Diz
o ditado que a realidade é mais interessante do que a ficção, mas os filmes, em sua maioria, sempre privilegiam a fantasia em detrimento da verdade. Acredita-se que
um dos melhores filmes de horror de todos os tempos, O Exorcista, influente nos trabalhos dos mestres modernos James Wan & Rob Zombie mesmo quarenta anos após o lançamento, foi baseado na história
real de um menino a quem Thomas Allen, autor do livro sobre o caso, chama de Robbie Mannheim. No filme do diretor William Friedkin, uma menina, filha de uma atriz famosa, é implacavelmente assediada por um demônio, após fazer amizade com um tal de "Capitão Howdy", ao mexer com a tábua Quija encontrada no porão. Os fatos reais que inspiraram William Peter Blatty a escrever o aclamado romance são bem distintos do que vimos no filme de 1973. Allen compilou os dados diretamente do
diário de um dos padres envolvidos no caso, que começou discretamente em 1949, e escalou para implacável assédio. O livro de Allen, "Possessed", nos conta que Robbie
(nome falso, dado pelo autor, para preservar a identidade das pessoas) era um garoto que morava com a família em Maryland, e
que, sendo filho único, não tinha muitos amigos para lhe fazer companhia.
Assim sendo, a sua tia Harriet ocupava uma lacuna em sua vida. Segundo Allen, foi a tia quem lhe apresentou uma
tábua Quija, e o iniciou na brincadeira. Quando o menino completou treze anos, a tia morreu, o que o levou a mexer na tábua para
procurar "contactá-la". O garoto começou a se
comunicar com um espírito que se identificava como "Harriet", e
fenômenos paranormais começaram a ser observados pelos cômodos da casa, quase
na mesma época: rumor de marcha de pés, móveis se movendo, e um quadro com a imagem de Jesus sendo atirado da parede. Os eventos pioraram, e logo o fenômeno se concentrou no menino. O drama é revivido detalhadamente na obra de Allen,
porém é uma das explicações que o autor dá ao mistério que
mais me chama a atenção, e me faz pensar que por trás das hipóteses mais incríveis se esconde a realidade, com o horror que as fantasias apenas sonham reproduzir.
A explicação, que rastreia a natureza dos fenômenos a um acontecimento que
nada tem de fantástico, que em nada se refere a demônios ou a possessões ou a brincadeiras de copo,
foi a resposta que fez os meus cabelos eriçarem, porque talvez a
única coisa mais aterrorizante do que a fantasia seja mesmo a
capacidade humana para a maldade. Farei menção a essa
história mais tarde. Por ora, gostaria de discorrer um pouco sobre
"O Homem das Sombras", uma joia rara que faz jus ao
ditado: a realidade é mais estranha do que a ficção.
Escrito e dirigido pelo francês Pascal Laugier, "O Homem das Sombras" foi
o consolo para o cineasta, que depois de ter criado o extremamente
feroz "Martyrs", recebeu o convite para rodar o remake
de "Hellraiser". Seu talento em alternar beleza de partir o
coração com momentos de pura brutalidade o tornava o candidato ideal
para interpretar a obra "The Hellbound Heart", uma história diferente de qualquer outra, dificílima de se vender ao grande público. Há uma entrevista de Laugier, na época
em que rodou "O Homem das Sombras", onde conta como foi conhecer
"Hollywood", após o sucesso de "Martyrs" no circuito de arte europeu. Segundo
Laugier, a experiência o fez se sentir péssimo. Ele descobriu que o
estúdio queria reformular todos os conceitos de Clive Barker, e
transformar "Hellraiser", uma obra gótica e psicologicamente profunda, em uma
trama estilo slasher movie. É claro que Laugier preferiu se
retirar a destruir um filme que significava tanto para sua formação artística, e o projeto do remake "entrou no limbo". Depois do desentendimento entre a Dimension, detentora dos direitos
autorais sobre a obra de Barker, e Laugier, o cineasta francês procurou esquecer
o desapontamento escrevendo "O Homem das Sombras", um projeto
original que sinalizou uma "mudança de tempos", uma maior maturidade artística. Se Laugier já havia causado forte impressão com o
