonalidades mais sombrias da trama com a sua invejável vitalidade, vivacidade e bom humor. Quantos de nós podemos dizer que tivemos uma avó tão extravagante e maneira?São os desempenhos afinadíssimos dessa gente talentosa que viabilizam a identificação instantânea com os personagens e seus respectivos dilemas, em um envolvimento emocional que os anteriores da série não conseguiram produzir. Mesmo pela via do bom humor, a continuação se destaca entre os antecessores. O fato de a história envolver elementos tão sombrios não impediu o diretor de criar algumas cenas muito engraçadas, válido contraponto à toda a tensão, uma maneira excelente de se recuperar o fôlego ao longo dessa jornada muito sinistra e imprevisível. "Atividade Paranormal: Marcados pelo Mal" é, desde já, um dos grandes filmes de horror de 2014, e olhe que ainda temos muito para ver - "Under the Skin" não demora a estrear, e "The Purge 2: Anarchy" deve estar chegando aos cinemas no segundo semestre. Para quem ainda não o viu, colocá-lo desde já no panteão dos melhores pode parecer prematuro, mas acreditem, "Atividade Paranormal: Marcados pelo Mal" é mesmo bom assim!

Todos os direitos autorais reservados a Paramount Pictures. O uso do trailer é para efeito meramente ilustrativo da resenha. 

sábado, 1 de março de 2014

M. Butterfly ("M. Butterfly", 1993) Na metamorfose da lagarta à borboleta, David Cronenberg encontra o simbolismo perfeito para o horror da transformação.

Assombroso e deprimente thriller psicológico, "M. Butterfly", um dos filmes menos vistos de David Cronenberg, respeita a sua tradição como o mestre absoluto do horror inteligente, um dos mais corajosos e ousados cineastas contemporâneos, que jamais se afastou de sua visão, e preteriu a sedução do cinema comercial em nome de filmes de arte mais densos, difíceis e marcantes. Da mesma maneira que fez com "Gêmeos Mórbida Semelhança", Cronenberg nos traz uma assustadora história baseada em fatos reais, onde muito do horror permanece adormecido por trás de sorrisos e olhares a se interpretar, e a mais ardilosa e perigosa das armas é o apego. Vagamente inspirado nos eventos do caso Boursicot, "M. Butterfly" se passa em Pequim, China, nos anos 60, e reúne astro e diretor de "Gêmeos Mórbida Semelhança". Jeremy Irons interpreta René Gallimard, um diplomata francês que mergulha no pesadelo que o próprio criou, ao se apaixonar por uma artista de ópera oriental, Song Liling, na verdade espiã do Império Chinês.

O ano é 1964. René Gallimard é um funcionário da embaixada francesa que segue as regras e é mal visto pelos colegas por se portar como um indivíduo incorruptível. Em mais uma noite de diversão entre os funcionários do governo francês em Pequim, Gallimard atende `a apresentação da ópera na companhia de sua chefe Frau Baden (Annabel Leventon). O espetáculo exibido é o de Madame Butterfly, de Giacomo Puccini, sobre uma garota japonesa que se casa com um americano oficial da Marinha, que parte e jamais volta, causando-lhe a dor que a leva a cometer suicídio com uma espada. Após a performance, Gallimard se apresenta à atriz que interpretou a garota japonesa, Song Liling, e os dois conversam. Gallimard lhe diz que o seu desempenho o ajudou a enxergar a beleza da história, a tristeza de sua morte, puro sacrifício. Song Liling é uma mulher de opiniões fortes. Ela crê que o sucesso da peça deva-se à fantasia dos ocidentais, sobre a mulher oriental submissa matando-se em nome do amor por um cruel homem branco desapegado. As suas opiniões fortes permitem que Gallimard compreenda as suas próprias contradições, e o embaixador fica admirado com a perspicácia da artista. Os dois flertam, e ao se despedir, Liling o convida a aparecer novamente na Ópera, para "aprofundar-se na sua educação".

