domingo, 11 de agosto de 2013

V/H/S 2 - De cultos suicidas à abdução por alienígenas, este charmoso suspense tem de tudo!

A antologia de pequenos e criativos segmentos de horror V/H/S ganha uma bem vinda sequência com este intrigante e peculiar filme que reúne os mais novos e criativos cineastas do gênero para quatro inventivos e diferentes contos de horror. Desde abdução por alienígenas a ataque de zumbis, passando por fantasmas e cultos suicidas, V/H/S 2 emula com muito charme o espírito criativo e pioneiro do original, reciclando familiares elementos de clássicos de horror para melhor efeito, dando-lhes conotações ainda mais bizarras e surreais, fruto da combinação de estilos muito ousados e diferentes. Muito bem produzido, o filme também esbanja um frescor independente e marginal, diferente das produções caríssimas que chegam aos cinemas na época das férias, porém que de sofisticado nada trazem, vez que “precisam jogar seguro”, ou melhor, recuperar o dinheiro investido na empreitada. Assim como o anterior, as origens essencialmente independentes de V/H/S 2 o tornam uma excelente oportunidade para que os diretores possam exercitar as fantasias que bem entenderem. Talvez não por acaso, V/H/S 2 tenha sido concebido e distribuído comercialmente pela Magnet, a mesma produtora por trás de outros recentes e maravilhosos trabalhos de arte, tais como Monsters & Europa Report.

Um casal de detetives, que vive de flagrantes extraconjugais, investiga o sumiço de um rapaz, desaparecido sem deixar rastros. Os primeiros que deram pela ausência do garoto foram os colegas de faculdade, que então comunicaram a família sobre o ocorrido. Os detetives começam a procurar por informações e pistas em sua casa. No lugar, veem marcas de sangue na parede, os móveis revirados, e encontram um notebook  ligado a aparelhos de videocassete. Ao manipular os arquivos do computador, a moça descobre um documento de vídeo onde o garoto desaparecido fala de modo incoerente sobre ter conhecido o dono de uma loja de penhores na Armênia que lhe franqueara acesso a uma ampla coleção de fitas. Segundo o rapaz, o conteúdo dos snuff films que adquiriu é genuíno. Ele diz algo nas linhas de Nós somos todos apenas energia eletromagnética então essas fitas capturam imagens do sobrenatural. A detetive insere o primeiro tape no aparelho, para compreender sobre o que o rapaz se refere

O primeiro conto revolve um jovem que recentemente sofreu um acidente automobilístico, e perdeu a visão de um dos olhos. Uma arrojada técnica cirúrgica permitiu que os médicos restaurassem o sentido no olho danificado através da instalação de um dispositivo que não apenas lhe devolveu a capacidade de enxergar como também pode registrar as imagens. Após a consulta final com o médico, a caminho da saída, o rapaz nota uma moça parada no hall, que o encara de uma maneira muito estranha. Ele chega a sua casa, localizada em uma bela colina. Quando começa a se pôr à vontade, coisas incomuns passam a se suceder. Depois de dar uma pausa no jogo para preparar uma xícara de café, ao voltar à sala de estar, não encontra o controle, e, na cozinha, a chaleira é inexplicavelmente arremessada ao chão. O que começa estranho torna-se macabro quando ao passar para a suíte principal, vê claramente uma silhueta sob o lençol da cama. Ao puxar o lençol, não há ninguém, porém ao se virar, encontra um homem muito pálido e ameaçador, que não lhe dirige a palavra. Apavorado e incrédulo, o rapaz se tranca no banheiro. Mais tarde, encorajado a verificar o restante da casa, enxerga um novo visitante, o fantasma de uma menina. Desta vez, o visitante interage com o ambiente, pois depois que o homem procura refúgio no banheiro, a porta começa a bater do lado de fora, como se o espírito quisesse entrar. Exausto e aterrorizado, o rapaz acaba por dormir ali mesmo.

Na manhã seguinte, ao acordar dentro da banheira, destranca a porta e encontra a casa toda revirada. Naquela mesma tarde, a moça que viu no hall do hospital aparece na sua porta. Ela se identifica como Clarissa, e lhe pergunta se desde a cirurgia fenômenos incomuns têm acontecido.O rapaz fica surpreso - como ela poderia saber?Clarissa lhe explica que nasceu surda, e aos 16 anos se submeteu a uma operação para implante coclear. A cirurgia lhe deu a audição, e algo mais. Clarissa passou a sintonizar determinadas frequências nos ambientes que ninguém mais conseguia perceber - ela passou a escutar os mortos. Ela conta ao rapaz que assim que entrou, escutou uma menininha chorando, e novamente ele reage com choque, vez que realmente enxergou o espírito de uma garota na noite anterior. Clarissa pede para que tenha calma. Segundo a moça, a maioria das pessoas jamais se dá pela presença de espíritos. Quando muito, veem-nos uma só vez em toda a vida, e isso se estiverem abertas o suficiente para a experiência. Dar-se pelos espíritos pode ser perigosíssimo, pois uma vez que percebam a conexão, marcam as pessoas para o resto de suas vidas, atormentando-as com queixas e pedidos. Clarissa o avisa a não interagir com os visitantes, pois quanto mais lhes der atenção, mais suscetível se tornará ao assédio, mais fácil ficará para que os espíritos o machuquem. O rapaz pergunta se a retirada do implante o ajudaria, mas Clarissa o desencoraja: de certa forma, apenas deixaria de vê-los, pois os visitantes continuariam ao seu redor, incomodando-o.Quando o rapaz se distrai e olha pela porta de vidro que dá para a área da piscina, encontra um homem de meia idade nu, de aparência realmente assustadora, a boca ensanguentada, olhando-os com ódio. Clarissa dá com os ombros, como que esperando pela visita, e lhe revela que o homem assustador em questão é o falecido tio. Ela consegue ouvi-lo; já o rapaz, enxergá-lo. Procurando distrai-lo, vez que quanto mais atenção, pior o assédio, Clarissa tira a roupa e os dois começam a fazer amor. A estratégia parece funcionar!Os dois dormem abraçados, e o visitante desaparece. 

O rapaz acorda e constata que os cômodos ainda estão repletos de manifestações esquisitas. Na cama da suíte, identifica com muita clareza um pequeno volume dormindo sob os lençóis, e ao arrancá-los, a menina morta que o atormentou na noite anterior salta em sua direção. A partir deste momento, a situação, anteriormente discreta, torna-se caótica:da sala de estar, chegam os gritos de Clarissa. Quando o rapaz procura ajudá-la, vê que a moça foi arrastada para a beira da piscina. Ele tenta lhe dar a mão, mas forças invisíveis a puxam para a água. Clarissa acaba se afogando. Ao retornar para dentro de casa, o homem dá com a menina e o homem do dia anterior, e ao correr para o quarto, ao passar pelos corredores e cômodos, enxerga novos visitantes, mais agressivos. Certo de que a sua única saída é a extração do olho operado, o rapaz o arranca "na raça", porém, conforme Clarissa alertara, a retirada do olho pouco faz para salvar a sua vida. Os espíritos entram no banheiro e o matam de uma forma horrível. 

A segunda estória oferece uma nova perspectiva para a instigante estrutura dos filmes de zumbis. Desde que George Romero praticamente inventou sozinho o estilo em 1968 com A Noite dos Mortos Vivos, outros cineastas fizeram experimentos, em um leque de distintas e interessantes visões, sendo a de Danny Boyle com o seu eletrizante 28 Days Later a mais autêntica e artística derivação da premissa. Em razão do número de filmes semelhantes, seríamos levados a crer que a fórmula não teria muito a oferecer, apenas "truques" velhos e conhecidos, mas o criativo V/H/S 2 consegue construir algo de inusitado e refrescante.Neste segmento, acompanhamos um rapaz que vai passear com a bike na estrada do parque. Ele faz uma ligação para a namorada,e promete retornar cedo, logo que terminar a prática. Durante o passeio, uma moça subitamente emerge do bosque e se joga desesperadamente na sua frente. Ela foi mordida, e implora que o homem a ajude. Menciona alguma coisa sobre o namorado, mas antes que possa se explicar melhor, começa a vomitar sangue. O rapaz lhe dá algum espaço, e ao olhar em outra direção, enxerga algumas pessoas caminhando de maneira estranha e lenta, quase como se estivessem em transe. Ele se assusta com o que vê, e quando vai ajudar a moça a se levantar, para que ambos possam dar o fora, é mordido. Cambaleante, cai mais adiante na trilha para bicicletas. 

