Encorajado pelo filho de dezessete anos, Aoyama (Ryo Ishibashi) resolve reconstruir a vida emocional e se abrir sentimentalmente para a possibilidade de uma nova companheira. Viúvo há sete anos, Aoyama sempre foi um pai dedicado ao filho, com quem passou por maus bocados em razão da traumática perda da mulher, que sucumbiu após fracassada batalha com uma doença terminal. Apesar de relutante, Aoyama sabe que o filho tem razão. Não obstante a confortável situação financeira e a prosperidade profissional, ele se sente profundamente solitário e frustrado, sempre aprisionado ao passado, às recordações de dias mais felizes ao lado da falecida esposa. O melhor amigo de Aoyama, Yoshikawa, produtor de cinema, propõe uma excelente maneira para que encontrem a parceira ideal. Yoshikawa produzirá um filme, e já que precisará escalar o elenco principal, sua ideia revolve organizar uma audição, um processo seletivo de jovens atrizes para um determinado papel, com Aoyama presente. Aoyama concorda com o plano, e aparece na audição para ajudar o amigo com as entrevistas. Eles conhecem várias atrizes, porém é uma misteriosa e tímida garota chamada Asami quem encanta Aoyama. Algo na tristeza de seu olhar e na vulnerabilidade de seus gestos desperta um sentimento muito nobre no viúvo, que a partir de então a escolhe como futura companheira. Apesar de a produção do filme não ir adiante, as audições serviram para que Aoyama e Asami se encontrassem, e os dois começam um ingênuo, doce processo de conhecimento e flertes.
Algum tempo se passa, Aoyama está apaixonado por essa garota. Até que Yoshikawa procura o amigo com más notícias. O produtor tem um mau pressentimento quanto a Asami. Ele explica que procurou investigar todos os dados fornecidos pela moça na entrevista, rastreou o pessoal do departamento de música em Tóquio, onde Asami afirmara ter estudado, mas as informações não batem. Até aí, nada muito grave. Aoyama crê que talvez a moça tenha inventando uma mentirinha boba aqui ou acolá para impressioná-los, o que, muito embora incorreto, parece compreensível e perdoável. Talvez, encantada, e procurando causar uma boa impressão, tenha inventado algumas outras fantasias menores. Lamentavelmente, tanto mentiras grandes quanto menores tendem a se tornar uma avalanche. Aoyama conclui, todavia, que o melhor a fazer é contornar o constrangimento. Assim, decide relevar a questão. Yoshikawa não se conforma, e frisa ao amigo que não se trata exclusivamente da questão de mentirinhas. Se o problema se resumisse a uma ou outra informação fantasiosa, seria mesmo de pouca importância, porém algo na jovem lhe dá arrepios. Yoshikawa avisa ao viúvo que está abaixando demais a guarda. Aoyama não dá muita atenção às recomendações e, fascinado, segue com os encontros com Asami.
Curiosamente, essa primeira metade do filme se assemelha aos típicos açucarados filmes românticos protagonizados por Rachel McAdams, estilo Para Sempre e Te Amarei Para Sempre. O diretor Takashi Miike nos mostra os seus personagens transitando entre jantares românticos em restaurantes, flertando inocentemente à mesa, despedindo-se nas calçadas em tardes chuvosas, trocando olhares cheios de desejo, como que, quanto mais esperassem para extravasar a paixão, maior fosse a promessa do prazer e da realização suprema. A ingenuidade e doçura dos primeiros amores são o foco da primeira metade. Vez ou outra, Yoshikawa, a voz da razão, procura trazer o amigo Aoyama de volta à realidade, já que, apaixonado, parece não querer enxergar as evidências contra Asami. Em um diálogo casual na cobertura do prédio onde trabalham, Aoyama conta a Yoshikawa que “encontrou a garota da sua vida”. O produtor insiste para que tenha cautela. Não se apegue muito, Aoyama, Yoshikawa suplica, A vida não pode ser tão fácil assim. Ela é bonita, sofisticada, inteligente e de boa natureza, uma garota desse tipo cairia por você tão facilmente?Yoshikawa vai mais além Tentei checar o seu passado, não sabemos onde trabalha, não conhecemos ninguém que a conheça. Aoyama se recusa a processar a realidade Eu não sou criança, confio no meu próprio julgamento e não no dos outros, se ela me causar problemas, saberei como lidar com os mesmos, responde. Yoshikawa rebate Aoyama, prometa-me uma coisa: não ligue para ela, ao menos por um tempo. Posso estar errado, mas é a sua vida que está em jogo. Não se apegue.