Gallimard é casado com Jeanne, uma européia mimada que vive resfriada e despreza a cultura chinesa. Pela interação entre marido e esposa, quando Gallimard veste o pijama e se junta a Jeanne na cama, percebe-se que a vê mais como uma amiga, por ela não nutrindo nenhum sentimento mais profundo de paixão. René é um homem cujas fortes emoções foram congeladas, a sua capacidade adormecida em um lugar inalcançável de sua alma. Ele não imagina como a sua vida virará de ponta cabeça, com a chegada de Song Liling. Depois do primeiro encontro, René fica obcecado com a história escrita por Puccini - a da mulher virtuosa matando-se por amor, em nome de um sujeito que não merece tão belo sentimento - e passa a visitar o centro cultural e artístico de Pequim. De informação a informação, consegue rastrear a casa de atrações onde Liling estará desempenhando a ópera de Puccini. René a visita nos bastidores, explicando estar ali para "aperfeiçoar a sua educação". Ele a acompanha na caminhada para a vila. Pela primeira vez, Liling sinaliza estar igualmente interessada. Ele pede a René que acenda o seu cigarro de uma maneira provocante, e ao voltarem a falar sobre a fantasia imperialista por trás da ópera, homens fascinados pela submissão da mulher oriental, diz que às vezes, o submisso também se sente apegado ao opressor. René a deixa na porta de casa, e ela o convida a visitá-la qualquer dia. Ao esperar pela carona em uma riquixá, uma típica carruagem chinesa de tração humana, distrai-se com um homem local apanhando com uma rede as mais belas mariposas. René toma uma das mãos, e fica encantado com a elegância da criatura, que eventualmente voa para longe.

Enquanto está dormindo, Jeanne vasculha os bolsos do paletó e das calças do marido, cheia de suspeitas. Gallimard conta uma mentira qualquer sobre onde esteve na noite anterior. Ele retorna à vila, e toda a tensão sexual entre o europeu e a chinesa finalmente transborda. "Há um elemento de perigo em sua presença", Liling diz, referindo-se ao fato de René ser um embaixador francês casado. A cultura chinesa, conforme Liling, traz as raízes fincadas em um passado muito longínquo. A sua nação é essencialmente tradicional, e tudo guarda significado. Envolver-se com um europeu provocaria reações que nenhuma das partes seria capaz de imaginar. Ao entregar a xícara de chá ao europeu, as suas mãos se tocam. Os dois se beijam apaixonadamente, incapazes de resistir `a atração da carne.

René e Jeanne comparecem a uma festa na casa de um dos servidores da embaixada. Ele é acostado por quatro colegas, que sutilmente demonstram toda a antipatia pelos seus modos na repartição. Eles estão furiosos com o preciosismo de René, que tem dedurado os gastos excessivos e indiscrições dos colegas ao governo em Paris. Isolado, senta-se ao lado da esposa, no banco do piano, e a sua mente volta a divagar sobre Song Liling. René crê que seja prudente afastar-se por um tempo. Seis semanas se passam, até receber uma carta de Liling, contando sobre o quanto sente a sua falta. "Minha audiência sente falta do diabo branco por entre a névoa", escreve. No trabalho, os apelos de Liling deixam Gallimard dividido entre desejo e dever. Naquela manhã, René é chamado para uma reunião com o embaixador Toulon (Ian Richardson), que traz novidades. A França estará revitalizando a divisão de inteligência, face a turbulenta época que a China atravessa, e Toulon crê que não há ninguém melhor do que Gallimard, incorruptível e correto, para a posição de vice cônsul. Com essa maravilhosa novidade, René resolve ceder ao desejo, e procurar Song Liling, para lhe contar a notícia.

Ainda ressentida, Liling reage com frieza. René diz a Liling que quer ficar com ela. "Você é a minha borboleta?", René pergunta. Ele começa a recitar trechos de suas cartas, e Liling fica envergonhada, dizendo-se arrependida por ter entregado tão facilmente seu coração. Ele se ajoelha aos pés de Liling e a abraça, insistindo na questão. Song diz que sim, será a sua borboleta, e os dois se beijam apaixonadamente. Apesar de se abrir a suas investidas, Song pede para que René não a devasse daquela maneira, pois jamais esteve com um homem antes. Ela pede para manter o vestido. "Saiba que estamos agora adentrando no mais proibido dos amores, e eu temo pelo meu destino", fala, antes de ceder a seus encantos.