Um jovem casal o encontra, e dentro da mesma dinâmica do que aconteceu previamente, são mordidos ao procurar ajudá-lo. As pessoas no bosque parecem infectadas por um vírus semelhante ao da Raiva, só que potencializado. O tempo entre a mordida e a manifestação dos sintomas é exíguo, questão de segundos, e assim, logo o Mal se espalha entre os ciclistas e corredores na trilha das bicicletas. Mais adiante no parque, uma família celebra o aniversário da filha, alheia ao que se passa nas cercanias. A alegria é interrompida pelos gritos da menininha, que quando está para assoprar as velas, enxerga os zumbis chegando. Em uma cena brutal, a carnificina toma conta do lugar, com alguns pais sendo mordidos; outros, resistindo ao ataque dos zumbis e os enfrentando. Duas famílias conseguem fugir em seus carros. O rapaz do começo do segmento, o ciclista, é colhido por um dos carros, e ao ser atirado ao chão, acaba por discar involuntariamente para a namorada, com quem conversara antes de toda a confusão. Mesmo tomado pelo vírus, a voz da namorada parece resgatar um pouco da humanidade que resta ao infectado, e ao tomar conta de que se tornou um zumbi, consegue ter a lucidez para pegar um rifle que apareceu no meio da comoção, e se matar, pondo fim ao processo de transformação. 

O terceiro episódio é o melhor da coletânea. Dirigido por um maravilhoso cineasta que recentemente deixou o mundo boquiaberto com o cinético filme de ação The Raid - Operação Invasão, o segmento, intitulado Safe Haven, é o mais longo dos quatro, e funciona como um inexplicável, enriquecido e surreal pesadelo, onde cada peça é única e peculiar, mas cuja soma não faz sentido algum. Logicamente, o fato de as peças não se encaixarem levariam as pessoas a classificar o filme como incompleto, mas quando se compreende que a atmosfera do segmento é a de um esquisito sonho, a montagem faz perfeito sentido. Ademais, a força cinética esbanjada por Gareth Evans em The Raid - Operação Invasão dá as caras em Safe Haven, que em seus claustrofóbicos trinta e cinco minutos nos deixa em um estado de nervos que somente as melhores montanhas russas seriam capazes de reproduzir. Talvez não por acaso, os produtores tenham concedido a Evans maior espaço de tempo para explorar suas ideias, em um sinistro conto que envolve seitas religiosas, zumbis, apocalipse e a concepção do Anticristo. 

Na Indonésia, uma equipe jornalística composta por quatro pessoas - um casal de repórteres, o operador de câmera e som e o produtor - encontra-se em um restaurante com um recluso líder religioso a quem chamam de O Pai, para uma breve entrevista. O Pai é o mentor espiritual de um lugar conhecido como "porto seguro", recanto para pessoas de passado problemático, sedentas por aceitação e um novo começo. A nenhuma equipe jornalística foi franqueado acesso ao interior da comunidade. O Pai tem seus motivos para manter distância da mídia, pois acredita que suas convicções jamais seriam levadas a sério, e as pessoas os enxergariam como aberrações. Ele fala que o mundo como o conhecemos é passageiro, e que há uma ordem superior, um novo plano, onde só existem felicidade e paz para os fiéis que realmente creem em uma nova dimensão. O Pai conta que os fiéis estão convictos de que o momento de cruzar os portais para o paraíso se aproxima. Intrigada com as palavras do homem, a repórter lhe solicita uma entrevista mais aprofundada, a ser filmada dentro da comunidade. O Pai rejeita o pedido, mas a moça o vence pela insistência. Ela argumenta que compreende sua aversão à imprensa, mas promete que a abordagem da equipe se pautará pelo respeito às suas crenças - ela reafirma que apenas deseja lhes dar um espaço para colocarem as ideias da seita.

O "porto seguro" parece funcionar como uma típica comunidade isolada. Há câmeras instaladas pelos corredores e cômodos do complexo habitacional, erguido em um lugar remoto, distanciado da cidade. Os fiéis contam com o suporte de médicos e confortáveis salas de aula para as crianças. A equipe chega ao "porto seguro", e é recebida no portão por uma mulher e uma menina. Após a troca inicial de cordialidades, a garota presenteia a repórter com uma espécie de colar feito de raízes, e quando esta lhe pergunta se tem outras meninas com quem possa brincar na comunidade, a garota lhe diz que não é mais "menina", porque O Pai já a transformou em mulher. A senhora da seita imediatamente a silencia, e emenda um outro assunto. O momento sutil muito nos fala sobre a natureza da liderança e fascínio que O Pai exerce sobre as mulheres da comunidade. Nas entrelinhas, parece óbvio que O Pai costuma "purificar" as meninas e "transformá-las" em adultas, ou seja, ele é um maldito pervertido e as pessoas na comunidade são tão ou talvez mais doentes do que o guru. A equipe jornalística tem um mau pressentimento sobre a situação. 

Antes de serem levados ao encontro do Pai, a mulher os convida a um passeio através do complexo. No jardim, há crianças pulando corda, e em um dos salões, rapazes ajoelhados fazendo suas preces. Também visitam a sala para atendimento médico, o refeitório, e a sala de aula. Apesar da aparência de paz e tranquilidade, um clima tétrico e perigoso paira sobre o ambiente. O complexo é um lugar que muito embora sugira normalidade esconde segredos sujos. Já no gabinete do Pai, a equipe começa a preparar a entrevista. Ao prender o microfone na lapela da camisa do Pai, o operador de som vê manchas de sangue, e discretamente comenta o ocorrido com o repórter. Quando estão para começar a rodar a entrevista, a jornalista passa mal e se escusa. O jovem produtor diz ao repórter que a acompanhará ao banheiro, e que podem começar os trabalhos, pois não se demorará. A entrevista é desconfortável e tensa. O jornalista questiona O Pai sobre a delicada natureza do relacionamento entre o guru e as meninas do "porto seguro".

Caminhando enjoada pelos longos corredores vazios do "porto seguro" rumo ao toalete, a atenção da repórter é capturada pela sala de aula e as crianças, concentradas na atividade de rabiscar desenhos. Ela entra distraidamente, cumprimenta as crianças, mas então sofre um terrível susto quando, ao se virar, vê, paradas na porta e a observando com olhares analíticos e frios, a mulher mais velha e a menina que conhecera na chegada ao complexo. Ligeiramente assustada, a repórter procura amenizar a situação, com um comentário sobre o quão lindas são as crianças. A mulher responde com "Mas não tão lindas quanto a sua será". Esta cena é um dos instantes mais horripilantes do filme - nada de violento acontece, mas entonações de voz e olhares ambíguos deixam bastante explícito que toda a equipe de reportagem caiu em uma armadilha, e a comunidade do "porto seguro" tem planos para os visitantes. Há um truque de câmera, e se os amigo prestarem muita atenção compreenderão o efeito perturbador que o cineasta Gareth Evans procurou imprimir: quando a mulher e a menina se aproximam da repórter, com todo aquele papo esquisito de que "vai ter um filho muito especial", as duas parecem "deslizar" sobre o chão, parecem aproximar-se da moça sem caminhar, ao menos aparentemente. É um efeito muito sutil e discreto, que poucas pessoas vão perceber, mas que sem dúvida eriçará os cabelos de muitos, por razões que sequer saberão nominar. 

Para a sorte da repórter, o produtor chega à sala, perguntando se ela se sente melhor. Os dois deixam o lugar juntos para tomar um pouco de ar. A moça desabafa, emocionada, revelando-lhe que está grávida. Além da gravidez inesperada, confidencia que crê que o pai do bebê não seja o marido repórter, mas o próprio produtor: os dois mantêm um caso, obviamente desconhecido pelo marido. Neste ínterim, o repórter segue com a entrevista. O Pai justifica a íntima ligação com as crianças como uma forma de purificá-las para que possam atravessar límpidas os portais do paraíso. O rapaz retruca, perguntando como crianças, em sua inocência, teriam "impurezas" a serem corrigidas, porém O Pai insiste na mesma ladainha de paraíso e purificação. Enquanto O Pai defende inspiradamente a nobreza de seus ideais, o operador de som se inclina no ouvido do repórter e lhe avisa que a bateria está acabando. O jornalista explica o imprevisto técnico, e pede para que O Pai aguarde um pouco, pois irá apanhar novas baterias no carro, para que prossigam com a entrevista. Ao procurar por baterias na van, o repórter presta atenção a um dos monitores. A sua esposa tinha sido preparada com uma microcâmera no bolso da blusa, para capturar imagens aleatórias do "porto seguro" sem o conhecimento dos fiéis. Desavisadamente, quando começou a contar ao produtor sobre a gravidez e o romance extraconjugal, a moça não se atentou ao fato de que estava transmitindo a imagem, e para seu azar, o marido se encontrava na van, observando o monitor, bem no momento em que confidenciava seus temores e segredos. 

