quinta-feira, 18 de abril de 2013

Os Filhos do Medo - O filme mais intimista de David Cronenberg.


Mulher neurótica em processo de divórcio submete-se a extravagante tratamento nas mãos de renomado psiquiatra (Oliver Reed, um dos mais brilhantes astros da Grã-Bretanha, imortalizado na Sétima Arte pelas suas contribuições com o cineasta Ken Russell), que encoraja os pacientes a entrarem em contato com rancores e mágoas, para que as extravasem fisicamente. O ex-marido, um homem ponderado que teme pela vida da filha pequena, move desgastante e fracassada batalha pela guarda da criança. No decorrer do tratamento, os rancores da ex-mulher canalizam o desenvolvimento de um útero externo, a partir do qual passa a gerar criaturas de lábios leporinos sem umbigo, produto de seus sentimentos ruins enrustidos. Pessoas do círculo social da mulher doente, alvo de seu desafeto, passam a ser mortas pelas criaturas. Desencorajado por uma Justiça excessivamente benevolente a mulheres, temeroso pela vida da filha pequena, e bastante suspeito da terapia comandada pelo psiquiatra, o ex-marido luta para compreender a natureza de todas as mortes que vêm ocorrendo ao seu redor. As investigações o levam à clínica do psiquiatra, onde uma terrível revelação o aguarda... Os filhos do medo!

Filme tétrico, pesado e difícil, talvez uma das obras mais pessoais do cineasta David Cronenberg, que rodou a produção durante um período muito crítico de sua vida, quando estava em processo de separação de uma companheira que o chantageava emocionalmente através do elo fraco, a filha do casal. Muitas das características da megera do filme – o ódio contra os próprios pais, o ciúme doentio, a suspeita de que foi preterida por uma mulher mais jovem e bonita, a técnica ardilosa de usar a criança para castigar o ex-cônjuge – tiveram como inspiração a personalidade da ex-mulher do cineasta. Talvez não por acaso, a partir de Os Filhos do Medo, Cronenberg tenha revisitado as mais sombrias facetas da personalidade feminina, como em Gêmeos Mórbida Semelhança, através da personagem da atriz decadente altamente manipuladora e psicologicamente forte que usa a paixão desavisada de um homem emocionalmente vulnerável para castigá-lo e atirá-lo à autodestruição.

Diferente dos outros filmes de terror do período, David Cronenberg dá personalidade a Os Filhos do Medo pela maneira como investe o horror de características psicológicas assustadoramente próximas e honestas. O elemento fantástico (monstros gerados em um útero externo, produtos de rancores e de ressentimentos) encontra fundamento em condições essencialmente humanas e verdadeiras (traumas, a influência da somatização de emoções negativas no nosso organismo, o peso do passado nas nossas vidas presentes). Em alguns momentos, aspectos desta obscura incursão pelo horror orgânico me fizeram pensar no tristíssimo Dear Zachary A letter to a son about his father. A combinação de fantasia com os fatos da vida real que não apreciamos visitar ou aceitar foi o que tornou os trabalhos de Cronenberg obras de horror que pertencem a uma classe somente sua, bastante imitadas, jamais igualadas.

Trauma - A decepcionante estreia de Dario Argento nos Estados Unidos ainda consegue ser um suspense interessante.


Única testemunha do assassinato de seus pais, garota anoréxica (Asia Argento) é perseguida por um serial killer conhecido como Headhunter, maníaco que coleciona as cabeças de suas vítimas e somente ataca em noites de chuva. Ao mesmo tempo, a menina conta com a ajuda de um jovem jornalista (Christopher Rydell) que vem a se apaixonar pela garota e unir-se a ela para solucionar o mistério. Investigações os levam a crer que a identidade do Headhunter está diretamente atrelada a um segredo que envolve o passado da mãe da menina, médium que costumava realizar invocação de espíritos na própria casa. A sucessão de mortes acaba por guiá-los a uma horrorosa descoberta, que por fim nos permite compreender os motivos e a identidade do serial killer.

Estreia do habilidoso cineasta italiano Dario Argento nos Estados Unidos, à primeira vista Trauma muito se assemelha a filmes medianos do gênero, no entanto, a habilidade do diretor, a paixão com que arquiteta as cenas, conduz as câmeras através da ação e, principalmente, sua criatividade arrojada alavancam a experiência para acima da média. Se por um lado, Trauma é um filme deslumbrante de se assistir, e o roteiro nos oferece algumas ideias surpreendentes e refrescantes (a tragédia pessoal macabra que explica as razões da mãe homicida), por outro, diante do resultado final, ocorre-nos que a estreia de Argento no mercado americano ficou aquém das suas grandes obras europeias, tais como Phenomena, com a extraordinária Jennifer Connelly, ou Suspiria, estas sim verdadeiras óperas criativas, provas contumazes da genialidade do cineasta italiano. O sentimento de frustração talvez advenha do fato de a espinha dorsal da trama fundamentar-se excessivamente na cansativa rotina de caçada a serial killers; o que enaltece a produção e a torna superior a filmes similares deve-se justamente à habilidade de Argento, `as ideias peculiares que adiciona à já tão explorada receita, nos mesmos moldes de Brian De Palma. Aqui, o diretor filma uma aventura previsível, mas adiciona as suas próprias temáticas bizarras tais como comunicação com os mortos, anorexia, amores extraconjugais, e esmagadores segredos do passado que acabam por motivar a matança lançada pelo Headhunter. O resultado é um suspense acima da média, movido por sacadas interessantes de um talentoso diretor apaixonado pelo que faz, atrasado por um roteiro pífio ancorado excessivamente por coincidências ou circunstâncias.

domingo, 7 de abril de 2013

Dear Zachary: a letter to a son about his father (2008) - As pessoas que partem, e as que ficam para contar a estória.