implacável "Martyrs", um espetáculo onde a agressividade
física é quase tão irrefreável quanto a psicológica, em "O Homem
das Sombras", o diretor exercitou a discrição e a elegância, fugindo da sanguinolência e carnificina, e montando as peças de uma obra onde o
horror dá-se em um campo quase estritamente psicológico. Ótima notícia, afinal de contas,
sabemos que os grandes filmes de horror, os melhores, jamais precisaram de brutalidade para agregar valor. Em w Delta z, por exemplo, um dos suspenses mais espetaculares da década passada, a Jean Lerner
interpretada por Selma Blair raptava os membros da gangue que a
haviam estuprado e os metia em armadilhas onde se viam obrigados a escolher entre
salvar a própria vida ou a de alguém a quem amavam. Existia alguma violência, mas seu uso era circunstancial, um artifício para mover a trama para frente, porém nunca mais importante que o coração de seus personagens ou do que a jornada. O diretor Tom Shankland preferiu concentrar-se no dilema moral do protagonista, o tira veterano interpretado por Stellan Skarsgard, que apesar de se esforçar para se manter um homem bom, é devorado pelo remorso por ter destruído as provas que envolviam a gangue no estupro da personagem de Selma Blair e na morte da mãe. O personagem de Skarsgard sentia muita pena pelo que acontecera a Jean, e jurara encontrar os estupradores, porém ao descobrir que um dos homens que estivera no local havia sido seu amante, destrói provas para livrá-lo, "salvando por tabela", no processo, os canalhas que haviam cometido a barbaridade sexual. O amante de Skarsgard não tinha participado do estupro - era apenas um desavisado que costumava andar com a turma barra pesada, - e quando as coisas haviam saído do controle, ficara com medo de interferir, tendo escolhido esperar na sala com as mãos nos ouvidos, enquanto os selvagens barbarizavam Jean e a mãe. O tira, por sua vez, passara a vida "dentro do armário", e tinha medo de que a relação com o informante caísse no conhecimento dos colegas da força e expusesse a natureza de sua sexualidade. Quando os membros da gangue começam a aparecer mortos, alguns anos após o caso Jean Lerner, o personagem de Skarsgard sabe que logo chegará sua vez, pois mesmo indiretamente, aceita ser responsável, pelo menos em parte, pela tragédia da moça. A jornada dos personagens nos arrasta junto ao sufocante final, e "O Homem das Sombras" pertence a esta mesma linha de filmes, onde o conflito psicológico dos personagens jamais deixa o primeiro plano. Se sua premissa nos faz imaginar que teremos pela frente um suspense ordinário, sobre abdução de crianças por uma entidade sobrenatural, as reviravoltas da trama nos provam justamente o contrário. Espíritos e demônios passam longe deste filme de Laugier. O que há são monstros, sim, mas em uma apresentação mais incomum: o "monstro" representado pelo ser humano com quem trocamos cumprimentos nas calçadas ou temos uma conversa descompromissada enquanto bebericamos xícaras de café em uma lanchonete. O "monstro" como a pessoa que teve oportunidades de fazer a coisa certa, não o fez, e se vê irremediavelmente presa a circunstâncias que ajudou a criar. Jamais teremos inimigos mais implacáveis e terríveis em nossas vidas do que nós mesmos. Passamos uma vida inteira olhando por sobre os ombros, preocupado com outras pessoas e os males que possam nos desejar ou causar, mas dificilmente compreendemos que os nossos mais dedicados antagonistas nos "olham de volta" sempre quando paramos diante do espelho. Há quem não admita, contudo são as nossas escolhas que nos metem em nossos mais graves dramas. Escolhemos, e pagamos pelas más escolhas. Não são "os outros". Somos "nós". Da mesma forma que podemos (e devemos) ser os nossos maiores aliados - nos pondo sempre em primeiro lugar, prezando pelo investimento pessoal, o crescimento profissional e a evolução enquanto seres humanos - também podemos nos deixar apodrecer.