No escritório, O Pai usa o microfone para se dirigir aos fiéis pelo sistema de som do complexo. Ele diz que por todos aqueles anos foi a bússola de suas vidas, e que muito embora a espera tenha sido muito longa, a "hora" finalmente chegou. Mulheres da seita aparecem na sala de aula oferecendo copos d'água, e O Pai lhes diz para não hesitar, devem beber até a última gota. O operador de som, que até então escutara a tudo calado e perplexo, tenta conversar com O Pai, mas este ordena que se mantenha calado. Enquanto a transmissão chega aos corredores do complexo, o produtor acaba entrando em uma sala semelhante às de parto, e ao puxar o lençol sobre um volume, encontra o corpo de uma mulher com a barriga rasgada. Ele entra em pânico e sai correndo. No gabinete, O Pai entoa entusiasmado o seu sermão, e começa a se despir. Antes que o operador possa fazer alguma coisa, O Pai puxa um estilete e o mata. A repórter vê as crianças bebendo a água oferecida, e fica estarrecida quando começam a morrer. Ao fim do longo corredor, as mulheres da seita surgem vestindo máscaras antissépticas brancas e a dominam. 

O produtor, amante da moça, dá com as crianças mortas sobre as carteiras da sala de aula. Ele trata de correr para encontrar a repórter. Por seu turno, alheio à comoção que acontece dentro do complexo, o marido, bastante aturdido pela descoberta do romance extraconjugal, também retorna correndo para "porto seguro", e cruza com um grupo de rapazes bem vestidos de camisas brancas, de armas em punho. Após uma oração, estouram os próprios miolos. Um dos fiéis, rifle em punhos, tenta acertar a testemunha, mas erra o disparo. Inicia-se uma luta, o jornalista consegue tomar a arma e atirar no inimigo. A vitória, todavia, dura pouco, quando mais três homens entram no salão e conseguem rendê-lo.O produtor chega bem na hora em que o amigo está de joelhos, prestes a ser executado por um dos fiéis. Ele pede para que o homem não mate o colega, mas o jornalista diz para que o esqueça e vá atrás da mulher para tirá-la dali. O fanático aperta o gatilho e estoura os miolos do marido traído. Antes de voltar o cano contra a própria boca e atirar, despede-se do produtor "Foi um prazer conhecê-lo, senhor". 

Munido de estilete e completamente nu, coberto por sangue e dançando como um louco, O Pai lidera as mulheres da comunidade, que arrastam a repórter pelo corredor escuro em direção a um galpão onde O Pai promete que "passarão" pelos portões do paraíso. O amante apanha uma enorme barra de ferro, e espera que os fanáticos entrem no galpão para apanhá-los de surpresa. Ele está caminhando rumo ao galpão, quando as portas explodem, e uma espécie de demônio magérrimo e desengonçado surge pelo teto e sai em disparada, dobrando ao final do corredor e desaparecendo. Logo em seguida, aparece O Pai, declarando que o ciclo foi fechado. O rapaz se prepara para enfrentá-lo, porém O Pai implode, literalmente indo pelos ares. Galpão adentro, o produtor usa a barra para matar as fanáticas que seguram a amante em um leito de parto. Depois de vencê-las, trata de ajudar a moça, porém ela parece ter entrado em processo para dar à luz. A barriga move-se como se uma coisa forçasse o movimento por dentro. Desesperado, o rapaz insiste para que o acompanhe, para que deixem o lugar, mas a dor a impede de se mover. Repentinamente, a barriga explode. O produtor corre, mas ainda consegue enxergar uma enorme, monstruosa criatura, semelhante a um touro musculoso, saindo das entranhas da amante. 

À essa altura, a tensão e o horror custaram a sanidade do rapaz. Ele percorre desesperadamente os corredores, sobe e desce escadas, procurando pela saída do "porto seguro". Uma sirene de alerta arrepiante, parecida com aquelas que escutamos em filmes sobre guerra nuclear, passa a soar. No corredor que dá para a sala de aula, o produtor reencontra o amigo operador de som, o mesmo que fora esfaqueado até a morte pelo Pai. Agora um zumbi, o operador avança em direção ao rapaz, mas este consegue se desvencilhar. Na sala de aula, as crianças parecem estar aprendendo música, mas uma rápida constatação demonstra que também foram transformadas em mortos-vivos. Caminhando pesadamente, o furioso demônio/touro a que a amante deu à luz minutos antes surge esmurrando as paredes, fazendo-as tremer. Antes de alcançar o estacionamento, o produtor ainda precisa se desvencilhar de dezenas de zumbis, o último sendo o amigo a quem traiu e que teve os miolos explodidos. O fato é que eventualmente consegue subir os últimos degraus e chegar ao jardim. Ele quebra a janela do carro, entra e dá a partida. No caminho do portão, nós escutamos um horroroso rugido, o que nos leva a crer que o Minotauro se encontra nas imediações.

O carro corre em zigue-zague pelas estreitas vias do bosque, e por um momento acreditamos que o pior passou, até que uma violentíssima pancada no lado do motorista o joga para fora da via. O rapaz sobrevive ao acidente, mas está extremamente ferido. Ele tenta sair pela janela traseira, mas então o demônio ressurge. O Minotauro tem asas, e também chifres semelhantes aos de uma cabra. O demônio o reconhece e diz, com uma voz horripilante "Papai". O rapaz começa a rir descontroladamente, a mente completamente perdida para a loucura e o horror. 

Pela descrição do enredo, como os amigos podem perceber, há partes deste conto que não parecem fazer sentido, a não ser se as aceitarmos consoante a intenção do diretor: a de nos oferecer uma experiência a mais próxima possível a de um pesadelo. As peças jamais se encaixariam como um todo, todavia o "todo" jamais foi uma preocupação de Gareth Evans. Na verdade, o segmento é alavancado por momentos, por "peças", e da mesma forma que os mais terríveis pesadelos não fazem sentido, o filme passa longe de explicações. Nós temos de acatar o horror que nos é oferecido, sem respostas exatas, sem motivações fornecidas. Aqui, vale lembrar o que o grande Clive Barker disse, certa feita, em uma entrevista, ao discorrer sobre seu amor à pintura, que o ateliê tornara-se seu lugar preferido. Por quê?Nas palavras do próprio, o seu ateliê "(...) é um lugar onde me sinto seguro, e onde eu posso fazer as minhas criações sem ser questionado, sem que as pessoas me perguntem 'por quê'. O grande inimigo da arte é o 'por que', a arte deve ser a sua própria justificativa, a arte não requer perguntas, a arte não requer respostas, a arte é a sua própria resposta, e se não o for, então não é arte. Eis toda a minha filosofia sobre arte". Partindo da filosofia do extraordinário Barker, o segmento dirigido por Gareth Evans tem como razão de existir o sentimento de angústia e eletricidade, evocado em peças individualmente perfeitas - a melodia da sirene, o touro alado com chifres de cabra, os zumbis, o romance extraconjugal entre a mulher e o melhor amigo do marido - que, se montadas, não comporão um todo coeso, mas um aterrorizante caos imperfeito, material do qual pesadelos são feitos. 

Entre o terceiro e o quarto segmento, V/H/S 2 nos leva de volta à primeira estória do casal de detetives. O homem chama pela parceira, e a encontra morta no chão, em frente ao aparelho de televisão. Ele acha uma fita cassete onde a moça escreveu "Assista-me" com o batom. No último segmento, a garotada realiza filmes caseiros com uma câmera, acoplada ao cachorrinho da família, Tank. A família mora em uma confortável e espaçosa casa, com um celeiro à margem de um plácido lago. Partindo de férias, os pais se despedem dos filhos – uma adolescente e um garotinho – e pedem para que tomem conta da propriedade enquanto estiverem fora. Assim que os adultos partem, a garota traz o namorado e o restante da turma. O clima é de festa e brincadeiras. A galera tem a casa para si, e pretende aproveitar a liberdade com muitas festas. No píer, os amiguinhos do menino preparam pistolas d'água e provocam os mais velhos, “fuzilando-os” com jatos por todos os lados. O garoto que maneja a câmera portátil pula no lago, e por um momento, a câmera nos mostra, submersa, uma figura humanoide nadando em direção à superfície. A turma não percebe nada de diferente, e a atmosfera é de absoluta descontração e algazarra. Mais tarde naquele mesmo dia, os meninos arquitetam um plano para assustar a irmã e o namorado, que estão a sós e em clima de romance no quarto. A garotada invade o quarto com luzes estroboscópicas e música alta, interrompendo o namoro e enfurecendo o casal.