René assume a posição de vice cônsul, e reúne-se com os colegas, agora subordinados, meio que para apaziguar os ânimos, convidando-os a um melhor relacionamento. René e Liling, agora metidos em um tórrido romance, encontram-se aos pés da muralha da China, uma das sete maravilhas do mundo, que vista pelas lentes de Cronenberg chega a tirar o fôlego em razão de sua grandiosidade, uma construção erguida por mãos humanas, enorme e infinita, cortando montanhas como um traçado em direção ao infinito. Song pergunta a René por que a escolheu, logo ela, quando sua esposa europeia é uma linda mulher loira de olhos azuis atraente e cobiçada pelos demais agentes da embaixada. Gallimard explica que somente Song Liling encarna com perfeição a fantasia de "Madame Butterfly", a mulher de virtudes que por amor foi capaz de abdicar de seu mais precioso bem, a vida. O clima na embaixada é de paranoia. O Governo Chinês começa a desconfiar dos franceses, e Embaixador Toulon manda seus funcionários vasculharem os escritórios em busca de escutas. Eles encontram várias, inclusive sob os tapetes. Toulon conta a Gallimard que em razão de não disporem de inteligência na França, os norte americanos pediram aos franceses que cumpram a função de "olhos e ouvidos" dos Estados Unidos. O Presidente Lyndon Johnson estuda bombardear o Vietnã do Norte e o Laos, mas precisa antever como os chineses se comportariam em caso de conflito naquela região, e para isso precisam dos espiões franceses. Refletindo o seu caso de amor com Liling em sua compreensão da geopolítica, René diz que os chineses não se importariam tanto "Não dão a mínima para Ho-Chi-Min. Os chineses, bem no fundo, são atraídos por nós". Ele prossegue "Os orientais têm vocação para a submissão. Se os Estados Unidos invadirem, eventualmente os aceitarão como uma união de mútuos benefícios".

Na cena a seguir, descobrimos a verdadeira natureza de Song Liling. Ela está na cama, distraindo-se com um livro, quando revistas americanas são subitamente arremessadas contra as suas costas. Trata-se de Camarada Chin, uma mulher do Partido Comunista, furiosa com os novos prazeres de Liling. Chin abomina tudo ocidental, e quando vê aquelas revistas, com valores que antagonizam tudo o que foi apregoado por Mao, rotula o material como "lixo". Camarada Chin puxa um caderninho, e Liling revela que Gallimard começou a se abrir sobre as intenções dos norte-americanos para o Vietnã. Song Liling é uma espiã do Partido Comunista, não uma artista da Ópera. Ela usava as performances como disfarce, artifício, para capturar o coração de algum ocidental trouxa que pudesse se abrir quanto aos segredos dos franceses. Os norte-americanos pretendem incrementar a força de suas tropas no Oriente, e Song passa para Camarada Chin todos os números. Chin não consegue esquecer os modos "modernos" de Song, que se justifica "Camarada, para melhor servir o Estado, preciso exercitar a arte do disfarce". Na verdade, parece evidente que Song também está se apaixonando por Gallimard e a sua cultura arrojada e "proibida".

Enquanto mantém seu romance extraconjugal, Gallimard segue frequentando as noites de festas sem fim, em homenagem aos europeus entediados. Em uma dessas festas, Frau Baden o convida para a cama, e Gallimard, em um torpor alcoólico, aceita. O encontro é frio e sem resquícios de paixão. Somente em Liling, Gallimard encontra o mistério que mantém acesa a chama da paixão. Song conta a René que está grávida, e o amante se emociona, jurando amá-la e protegê-la. Song despede-se de René, e pega o trem para a província natal, onde espera dar à luz o bebê. Antes de deixar, promete retornar para a vida de Gallimard com a criança. Camarada Chin e Song Liling encontram-se em algum lugar distante de Pequim. A espiã enumera para a Camarada tudo de que precisa para manter a sua farsa. Para justificar aos olhos de René a história da gravidez, pede por uma criança chinesa, com traços europeus. Ao final do encontro, uma fala enigmática, que terá significado mais tarde. Liling declara "Por que na ópera de Pequim, os papéis femininos são tradicionalmente vividos por homens?É porque somente um homem sabe como uma mulher deve agir para seduzir".