O filme é narrado por Jenny, mais especificamente pelos seus pensamentos, pontuados por amarguradas observações sobre a vida e os familiares que deviam inspirá-la, mas só a fazem pensar em deixar aquele lugar esquecido o quanto antes. Ainda no começo da vida, Jenny sonha com voos mais altos e uma existência longe de tanta dor. Tracy, Carol e Jenny estão voltando para casa com o bebê, e o carro passa ao lado de um outdoor de beira de estrada, onde vemos cartazes com fotos de muitas crianças, dezenas delas. O filme corta para uma série de segmentos jornalísticos, onde assistimos a moradores locais desesperados, falando sobre as crianças desaparecidas. As pessoas atribuem os sumiços a um homem muito alto que afirmam ter visto apenas de relance. O fato é que não foi apenas o fechamento da mina que fulminou o ânimo local, mas talvez principalmente o desaparecimento das crianças. Quem tem filho morre de medo de "quando o homem alto voltar a atacar", e quando ele visita a cidade, aqueles sortudos cujos filhos escapam à passagem do monstro agradecem a Deus. No restaurante do posto de gasolina, onde os cidadãos ainda se encontram, um dos rapazes sugere ao xerife que "Homem Alto" deve ser algum pedófilo. Naquela manhã, os habitantes de Cold Rock dão pela presença do Tenente Dodd (Stephen McHattie), virando inquieto xícaras após xícaras de café. Ele é o tira da cidade grande destacado para "derrubar" o "Homem Alto" e desvendar o mistério do sumiço das crianças, mas lamentavelmente não há pistas. Julia e os demais veem a Senhora Johnson, encostada `a vitrine, agasalhada, do lado de fora. As pessoas têm pena da Senhora Johnson: dizem que ficou louca, desde que o filho foi sequestrado pelo "Homem Alto" alguns anos antes. Julia oferece uma xícara de café para a solitária andarilha, mas ela não aceita e se apressa a deixar a estação.

Julia mora em uma casa muito grande, deixada pelo marido. Ela tem um filhinho, David, um garotinho saudável, extrovertido e inteligente. Para ajudá-la com a criança, conta com a ajuda da secretária pessoal Christine (Eve Harlow, que dá a performance excepcional do filme). Apesar de crescer em um lar sem a presença do pai, o menino parece feliz, cercado pelos cuidados e as brincadeiras da mãe e babá. À mesa para o jantar, o barulho é de gargalhadas, os três contando o que fizeram no dia. David mostra uma mágica que aprendeu (e que funciona, podem testar!) e desafia a mãe: pense em um número, dobre-o, some a seis, divida por dois, menos o primeiro número que você pensou, e o resultado será sempre três!Lá fora, o rumor dos trovões distantes indica que uma noite de muita chuva e frio se aproxima das serras. Christine vai tirar as roupas do varal. Ao levar David para cama, Julia tem um momento de doçura com o filho, quando ele se queixa de que a mãe está sempre trabalhando muito, e queria que brincassem mais. Ela avisa que voltarão a brincar no dia seguinte, e lhe dá o beijo de boa noite.

Julia acorda e passa a perambular. Ao redor da pista deserta, só há serras e bosques, e o tempo esfriou bastante. O seu esgotamento é tamanho, ela volta a desmaiar, bem no meio da estrada. É quando surgem os faróis de um carro, que se aproxima vagarosamente. Um homem desce para socorrê-la, e vemos que se trata do Tenente Dodd. Julia conta a história, e não custa a Dodd acionar toda a força policial. Os agentes são destacados para fazer as buscas pelas principais rodovias. Dodd a leva ao restaurante do posto de gasolina, que permaneceu aberto pela madrugada. Algumas pessoas de Cold Rock estão reunidas nas mesas e cadeiras do balcão. Eles a ajudam a se sentar, e Trish, a senhora dona do lugar, a consola. Ela a aconselha a ir tomar um banho e se limpar no seu banheiro particular, para depois lhe contar o que aconteceu. Depois de se enxugar, da sala do escritório, Julia escuta ao xerife, muito por cima, conversando com um cidadão local. Eles estão discutindo, e alguém menciona que deviam "procurar primeiro na mina". A conversa chama a atenção de Julia. Outro fato que a deixa cismada é quando se depara com um pequeno oratório, onde Trish colocara as fotos de todas as crianças misteriosamente abduzidas pelo "Homem Alto", como que rezando pelo retorno dos meninos. A mais nova foto é a de David, o filho de Julia. A enfermeira reage com horror. Enquanto ela vai passando a vista pelo oratório, um cidadão assiste a tudo pela janela, do lado de fora, e ao retornar ao restaurante, avisa aos demais que Julia viu o altar e a foto do menino. Um deles, Steve, se oferece para ir buscá-la, mas um outro cidadão, mais comedido, pede para que esperem. Os habitantes ficam um tempo aguardando para que a enfermeira volte ao bar, e quando não aparece, se dão conta de que Julia fugiu pela janela do escritório. A turma se revolta, e após uma breve preleção no estacionamento do posto, separa-se em grupos para encontrá-la.