Olá, pessoal. Antes de apresentar a resenha de hoje, deixem-me reassegurar que este blog, apesar do nome, não se resume exclusivamente a filmes de horror. Aqui, já tratei de todas as espécies de filmes, então o termo “Melhores Filmes de Horror” não deve ser interpretado ao pé da letra. Talvez eu o tenha intitulado desta forma pois, de fato, o horror é meu gênero de preferência, no entanto, o amor pelo cinema não se limita a categorizações. Eu creio que o que todos os filmes sobre os quais falei tiveram em comum foi a capacidade de evocar reações e sentimentos, ousar, arriscar, deixar-me pensativo, acordado à noite sem conseguir adormecer tão fácil, absorvendo o que acabei de testemunhar. E, amigos, foi neste quesito - acordado à noite sem conseguir pegar no sono, absorvendo o significado do que acabei de assistir - que Dear Zachary: A Letter to a Son about his Father causou-me o impacto que poucos filmes foram capazes de infligir. Por poucas vezes, filmes ou livros foram capazes de me deixar metido em introspecção, assombrado por tudo o que vi ou li. Este documentário, contudo, me fez pensar não apenas nos fatos assombrosos apresentados, como também em minha própria vida. Já passando a vista sobre a premissa da fita, este documentário promete fortes emoções: depois que um jovem médico perde a vida tragicamente, o seu melhor amigo empreende uma verdadeira cruzada pelos Estados Unidos, Canadá e Inglaterra, para reunir reminiscências dos amigos e familiares do doutor e registrá-las em filme. O seu objetivo é produzir um documentário sobre o amigo, para que seu filho recém-nascido, que infelizmente jamais poderá conhecer o pai, o faça indiretamente, através deste trabalho cinematográfico.

Parece uma estória já muito bem contada em outros grandes filmes românticos do passado. Neste momento, me vem à lembrança Minha Vida, o filme de 1993 estrelado por Michael Keaton. Há dois diferenciais para Dear Zachary: primeiro, não há atores interpretando diálogos escritos por roteiristas, somos apresentados a um drama da vida real; segundo, há muito mais sobre este caso, sob a superfície das aparências, que os amigos possam imaginar ou antever. O que eu ainda não contei sobre Dear Zachary representa o diferencial devastador que faz deste recente caso um dos mais tristes, trágicos e contundentes de que eu tenha memória. Na execução, o diretor Kurt Kuenne é competentíssimo – ele dirige, edita, conduz as entrevistas, narra e compõe a trilha de Dear Zachary, e o seu domínio e talento sobre todos estes diferentes ofícios de um documentário imprimem ao trabalho a carga emocional e a quentura que faltam aos filmes de grande estúdio. Nenhum outro cineasta ou roteirista seria capaz de bolar uma trama tão imprevisível e assombrosa, pela simples razão de que nada é mais grandioso (ou inesperado) do que a vida real. O trunfo de Kuenne fundamenta-se no fato de que não se comporta como um narrador distante ou impessoal. Como amigo de infância do médico assassinado, os sentimentos pessoais estão fortemente atrelados à forma como revisita o caso, e é pela força de seu enorme coração que nos tornamos igualmente íntimos dos fatos e dos personagens ao longo da jornada.

Gostaria de pedir a quem prefere assistir a filmes sem de coisa alguma saber acerca da trama que deixe de ler a minha resenha a partir deste parágrafo. Para os colegas de quem eu me despeço, reforço a minha recomendação para que procurem por este filme. O DVD pode ser comprado na Amazon. Parte do dinheiro da compra destina-se à Bolsa de Estudos para o curso de Medicina criada a partir dos eventos abordados no disco, voltada a pessoas carentes. Para os colegas que não têm recursos para comprar o disco, sítios de hospedagem de vídeos o oferecem integralmente, acompanhado por legendas em português. O rápido acesso ao filme permite-me assegurar que os amigos guardam a obrigação moral de assistir a Dear Zachary, vocês se beneficiarão da experiência, e carregarão valiosas lições para suas vidas pessoais.

Kurt Kuenne e Andrew Bagby cresceram como melhores amigos em San José, California. Desde garoto, Kuenne amava filmes e queria se tornar diretor de cinema. Bagby aparecia como ator em todas as suas produções amadoras!À medida que foram crescendo, e os filmes se tornaram mais polidos e bem acabados, Bagby chegou a investir dinheiro da poupança reservada para o curso de Medicina nas produções do amigo Kurt. Os pais de Andrew, David & Kate, cheios de vida e jovens de espírito, são vistos pelos amigos do filho como queridas figuras paternas. David & Kate chegam a participar dos filmes caseiros de Kurt, ao lado de Andrew, em papéis menores e hilários. Não há dúvidas de que Andrew é um ser humano muito especial de invejável sensibilidade, abençoado por pais de caráter e amigos verdadeiros. Quando chega o tempo para a faculdade de Medicina, depois do traumático término de uma relação amorosa, Bagby vai fazer residência em Newfoundland, Canadá, onde conhece a Doutora Shirley Turner, treze anos mais velha que Andrew, duas vezes divorciada e mãe de três filhos de pais diferentes. David, Kate e os amigos não têm uma boa primeira impressão da nova namorada do jovem médico. Algo em seu comportamento possessivo – e o rancor de Shirley pela primeira namorada do rapaz – chama a atenção das pessoas mais próximas, que lhe transmitem as suas preocupações. O médico não dá muita atenção aos conselhos. Turner muda-se para Council Bluffs, Iowa, enquanto Bagby começa a trabalhar com Medicina familiar na pacata cidadezinha de Latrobe, na Pennsylvania. O seu sonho é se tornar o Doutor da Cidade, conhecer a todos, e viver uma existência pacata e feliz. Por volta de novembro de 2001, a relação entre Andrew e Shirley começa a efetivamente desmoronar. Depois de terminar o namoro com Shirley no restaurante do aeroporto, e colocá-la no voo de volta a Iowa, Bagby é despertado na manhã seguinte pelos chamados da campainha – depois de chegar a Iowa, Shirley alugou um carro e dirigiu o caminho inteiro de volta para Latrobe, obstinada em se reconciliar com o rapaz. Andrew conversa com o amigo Clark sobre a situação, e lhe diz que Turner quer encontrá-lo no parque para discutir a relação. Clark pede a Andrew que não compareça ao encontro, ou ao menos não aceite encontrá-la em um lugar ermo. Andrew não dá muita importância aos conselhos do colega, e vai ao encontro da médica. Clark e Andrew haviam combinado de se encontrar mais tarde na casa de Clark. Andrew ficou de levar cervejas e contar sobre o encontro com Shirley. As horas se passam, e o médico não aparece conforme combinado. Na manhã seguinte, Bagby também não comparece ao Hospital, e Clark imediatamente tem a forte impressão de que algo muito ruim aconteceu no parque. Não demora à polícia aparecer no hospital para reportar que o corpo do médico foi encontrado com cinco tiros em uma estrada abandonada do parque. Clark declara aos oficiais “E vocês não precisam procurar muito por suspeitos. A ex-namorada esteve na cidade, ontem à noite, e encontrou-se com o Andrew”. Quando a investigação policial se volta sobre Shirley, a médica foge para o Canadá, para Newfoundland. Em meio a toda a confusão, Kuenne revisita os filmes que fez com os companheiros, na adolescência, e lhe ocorre a ideia de rodar um documentário sobre a vida do médico assassinado.