Quem prestar atenção nesta cena dará conta de um som semelhante ao gutural apito de um trem expresso, e a oscilação da tensão elétrica da casa. Os meninos, todavia, parecem não prestar muita atenção. A criançada deixa a casa correndo, o rapaz mais velho e a moça saem no encalço. Os meninos fogem para o píer no lago. Enquanto se escondem, os meninos notam luzes fortes elípticas do outro lado da margem, mas não conseguem identificar do que se trata. As luzes somem e os meninos são apanhados pelo namorado e a moça, que lhes tomam as câmeras. Mais tarde, o casal resolve se vingar e aprontar com a meninada. Eles chegam de mansinho pelo corredor e dão o flagrante nos garotos, que estavam assistindo a um filme de mulheres peladas. A brincadeira é interrompida por um breve flash de luz que vem do lado de fora, e novamente o som assombroso semelhante ao apito de um expresso. Aterrorizados, o grupo percebe a presença de silhuetas altas e magérrimas posicionando-se do lado de fora. O namorado deixa a sala e volta com um rifle em mãos.Quando sai para o alpendre para investigar, é implacavelmente atacado pelas figuras altas e magras, os "Cinzas".

Desesperada, a namorada do rapaz sai correndo em direção às estranhas figuras, que o estão arrastando para longe do alpendre. Os meninos também são sequestrados pelos "Cinzas" e arrebatados para a nave espacial. O irmão da moça e o cachorrinho se refugiam em um saco de dormir, porém também são puxados pelos "Cinzas". Os membros remanescentes os salvam, mas o garoto está desacordado. Enquanto a irmã realiza a respiração boca a boca, as luzes estroboscópicas mostram os "Cinzas" emergindo do lago e escalando o píer. Uma vez que o garotinho recobra a consciência, os sobreviventes correm para a floresta, para se protegerem por trás das árvores. Dali, assistem a luzes vermelhas e sirenes, à distância. Crentes de que a polícia chegou, deixam o esconderijo. Na verdade, as luzes e o som vinham da espaçonave dos "Cinzas". Mais sobreviventes são abduzidos, restando, por fim, somente a moça, o garotinho, e Tank, o cãozinho. Eles conseguem alcançar o celeiro, e a irmã insiste para que o garotinho suba com Tank, e se esconda no sótão. O garoto ainda enxerga a irmã sendo apanhada pelos alienígenas. Ele abraça o cachorro e procura não fazer barulho. A espaçonave estaciona logo sobre o celeiro, e o telhado é subitamente arrebentado. Garoto e cachorrinho são suspensos por uma força invisível, que os vai puxando pela altura, em direção à nave. O cachorrinho acaba escorregando das mãos do dono e cai de volta ao celeiro, enquanto o menino é abduzido e desaparece com os visitantes, engolido pelo céu escuro.  

O filme conclui com a estória do casal de detetives. Depois de assistir ao quarto segmento, o detetive também vê o último arquivo gravado pelo rapaz desaparecido. Seu discurso é confuso, e, diante da câmera, acaba colocando uma pistola sob a mandíbula e apertando o gatilho. O estrago arranca a arcada inferior, mas para a surpresa do detetive, que assiste ao vídeo, o cadáver se levanta e deixa calmamente o recinto com metade do rosto explodida. A companheira, agora um zumbi, subitamente o ataca, mas ele consegue quebrar seu pescoço. O zumbi continua avançando, e somente depois de fuzilá-la, o detetive consegue efetivamente detê-la. Antes que acredite que está tudo acabado, o corpo do garoto desaparecido ressurge na escuridão e o apanha por trás.  

Em um ano de excelentes filmes de horror, V/H/S 2 é mais uma bem-vinda adição ao recente renascimento do gênero, e uma pedida obrigatória para os fãs. Até onde sei, tanto o primeiro quanto o segundo V/H/S não foram lançados no Brasil, e eu lhes assisti em DVD importado, porém com o advento da internet, o acesso a todo esse excelente material tem se tornado mais simplificado. Os dois filmes possuem um charme a mais, eu diria que um "apelo marginal", quase como uma visita aos antigos clássicos de horror dos anos 70, feitos na base da "tática de guerrilha": eram produções rodadas a baixo orçamento, marginalizadas, tidas como arte de baixo calão, porém encontravam, no circuito alternativo e nos teatros de cinema mais pobres, um mundo só seu, onde podiam prosperar e ocupar o fértil imaginário dos fãs. Os dois filmes são bem produzidos e seu valor artístico é inquestionável, porém a abordagem seca e direta e os enredos bizarros nos fazem rememorar uma profícua época do cinema de horror, a era do "exploitation", que ficou definitivamente para trás e deixou saudades, quando Dario Argento e David Cronenberg eram seus Senhores absolutos. 

E, afinal de contas, qual é o melhor filme?O primeiro V/H/S ou a sequência?Uma pergunta difícil. Eu diria que ambos são excelentes, todavia o primeiro tem algo que o segundo não trouxe. Muito embora todos os segmentos do segundo tenham sido empolgantes, em especial o dirigido por Gareth Evans, o primeiro nos brindou com um segmento em particular que o elevou ao patamar de clássico. "Segunda Lua-de-Mel" era o episódio onde um jovem casal faz uma viagem pelas rodovias do Arizona, e entre motéis de beira de estrada e cidadezinhas turísticas que recriam o Velho Oeste, é assediado por uma misteriosa garota. O que esse segmento, ou melhor, o seu diretor, fez com maestria, foi sustentar a atmosfera e uma atemporal aura de mistério, que o tornou o ápice da série V/H/S. Eu sempre acreditei que "Segunda Lua-de-Mel" merecia mais tempo para que Ti West, o diretor, lapidasse seu talento em sustentar atmosfera e tensão, o que sempre faz de maneira sutil e elegante. Mesmo em sua curta duração, porém, foi perfeito. Assim, apesar de V/H/S 2 fazer parte do grupo dos cinco melhores filmes de horror do ano, faltou algo a mais, talvez um conto tão atmosférico e climático quanto "Segunda Lua-de-Mel", para superar o primeiro. Mesmo assim, o resultado final é excelente, e V/H/S 2 é a minha indicação para quem ama o horror, uma forma de segurar as pontas até que chegue setembro, quando o novo filme de James Wan, The Conjuring - Invocação do Mal estreará nos cinemas. Eu vi o filme de James Wan, sobre a investigação verídica do casal Warren em uma casa assombrada, e posso declarar: os amigos não encontrarão melhor filme em 2013. Foi Invocação do Mal que me fez ter a certeza de que esse rapaz é o melhor diretor de filmes em atividade no mercado. A minha próxima resenha abordará o filme. Um forte abraço e até a próxima!
 
Todos os direitos autorais reservados a Magnet Releasing. O uso do trailer é para efeito meramente ilustrativo da resenha. 

quinta-feira, 18 de julho de 2013

Europa Report (2013) - Tão fantástico quanto "...um pássaro pintado por um esquizofrênico".


Em um futuro próximo, a NASA organiza uma missão para uma das luas de Júpiter, chamada Europa. Seu objetivo revolve investigar a possibilidade de vida alienígena em nosso sistema solar. Sondas não tripuladas haviam previamente apontado que sob a superfície glacial de Europa há um oceano similar ao de nosso planeta, o que incrementa as chances de existência de vida extraterrestre, mesmo que a nível monocelular. 6 dos melhores astronautas do mundo enfrentam riscos inimagináveis em uma longa viagem que tomará quase dois anos até as luas de Júpiter. Quando do começo do filme, a equipe acaba de completar 6 meses de jornada e já foi mais longe do que qualquer outra missão espacial. Os tripulantes da Europa Um parecem empolgados e confiantes. Quando uma inesperada tempestade solar arruína os meios de comunicação entre a tripulação da Europa Um e o controle da missão em Houston, a Terra deixa de acompanhar o avanço dos heróis em sua aventura. Um ano e seis meses mais tarde, o contato entre a nave e Houston é restabelecido. A Europa Um aterrissou nas geleiras da lua de Júpiter, porém o que deveria ser triunfo se torna pesadelo, quando um terrível segredo sob a geleira ameaça as vidas dos tripulantes. O controle da missão consegue acompanhar os últimos momentos dos astronautas. As aterrorizantes imagens revelam uma realidade muito mais estranha e inexplicável da que a tripulação poderia ter esperado.