Após os primeiro quarenta minutos de projeção, o filme sofre uma impressionante guinada. O que começa como um drama romântico se torna um filme de horror misterioso e esquizofrênico. Aoyama escuta o conselho de Yoshikawa, e se abstem de ligar para a garota, ao menos por alguns dias. Na cena seguinte, o diretor nos mostra Asami sentada no assoalho de seu apartamento, sozinha, chorando silenciosamente ao lado do telefone, aguardando pela ligação que não chega. Próximo ao telefone, há um enorme saco volumoso amarrado. Depois do breve sumiço, Aoyama chega ao ponto onde, vulnerabilizado pela paixão, não resiste manter o gelo, e resolve contactá-la. Quando o telefone toca, no apartamento de Asami, nós a vemos na mesma posição de antes, ainda ajoelhada, aguardando pela ligação de seu amor. Ela sorri quando o telefone chama, e então subitamente o enorme saco se move. Há uma pessoa amarrada dentro do saco. Essa cena brutal é o ponto de partida para a segunda metade do filme, onde todo o romantismo e os flertes iniciais deixam de importar, e só sobram perguntas sem respostas, cenas surreais, e o mais implacável horror.
Asami
e Aoyama se encontram para a reconciliação, e ela basicamente se abre para o viúvo, contando o quanto sentiu sua falta e aguardou, em
tensão, pela sua ligação, por todo esse tempo. Aoyama fica feliz,
e os dois iniciam o relacionamento amoroso. O casal vai passar um fim de semana
em uma pousada na praia, para comemorar o namoro. Asami se despe, deita-se na cama e pede que o namorado se junte a ela. Aoyama vê terríveis cicatrizes entre as coxas. Emocionada, Asami lhe explica que sua traumática infância é uma das
razões pelas quais se sente tão alienada de pretendentes, e que a
atenção e o carinho de Aoyama significam o mundo. Asami e Aoyama
fazem amor, mas na manhã seguinte, ao acordar, ele não a
encontra mais ao lado. O pessoal da pousada lhe diz que a
moça deixou o lugar mais cedo. Aoyama não sabe o que fez de errado
para afugentá-la. Ele retorna para Tóquio, e conta tudo para
Yoshikawa. Fazendo uso da ficha que Asami preencheu quando das
entrevistas, Aoyama procura localizá-la, porém, conforme o amigo
produtor avisara anteriormente, todas as informações só levam a becos sem saída.
O bar onde ela alegou ter trabalhado foi fechado há anos.
Um morador conta a Aoyama que o lugar foi abandonado após um terrível
crime ocorrido nas dependências, onde o dono teve o corpo
desmembrado. Curiosamente, na época do homicídio, a polícia, que jamais identificou o culpado,
encontrou três dedos extras e uma língua na cena. Esse detalhe é importante. Bastante perturbado por
todo o desdobramento do caso com Asami, o viúvo, impressionado com a descrição, tem uma horrorosa visão, e alucina com a inesquecível cena do assassinato. Sua vida começa a sair dos trilhos, e a cada nova descoberta, os questionamentos apenas se aprofundam.
Uma
tarde, enquanto Aoyama não está em casa, Asami habilidosamente
invade o lugar, e ao descobrir fotos e cartas da falecida esposa, e vislumbrar o incondicional amor que o homem ainda nutre pela muher, fica tomada pelo ciúme e pela vingança. Aoyama
retorna sem de coisa alguma suspeitar, e prepara um drinque
para relaxar. Depois de beber, se sente muito mal. Foi Asami quem o
drogou. O filme nos mostra, então, um flashback, que nos explica o bizarro saco na sala de estar do apartamento de Asami. O saco
contém uma pessoa, ex-amante da garota, que o inutilizou e o deixou
inválido, tendo decepado os pés, a língua e três dedos. Asami
também o cegou e o tornou completamente dependente de seus cuidados.
Isso nos leva a crer que na tal cena do homicídio, no bar onde afirmou ter dançado, foi a própria Asami quem matou o proprietário,
provavelmente um amante que não a quisera mais, bem como deixou no
lugar partes de um namorado anterior, mantido em cativeiro.
Dopado,
Aoyama cai pesadamente na sala de estar. Ele enxerga Asami, vestida
em uma bizarra e justa fantasia escura, adornada por peças de couro.