Eclode a Revolução Cultural Chinesa, e as ruas são tomadas por partidários simpatizantes de Mao. Soldados da Guarda Vermelha são hostis com funcionários de embaixadas, ou intelectuais em geral. Livros tidos como "nocivos" à causa chinesa são queimados em praça pública. Pequim vive uma atmosfera de caça às bruxas. A ópera, epicentro da cultura, é saqueada pela Guarda Vermelha, as fantasias destruídas, arremessas à fogueira. O Embaixador Toulon lê um memorando sobre a atual situação do país, onde o governo só precisa dos motivos mais insignificantes para expulsar qualquer estrangeiro de suas terras. A regra agora, consoante Toulon, é a discrição. Uma noite, ao voltar para o apartamento, René encontra Song Liling com um bebezinho, nas escadas. Ela lhe apresenta o filho, e René fica tocado por reencontrá-la. Ele suplica para que não parta mais, e se casem. Ele se divorciará de Jeanne. Song explica que não pode casar, e dois guardas subitamente aparecem para escoltá-la. Liling explica que artistas são vistos como figuras nocivas à revolução cultural, e que precisou insistir com os guardas para que tivesse a oportunidade de conversar. Antes de partir, Song Liling desabafa e declara que foi somente com Gallimard que ela "realmente existiu". Gallimard é arrastado a um espiral de culpa e depressão. Toulon não tem escolha, a não ser enviá-lo de volta à casa, Paris. Antes de voltar para casa, retorna para a vila onde Liling morou, e encontra o lugar habitado por uma nova família. Ela agora está em um campo de trabalho forçado, onde escritores, artistas e intelectuais são "recuperados" pelo Governo, para contribuir à nova sociedade de uma maneira produtiva.

Paris, 1968. Gallimard retornou para a Europa, mas jamais esqueceu o seu grande amor. Assistindo a uma versão da ópera de Puccini, lágrimas correm pela sua face, ao se recordar de sua "borboleta". Afogando as mágoas em um bar, Gallimard desabafa com um estranho sobre o quanto foi feliz com Song Liling, na China. Eles escutam o rumor vindo de fora, e pela janela, veem estudantes esquerdistas exibindo exemplares do livro vermelho de Mao, fazendo arruaça e balbúrdia. Uma grande confusão se inicia, quando tropas de choque chegam para abafar o movimento. Morando sozinho em um apartamento de acomodações franciscanas, Gallimard um dia é surpreendido pela visita de Song Liling, tantos anos depois, de mala em mãos. Ela diz que se sente péssima por voltar depois de tanto tempo. "E a sua esposa?", Song Liling pergunta. "Ela está aqui. Está aqui nos meus braços!", é a resposta de Gallimard, que a segura disposto a não deixá-la partir nunca mais.


O casal retoma a vida amorosa de onde havia deixado. Gallimard assume uma nova posição no Governo francês, como courier, transportando documentos sigilosos de Estado. Um dia, é acostado por três agentes da Inteligência, e acusado formalmente por espionagem. Levado a julgamento, a principal testemunha é conduzida ao estande, e vemos um jovem bem aparentado, metido em um elegante terno - Song Liling (John Lone). A "borboleta" de René, a sua "mulher ideal", era o tempo todo um homem, um habilidoso espião chinês. Ao subir no estande, Song conta toda a história de seu envolvimento com Gallimard, e que foi ele quem o convenceu a trabalhar como courier, pois assim ganharia acesso a documentos de Estado que de outra forma jamais teria como obter. Como trunfo, Liling utilizou o artifício do suposto filho do casal, chantageando René com a mentira de que o Partido Comunista estava cuidando da criança, e caso não repassassem tais documentos importantes, os camaradas dariam sumiço no bebê. A promotoria fica chocada com a capacidade de Song de manter toda a farsa, manipulando um homem obviamente inteligente por quase uma década. "O Senhor Gallimard não sabia que você era homem?". Song responde algo nas linhas de que René era apaixonado por uma fantasia, uma invenção que Song criou e a que René se apegou, sem questionamentos.