Lançada durante o mais competitivo mês do cinema norte-americano, essa extraordinária ficção científica fadada a passar despercebida ironicamente se prova muito superior a todas as superproduções que farão dinheiro nas férias de 2013. Lamentavelmente, levará algum tempo até que as pessoas conheçam Europa Report. Estou convicto de que dentro de alguns anos, o filme terá se tornado um cult-movie de peso. Assim como os outros filmes lançados pela produtora independente Magnolia Pictures/Magnet Releasing, Europa Report é uma rara joia de horror, um trabalho muito pessoal para os envolvidos, que conseguiram reimaginar conceitos batidos para oferecer algo único e magnífico. Assim como V/H/S e V/H/S 2 fizeram anteriormente, Europa Report consagra a Magnet Releasing como uma das forças criativas do cinema independente. Os trabalhos lançados pela distribuidora representam uma lufada de ar fresco para os fãs de horror que desejam produtos mais desafiadores, ousados e incomuns. Assim como a britânica Vertigo, de onde vieram os excepcionais w Delta z e The Children, a Magnet se tornou recanto para os cineastas novatos cheios de criatividade e paixão, que sabem que jamais conseguiriam exprimir as suas ideias dentro do rígido controle dos grande estúdios, e escolheram orçamentos modestos e ampla liberdade de expressão, preterindo produções caríssimas de modelos superados. Os diretores talentosos que optaram por fazer os filmes com maior liberdade e menor orçamento vêm ganhando o respeito de um nicho de mercado, e o suporte posterior de estúdios maiores. É o caso de Gareth Edwards, que pela Vertigo, filmou o encantador Monsters, em 2008, e no ano passado (2012) foi convidado a rodar o novo e caríssimo filme Godzilla, com grande elenco, em vias de lançamento. O diretor Sebastián Cordero, realizador de Europa Report, terá um brilhante futuro profissional pela frente, desde que se mantenha fiel a seus instintos e a natural visão artística. 

Europa Report é um triunfo cinematográfico de story telling, um suspense atmosférico onde as situações vão escalando para uma breve, surreal conclusão que ficará em seus pensamentos por muito tempo. O diretor Cordero monta o filme como uma matéria jornalística, com direito a depoimentos, entrevistas e found fottage. Felizmente, Cordero foge da datada e cansativa armadilha das câmeras estremecidas, tão notória em filmes como A Bruxa de Blair. Assim como Renny Harlin fez recentemente com The Dyatlov Pass Incident, deixa-as frequentemente estacionadas, como câmeras em suportes, observadoras imparciais de tudo o que acontece com a tripulação durante a viagem às luas do planeta Júpiter. Europa Report nos remete ainda ao memorável Lake Mungo, o suspense australiano de 2008 que também adotava o formato de matéria jornalística/documentário, similar a episódios especiais do extinto Linha Direta, e contava o caso de uma família visitada insistentemente pelo poltergeist da filha, após sua morte na represa da cidadezinha de Ararat. Ambos os filmes também nos ofereciam conclusões racionais e sensatas para os grandes mistérios. A jornada da família em Lake Mungo, do luto à aceitação, parece familiar a todos, afinal viver também significa perder: você vai perdendo posses, mas, talvez muito mais importante, pessoas amadas. A seu turno, a obstinação que leva os astronautas da Europa Um a ir até às últimas consequências para responder a questão sobre se estamos ou não sozinhos no universo reflete temores que trazemos conosco desde a origem do mundo. Em Europa Report, o contato se sucede, porém não da maneira que os fantásticos filmes de ficção similares apresentam. O tipo de vida encontrada e a sua interação desastrosa com a tripulação representam o material do qual verdadeiros pesadelos são feitos.

Apesar de formatos similares, as propostas são diferentes: Lake Mungo, sobre o espírito atormentado de uma garota que somente encontrará paz se revelar um obscuro segredo; Europa Report, a ficção científica centrada na realidade, um amálgama de entrevistas e cenas registradas que montam o quebra-cabeça dos últimos meses para a tripulação da Europa Um, em sua jornada para estabelecer contato com vida alienígena. Resenhas têm enaltecido a fidelidade do diretor aos detalhes científicos envolvidos em missões espaciais. Enquanto há filmes absurdos e fantasiosos sobre aventuras no espaço e a busca por contato com vida inteligente extraterrestre, nessa produção, a tripulação da Europa Um comporta-se como profissionais treinados à altura da empreitada, e o desenrolar da jornada, embora conclua com o inusitado, não desrespeita as raias do que tomamos como possível, como Real. Desde o trabalho em equipe dos astronautas até sua sincronia com o pessoal do controle em Houston, o diretor recria a missão espacial de forma a nos levar a crer que o filme realmente se trata de um documentário, e não ficção científica. Assistimos às coletivas de imprensa dos diretores da operação em Houston, ao lançamento da nave no espaço, aos momentos iniciais da viagem, cada pedacinho uma peça do quebra-cabeça. A assombrosa realidade – o que ocorreu um ano e meio após a perda de contato entre Europa Um e Terra – surge apenas no final, revelando-nos o mais bem guardado segredo, a última peça a completar o quadro maior.

O talentoso artista Sharlto Copley deve ser o nome mais conhecido entre os seus maravilhosos colegas de elenco. Sharlto Copley se tornou famoso após a inesquecível performance em Distrito 9, no papel de um homem que trabalhava para o governo na triagem e suporte de alienígenas que haviam perdido o caminho de volta para casa e sido isolados em uma enorme favela em Johannesburgo. No filme, era um rapaz ambicioso, egoísta e alheio ao sofrimento dos extraterrestres, porém, por causa de reviravoltas no enredo, vê-se na mesma posição que os monstros, sempre implacavelmente humilhados e perseguidos. Por isso, desenvolve uma consciência, compreende a dor e o sofrimento das criaturas, e se redime, como um herói nobre, honrado e valoroso, a custo de enormes sacrifícios pessoais. Em Europa Report, o carismático ator interpreta Corrigan, o bem humorado e caloroso engenheiro de voo que em crucial momento sacrifica a própria vida para salvar a de um outro colega, após um trabalho de manutenção na superfície da nave Europa Um que dá terrivelmente errado. O papel é pequeno, mas Sharlto aproveita o tempo que lhe foi dado para nos brindar com uma atuação memorável, e sempre parece uma maravilhosa oportunidade interpretar um personagem heróico, disposto a arriscar a própria vida em nome das de seus amigos. A atriz Embeth Davidtz interpreta a Dr. ª Samantha Unger, a diretora da missão Europa Um em Houston, e surge em entrevistas como a narradora principal dos eventos. São as suas intromissões ao longo do filme que nos situam nos diferentes momentos da aventura, tais como em que ponto o contato foi perdido ou o instante da grande revelação. A atriz desempenha o papel muito bem, e a carga dramática que imprime à voz ao narrar os últimos instantes da Europa Um, aliada à melodia assombrosa e dramática que permeia todo o filme, cria uma das cenas mais eletrizantes do ano. Pena que poucas pessoas irão vê-la!

Visualmente, Europa Report é caprichoso, elegante, e surpreendentemente sóbrio. Como sabemos, o filme traz como plano de fundo a missão às luas de Júpiter, e as imagens são deslumbrantes (constantemente evocando as imagens poéticas do primeiro Solaris, de Tarkovsky, de 1972), mas o lado humano dos astronautas que estão vivendo a experiência jamais perde o foco. Assim, quando assistimos aos fins desses personagens, as suas mortes nos atingem a um nível emocional. É o caso de Corrigan, e o da oceanógrafa que tanto desejava encontrar resquícios de vida em Europa, que arriscou a vida para colher amostras nas geleiras sobre o oceano, e teve a segunda mais forte sequência do filme, quando a superfície sob os seus pés racha e é absorvida pelo oceano de Europa, enquanto os aterrorizados colegas assistem a tudo que acontece à cientista pela câmera que há dentro de seu capacete, impotentes. A representação de vida extraterrestre é tão inteligente e madura quanto a do trabalho de Gareth Edwards com Monsters. A criatura faz apenas uma "participação especial", mas quando invade a tela, pinta-a com tintas berrantes, uma fantástica, linda, luminosa, colorida e inesquecível fantasia, diferente de qualquer outra representação artística de vida extraterrestre, invadindo Europa Um com a força das marés. Assim como os extraterrestres de Monsters, a criatura não é o inimigo malévolo e cruel. Ao contrário, ataca para se defender, como qualquer animal o faria, movido unicamente pelo instinto de sobrevivência. Aqui não há nada de antagonistas perversos, mas pura e simplesmente uma criatura que traz dentro de si o instinto inerente a todas criaturas vivas, deste planeta Terra ou de quaisquer outros. A representação do alienígena do filme me faz lembrar de um conto de Clive Barker chamado The Skin of the Fathers, da coletânea Livros de Sangue. A extravagância de sua aparência é tão magistral quanto a das criaturas de Barker. Assim, não há melhor maneira para descrever o sentimento que o monstro de Europa Um evoca que não citando o trecho da obra de Barker, o homem que escreve sobre o fantástico como mais ninguém:

Fora da casa, Lucy tinha ouvido o diálogo. Abandonou o refúgio de sua choça, sabendo o que ia ver contra o céu deslumbrante, mas nem por isso menos atraída pelas monumentais criaturas que se reuniram em torno da casa. Sentiu angústia ao recordar as alegrias perdidas daquele dia, seis anos antes. Ali estavam todas aquelas criaturas inesquecíveis, uma incrível seleção de formas... Cabeças piramidais coloridas de rosa, torsos de uma proporção clássica, que caíam em franjas de carne murcha. Uma beleza chapada e acéfala cujos seis braços de madrepérola brotavam em torno de uma boca que ronronava e pulsava. Uma criatura parecida com uma onda de corrente elétrica, em constante movimento, que emitia um som doce e modulado. Criaturas muito fantásticas para serem reais, muito reais para duvidar, anjos caídos. Tinha uma cabeça que balançava para frente e para trás sobre um pescoço muito fino, como se fosse um pêndulo absurdo, azul como o céu de uma noite que chega antes de tempo, e salpicado de uma dúzia de olhos como outros tantos sóis. O corpo de outro pai se parecia com um leque que se abria e fechava de excitação, e cuja carne laranja se avermelhou ainda mais quando soou de novo a voz do menino.
– Papai!
À porta da casa estava a criatura que Lucy recordava com mais carinho (...). Devia ter uns seis metros de altura quando se levantava totalmente. Agora aquele ser estava agachado sobre a porta, com sua cabeça calva, bendita cabeça, parecida com a de um pássaro pintado por um esquizofrênico, inclinada sobre a casa para falar com o menino. Estava nu, e suas costas, largas e escuras, brilhava ao curvar-se. 