Acontece que Julia foi mais perspicaz. Ela pegou uma "carona" escondida no carro do xerife, que dirigiu à antiga mina fechada. Quando ele sai para fazer uma ligação do prédio abandonado onde funcionava o administrativo, Julia salta do carro e se esconde. O xerife eventualmente parte, só restando Julia no lugar. Ela entra no prédio, cujos corredores e salas encontram-se abandonados. Luzes muito precárias iluminam o interior, e à noite o lugar parece particularmente assustador. Há sinal de gente morando por ali, pois Julia é atraída pelo barulho a uma sala onde há uma televisão ligada. De relance, vê o filho, caminhando em direção ao antigo refeitório. Ela chama pelo garotinho, que não se detém. Pela vitrine, guarda-se uma excelente panorâmica da vastidão que rodeia a fábrica. O céu está platinado graças à chuva, e as árvores dos bosques parecem ter vida, por causa da brisa gelada que ao descer das serras as toca bem nas copas. Julia está para recuperar o filho, quando é derrubada pelo "Homem Alto", que a esperava rente à porta. O maior choque vem a seguir, pois quando "Homem Alto" tira o capuz, vemos que se trata de uma mulher, a Senhora Johnson. O "Homem Alto" abre os braços e David corre para o seu colo. "Mamãe", diz o garotinho, e a Senhora Johnson o consola.

Depois da chocante descoberta, a Senhora Johnson procurou por Trish e relatou o ocorrido. Inicialmente, Trish não acreditou que a gentil e simpática enfermeira pudesse ser responsável pelo sequestro de crianças, mas a Senhora Johnson pareceu tão determinada que acabou por colocar dúvidas na cabeça da amiga. Foi por essa razão que Trish deixou o restaurante aberto: a Senhora Johnson disse que naquela noite iria retornar ao posto com o filho no colo, e provar que o "monstro sobrenatural" que trouxera tanta dor às suas vidas era justamente a suave e doce enfermeira, esposa do falecido médico local. Quando Julia apareceu com Dodd, todos já estavam de sobreaviso, aguardando pela chegada da Senhora Johnson. Foi por essa razão que ao dar pela fuga da enfermeira que os moradores se revoltaram. Eles não eram os vilões, mas apenas pais sofridos convencidos de que Julia estava metida no desaparecimento das crianças, e queriam saber a verdade sobre o paradeiro das mesmas, a qualquer preço.
Depois de recapitular os acontecimentos do dia, a Senhora Johnson exige que Julia se abra e comece a contar para onde levou as outras crianças. A enfermeira responde que foi o "Homem Alto", eximindo-se de responsabilidade e não assumindo a culpa que obviamente lhe cabe, o que deixa a mãe furiosa. A Senhora Johnson lhe dá um forte tapa, e a acusa de ter feito uma verdadeira lavagem cerebral no filho. Ela a obriga a assumir perante David todo o mal que causou e admitir que não é a sua mãe. Em um momento de distração da Senhora Johnson, Julia acerta um murro que a deixa momentaneamente inconsciente. Ela se solta, e começa a perseguir o garotinho pelos corredores do prédio abandonado. Em razão de ferimentos Julia não tem como correr mais rápido. Quando acha que vai perdê-lo no labirinto de corredores, é Jenny quem subitamente aparece para segurá-lo. A enfermeira recupera o garotinho, e as duas se põem a fugir. Jenny aponta para um dos carros velhos abandonados da mina, e fazendo a ignição através dos fios, consegue dar partida.