Em Newfoundland, Shirley revela que está grávida do bebê de Andrew. O burocrático processo de extradição tem seu trâmite iniciado, e na mesma época ela dá à luz um bebê a quem chama de Zachary. Os pais de Andrew usam todas as economias e se mudam para o Canadá para se aproximar do nenê – a última parte viva do filho assassinado – e lutar pela custódia, enquanto esperam que Shirley seja extraditada para os Estados Unidos, para julgamento e cumprimento da pena. Os advogados de Shirley, fazendo ardiloso uso do sistema judiciário canadense falho e retrógrado, conseguem seguidamente entravar o avanço das discussões sobre a extradição. Quando no curso do processo a corte julga que há evidências muito fortes que ligam Shirley ao assassinato de Andrew, ela é encarcerada, e ao casal é garantida a custódia do bebê. As motivações de Kuenne, como cineasta, sofrem uma transformação. Inicialmente, pensara rodar o filme como homenagem ao amigo morto, porém compreende que o material representa a única maneira de a criança conhecer quem foi o pai, e todas as vidas que tocou com sua personalidade generosa, extrovertida e bondosa. Kuenne viaja pelos Estados Unidos reencontrando amigos da época do colégio, filmando entrevistas. A jornada o leva à Inglaterra, onde roda os depoimentos de familiares do rapaz (Kate é britânica, então Andrew cresceu entre tios e primos na Inglaterra, por parte de mãe, e nos Estados Unidos por parte de pai). Kuenne chega a visitar Newfoundland, Canadá, em julho de 2003, e conhece o bebê, que está sob os cuidados dos avós.

Encarcerada, Shirley redige uma carta para o Juiz da corte, que a orienta a fazer o apelo para deixar o cárcere, o que vai de encontro a todas as recomendações éticas. Turner é posteriormente posta em liberdade pela canetada de uma juíza de Newfoundland, que - contrária a todas as recomendações face a personalidade agressiva da ré, que inclusive tem um histórico de ameaças a ex-namorados – acredita que a mesma não impõe risco algum à sociedade, vez que o crime, embora violentíssimo, foi “específico em natureza”. Turner retoma a vida e recupera a custódia de Zachary. Devastados, os avós precisam aceitar os termos da assassina para continuarem a ver o neto. Em nome do amor incondicional pelo bebezinho, os velhos se sujeitam a humilhações e até mesmo a conviver com a assassina na esperança de que quando da extradição e julgamento final de Shirley nos Estados Unidos ganharão a guarda definitiva do bebê. Lamentavelmente, as esperanças são rechaçadas, quando, em agosto de 2003, Turner comete suicídio, saltando de um píer abraçada ao bebê. Os familiares e amigos dos Bagby saem chocados de toda a situação, destroçados pela tragédia. A lerdeza da Justiça canadense e a falta de discernimento de seus julgadores coadjuvaram Shirley em sua missão de arruinar a vida de David & Kate por duas imperdoáveis vezes; a primeira, assassinando Andrew, a segunda, cometendo suicídio e levando o bebê inocente junto.

Revoltados com o sistema legal canadense, David & Kate encontram a inspiração para continuar lutando, arregimentando uma campanha voltada à conscientização dos cidadãos sobre a necessidade de reforma das leis sobre fiança do Canadá, a que os avós culpam, em última análise, pela morte do bebezinho. Sensibilizado pelo caso, o Ministro da Justiça aprofunda-se nos eventos do caso Bagby, e posteriormente produz um relatório onde declina que a morte de Zachary poderia ter sido plenamente evitada, não fossem as leis excessivamente lenientes a criminosos e o senso de julgamento inadequado dos principais magistrados envolvidos no caso. O psiquiatra de Shirley Turner é levado a julgamento pelo conselho de ética e condenado por conduta imprópria (ele recomendara que a paciente fosse posta em liberdade, tendo inclusive depositado o valor da fiança), enquanto que a diretora da agência do bem-estar infantil de Newfoundland renuncia ao cargo. David Bagby escreve um livro sobre a experiência, e logo se torna best-seller.

Profundamente transtornado pelos acontecimentos, Kuenne considera abandonar a ideia de terminar o documentário. Pensara em produzir o documentário para que o bebê conhecesse o pai, agora não lhe parece existir motivo para prosseguir, não com Zachary morto. Até que as suas motivações mudam por uma última vez, quando Kurt entende que agora que não há mais criança, a razão para não desistir de seu trabalho reside justamente nas duas pessoas mais corajosas e incríveis que conheceu, David & Kate Bagby. O amor ao netinho - posto à prova de fogo da luta pela guarda da criança e a escolha de seguirem enfrentando o sistema judiciário para a mudança das leis excessivamente benevolentes a criminosos – o inspira de tal maneira que o cineasta encontra fôlego extra para retomar o material, terminá-lo e dedicá-lo aos pais de Andrew. O filme conclui com os amigos e familiares dos Bagby, reunidos, agradecendo pelo rapaz extraordinário que haviam colocado no mundo, falando sobre o quanto haviam aprendido e mesmo levado parte de todo aquele marcante caso para as suas vidas pessoais.

Após a experiência do filme, procurei por pessoas que o haviam visto. Queria saber o que tinham a dizer, e se Dear Zachary os havia tocado da mesma maneira devastadora que me fizera repensar a vida. Muito apreciei a opinião de um rapaz que disse algo nas linhas de que Dear Zachary trouxe para fora muitas emoções, algumas que até mesmo desconhecia. O filme o pôs em contato com sua melhor parte, com sensibilidades que até então julgou não possuir. Achei uma forma extraordinária de colocar o filme em palavras, porque foi exatamente desta maneira que o documentário me moveu. Há mais reviravoltas e suspense neste documentário que um diretor como Brian De Palma poderia imaginar. A força ímpar dos extraordinários eventos aqui descritos, potencializada por eficaz edição e memorável trilha sonora, torna Dear Zachary um dos filmes mais emocionalmente exaustivos já vistos. Apesar de documentário, Dear Zachary funciona a nível de montanha russa sentimental. Todas as emoções concebíveis que existam bem guardadas dentro de vocês encontrarão vazão, uma vez que confiram a saga dos Bagby: felicidade ao acompanhar trechos dos filmes caseiros de Kurt, os amigos se formando e celebrando, no ápice de suas vidas, com tudo pela frente, raiva pela maneira como Shirley usa da boa fé de Andrew para atrai-lo ao parque para matá-lo, tristeza pela dor que veio depois, os sonhos que os pais tinham alimentado para o futuro do filho médico arruinados, descrença no sistema judiciário canadense que parece desencorajador para as pessoas decentes, com toda a leniência exacerbada para com criminosos, esperança renovada, quando do nascimento de Zachary, o doce bebezinho que também significa a última parte viva do Doutor Andrew, a tábua de salvação a que os avós se apegam para sublimar a dor, e finalmente, otimismo pelo ser humano, ao final, onde os Bagby compreendem que em razão de seu caráter e dignidade acabaram por se tornar figuras paternas aos olhos dos amigos do filho assassinado, todos terminando como uma grande família.