Todos os direitos autorais reservados a Magnet Releasing. O uso do trailer é para efeito meramente ilustrativo da resenha. 

domingo, 30 de junho de 2013

Audition (Ôdishon, Takashi Miike, 1999) - Alguns cupidos caçam com flechas; outros, com armadilhas.


Encorajado pelo filho de dezessete anos, Aoyama (Ryo Ishibashi) resolve reconstruir a vida emocional e se abrir sentimentalmente para a possibilidade de uma nova companheira. Viúvo há sete anos, Aoyama sempre foi um pai dedicado ao filho, com quem passou por maus bocados em razão da traumática perda da mulher, que sucumbiu após fracassada batalha com uma doença terminal. Apesar de relutante, Aoyama sabe que o filho tem razão. Não obstante a confortável situação financeira e a prosperidade profissional, ele se sente profundamente solitário e frustrado, sempre aprisionado ao passado, às recordações de dias mais felizes ao lado da falecida esposa. O melhor amigo de Aoyama, Yoshikawa, produtor de cinema, propõe uma excelente maneira para que encontrem a parceira ideal. Yoshikawa produzirá um filme, e já que precisará escalar o elenco principal, sua ideia revolve organizar uma audição, um processo seletivo de jovens atrizes para um determinado papel, com Aoyama presente. Aoyama concorda com o plano, e aparece na audição para ajudar o amigo com as entrevistas. Eles conhecem várias atrizes, porém é uma misteriosa e tímida garota chamada Asami quem encanta Aoyama. Algo na tristeza de seu olhar e na vulnerabilidade de seus gestos desperta um sentimento muito nobre no viúvo, que a partir de então a escolhe como futura companheira. Apesar de a produção do filme não ir adiante, as audições serviram para que Aoyama e Asami se encontrassem, e os dois começam um ingênuo, doce processo de conhecimento e flertes.

Algum tempo se passa, Aoyama está apaixonado por essa garota. Até que Yoshikawa procura o amigo com más notícias. O produtor tem um mau pressentimento quanto a Asami. Ele explica que procurou investigar todos os dados fornecidos pela moça na entrevista, rastreou o pessoal do departamento de música em Tóquio, onde Asami afirmara ter estudado, mas as informações não batem. Até aí, nada muito grave. Aoyama crê que talvez a moça tenha inventando uma mentirinha boba aqui ou acolá para impressioná-los, o que, muito embora incorreto, parece compreensível e perdoável. Talvez, encantada, e procurando causar uma boa impressão, tenha inventado algumas outras fantasias menores. Lamentavelmente, tanto mentiras grandes quanto menores tendem a se tornar uma avalanche. Aoyama conclui, todavia, que o melhor a fazer é contornar o constrangimento. Assim, decide relevar a questão. Yoshikawa não se conforma, e frisa ao amigo que não se trata exclusivamente da questão de mentirinhas. Se o problema se resumisse a uma ou outra informação fantasiosa, seria mesmo de pouca importância, porém algo na jovem lhe dá arrepios. Yoshikawa avisa ao viúvo que está abaixando demais a guarda. Aoyama não dá muita atenção às recomendações e, fascinado, segue com os encontros com Asami. 

Curiosamente, essa primeira metade do filme se assemelha aos típicos açucarados filmes românticos protagonizados por Rachel McAdams, estilo Para Sempre e Te Amarei Para Sempre. O diretor Takashi Miike nos mostra os seus personagens transitando entre jantares românticos em restaurantes, flertando inocentemente à mesa, despedindo-se nas calçadas em tardes chuvosas, trocando olhares cheios de desejo, como que, quanto mais esperassem para extravasar a paixão, maior fosse a promessa do prazer e da realização suprema. A ingenuidade e doçura dos primeiros amores são o foco da primeira metade. Vez ou outra, Yoshikawa, a voz da razão, procura trazer o amigo Aoyama de volta à realidade, já que, apaixonado, parece não querer enxergar as evidências contra Asami. Em um diálogo casual na cobertura do prédio onde trabalham, Aoyama conta a Yoshikawa que “encontrou a garota da sua vida”. O produtor insiste para que tenha cautela. Não se apegue muito, Aoyama, Yoshikawa suplica, A vida não pode ser tão fácil assim. Ela é bonita, sofisticada, inteligente e de boa natureza, uma garota desse tipo cairia por você tão facilmente?Yoshikawa vai mais além Tentei checar o seu passado, não sabemos onde trabalha, não conhecemos ninguém que a conheça. Aoyama se recusa a processar a realidade Eu não sou criança, confio no meu próprio julgamento e não no dos outros, se ela me causar problemas, saberei como lidar com os mesmos, responde. Yoshikawa rebate Aoyama, prometa-me uma coisa: não ligue para ela, ao menos por um tempo. Posso estar errado, mas é a sua vida que está em jogo. Não se apegue.  

Após os primeiro quarenta minutos de projeção, o filme sofre uma impressionante guinada. O que começa como um drama romântico se torna um filme de horror misterioso e esquizofrênico. Aoyama escuta o conselho de Yoshikawa, e se abstem de ligar para a garota, ao menos por alguns dias. Na cena seguinte, o diretor nos mostra Asami sentada no assoalho de seu apartamento, sozinha, chorando silenciosamente ao lado do telefone, aguardando pela ligação que não chega. Próximo ao telefone, há um enorme saco volumoso amarrado. Depois do breve sumiço, Aoyama chega ao ponto onde, vulnerabilizado pela paixão, não resiste manter o gelo, e resolve contactá-la. Quando o telefone toca, no apartamento de Asami, nós a vemos na mesma posição de antes, ainda ajoelhada, aguardando pela ligação de seu amor. Ela sorri quando o telefone chama, e então subitamente o enorme saco se move. Há uma pessoa amarrada dentro do saco. Essa cena brutal é o ponto de partida para a segunda metade do filme, onde todo o romantismo e os flertes iniciais deixam de importar, e só sobram perguntas sem respostas, cenas surreais, e o mais implacável horror.

Asami e Aoyama se encontram para a reconciliação, e ela basicamente se abre para o viúvo, contando o quanto sentiu sua falta e aguardou, em tensão, pela sua ligação, por todo esse tempo. Aoyama fica feliz, e os dois iniciam o relacionamento amoroso. O casal vai passar um fim de semana em uma pousada na praia, para comemorar o namoro. Asami se despe, deita-se na cama e pede que o namorado se junte a ela. Aoyama vê terríveis cicatrizes entre as coxas. Emocionada, Asami lhe explica que sua traumática infância é uma das razões pelas quais se sente tão alienada de pretendentes, e que a atenção e o carinho de Aoyama significam o mundo. Asami e Aoyama fazem amor, mas na manhã seguinte, ao acordar, ele não a encontra mais ao lado. O pessoal da pousada lhe diz que a moça deixou o lugar mais cedo. Aoyama não sabe o que fez de errado para afugentá-la. Ele retorna para Tóquio, e conta tudo para Yoshikawa. Fazendo uso da ficha que Asami preencheu quando das entrevistas, Aoyama procura localizá-la, porém, conforme o amigo produtor avisara anteriormente, todas as informações só levam a becos sem saída. O bar onde ela alegou ter trabalhado foi fechado há anos. Um morador conta a Aoyama que o lugar foi abandonado após um terrível crime ocorrido nas dependências, onde o dono teve o corpo desmembrado. Curiosamente, na época do homicídio, a polícia, que jamais identificou o culpado, encontrou três dedos extras e uma língua na cena. Esse detalhe é importante. Bastante perturbado por todo o desdobramento do caso com Asami, o viúvo, impressionado com a descrição, tem uma horrorosa visão, e alucina com a inesquecível cena do assassinato. Sua vida começa a sair dos trilhos, e a cada nova descoberta, os questionamentos apenas se aprofundam.