Ela compensou a pouca força física e a fragilidade colocando droga na bebida,
para incapacitá-lo. Não há a necessidade
de usar os próprios braços para segurá-lo, o que teria sido muito improvável. Ela lhe explica que assim como todos os homens que matou,
Aoyama falhou por não oferecer exclusivo e incondicional amor. Ela conta que não
toleraria perdê-lo. Sem se deixar se sensibilizar pelas súplicas do
homem, Asami usa um fio de aço para lhe amputar os pés. No meio da
confusão, o filho de Aoyama chega, e os dois começam a
lutar, ela se esforçando para dominar o garoto nas escadas. O menino
consegue acertar um chute na assassina, e Asami rola escada abaixo. Com a
queda, ela quebra o pescoço. Aoyama pede ao menino que chame a
polícia imediatamente, e mesmo após perder os pés e ter perdido muito sangue, procura socorrê-la. Mortalmente ferida,
Asami ainda consegue balbuciar algumas palavras, sobre o quanto o
amou e o quanto lamenta pelo ocorrido.
Eleito
um dos cem filmes mais apavorantes de todos os tempos (número onze
na lista do Bravo Channel), este assombroso suspense baseado no
romance original de Ryu Murakami desconcertou pessoas, dividiu
opiniões, e por pouco não alcançou a perfeição que em certos
momentos chega a ensaiar. Rodado em 1999, um ano após o lançamento
de “Ringu”, Audition ajudou a consolidar um produtivo período para o
cinema de horror japonês, quando os fãs foram agraciados com obras
muito distintas e especiais. Prova do valor desses filmes, o cinema
norte-americano passou a comprar os direitos sobre as estórias para
adaptá-las para o mercado ocidental, sendo “O Chamado”, refilmagem de “Ringu”, o mais notório exemplar da tendência. Curiosamente, foi justamente
um dos melhores dessa safra do cinema nipônico, Audition, que jamais
ganhou uma refilmagem. Ao contrário do que se pensa, se
tivesse sido realizada da maneira correta, conforme explanarei mais
abaixo, teria sido uma excelente oportunidade para a concepção de um suspense realmente extraordinário.
Quando disse que por pouco Takashi Miike não alcançou a perfeição, foi porque justamente durante a segunda metade pareceu insistir em cenas extremamente agressivas e violentas para passar o recado. Para ilustrar a minha explicação, os amigos podem tomar a primeira metade como o início de um passeio na montanha-russa: o carrinho vai subindo, você se vê cada vez mais distante do chão, apavorado, preso a aquele espaço da cabine sem ter para onde fugir, esperando o momento do “martelo descer sobre a sua cabeça”, o instante da queda. Só a expectativa do que está por vir e as pistas jogadas aqui e acolá bastam para lhe roubar o fôlego. A segunda metade, a descida pelos trilhos, o carrinho despencando da curva mais alta como um trem fumegante, não honra a expectativa criada na hora antecedente, por mais angustiante e bem executada que pareça. A segunda metade, portanto, não chega a ser flácida, fraca ou ineficiente, apenas não corresponde `a absoluta perfeição da primeira metade. O resultado é um filme assombroso que fará os fãs de horror se apaixonarem, porém simultaneamente considerarem que um pouco menos de sangue e violência teria gerado a absoluta perfeição. Eu sempre acreditei que os realizadores dos melhores filmes de horror jamais precisaram de excessos ou violência explícita para criarem obras memoráveis. Ao contrário, os mais eficientes filmes de horror pareceram substituir violência por atmosfera, excelência narrativa e magistral direção. Enquanto o instante em que o “martelo desce sobre a sua cabeça” é o de menos, a expectativa é tudo. Se os amigos lerem “The Hellbound Heart”, o romance de Clive Barker que deu origem ao filme “Hellraiser”, se surpreenderão com o fato de que por mais angustiante e tensa que toda a experiência pareça, os momentos onde você espera pela violência são surpreendentemente sublimados, ou tocados de maneira bastante discreta. No início de “The Hellbound Heart”, as mais eletrizantes páginas do romance, quando Frank invoca os cenobitas após a resolução da configuração da lamentação, há pouca ou quase nenhuma violência. São as bizarrices e a atmosfera tensa e angustiante de toda a situação que elevam o instante ao panteão dos mais memoráveis momentos da literatura de horror. Se os amigos assistirem ao recente The Tall Man, do francês Pascal Laugier, concluirão que muito embora o filme não traga sequer uma gota de sangue, o teor da estória, que envolve a abdução de crianças humildes de uma cidadezinha para um complexo esquema de adoção ilegal e a melodia assombrosa e triste que perdura por toda a projeção foram suficientes para o tornarem um inesquecível, incômodo exercício no horror, que perdura na memória por semanas a fio.