Eu lamentei profundamente pelos destinos de Andrew e o filho Zachary, ambos vítimas da própria doçura e inocência, desconhecedores das maldades do mundo. Andrew parecia o tipo de cara que poucos têm a oportunidade de conhecer: generoso, bem humorado, atencioso, humano e caloroso para com os pacientes, e fiel aos amigos. Havia tantas coisas que queria fazer com a vida, mas então, por ignorância, pela desavisada e excessiva confiança, cometeu o erro de se envolver com uma pessoa perigosa, alheio às consequências. Foi o otimismo incondicional pelo ser humano que representou a morte prematura. Não faltaram amigos para tentar abrir os olhos de Andrew. Quando o amigo Clark diz ao médico que se uma ex-namorada aparecesse sem sobreaviso na porta de sua casa de madrugada chamaria imediatamente a Polícia e jamais a encontraria a sós, aos olhos de Bagby, soa exagerado, mas eis a diferença entre Andrew e Clark: este é atento à realidade e protegido contra as malícias de terceiros, aquele confiava cegamente em todas as pessoas e pagou um preço caríssimo. Já Zachary sequer teve a oportunidade de compreender as contradições da vida. Em sua mente inocente, talvez nem tenha contemplado o fim da própria vida. A mãe deveria representar segurança e amor, porém tudo acabou na noite gelada em que saltou do píer contra os rochedos à beira do Atlântico. Disso, extraímos a lição – é importante esforçar-se para enxergar o mundo sob a ótica otimista, e tomar as pessoas pelo que têm de melhor, no entanto, uma pequena dose de cautela quanto a aqueles que permitimos entrar em nossas vidas parece imprescindível.

O filme não acrescenta muito sobre Shirley. A natureza de seus problemas psiquiátricos jamais é abordada. Apenas resta claro que Andrew Bagby não foi a primeira vítima de suas obsessões. Existia um histórico de queixas por parte de ex-parceiros da médica, que davam conta de seu desequilíbrio e possessividade. Este histórico torna a escolha da juíza de assinar a libertação temporária da ré ainda mais incompreensível e absurda. Tenho lido algumas opiniões de pessoas que criticam o filme pela abordagem quanto à Shirley, sem empatia alguma para com a assassina e sua condição psiquiátrica, a questão de o diretor não vasculhar o passado para buscar respostas para suas inomináveis ações no presente. Respeitando a opinião dos colegas, discordo veementemente deste tipo de posicionamento, por duas razões: primeiro, o próprio nome do filme e a identidade do diretor – amigo íntimo de longa data do médico assassinado – bastam para que compreendamos que o trabalho goza de um cunho pessoal, realizado por um rapaz devastado pela saudade, que tinha muito carinho pela vítima, e que queria deixar ao bebê reminiscências sobre a extraordinária pessoa que o pai fora, é lógico que jamais evocaria empatia pela assassina; segundo, em que pese o horror das adversidades psiquiátricas de Shirley, toda a solidariedade que eu poderia nutrir pela mulher foi por água abaixo a partir do momento em que ela descarregou o revólver contra o ex-namorado em um parque assustadoramente deserto, em uma noite gelada.

Talvez, a maneira mais imparcial de se recontar os eventos do caso Bagby consista em um filme com artistas representando os papéis, e um tempo de duração maior, a ponto de comportar as mais importantes reviravoltas do caso, e, se possível, abordar as origens da assassina. Até porque o documentário é tão perfeitamente executado, parece infinitamente mais apavorante e comovente do que os suspenses produzidos em estúdio. Cinematograficamente, a linguagem guarda certas semelhanças aos grandes filmes. A trilha sonora, um dos pontos fortes, evoca, por exemplo, os melhores momentos do maestro Ennio Morricone. A triste, nostálgica melodia de Dear Zachary sugere profunda semelhança com uma inesquecível composição de Morricone chamada All the Friends da trilha sonora do filme Mission to Mars. Acredito que um novo filme com atores jamais traria a mesma força que o documentário, contudo poderia ter um brilho próprio e mérito, permitiria que mais pessoas conhecessem o caso, e proporia fundamental discussão sobre o desserviço que o sistema judiciário presta aos cidadãos de bem, que se veem de mãos atadas. Um cineasta como Brian De Palma me pareceria a escolha mais acertada para o material. Ao conhecer Dave & Kate, não tive como deixar de pensar em Clint Eastwood, com toda a dignidade e autoridade, no papel de Dave, o cidadão de bem, simples, humilde e valente, em sua luta quixotesca contra uma Justiça obtusa que se presta primordialmente a inflamar a vaidade de juízes prepotentes, orgulhosos e dissociados do meio em que vivem.