São dezoito crianças desaparecidas, e a polícia nem sabe onde começar a procurar. Não quando a área a ser varrida envolve túneis com quilômetros de extensão, e bosques tão extensos acima, com terras a perder de vista. Até onde a polícia sabe, David foi mesmo a vítima final. A última esperança de Dodd para conseguir pistas que os levem ao paradeiro das crianças ou de seus corpos pode vir pela intervenção da Senhora Johnson. Julia é levada sob custódia para um presídio federal, e Dodd pede para que a Senhora Johnson aproveite a oportunidade de conversar com a enfermeira para convencê-la a dizer tudo o que sabe. Em um encontro cheio de emoção, a Senhora Johnson diz a Julia que não consegue mais viver, que fica remoendo coisas em sua mente, cheia de saudades do filho. Julia responde que pode imaginar, pois se sentiu como mãe para cada uma das crianças que carregou. A Senhora Johnson afirma que o banco pode ter tomado a sua casa, morar no velho prédio da administração das minas por não ter lugar melhor, e estar desempregada, mas ainda assim morreria pelo filho e como mãe tem direito a reavê-lo. Julia menciona que o sistema faliu, que as crianças crescem desencorajadas e sem esperança. Ao contrário dos adultos, crianças vivem cheias de potencial e esperança. Os adultos deviam abraçar e nutrir esse potencial, mas continuam a deixá-las crescerem carentes e abandonadas, até se tornarem adultos igualmente problemáticos. Julia diz que foi por essa razão que se voltou contra o sistema burocrata, que impõe entraves a adoções, e apenas permite que o ciclo se repita. A Senhora Johnson escuta a tudo com muita dor, e ao término da fala de Julia, faz uma pergunta bem direta: as crianças estão mortas?Julia assente com a cabeça, e diz que os seus corpos estão enterrados nas florestas e nos túneis. Até mesmo no presídio, Julia é implacavelmente hostilizada. As outras presas prometem pôr as mãos na enfermeira para matá-la, tamanha a revolta causada pelos crimes.


Intrigante filme de suspense lançado com pouco alarde em 2012, "O Homem Alto" simboliza a evolução artística de seu diretor, Pascal Laugier, que criou um nome para si após o filme de horror francês "Martyrs". Enquanto que em seu polêmico filme de 2008 Laugier criou algumas das imagens mais horrorosas e brutais já vistas no cinema, em "O Homem das Sombras" felizmente procura entrar em contato com a humanidade de seus personagens, e como um habilidoso artesão, nas linhas de um Brian De Palma, subsidia a excelente história com execução técnica perfeita. Visualmente, o filme é um espetáculo à parte, maravilhoso de se contemplar, tal qual um belíssimo quadro. Filmado em British Columbia, a terceira maior província do Canadá, as câmeras capturam em ângulos amplos a generosidade com que Deus tratou a região: rios, lagos e montanhas a perder de vista parecem criar o cenário perfeito para uma trama onde a desesperança é muito bem representada pela gelidez e o céu lúgubre que perdura sobre os personagens. Enquanto o seu filme anterior dependia demasiadamente de estilo, em "O Homem das Sombras" Laugier pôde relaxar e deixar que o seu maravilhoso elenco fizesse a maior parte do trabalho. De muitas maneiras, "O Homem das Sombras" obedece o mesmo formato de "Retratos de uma Obsessão", a obra prima de Mark Romanek e o melhor filme da carreira de Robin Williams. Em ambos os filmes, estudos de personagens, o espetáculo cabe a palavras, à interação entre os seus protagonistas, ao significado de instantes sutis, de reações, de olhares. Prova disso é uma brilhante cena em "Retratos de uma Obsessão" em que o personagem de Robin Williams vai prestigiar o garotinho Jake, e após o jogo de basebol, os dois saem caminhando vagarosamente pelo gramado, com as folhas amareladas caindo preguiçosamente, marcando a passagem das estações, outono à primavera, e Williams discorre um pouco sobre a sua própria sofrida infância e sobre o quanto os pais de Jake o amam e procuram fazer o melhor, mesmo que por vocês o menino ache que não: Romanek deixa a sua câmera sobre o tripé, parada, sem movimentos, sem inovações, deixando que o diálogo e as performances nos contem a história, sem distrações. Um grande cineasta sabe imprimir às lentes o seu ritmo e cortar as cenas na hora certa, porém também percebe quando deve deixar que performances e diálogos assumam o comando. Com um belíssimo roteiro a seu serviço, Laugier teve parte de seu trabalho abreviada por maravilhosos desempenhos e contundente história. Tudo o que teve a fazer foi posicionar bem as suas câmeras, e deixar que o seu talentoso elenco fizesse o resto.