Durante os momentos finais de Audition, depois que Asami consegue imobilizar Aoyama e começa a trucidá-lo, Miike desafia as convenções do bom senso, e lamentavelmente, ao invés de sugerir por vias mais sutis o que está se sucedendo com os dois personagens, prefere colocar as lentes sobre a ferida. O que aos olhos provoca terrível impacto visual também enfraquece o conjunto. É como se nesse instante, toda a classe, elegância, mistério e beleza que Miike conseguiu estabelecer tão bem na primeira hora perdesse valor, graças a mais desnecessária exploração de escatologia e violência. Não é o suficiente para prejudicar substancialmente o filme de Miike, mas sem dúvidas o impede de decolar como o suspense impecável que a primeira hora prometera. A gratuidade da violência gerou protestos e afastou pessoas deste suspense que ironicamente e em sua maior parte veste elegância, mistério e eletricidade.
A cena mais arrepiante do filme, que aliás não precisou de exposição alguma, te fará pular no sofá. Quando Asami está aguardando, deprimida e chorosa, pela ligação de Aoyama, o telefone toca e ela sorri aliviada. Nesse ínterim, o saco amarrado que está em um canto da sala subitamente se mexe e faz um horroroso barulho, semelhante a um grunhido. Não enxergamos o quê se encontra dentro do saco – saberemos mais tarde que se trata de um ex-namorado de Asami – mas o horror provocado pelo súbito movimento do saco e o grunhido que o segue são dignos de fazer os cabelos eriçarem. O mesmo ocorre quando, ao encontrar o bar onde Asami afirmou ter trabalhado e ocorreu um homicídio, Aoyama alucina com o terrível cenário do assassinato, abalado pela força da narração do estranho que aparecera por ali e lhe contara o segredo. Mais sutilmente, e baseado exclusivamente em performances e direção, também nos traz muita inquietude, muito desconforto, o momento em que Yoshikawa procura colocar algum senso no apressado Aoyama, avisando-lhe que está entrando de cabeça em uma situação onde há muitas informações desencontradas e perguntas sem respostas. Sentimo-nos como observadores, naquela cobertura, testemunhas silenciosas da troca de impressões entre os amigos.
Miike é um cineasta cujo conturbado olhar cria imagens memoráveis e marcantes, mais eficientes do que qualquer violência gratuita posta na tela. Há um momento prova disto, muito contundente, mostra de sua criatividade melancólica, quando Aoyama, dividido pela culpa, vez que está se apaixonando novamente, sonha com a falecida esposa o observando detrás de uma árvore em um vasto campo, com o olhar cheio de dor e decepção. Esse breve momento perdura na memória, dada a incomum tristeza. A criatividade tétrica do diretor encontra absoluto suporte no provocante roteiro, que presenteia Miike com personagens psicologicamente aprofundados e difíceis com que possa trabalhar. É o caso dos protagonistas e, significantemente, de uma personagem periférica menor, que contribui para enriquecer a honestidade psicológica dessa trágica estória. Trata-se da secretaria de Aoyama, uma bonita jovem que inicialmente parece apenas mais uma personagem desimportante. Posteriormente, ao longo do filme, deduzimos que nutre sentimentos românticos secretos que jamais serão correspondidos pelo chefe. Em um momento bastante revelador, a garota aparece na porta do escritório para avisar que já está indo, e Aoyama, concentrado nos afazeres, levanta os olhos por sobre o monitor, para a moça, diz algo nas linhas de Oh está tudo bem, Senhorita Fulana de Tal, pode ir e volta a seus afazeres. Ela permanece na porta, silente, os olhos tomados pela amargura, tendo caído na real de que Aoyama sequer a enxerga sob a ótica da possibilidade de envolvimento amoroso. Essa menina foi “friendzonada” tão definitivamente que não apenas nesse instante como nos demais em que aparece mais para a frente, toda a dor da rejeição segue emanando de sua performance, cortesia do excelente desempenho da atriz.