Embora parte deste documentário debruce-se sobre os últimos anos da residência de Andrew, o relacionamento conturbado com Shirley e o homicídio, é inevitável que com o decorrer da trama, o foco recaia sobre David & Kate Bagby. A vida deste casal é uma inspiração por si. A forma como se conheceram – ela, uma jovem enfermeira britânica de férias nos Estados Unidos, e ele, um oficial norte-americano da Marinha de licença - a aventura que foram os primeiros anos de casamento, a maneira como tentaram inicialmente sem sucesso conceber um filho, e quase chegaram a desistir, até Kate finalmente engravidar, todos estes elementos mágicos compõem um lindo caso de amor da vida real, atualmente cada vez mais raro, encontrado quase que unicamente em produções de cinema fantasiosas tais como Diário de uma Paixão ou Para Sempre. Como é refrescante assistir a um amor tão incondicional, e, melhor ainda, real!Pequenos detalhes sobre o casal, como por exemplo o fato de aparecerem nos filmes caseiros que Kurt fazia quando garoto, dizem-me tanto sobre que tipo de pessoa são!Parece fácil compreender por que mesmo após a morte de Andrew, o filho único, David & Kate não se sentem sozinhos. Os velhos assumiram autoridade paterna aos olhos do restante da turma de Andrew. Quando os vejo em pequenos papéis nos filmes caseiros de Kurt, o detalhe me revela o quanto o casal participava não apenas da vida do filho, como também da dos outros meninos. Algo na maneira com que os dois se conduziram ao longo dos anos, talvez a dignidade, a classe, fez com que eu me sentisse muito pequeno, ao final da fita. Quando vejo o bom humor e a coragem de ambos, e compreendo o quanto são tão melhores do que eu jamais poderia imaginar, sinto que é por causa de gente como Dave & Kate que eu deveria me esmerar para me aperfeiçoar enquanto ser humano. São tantas as pessoas que os enaltecem, nos últimos cinco minutos de filme, os mais comoventes, que eu me perguntei como seria possível que alguém tivesse tantos amigos verdadeiros assim, mas então me lembrei de algo que os dois reúnem, e eu ainda não alcancei: a dignidade a toda prova, a honra, a coragem com que lutam pelo que acreditam e a maneira como por toda a vida se portaram de forma gentil e digna para com os semelhantes, o cuidado com que protegeram os aliados. Foi o melhor proveito que tirei do filme: a vontade de melhorar, de ao menos me aproximar de um ideal alcançado pelos Bagby, por mais que o mundo desencoraje altruísmo, por mais que varra para sob o tapete os valores verdadeiramente importantes da vida. Mais importante que a estória que deixamos para trás, são as valorosas pessoas que ficam para contá-la.

Para finalizar, eu gostaria de recomendar um filme similar a Dear Zachary, igualmente impactante e memorável, chamado O Segredo do Lago Mungo. A grande diferença entre os dois é que Dear Zachary é um documentário autêntico, real, enquanto O Segredo do Lago Mungo, apesar do formato documental, cujo estilo muito lembra os episódios especiais do extinto Linha Direta, é de mentirinha, ou melhor, pode ser rotulado como o que as pessoas costumaram chamar de mockumentary (criado no formato documentário, todavia, na verdade, uma obra fictícia, com artistas interpretando papéis). Em comum, o impacto psicológico das duas obras é devastador. O Segredo do Lago Mungo versa sobre o drama de uma família australiana lutando para sobreviver ao luto, depois da morte da filha, afogada na represa da cidade. Ocorre que o irmão começa a deixar câmeras ligadas pela casa, capturando estranhas manifestações de poltergeist que parecem sinalizar que o espírito da menina não encontrou paz. A forma como O Segredo do Lago Mungo é contado (entrevistas & reconstituições) torna a experiência tão assustadoramente real que não se pode assistir ao filme sem que os cabelos da nuca deixem de eriçar. Ainda em comum, por sob a superfície dos eventos tétricos e pavorosos, a quentura humana eventualmente emerge mesmo em meio à dor, ensinando-nos muito sobre a frágil condição humana e a tenuidade da vida.
Todos os direitos autorais pertencentes a Oscilloscope Laboratories. O uso do trailer é para efeito meramente ilustrativo da resenha. 

domingo, 10 de março de 2013

Os Estranhos ("The Strangers", 2008): "Porque vocês estavam em casa..."


Olá, pessoal! Nesta oportunidade, tenho o prazer especial de tecer considerações sobre um dos meus filmes recentes preferidos, Os Estranhos. Estrelando Scott Speedman e Liv Tyler, Os Estranhos é um charmoso e nostálgico retorno ao horror dos anos 70, e foi dirigido por um novato muito talentoso chamado Bryan Bertino. O filme fez moderado sucesso nas bilheterias e a crítica o tomou pelo que de mais valoroso teve a oferecer – uma espécie de homenagem às produções de antigamente, quando, para se fazer um bom suspense, a atmosfera era praticamente metade do caminho, e a caracterização de personagens, a outra. Se os amigos prestarem atenção ao poster ao lado, a imagem os levará a crer que Os Estranhos se trata de algo datado, dirigido por algum daqueles famosos cineastas do gênero nos anos 70. Na verdade, do trabalho de arte do poster até à execução, esta foi a intenção do cineasta – a de resgatar o sentimento que os grandes diretores do passado conseguiam evocar em seu público, a de causar os mesmos arrepios sutis que os filmes antigos geravam, sem a necessidade de efeitos muito sofisticados ou de sanguinolência. O diretor Bryan Bertino alcançou o intento e realizou um feito louvável. A recepção ao filme parece ter se enquadrado firmemente entre dois polos, aqueles que o amam e os que o odeiam. Não há meio termo quanto a Os Estranhos. É muito importante destacar que aqui eu não estou desmerecendo a opinião de pessoas que não o apreciaram. Para alguns, a questão da movimentação da trama, do ritmo da ação, representa um caráter imprescindível a partir do qual a resposta que darão ao conjunto se baseará. Para outros, e eu faço parte deste grupo, o mais importante gira em torno de atmosfera, e se o diretor conseguiu provocar emoções fortes sem precisar exibir muito. Os Estranhos se encaixa na classe da atmosfera e do minimalismo, felizmente.

A Estória:

No começo do filme, somos apresentados a James e Kristen, os protagonistas, em silêncio e com expressões de constrangimento estampadas em seus rostos, aparentemente brigados, dentro do carro, esperando pelo semáforo em um cruzamento vazio qualquer, à noite, após uma festa de casamento de amigos. Por meio de flashbacks, o diretor nos explica a razão do estranhamento: é que James havia preparado todo o cenário para, na saída da festa, propor casamento e, depois, levá-la para um fim de semana de tranquilidade na casa de campo da família. Kristen, no entanto, acreditando que a proposta foi feita cedo demais, teve de dizer não. Claro que ela se sente culpada a respeito, porque jamais intencionou magoá-lo com a recusa. Apenas acredita que seria prematuro compromisso tão sério nesta altura do namoro. Quando chegam à casa de campo, romanticamente adornada para a celebração, vez que James acreditava que a parceira diria sim, os namorados voltam a conversar, apesar do constrangimento anterior, e não custam a fazer as pazes. A esta altura, quando se põem à vontade, é madrugada fechada. A casa de campo fica em um lugar bonito, porém isolado, tão afastado que, à noite, parece particularmente ermo. Depois da reconciliação, quando os dois estão se entendendo à mesa da sala de estar, alguém bate à porta. Os dois acham a situação muito estranha, contudo James vai verificar quem se encontra à porta. Para a surpresa do casal, encontram uma moça loira muito jovem, parada no alpendre. Não a enxergam bem, e quando James aviva a iluminação do alpendre por dentro, a lâmpada parece não responder ao comando. De toda sorte, a estranha pergunta se uma tal Tamara se encontra, e James lhe responde que ali não mora ninguém com o nome. A estranha insiste, “Tem certeza?”, ele diz sim, e a garota se despede “Nós nos veremos mais tarde”.