Depois dessa extensa análise, acho que os amigos vão querer me perguntar: e quanto ao fato de se tratar de um filme de horror, "O Homem das Sombras" funciona?Sim, o filme funciona, talvez não pelas razões que inicialmente leve a crer. Apesar de brincar com a mitologia de uma entidade muito alta e sempre envolvida pela escuridão, atacando uma cidadezinha de tempos em tempos, e levando as crianças consigo a cada passagem, "O Homem das Sombras" é um filme de horror sem extraterrestres, monstros, assassinos, ou coisas do gênero. Quando chegamos ao final, não houve quase morte alguma, a não ser se considerarmos o suicídio da personagem Christine. Então, o que o torna tão evocativo?Bem, eu poderia citar a aura de mistério bem sustentada pelo diretor Pascal Laugier até o momento da grande revelação, ou a performance superior de Eve Harlow como Christine, em uma cena pivotal pela qual eu passei a me recordar do filme, ou a melodia triste de duas notas no piano, mas acredito que eventualmente a razão pela qual "O Homem das Sombras" seja um filme de horror tão sui generis não se deva exclusivamente a nenhum dos pontos anteriores. Eu acredito que "O Homem das Sombras" funciona pela natureza crível e contemporânea de seu horror. Os "monstros" não vestem as fantasias sadomasoquistas justíssimas de couro dos cenobitas, por exemplo, não foram invocados pela montagem da configuração do lamento, não são espetaculares ou fantásticos em suas bizarrices. Em "O Homem das Sombras", o rosto do "monstro" é surpreendentemente amável, e ele sempre se aproxima com sorrisos, intencionando o melhor. "Eles" são os pais, as mães, ou mesmo as pessoas que buscaram ajudar, mas parecem ter se esquecido da natureza do material que pavimenta o caminho à perdição: as boas intenções. Se o suspense que move a trama para uma conclusão chocante advém das pistas falsas que o roteiro joga no caminho, o horror somente nos acerta em cheio quando "O Homem das Sombras" chega ao terço final, e nos deparamos com a que ponto pessoas comuns com motivos superiores são capazes de chegar para fazer aquilo que julgam correto. Temos uma personagem principal que genuinamente se preocupou com as crianças de uma cidade em declínio, crianças que estavam crescendo em lares desfeitos. O seu marido era uma espécie de pilar da comunidade, e manteve os cidadãos unidos até a "morte". A zona limítrofe se situa em algum ponto entre a "morte" do marido e o fim das atividades nas minas, quando Julia rompeu com os parâmetros da vida anterior, e se transformou no "monstro", através da criação do mito do "Homem das Sombras", quando as crianças começaram a ser raptadas e os cidadãos a perder tempo buscando em razões sobrenaturais a resposta para as muitas perguntas. Que ela tenha raptado David, criado-o como filho ao longo de todos aqueles anos e mantido as aparências é de eriçar os cabelos. Como a personagem da Senhora Johnson coloca muito bem para Julia, ela pode ser uma mulher humilde ou não ter feito as melhores escolhas, mas o menininho ainda é seu filho, e o vínculo entre filhos e pais é indissociável e deve ser respeitado, acima de qualquer senso pessoal de justiça que mova a enfermeira.
Enquanto os nossos sentimentos pelos adultos da história jamais são uma constante, pelas crianças nós só lamentamos. As maiores vítimas circunstanciais de eventos incompreensíveis, elas veem as suas vidas transformadas em uma sequência de reviravoltas protagonizada por adultos, enquanto as suas cabecinhas tentam processar o significado de tudo aquilo. O diretor Laugier faz uma interessante montagem, no começo do filme, quando assistimos às pessoas de Cold Rock falando sobre o "Homem Alto", e entrecortadas entre as entrevistas de cidadãos, imagens de uma menininha, com uma boneca de pano, e um molequinho puxando o carrinho, passeando do lado de fora de suas casas, em lugares muito humildes, e desaparecendo no próximo segundo. A montagem é muito contundente, pois expressa a transição de espaços anteriormente ocupados para vielas vazias. Nós as vemos ali, tão ingênuas, puras, metidas em seus mundinhos mágicos onde só acham que existe o Bem, arrebatadas de um momento a outro, pagando caro pela ausência dos pais. É por este viés que "O Homem das Sombras" procura encaixar-se ao gênero, uma espécie de horror mais humano e possível. Ao substituir uma figura sobrenatural por uma jovem mulher bem intencionada porém sem freios morais, a história toca em medos que a fantasia jamais seria capaz de acessar. Em minha introdução, mencionei O Exorcista porque muito embora o filme de William Friedkin seja um dos melhores que há, a