Durante o julgamento, os dois são transportados juntos. René e Song estão sentados frente a frente, Song caracterizado como homem. Constrangido pelo severo olhar de Gallimard, pergunta o que quer. René pergunta "Você é a minha borboleta?". "Você ainda me adora, não?", é a resposta de Song. "Ainda me quer. Mesmo eu estando dentro de um terno e gravata".René meneia negativamente com a cabeça, enojado, e responde a própria questão "Você não é a minha borboleta. Você não é nada". "Tem tanta certeza assim?", Song provoca, e sutilmente volta a encarnar a "borboleta" por quem Gallimard se apaixonou. "Venha a mim, pequenino", ele diz, enquanto vai se despindo. "O que está fazendo?", ele pergunta, revoltado. "Quero que veja através de minha fantasia". René se afasta e abaixa a cabeça, desolado. Song suplica a René que olhe para seu corpo, e Gallimard começa a chorar. "Você não é a minha borboleta", diz, pela última vez. Certo de que o seu domínio psicológico sobre René não existe mais, Song recolhe-se a um canto, humilhado, e também derrama lágrimas. Esta é a sequência mais marcante do filme, desempenhada com perfeição pelos seus dois astros. Jamais vulgar, Cronenberg lida com o delicadíssimo acerto de contas com o mesmo distanciamento e frieza com que lidou com a exposição da atriz Deborah Unger em "Estranhos Prazeres". Tanto com Unger quanto com Lone, Cronenberg foi bruto, cru e seco, mas jamais vulgar.


Gallimard é condenado por espionagem e cumpre pena em um presídio onde se torna artista, desempenhando ocasionalmente os papéis da peça de Puccini em precárias apresentações teatrais. No final, caracterizado como uma gueixa, René dá a sua melhor performance como a trágica heroína da história original, a mulher virtuosa abandonada sem explicações pelo amado. Durante a cena do suicídio, os presos aplaudem-no pela excelente performance, desatentos ao fato de que René não apenas encenou, como efetivamente cortou o próprio pescoço com um pedaço de vidro, fechando o círculo de sua trágica história de amor com Song Liling. No começo, fomos levados a crer que Gallimard seria o europeu desapegado, e Liling a frágil dama abandonada. Ao final, é Liling quem parte, e René, efeminado e vestido como gueixa, a "borboleta" devastada que abre mão da própria vida por um amor impossível. Aqui, é importante destacar que o nome do filme de Cronenberg jamais foi "Madame Butterfly", mas sim "M. Butterfly", talvez pelo fato de "M" referir-se não a "Madame", mas sim a "Monsieur", a verdadeira natureza de Song Liling, como viemos a aprender ao final.

Excelente mas desprezado filme do diretor David Cronenberg, projeto de "consolação" do cineasta que, à época, início dos anos 90, pretendia rodar a sua adaptação para o romance de Brett Easton Ellis, "American Psycho", sem sucesso. Cronenberg voltou a sua atenção a esta história, que lhe deu a oportunidade de experimentar com os temas com que ao longo de sua filmografia sempre gostou de brincar. Reunindo-se ao artista principal de seu mais elogiado filme, "Gêmeos Mórbida Semelhança", Cronenberg nos traz, ao lado de Jeremy Irons, uma nova história sobre a absoluta destruição que somente o apego pode provocar. Pouco visto, "M. Butterfly" sofreu o mesmo destino que outro excitante thriller de Cronenberg, "ExistenZ": ambos os filmes foram lançados no pior momento possível, batendo de frente com produções de maior apelo comercial que exploravam temáticas semelhantes e que caíram na graça da crítica especializada com maior facilidade. "M. Butterfly" chegou aos cinemas um pouco depois de "The Crying Game", o thriller de Neil Jordan sobre um terrorista do IRA com consciência, que se torna amigo de seu refém, um soldado britânico, e depois de sua morte acidental, procura a namorada do rapaz, vindo a apaixonar-se, apenas para descobrir que se trata de um homem travestido de mulher. "ExistenZ", rodado em 1998, com Jennifer Jason Leigh, falava sobre uma designer de jogos virtuais envolvida em um mistério, onde era caçada por um culto, e lançava os pilares que seriam em seguida explorados em escala maior com "Matrix". Enquanto o filme dos Wachowski esbanjava ação e efeitos especiais, o de Cronenberg optava por um caminho mais lento e cerebral. Apesar destes dois excelentes filmes de Cronenberg terem recebido o reconhecimento justo da crítica, tal respeito não traduziu sucesso de bilheteria, e mesmo hoje, ambos permanecem largamente desconhecidos.