Uma pessoa que aparece na porta de sua afastada casa de campo a uma hora tão avançada na madrugada perguntando por alguém que não mora ali com um tom controlado e monocórdio típico de sociopatas seria motivo o suficiente para deixar qualquer um intrigado. Depois que a estranha parte, James e Kristen vão ao alpendre e descobrem que a lâmpada havia sido previamente desatarraxada, justamente para não responder quando tentassem ligá-la por dentro. Os dois voltam para dentro, ligeiramente enervados. James diz que apanhará a caminhonete para comprar cigarros e não deve demorar. Ainda com os nervos aflorados em razão do inusitado encontro anterior, Kristen pede que o companheiro retorne prontamente. Enquanto James se encontra fora, a garota loira regressa no alpendre, novamente perguntando se “Tamara se encontra em casa”. Logo, mais dois estranhos – uma mulher e um homem - se juntam à garota e começam a provocar Kristen, fazendo barulhos do lado de fora da casa, e escrevendo recados ameaçadores com batom, na face exterior das janelas. James retorna e encontra Kristen com os nervos em frangalhos. Pela janela, James enxerga a menina na estrada deserta distante, banhada pela luz amarelada frágil dos postes. Ele sai para procurar conversar, mas não há como reverter a situação. As linhas telefônicas foram cortadas, e as três pessoas mascaradas – duas mulheres e um homem – parecem ter marcado o casal para atormentá-los psicologicamente. Até que ponto estão dispostos a machucá-los é o que Kristen e James vão descobrir.

Pontos fortes:

Foram nas cenas mais quietas e sutis de Os Estranhos onde o diretor conseguiu criar momentos incômodos e arrepiantes. Na segunda metade do filme, quando o casal se vê sitiado no interior da propriedade, a marcha do ritmo é trocada e se torna mais iminente, todavia foi na primeira metade, quando o diretor limitou-se a criar atmosfera, que Os Estranhos mais prendeu a minha atenção, mais pareceu interessante. Do momento em que vemos os personagens principais no carro, esperando que o sinal abra no cruzamento vazio, ocorre-nos um inexplicável pressentimento de que algo ruim está em vias de se suceder. Quando a moça aparece no alpendre perguntando por informações, algo na interação entre a visitante e o casal faz os cabelos eriçarem. Trata-se de uma menina de aparência absolutamente comum, mas o modo como ela entoa a voz monocórdia, e pergunta se “Tamara está em casa?”, o modo como o casal consegue enxergar a sua fisionomia, saber que seus cabelos são loiros, porém não ver muito mais, permite que o seu sexto sentido - e o nosso - acuse que há alguma coisa errada em toda a situação. O que me pareceu inacreditável foi como, depois de uma surpresa semelhante, James se dispôs a deixar a casa, e a mulher sozinha, para comprar cigarros, bem no meio da madrugada!

Este é um filme sobre o que o medo faz com nosso julgamento. James tem um rifle em casa, e está bem albergado dentro da propriedade, mas os joguinhos psicológicos que os três mascarados impõem vão progressivamente minando a resistência do casal. Os visitantes não têm armas, apenas máscaras e a vontade ferrenha de atormentá-los. O casal toma decisões erradas e aparentemente estúpidas, todavia ao levarmos em conta a pressão mental a que estão sendo submetidos pelo trio de estranhos, perguntamo-nos o que teríamos feito dada a mesma situação.

Os Estranhos nos fala sobre como o medo nos coloca em um canto no qual não conseguimos pensar direito ou tomar as melhores decisões. Nestes moldes, vem-me a mente um extraordinário clássico de 1971, dirigido por Sam Peckinpah, chamado Straw Dogs. Em linhas gerais, Straw Dogs contava sobre um inteligente e pacato professor de matemática americano, que retorna com a esposa inglesa para a Grã-Bretanha, para a cidade natal da moça. Ali, a mulher reencontra um antigo ex-namorado, o hooligan local, e começa a flertar descaradamente com o sujeito. Bastante atraente, ela parece pouco valorizar o marido introvertido e pacifista. O professor de matemática interpretado por Dustin Hoffman é desrespeitado no curso do filme, pela esposa e pelos homens da vila, que o tomam como palerma. No entanto, é quando acontece uma situação adversa, próximo ao final, quando ele oferece guarida a um doente mental ameaçado de linchamento, os rapazes aparecem na porta exigindo que entregue o louco, e ele se nega, que o professor redescobre o valor como Homem e se posiciona diante dos hooligans, deixando claro quem manda ali. Quando os britânicos resolvem ganhar acesso à casa à força, descobrem que por trás da aparência cerebral e vulnerável do professor, existe um cão raivoso preparado para defender a si e suas posses. Dustin Hoffman usa das armadilhas mais engenhosas – e da mais pura violência – para derrotar os antagonistas. E mata a todos. Este magistral filme sobre o rito de passagem, quando o covarde finalmente se posiciona perante a vida e se torna Homem, e prova o seu valor diante dos valentões locais, fez-me repensar conceitos e compreender o que diferencia meninos de Homens. Assim como Os Estranhos, Straw Dogs discorria sobre como muitas vezes tão importante quanto tentar conviver pacificamente é defender ferozmente o seu território e princípios, estar preparado para o confronto que pode irromper a qualquer instante, e pronto para libertar o cão raivoso que de alguma maneira é inerente a todo Homem. Ah, e antes que eu me esqueça, sobre Straw Dogs: assistir a Dustin Hoffman executando friamente os hooligans é apoteótico, mas não chega a ser tão prazeroso quanto quando ao final, depois que mata os sete caras, escolhe pôr um ponto final no casamento e dispensa a mulher por quem um dia fora apaixonado e que o tratava como lixo, deixando-a sozinha para cumprir a sua sina de balzaca solitária e pílulas antidepressivas. Depois que ele matou os caras, eu pensei, Esse daí redescobriu a masculinidade; porém foi depois que ele deu o fora sem dó na megera e partiu deixando-a para trás, que eu conclui E agora, ele redescobriu a autoestima e a dignidade.