Uma tarde, enquanto Aoyama não está em casa, Asami habilidosamente invade o lugar, e ao descobrir fotos e cartas da falecida esposa, e vislumbrar o incondicional amor que o homem ainda nutre pela muher, fica tomada pelo ciúme e pela vingança. Aoyama retorna sem de coisa alguma suspeitar, e prepara um drinque para relaxar. Depois de beber, se sente muito mal. Foi Asami quem o drogou. O filme nos mostra, então, um flashback, que nos explica o bizarro saco na sala de estar do apartamento de Asami. O saco contém uma pessoa, ex-amante da garota, que o inutilizou e o deixou inválido, tendo decepado os pés, a língua e três dedos. Asami também o cegou e o tornou completamente dependente de seus cuidados. Isso nos leva a crer que na tal cena do homicídio, no bar onde afirmou ter dançado, foi a própria Asami quem matou o proprietário, provavelmente um amante que não a quisera mais, bem como deixou no lugar partes de um namorado anterior, mantido em cativeiro.

Dopado, Aoyama cai pesadamente na sala de estar. Ele enxerga Asami, vestida em uma bizarra e justa fantasia escura, adornada por peças de couro. Ela compensou a pouca força física e a fragilidade colocando droga na bebida, para incapacitá-lo. Não há a necessidade de usar os próprios braços para segurá-lo, o que teria sido muito improvável. Ela lhe explica que assim como todos os homens que matou, Aoyama falhou por não oferecer exclusivo e incondicional amor. Ela conta que não toleraria perdê-lo. Sem se deixar se sensibilizar pelas súplicas do homem, Asami usa um fio de aço para lhe amputar os pés. No meio da confusão, o filho de Aoyama chega, e os dois começam a lutar, ela se esforçando para dominar o garoto nas escadas. O menino consegue acertar um chute na assassina, e Asami rola escada abaixo. Com a queda, ela quebra o pescoço. Aoyama pede ao menino que chame a polícia imediatamente, e mesmo após perder os pés e ter perdido muito sangue, procura socorrê-la. Mortalmente ferida, Asami ainda consegue balbuciar algumas palavras, sobre o quanto o amou e o quanto lamenta pelo ocorrido.

Eleito um dos cem filmes mais apavorantes de todos os tempos (número onze na lista do Bravo Channel), este assombroso suspense baseado no romance original de Ryu Murakami desconcertou pessoas, dividiu opiniões, e por pouco não alcançou a perfeição que em certos momentos chega a ensaiar. Rodado em 1999, um ano após o lançamento de “Ringu”, Audition ajudou a consolidar um produtivo período para o cinema de horror japonês, quando os fãs foram agraciados com obras muito distintas e especiais. Prova do valor desses filmes, o cinema norte-americano passou a comprar os direitos sobre as estórias para adaptá-las para o mercado ocidental, sendo “O Chamado”, refilmagem de “Ringu”, o mais notório exemplar da tendência. Curiosamente, foi justamente um dos melhores dessa safra do cinema nipônico, Audition, que jamais ganhou uma refilmagem. Ao contrário do que se pensa, se tivesse sido realizada da maneira correta, conforme explanarei mais abaixo, teria sido uma excelente oportunidade para a concepção de um suspense realmente extraordinário. 

Quando disse que por pouco Takashi Miike não alcançou a perfeição, foi porque justamente durante a segunda metade pareceu insistir em cenas extremamente agressivas e violentas para passar o recado. Para ilustrar a minha explicação, os amigos podem tomar a primeira metade como o início de um passeio na montanha-russa: o carrinho vai subindo, você se vê cada vez mais distante do chão, apavorado, preso a aquele espaço da cabine sem ter para onde fugir, esperando o momento do “martelo descer sobre a sua cabeça”, o instante da queda. Só a expectativa do que está por vir e as pistas jogadas aqui e acolá bastam para lhe roubar o fôlego. A segunda metade, a descida pelos trilhos, o carrinho despencando da curva mais alta como um trem fumegante, não honra a expectativa criada na hora antecedente, por mais angustiante e bem executada que pareça. A segunda metade, portanto, não chega a ser flácida, fraca ou ineficiente, apenas não corresponde `a absoluta perfeição da primeira metade. O resultado é um filme assombroso que fará os fãs de horror se apaixonarem, porém simultaneamente considerarem que um pouco menos de sangue e violência teria gerado a absoluta perfeição. Eu sempre acreditei que os realizadores dos melhores filmes de horror jamais precisaram de excessos ou violência explícita para criarem obras memoráveis. Ao contrário, os mais eficientes filmes de horror pareceram substituir violência por atmosfera, excelência narrativa e magistral direção. Enquanto o instante em que o “martelo desce sobre a sua cabeça” é o de menos, a expectativa é tudo. Se os amigos lerem “The Hellbound Heart”, o romance de Clive Barker que deu origem ao filme “Hellraiser”, se surpreenderão com o fato de que por mais angustiante e tensa que toda a experiência pareça, os momentos onde você espera pela violência são surpreendentemente sublimados, ou tocados de maneira bastante discreta. No início de “The Hellbound Heart”, as mais eletrizantes páginas do romance, quando Frank invoca os cenobitas após a resolução da configuração da lamentação, há pouca ou quase nenhuma violência. São as bizarrices e a atmosfera tensa e angustiante de toda a situação que elevam o instante ao panteão dos mais memoráveis momentos da literatura de horror. Se os amigos assistirem ao recente The Tall Man, do francês Pascal Laugier, concluirão que muito embora o filme não traga sequer uma gota de sangue, o teor da estória, que envolve a abdução de crianças humildes de uma cidadezinha para um complexo esquema de adoção ilegal e a melodia assombrosa e triste que perdura por toda a projeção foram suficientes para o tornarem um inesquecível, incômodo exercício no horror, que perdura na memória por semanas a fio.

Durante os momentos finais de Audition, depois que Asami consegue imobilizar Aoyama e começa a trucidá-lo, Miike desafia as convenções do bom senso, e lamentavelmente, ao invés de sugerir por vias mais sutis o que está se sucedendo com os dois personagens, prefere colocar as lentes sobre a ferida. O que aos olhos provoca terrível impacto visual também enfraquece o conjunto. É como se nesse instante, toda a classe, elegância, mistério e beleza que Miike conseguiu estabelecer tão bem na primeira hora perdesse valor, graças a mais desnecessária exploração de escatologia e violência. Não é o suficiente para prejudicar substancialmente o filme de Miike, mas sem dúvidas o impede de decolar como o suspense impecável que a primeira hora prometera. A gratuidade da violência gerou protestos e afastou pessoas deste suspense que ironicamente e em sua maior parte veste elegância, mistério e eletricidade.

A cena mais arrepiante do filme, que aliás não precisou de exposição alguma, te fará pular no sofá. Quando Asami está aguardando, deprimida e chorosa, pela ligação de Aoyama, o telefone toca e ela sorri aliviada. Nesse ínterim, o saco amarrado que está em um canto da sala subitamente se mexe e faz um horroroso barulho, semelhante a um grunhido. Não enxergamos o quê se encontra dentro do saco – saberemos mais tarde que se trata de um ex-namorado de Asami – mas o horror provocado pelo súbito movimento do saco e o grunhido que o segue são dignos de fazer os cabelos eriçarem. O mesmo ocorre quando, ao encontrar o bar onde Asami afirmou ter trabalhado e ocorreu um homicídio, Aoyama alucina com o terrível cenário do assassinato, abalado pela força da narração do estranho que aparecera por ali e lhe contara o segredo. Mais sutilmente, e baseado exclusivamente em performances e direção, também nos traz muita inquietude, muito desconforto, o momento em que Yoshikawa procura colocar algum senso no apressado Aoyama, avisando-lhe que está entrando de cabeça em uma situação onde há muitas informações desencontradas e perguntas sem respostas. Sentimo-nos como observadores, naquela cobertura, testemunhas silenciosas da troca de impressões entre os amigos.