Não bastasse o fato de ter sido amplamente ignorado, o filme de Cronenberg também foi malignamente apedrejado por parte daqueles que o procuraram esperando por um novo "The Crying Game". As pessoas não conseguiam compreender, "Como esse sujeito passa todo um filme vivendo uma história de amor que só existe em sua cabeça, apaixonado por uma mulher que na verdade é um homem, e ainda convicto de que era o pai de um bebê?". Parte das pessoas que conhece "M. Butterfly" e o enxerga sob este prisma parece se esquecer dos temas mais recorrentes de sua carreira, e que nesta adaptação da obra de David Henry Hwang só veste novas roupagens, figurada e literalmente. "M. Butterfly" não pode ser analisado sob a ótica pragmática, baseada em conclusões que as aparências levam a crer. O seu cerne é pura e exclusivamente o de um thriller psicológico sobre a devastadora força do apego e como a carência embaralha o julgamento, e deforma o conceito do que é ou não Real. A batalha psicológica desenrola-se em um campo onde impressões só levam a pistas falsas, e só se ganha quem consegue ler sorrisos e olhares, interpretar as entrelinhas. Se três anos mais tarde, com "Estranhos Prazeres", Cronenberg revisitaria o fascinante tema, cinco anos antes de "M. Butterfly" já havia feito o mesmo, com "Gêmeos Mórbida Semelhança". Não apenas em razão de terem sido vividos pelo mesmo ator, os personagens dos dois filmes são praticamente os mesmos. Tanto Beverly Mantle ("Gêmeos Mórbida Semelhança") quanto René Gallimard ("M. Butterfly") são homens emocionalmente "mortos" para sentimentos, profissionais de sucesso, acima de qualquer suspeita, que escolheram afastar-se das fortes emoções, de encontros e escolhas que viessem a ameaçar o "status quo". Quando um elemento estranho à equação é adicionado a suas vidas e desperta sentimentos de paixão e apego que sequer poderiam antever, o próprio apego os lança em uma rota inexorável de colisão onde a única catarse virá com a auto destruição absoluta, as suas percepções e conceitos outrora sacramentados e inamovíveis finalmente reformados pelo fogo da submissão, humilhação, dor e masoquismo. As vilãs também se assemelham. Claire Niveau, interpretada por Geneviève Bujold, e Song Liling, por John Lone, não guardam a força física para destruir as suas presas, Beverly e Gallimard, respectivamente. Para machucar, as duas precisam da arma que só as suas vítimas têm como lhes entregar: o coração. Com a sua fleuma britânica, Jeremy Irons voltou a emprestar a sua elegância a personagens atormentados em distintos momentos de sua carreira. Ao se falar no protagonista emocionalmente frígido que ao tomar contato com as emoções humanas negligenciadas joga-se à destruição, seria injusto não citar o seu filme "Damage", de Louis Malle, onde praticamente revisita os mesmos heróis atribulados das suas contribuições com Cronenberg.

Sobre a fantasia que Gallimard cria para si e passa a habitar, Cronenberg ofereceu a sua visão da problemática. Ao rodar o filme, compreendeu melhor o dilema ao conhecer as pessoas envolvidas nos eventos que inspiraram "M. Butterfly", principalmente Bernard Boursicot, o diplomata francês a quem Jeremy Irons interpreta (no filme, o personagem se suicida com o espelho quebrado, mas na vida real, cumpriu toda a sua pena e deixou a prisão). Cronenberg diz que do momento em que o filme começa e vemos o nome de "John Lone", sabemos de antemão que Song Liling é um homem, e eis o ponto: todos sabem, platéia e personagens, que na verdade a sedutora artista é um homem, menos o personagem de Irons, ou Bernard Boursicot, se preferirem. Em síntese, Boursicot era um homem que se apaixonou por outro homem, todavia incapaz de aceitar os seus sentimentos, apegou-se a frágil fantasia de que o objeto de seu amor era "a sua borboleta", e até o último momento não acreditou no que as pistas levavam a crer. De muitas formas, esta interpretação nos faz pensar em "Session 9", em que o personagem vivido pelo magnífico Peter Mullan comete todos os assassinatos, porém custa a entender os seus atos, em razão da dissociação de personalidade engatilhada pelo esgotamento emocional.