Atuações:

Os atores principais de Os Estranhos estão ótimos. Recentemente, eu vi o artista principal, Scott Speedman, e um outro filme chamado Para Sempre, uma estória romântica, sobre o desafio enfrentado por um jovem casal após um acidente automobilístico que a deixa sem memórias. Scott Speedman interpretava o ex-noivo rico da moça, que, aproveitando-se do fato de ela ter esquecido o seu grande amor, procura ganhá-la de volta. Em um papel secundário, Speedman tornou a sua participação muito interessante e agregou muito a Para Sempre. Naturalmente, Os Estranhos também deram performances extraordinárias, mesmo por trás de máscaras. No filme, vimos pouco da moça que aparece no alpendre. Depois, surgem vestindo máscaras esquisitas, e quase nada falam. O perfil silente e gélido do trio, a forma como quebram psicologicamente as vítimas, aos poucos, levam-me a pensar na analogia de gatos brincando com ratinhos assustados e encurralados. Os Estranhos são interpretados por Kip Weeks (o Homem), Gemma Ward (Dollface, a menina que aparece no alpendre antes da confusão) e Laura Margolis (Pin-Up Girl, a mais assustadora). Ao final do filme, não aprendemos muito sobre quem são aquelas pessoas por trás das máscaras. Penso que os três poderiam compor uma espécie de família que já vinha cometendo homicídios semelhantes ao longo dos anos. Pin-Up Girl parece uma mulher mais madura, de seus quarenta e poucos, neste contexto poderíamos tomá-la como a mãe; Dollface, a filha adolescente em sua primeira matança; o Homem, o pai. Caso os amigos tenham ficado curiosos, eis os atores por trás das máscaras:



 Considerações finais:

O diretor Bryan Bertino merece nossos aplausos pela realização de Os Estranhos. Utilizou uma premissa comum e batida, e a partir da mesma, construiu um filme diferenciado e atraente, altamente atmosférico e sinistro, incômodo ao nos fazer pensar que, no mundo, há pessoas capazes de fazer o mal aos semelhantes por nenhum motivo aparente. No final, quando a jovem pergunta aos três por que estão fazendo aquilo com os dois, a resposta vem nestas linhas “Porque vocês estavam em casa”. Os Estranhos provavelmente continuarão a jogar com os incautos, até o dia em que baterem à porta do professor de matemática errado.

sábado, 9 de março de 2013

Jogos Mortais ("Saw", 2004): Que comecem os jogos!


Olá, pessoal. Nesta oportunidade, eu estarei falando sobre Jogos Mortais, o suspense independente de 2004 realizado com orçamento modesto, que surpreendeu nas bilheterias, e revelou o talento do diretor James Wan, que mais recentemente fez Sobrenatural. Jogos Mortais e Jigsaw se tornaram tão populares, renderam tantas continuações, que após todo o sucesso, recaiu sobre o primeiro a mesma sina que se abate sobre outro extraordinário filme, Hellraiser: de alguma forma, a superexposição dos originais e o fato de os produtores terem procurado aproveitar ao máximo o que podiam drenar da ideia principal permitiram que continuações cada vez mais desnecessárias fossem se sucedendo ano a ano, deixando lembranças negativas que injustamente acabaram por impactar o primeiro, que todos parecem esquecer. Sobre a questão da superexposição, vem-me à mente o primeiro A Bruxa de Blair. Recordo-me que quando o filme foi lançado nos cinemas, em 1999, as pessoas saiam realmente sacudidas pela experiência. Parecia bastante real – muitas pessoas acreditavam que o trio de cineastas tinha se perdido mesmo na floresta, e depois mortos – e as resenhas o enalteciam pela criatividade, já que os criadores eram adeptos da tese de que é justamente aquilo que você não exibe ou enxerga que mais assusta. A única coisa mais apavorante que a bruxa te agarrando é, paradoxalmente, a ausência da bruxa. Não se enxergar a bruxa em meio a escuridão, mas apenas sentir que está por ali, à espreita, fazendo barulhos e guerra psicológica, parece muito mais angustiante. Alguns anos mais tarde, depois do celeuma do lançamento, e de uma péssima continuação, as pessoas voltaram-se contra A Bruxa de Blair. Um interessante filme de horror experimental acabou estigmatizado, vítima de seu próprio sucesso repentino e inesperado.

A série Jogos Mortais tornou-se sinônimo de criativas cenas de armadilhas, que vieram a se tornar o ponto alto das continuações, no entanto, as pessoas tendem a se esquecer que foi justamente no primeiro em que os testes de Jigsaw mereceram menos importância do que a estória de seus protagonistas. Aqui, o foco permanece na trama, e nos desdobramentos que a levam até a conclusão, onde tudo se explica. Sim, há cenas de armadilhas, porém os personagens parecem mais críveis e importantes do que o espetáculo de terror representado pelos testes de Jigsaw. Talvez não por menos, as continuações, gradativamente inferiores, por se basearem exclusivamente em valor de choque, não foram dirigidas por James Wan. Dois homens comuns, o oncologista Dr. Gordon, interpretado por Cary Elwes, e o fotógrafo Adam interpretado por Leigh Whannell, acordam em um banheiro abandonado, semelhante aos de rodoviária, presos na altura do tornozelo por correntes atreladas ao sistema de encanamento. Entre os dois, há o corpo de um terceiro homem, que aparentemente cometeu suicídio, e um gravador. Os dois estranhos descobrem fitas nos seus bolsos, com instruções de como jogar. Por uma série de flashbacks, o filme nos apresenta mais sobre o passado dos dois homens no banheiro, e por que parecem ter sido escolhidos pelo temível assassino a quem a imprensa batizou de Jigsaw. O ardiloso assassino jamais foi apanhado, apesar dos incansáveis esforços dos dois policiais dedicados ao caso, interpretados por Danny Glover e Ken Leung. O modus operandi leva Gordon a crer que ambos estão em um jogo arquitetado pela mesma mente doentia.