Miike é um cineasta cujo conturbado olhar cria imagens memoráveis e marcantes, mais eficientes do que qualquer violência gratuita posta na tela. Há um momento prova disto, muito contundente, mostra de sua criatividade melancólica, quando Aoyama, dividido pela culpa, vez que está se apaixonando novamente, sonha com a falecida esposa o observando detrás de uma árvore em um vasto campo, com o olhar cheio de dor e decepção. Esse breve momento perdura na memória, dada a incomum tristeza. A criatividade tétrica do diretor encontra absoluto suporte no provocante roteiro, que presenteia Miike com personagens psicologicamente aprofundados e difíceis com que possa trabalhar. É o caso dos protagonistas e, significantemente, de uma personagem periférica menor, que contribui para enriquecer a honestidade psicológica dessa trágica estória. Trata-se da secretaria de Aoyama, uma bonita jovem que inicialmente parece apenas mais uma personagem desimportante. Posteriormente, ao longo do filme, deduzimos que nutre sentimentos românticos secretos que jamais serão correspondidos pelo chefe. Em um momento bastante revelador, a garota aparece na porta do escritório para avisar que já está indo, e Aoyama, concentrado nos afazeres, levanta os olhos por sobre o monitor, para a moça, diz algo nas linhas de Oh está tudo bem, Senhorita Fulana de Tal, pode ir e volta a seus afazeres. Ela permanece na porta, silente, os olhos tomados pela amargura, tendo caído na real de que Aoyama sequer a enxerga sob a ótica da possibilidade de envolvimento amoroso. Essa menina foi “friendzonada” tão definitivamente que não apenas nesse instante como nos demais em que aparece mais para a frente, toda a dor da rejeição segue emanando de sua performance, cortesia do excelente desempenho da atriz.

Audition é um dos poucos filmes japoneses de horror que não recebeu o tratamento da refilmagem. Parte das produções refeitas nos Estados Unidos padecem quando comparadas aos originais. Se Audition tivesse sido refilmado da maneira correta, haveria muito a se agregar ao trabalho original de Takashi Miike. Uma considerável barreira que atrapalhou a tradução do material por um cineasta ocidental deveu-se ao cerne essencialmente nipônico. Na cultura patriarcal japonesa, as mulheres parecem lidar com maior repressão, com amarras mais apertadas que as prendem a valores machistas seculares e as mantêm sob o jugo dos homens. Se encararmos a questão por esse viés, o trabalho de Miike parece a catártica resposta feminista a questionamentos difíceis de serem respondidos, mas experimentados nas vidas individuais das pessoas que compõem a referida sociedade. O mesmo não se observa na sociedade ocidental, onde as mulheres obtiveram avanços que as colocaram em posição de “igualdade” com os homens, muito embora, particularmente,  acredite que tais conquistas tenham sido desvirtuadas, e que suposta igualdade represente em última análise enganosa deturpação, que mais têm arruinado famílias do que as formado, que mais têm alienado do que unido, que mais têm gerado homens sensibilizados, fracotes, românticos, apologéticos e vulneráveis do que homens fortes, decididos, orgulhosos, corretos, honrados, que não aceitam ser capacho de mulher, e estão preparados para os desafios da vida. Pessoalmente, acredito que o equilíbrio está em algum lugar no meio. 

Vencida a questão cultural, o que somente poderia ser alcançado através de um roteiro cuidadoso, a escolha de diretor e elenco principal viria em seguida. Se a problemática da violência foi o que impediu o original de decolar como o suspense perfeito, e o que se busca, para aperfeiçoar a ideia original é a sustentação da atmosfera e eletricidade por meio de estilo, Brian De Palma seria o homem certo para dirigir o projeto. Em 1999/2000, a época certa para que Audition tivesse sido refilmado, De Palma estava no auge estilístico, tendo sido o seu último trabalho Mission to Mars, uma extravagância visual enriquecida pela trilha sonora de Ennio Morricone que encapsulava tudo o que o tornava um artista apaixonado. Eu não tenho dúvidas de que sob sua batuta o projeto teria dado certo. As suas técnicas de split screen, por exemplo, aperfeiçoadas em Snake Eyes, dariam personalidade, vibração e alma ao imaginário do remake. A escolha do elenco para um filme tão arriscado deveria recair sobre atores que você jamais esperaria ver em algo do tipo. Ao mesmo tempo, seria o talento dessas escolhas surpreendentes que traria vida aos personagens, e o resultado da perigosa aposta vingaria em magnéticos dividendos. O que não se deveria buscar, quanto a escolha de protagonistas, seria o lugar comum, “astros do momento”. A meu ver, em 1999/2000, dois anos após o renascimento artístico obtido com Boogie Nights Prazer sem Limites, e ainda na faixa etária para o personagem de Aoyama (ou seja lá qual fosse o nome no remake), Burt Reynolds teria sido a melhor escolha de De Palma para o papel do publicitário viúvo. Quem viu a sua performance como o diretor de filmes eróticos e “pai substituto” de uma trupe de atores pornôs na contundente, violenta e triste obra de Paul Thomas Anderson, sabe que não haveria melhor escolha. No filme de Miike, a primeira vez que Asami chama a atenção de Aoyama acontece depois que ele e o seu amigo dão uma pausa nas entrevistas, e Aoyama vai lavar as mãos no banheiro. No caminho para o toalete, Aoyama passa pela sala de espera, onde as moças que atenderam ao chamado para teste aguardam sua vez, e enxerga essa garota sentada de costas, solitariamente, tão destoante de todas as outras barulhentas, e de alguma forma, já naquele momento, vê-se sob o domínio de seu poder e fascínio. Quando penso em termos de remake, em uma atriz norte-americana para interpretar uma personagem capaz de mover tão profundamente com a cabeça de um homem a partir de sua mera presença, e de deixá-lo ainda mais perdido pela posterior ausência, somente consigo pensar em Jennifer Connelly. O time frame do remake teria permitido a escolha, pois em 1999/2000, ela estava entrando na casa dos trinta anos. Ela havia feito esse filme chamado Amor Maior que a Vida, e o que me impressionou neste e em todos os outros que fizera e os em que veio a atuar depois foi o seu olhar singularmente triste e misterioso. Você assiste a Jennifer Connelly, e mesmo nos momentos de silêncio, um caleidoscópio de emoções contraditórias, indecifráveis e perigosas está se passando no universo que são os olhos. Alguns dizem que os olhos são o espelho da alma. Quando Jennifer Connelly os combina com a força de seu sorriso ilegível, ela é o epítome da mesma força que permitiu a Asami desmontar a racionalidade e a cabeça do ponderado e experiente Aoyama, e arrastá-lo sem tréguas para um pesadelo onde não havia esperança de salvação. Para o pivotal papel da secretária arremessada a “friendzone”, que no filme de Miike tornou a experiência ainda mais psicologicamente desgastante, penso na atriz Selma Blair, a “Jean Lerner” de w Delta z. Ela vestiria muito bem a dor de uma mulher frustrada pelo fato de o homem a quem ama não conseguir enxergá-la como parceira sexual. Essa trágica e patética personagem pode parecer desimportante para a estória, mas sua evocativa e fantasmagórica presença, sempre de pé pelos cantos, fora do campo de visão do chefe, observando-o silenciosamente com um olhar pidão e arrasador, nos leva a crer que o liame que separa fantasias de amor das de horror não passa de uma zona cinzenta e indefinida que pode ser desrespeitada a qualquer segundo. Finalmente, exatamente porque creio que uma reimaginação do original produziria um filme capaz de se sustentar sozinho, proporia a mudança de título. Não sei por quê, mas ao considerar a questão e imaginar o projeto, veio-me a mente algo com os nomes “Nenhum Passo em Falso” ou "Uma Valsa na Escuridão". Evidentemente, essa é a minha ideia de remake, que só teria funcionado lá atrás, em 1999. Se eu fosse o cineasta Brian De Palma, ou mesmo diretor de filmes, o remake descrito acima teria acontecido. Se não saiu do papel na referida época, propícia para as propostas apresentadas, é melhor que jamais tenha ocorrido mesmo. Acho que, se me permitem a ilação, o remake de Audition foi o melhor filme de Brian De Palma que Brian De Palma jamais dirigiu.

Audition é uma saborosa "anomalia" do horror: desde quando, afinal de contas, os amigos já assistiram a um filme de terror que inicialmente se assemelha aos dramas românticos estrelados por Rachel McAdams, só que simultaneamente envolto por eletrizante atmosfera de suspeitas e expectativas, e que depois se torna um suspense surreal sem tréguas nos moldes de um pesadelo imaginado por David Cronenberg ou Clive Barker, com uma vilã metida em bizarra fantasia de couro sadomasoquista, que nos remete aos mesmos trajes a adornarem os cenobitas de "Hellraiser"?Ainda, quais foram os filmes, que não raríssimos casos, que apresentaram personagens tão psicologicamente densos e imprevisíveis como os que conhecemos nessa estória?Ou um roteiro que envolvesse um leque tão variado de contradições da psique humana?O debate a que esse filme convida jamais oferecerá respostas definitivas. No perigoso campo minado dos relacionamentos, as perguntas em aberto estão aí para serem resolvidas desde que o mundo é mundo, e é a busca por respostas que nos instiga adiante. A compreensão do que se passa na mente humana parece mais intrincada do que a do universo que nos rodeia. Como Shakespeare melhor diria, Alguns cupidos caçam com flechas; outros, com armadilhas.
O uso do trailer & imagens é para efeito meramente ilustrativo da resenha. Todos os direitos autorais reservados a Arrow Video.