Curiosamente, Cronenberg não foi o diretor que o produtor de "M. Butterfly", David Geffen, tinha originalmente na cabeça para o projeto. Peter Weir, o cineasta australiano que rodou o seminal "Picnic at Hanging Rock", em 1974, esteve por um tempo associado `a produção, até Cronenberg "subir a bordo". Na reunião com Geffen, em que se candidatou ao trabalho, Cronenberg diz que Geffen confidenciou que jamais considerou o seu nome para a empreitada. Via-o mais como um diretor de filmes de horror, associando o seu nome a trabalhos como "Scanners" e "Videodrome". Cronenberg explicou que, de uma forma ou de outra, todos os seus filmes, em especial "Gêmeos Mórbida Semelhança", falavam sobre o horror da transformação, e mesmo que de maneira mais natural e menos extravagante, menos fantástica, "M. Butterfly" sublinhava ansiedades parecidas. O seu discurso teve um efeito positivo sobre Geffen, e Cronenberg conseguiu ocupar a vaga.

Cronenberg recorda-se das filmagens na China com muito carinho. A sua equipe rodou as cenas externas no período da noite, em uma época do ano onde a temperatura ia às alturas. Às vezes, conta Cronenberg, ficavam filmando até as 03:00. Em especial, em suas reminiscências, ao discorrer sobre a receptividade do povo chinês, revela que certa feita estava a dirigir uma cena externa, em uma vila na periferia que foi usada como a casa de Song Liling, quando uma curiosa criancinha local sentou-se espontaneamente em seu colo para observar, com Cronenberg, pelo monitor, o resultado da cena filmada.Os interiores foram rodados em sets de Toronto, mas a transposição de takes externos para internos parece tão suave, cortesia da cenografia de Carol Spier (colaboradora habitual de Cronenberg), que você não se aperceberia. Lançado nos cinemas em outubro de 1993, a performance de "M. Butterfly" foi paupérrima: o filme não fez mais do que parcos um milhão e meio de dólares na bilheteria. Cronenberg ficou alguns anos sem dirigir, até voltar com força total com o tétrico "Estranhos Prazeres", que lhe valeu a Palma de Ouro em Cannes. Com o tempo, as pessoas que deixaram passar a oportunidade de conferir este maravilhoso suspense nos cinemas descobriram-no em VHS, e muito recentemente, em 2009, a Warner Brothers concedeu ao filme um caprichoso lançamento em DVD, onde a fotografia de Peter Suschitzky transluz cores pulsantes, um amálgama de sensações, um instante de uma época que não volta mais, preservado em celuloide.

As atuações estão fantásticas, Irons e Lone superando-se a cada embate, sendo o grande destaque o britânico sir Ian Richardson, um dos talentos mais brilhantes da era de ouro do teatro inglês, aqui no papel do Embaixador Toulon. Mesmo com pouco tempo em cena, Richardson incrementa o valor de "M. Butterfly", assim como Barbara Sukowa, no papel da mimada e desagradável Jeanne Gallimard. David Cronenberg é um cineasta disputadíssimo por atores, e Holly Hunter, prova disso: ela praticamente deu um ultimato a seu agente e disse "Trate de me colocar no próximo filme de Cronenberg, seja qual for!", e o resultado foi a médica ninfomaníaca com fetiche por carros, de "Estranhos Prazeres". Análise cuidadosa das trágicas almas que compõem histórias tipicamente "cronenberguianas" expõe uma série de recantos muito desconhecidos e assustadores da mente humana, que artistas ousados se voluntariam a explorar, tornando justificável a atração. 

"M. Butterfly", um estranho conto sobre os desconhecidos caminhos da mente, nos lembra que para as pequenas e grandes armadilhas de nossas vidas, somos nós quem voluntariamente caminhamos em direção `as gaiolas onde experimentamos os infernos emocionais. Ao final da experiência, permanecem as perguntas, mas não há respostas fáceis, ou talvez, as que existam sejam tão indecifráveis quanto a ópera de Puccini, ou impenetráveis quanto os caminhos do coração. Gallimard desejava a paixão que justificava o seu fascínio pela ópera "Madame Butterfly"... E conseguiu. Aqui, vale o ditado: cuidado com aquilo que você toma como o seu maior desejo. Ele pode acabar sendo atendido.

Todos os direitos autorais reservados a Warner Brothers. O uso do trailer é para efeito meramente ilustrativo da resenha.