O que apreciei neste filme foi a habilidade que o diretor revelou ao entrecortar a estória principal com a intervenção de flashbacks e explicações que momentaneamente arrancam o filme do claustrofóbico ambiente em que o jogo se dá, e constroem o todo da estória, onde as partes são muito importantes e, somadas, dão sentindo ao conjunto. Nada é revelado antes da hora, e o diretor James Wan consegue manter a trama em curso sem jamais fornecer ou esconder demais, sustentando o ritmo até à surpreendente revelação final. Os personagens são bem esmiuçados, e as motivações parecem realistas. Surpreendentemente, o motivo de Jigsaw parece nobre: pôr em teste pessoas que não valorizam suas vidas, para que à custa de terríveis sacrifícios pessoais superem as armadilhas e as próprias limitações, e saiam vivas com a lição da gratidão. Assim como mostraria nos filmes seguintes, o diretor James Wan sabe como extrair grandes atuações de seus atores. Danny Glover e Ken Leung se destacam entre os demais, como Tapp e Sing, os dois tiras parceiros dedicados a descobrir a identidade de Jigsaw. Depois que chegam muito próximos do assassino, a ponto de inclusive rendê-lo, os dois se distraem por um segundo, o bastante para que Sing seja destroçado por uma inesperada armadilha, Jigsaw escape e Tapp saia dos trilhos, abandonando a força para se vingar com as próprias mãos. A bonita atriz veterana Shawnee Smith, presença fácil de filmes de horror e comédias dos anos 80, dá uma performance memorável, com uma personagem que, posteriormente, no decurso da série, viria a se tornar mais importante. A sua personagem, Amanda, é uma ex-dependente química e acometida pela horrível Síndrome de Estocolmo, única sobrevivente das armadilhas de Jigsaw, que acredita que somente superou o vício e passou a valorizar a vida por causa do que sofreu nas mãos do assassino. A breve cena com Amanda compartilhando com os investigadores o seu encontro e declarando amor por Jigsaw, pelo fato de considerá-lo o homem que a livrou da depressão e dependência é o grande momento do filme, aquele de eriçar os cabelos. Você não sabe pelo que lamentar mais, o fato de ela ter passado por uma experiência tão traumática ou as sequelas psicológicas que levou consigo após o sequestro, reveladas na Síndrome de Estocolmo, quando a vítima de uma enorme violência ou horror se apaixona perdidamente pelo algoz. Eu me lembro de um outro suspense psicológico que explorou a questão de maneira muito elegante, chamado Poughkeepsie Tapes. Este filme, Poughkeepsie Tapes, jamais foi lançado no Brasil, mas fez tanto sucesso pelos Estados Unidos que os dois diretores, John Erick & Drew Dowdle foram convidados para dirigir o sucesso Quarentena, a refilmagem do excelente suspense espanhol [REC]. Ainda sobre a personagem, uma curiosidade: o diretor James Wan contou que admirava esta atriz em particular, desde os anos 80, quando ela atuava naquelas comédias e slasher movies e ele ainda era um rapaz, e na época prometeu a si mesmo que se um dia se tornasse diretor de filmes, escreveria um papel para a sua artista preferida. O resultado foi a Amanda de Jogos Mortais.

Jogos Mortais foi o filme que inaugurou toda uma nova tendência para Hollywood, nos mesmos moldes de Hellraiser, o filme de Clive Barker. Jogos Mortais soprou novo fôlego aos filmes sobre serial killers; Hellraiser foi o filme britânico pelo qual ninguém esperava, e que, com as suas ideias sobre o quanto dor e prazer parecem faces da mesma moeda, propôs um novo estilo de horror, com personagens de profundidade, onde o surreal e o bizarro confundem-se facilmente com sentimentos bastante humanos e familiares, tais como cobiça, desejo e amores não correspondidos, e muitas vezes onde os monstros e o grotesco podem ser os bons - e os normais, os maus. Em comum, os dois sacudiram o gênero, porém, lamentavelmente, as continuações perderam o espírito, a essência do original. Costumo frisar que a única sequência de Hellraiser que guarda o erotismo, o fetichismo, o horror incomum e surreal do primeiro, é Hellraiser II – Renascido das Trevas (Hellbound: Hellraiser II). Ambos os filmes foram rodados no Reino Unido, e Clive Barker esteve envolvido na concepção e filmagem de ambos. Depois que os direitos sobre a obra foram vendidos a produtores norte-americanos, e o desgostoso Clive Barker saltou fora, a série virou uma sucessão de bobagens que nada têm a ver com a fonte original The Hellbound Heart. No caso de Jogos Mortais, apenas uma sequência me pareceu à altura do original, Jogos Mortais 6. Todas as demais continuações não merecem mais do que serem descartadas sem cerimônia.

Quero lembrar aos amigos que, hoje, é muito fácil encontrar o DVD de Jogos Mortais. Nas grandes lojas tais como Americanas você pode levar o filme por módicos R$ 15,00, quantia justa quando se leva em conta o excelente valor, o cuidado com que a Paris Filmes o tratou. Há extras, trailers, e a arte da caixa ficou fantástica, uma acertada compra para os fãs de horror. Ainda, recomendo que procurem por Poughkeepsie Tapes. Encontrá-lo integralmente na internet é fácil, infelizmente não sei de versões com legendas em português. Poughkeepsie Tapes é apresentado como um documentário, uma espécie de “episódio especial” do extinto Linha Direta, sobre um assassino serial que vem brutalizando e desmembrando mulheres ao longo das décadas, sem que a polícia jamais consiga chegar perto de sua identidade. Ao longo dos anos, ele forja provas que erroneamente levam os investigadores a um policial, que inclusive chega a ser executado por injeção letal, apenas para se descobrir posteriormente que não era o referido assassino. Assim como em Jogos Mortais, ele deixa uma sobrevivente, uma moça abduzida anos antes, mantida em cárcere, que ao retornar à vida, não consegue mais se adaptar em face da ausência do psicopata por quem veio a se apaixonar. O formato de documentário de Poughkeepsie Tapes, que faz crer que tudo o que se vê é um caso real torna a experiência ainda mais arrepiante.

Ao final desta resenha, reforço o valor de Jogos Mortais como uma excelente pedida de suspense/horror, albergada pelo suporte de atuações inspiradas, roteiro bem amarrado e original e, principalmente, a visão de um cineasta que veio para oferecer algo a mais a todos nós que curtimos este tipo de espetáculo. Eu me sinto seguro em afirmar que o nome de James Wan merece figurar ao lado de tantos outros diretores de cinema que tocaram a minha vida de maneira incomum, e me inspiraram a me expressar através da escrita, a quem aprendi a amar, a quem devo os melhores momentos de minha infância/adolescência, crescendo: David Cronenberg, John Boorman, John Frankenheimer, Brian De Palma, Dario Argento e, principalmente, o maior dos maiores, o Sr. Clive Barker. Espero um dia escrever um post onde poderei falar por que os amo tanto, mas fica para a próxima. Por ora, convido-os a Jogar os Jogos Mortais do excelente James Wan.