fonte literária de Thomas Allen, sobre os eventos que inspiraram William Peter Blatty a escrever o romance, contrapõe o horror fantasioso do filme ao terror da vida real, reforçando tudo o que escrevi sobre o estilo de "O Homem das Sombras". Falei que o poder do filme de Pascal Laugier se devia ao fato de se apresentar como um suspense bem executado mas formulaico, e então, a dois terços do final, apanhar-nos com uma reviravolta atordoante que nada tem de sobrenatural, porém muito fala sobre a falibilidade humana, certo?Não há dúvidas de que se vocês assistirem a O Exorcista, se divertirão e se assustarão e ao final poderão enxergar a mensagem de esperança com que Friedkin o encerra. Mesmo quarenta anos após o lançamento, O Exorcista conserva a sua crueza e os afiados momentos de terror, todavia uma vez que se conhece a história original, algo parece perdido quando da transição do romance para as telas. Imaginem só, lendo o livro de Thomas Allen, entre tantas hipóteses ventiladas, o autor sugere uma que nada tem de extraordinária, mas que me parece a explicação mais horrorosa para os eventos.Segundo Allen, a natureza do problema que assolou o garoto após a morte da tia parece psicossomática, dever-se ao que hoje os médicos conhecem como Síndrome de Tourette, uma desordem psiquiátrica que pode muito bem ter causado as manifestações observadas. Bastante revelador que todo o problema tenha se iniciado após a morte da tia. Para Allen, também é possível que a mulher o tenha maltratado, e o trauma tenha sido suficientemente maciço para que o menino automaticamente bloqueasse as lembranças e as substituísse pelo sentimento de culpa, o que pode ter gerado o gatilho que transbordou em todas as manifestações psíquicas, nada mais do que energia emocional. A possibilidade de uma criança inocente, ocasionalmente maltratada por uma tia a quem ama, sublimando os eventos de sua mente e pagando o preço da culpa é mais perturbadora do que qualquer fantasia imaginada, e aqui volto ao ponto de "O Homem das Sombras": o seu horror é mais próximo, e portanto mais familiar do que "extraterrestres" ou "cenobitas". Não há resoluções absolutas, mas sobreviventes que precisam fazer o melhor possível para prosseguir com as suas vidas. Depois de tanto investimento psicológico, de discussões sobre temas difíceis e pesados, "O Homem das Sombras" surpreendentemente termina em uma nota positiva e esperançosa. Como mencionei anteriormente, Jenny tem o desejo de se afastar de sua realidade atendido, e o diretor Laugier nos deixa um epílogo que parece reforçar que mesmo quando a vida lança coisas muito ruins sobre nossos colos, há outras muito boas a não se perder de vista, e não podemos nos concentrar apenas na parte ruim, pois assim a tornamos (a vida) toda ruim, e sabemos que não é o caso. Em parte, a vida é boa, ou melhor, muito boa.

Depois de muita pesquisa até que enfim consegui entender o filme com essa narrativa muito bem explicada. Os resumos que li anteriormente foram muito confusos, inclusive muitos afirmam que Julia é a mãe que teve o filho sequestrado ao mesmo tempo que ela afirma que não pode ter filhos. Outra questão duvidosa é o fato do sequestro: se a Julia era a sequestradora, quem sequestrou o menino?
ResponderExcluirFoi muito bom ler sua opinião sobre "O Homem das Sombras" pois estou no processo de finalização do filme anterior desse diretor, Pascal Laugier, e devo estar publicando o artigo dentro da próxima semana, no blog. Você verá as semelhanças entre os temas dos dois filmes, mas perceberá que aqui, em "O Homem das Sombras", ele fez um melhor trabalho, já que mais amadurecido no próprio estilo.Julia era, sim, uma parte pivotal da organização, e quem sequestrou o menino foi algum outro membro, muito provavelmente o falecido marido. Veja você: impressiona-me como, para fazer um filme de horror, não se precise derramar uma gota de sangue.
ExcluirEla ia ficar com o menino para si por isso o ex falecido marido sequestrou a criança para restitui-lo ao sistema de adoção deles. Acho que é isso.
ResponderExcluirObrigado pelo comentário. Peço desculpas pela demora em publicá-lo, só hoje fui vê-lo entre outros que esperavam aprovação. Eu não os tinha visto antes. Grato pelas palavras.
ExcluirSem palavras
ResponderExcluirOtimo. Execelente
Obrigada por esclarecer o filme, eu estava perdida. Não achei um filme ótimo, mas depois de entender até gostei mais... Filme bom.
ResponderExcluirQue texto maravilhoso, cheio de ritm, cadência e musicalidade. Profissional! Parabéns.
ResponderExcluirObrigado pela generosidade em seu comentário. Tudo de bom.
Excluir