Audition é um dos poucos filmes japoneses de horror que não recebeu o tratamento da refilmagem. Parte das produções refeitas nos Estados Unidos padecem quando comparadas aos originais. Se Audition tivesse sido refilmado da maneira correta, haveria muito a se agregar ao trabalho original de Takashi Miike. Uma considerável barreira que atrapalhou a tradução do material por um cineasta ocidental deveu-se ao cerne essencialmente nipônico. Na cultura patriarcal japonesa, as mulheres parecem lidar com maior repressão, com amarras mais apertadas que as prendem a valores machistas seculares e as mantêm sob o jugo dos homens. Se encararmos a questão por esse viés, o trabalho de Miike parece a catártica resposta feminista a questionamentos difíceis de serem respondidos, mas experimentados nas vidas individuais das pessoas que compõem a referida sociedade. O mesmo não se observa na sociedade ocidental, onde as mulheres obtiveram avanços que as colocaram em posição de “igualdade” com os homens, muito embora, particularmente, acredite que tais conquistas tenham sido desvirtuadas, e que suposta igualdade represente em última análise enganosa deturpação, que mais têm arruinado famílias do que as formado, que mais têm alienado do que unido, que mais têm gerado homens sensibilizados, fracotes, românticos, apologéticos e vulneráveis do que homens fortes, decididos, orgulhosos, corretos, honrados, que não aceitam ser capacho de mulher, e estão preparados para os desafios da vida. Pessoalmente, acredito que o equilíbrio está em algum lugar no meio.
Vencida a questão cultural, o que somente poderia ser alcançado através de um roteiro cuidadoso, a escolha de diretor e elenco principal viria em seguida. Se a problemática da violência foi o que impediu o original de decolar como o suspense perfeito, e o que se busca, para aperfeiçoar a ideia original é a sustentação da atmosfera e eletricidade por meio de estilo, Brian De Palma seria o homem certo para dirigir o projeto. Em 1999/2000, a época certa para que Audition tivesse sido refilmado, De Palma estava no auge estilístico, tendo sido o seu último trabalho Mission to Mars, uma extravagância visual enriquecida pela trilha sonora de Ennio Morricone que encapsulava tudo o que o tornava um artista apaixonado. Eu não tenho dúvidas de que sob sua batuta o projeto teria dado certo. As suas técnicas de split screen, por exemplo, aperfeiçoadas em Snake Eyes, dariam personalidade, vibração e alma ao imaginário do remake. A escolha do elenco para um filme tão arriscado deveria recair sobre atores que você jamais esperaria ver em algo do tipo. Ao mesmo tempo, seria o talento dessas escolhas surpreendentes que traria vida aos personagens, e o resultado da perigosa aposta vingaria em magnéticos dividendos. O que não se deveria buscar, quanto a escolha de protagonistas, seria o lugar comum, “astros do momento”. A meu ver, em 1999/2000, dois anos após o renascimento artístico obtido com Boogie Nights Prazer sem Limites, e ainda na faixa etária para o personagem de Aoyama (ou seja lá qual fosse o nome no remake), Burt Reynolds teria sido a melhor escolha de De Palma para o papel do publicitário viúvo. Quem viu a sua performance como o diretor de filmes eróticos e “pai substituto” de uma trupe de atores pornôs na contundente, violenta e triste obra de Paul Thomas Anderson, sabe que não haveria melhor escolha. No filme de Miike, a primeira vez que Asami chama a atenção de Aoyama acontece depois que ele e o seu amigo dão uma pausa nas entrevistas, e Aoyama vai lavar as mãos no banheiro. No caminho para o toalete, Aoyama passa pela sala de espera, onde as moças que atenderam ao chamado para teste aguardam sua vez, e enxerga essa garota sentada de costas, solitariamente, tão destoante de todas as outras barulhentas, e de alguma forma, já naquele momento, vê-se sob o domínio de seu poder e fascínio. Quando penso em termos de remake, em uma atriz norte-americana para interpretar uma personagem capaz de mover tão profundamente com a cabeça de um homem a partir de sua mera presença, e de deixá-lo ainda mais perdido pela posterior ausência, somente consigo pensar em Jennifer Connelly. O time frame do remake teria permitido a escolha, pois em 1999/2000, ela estava entrando na casa dos trinta anos. Ela havia feito esse filme chamado Amor Maior que a Vida, e o que me impressionou neste e em todos os outros que fizera e os em que veio a atuar depois foi o seu olhar singularmente triste e misterioso. Você assiste a Jennifer Connelly, e mesmo nos momentos de silêncio, um caleidoscópio de emoções contraditórias, indecifráveis e perigosas está se passando no universo que são os olhos. Alguns dizem que os olhos são o espelho da alma. Quando Jennifer Connelly os combina com a força de seu sorriso ilegível, ela é o epítome da mesma força que permitiu a Asami desmontar a racionalidade e a cabeça do ponderado e experiente Aoyama, e arrastá-lo sem tréguas para um pesadelo onde não havia esperança de salvação. Para o pivotal papel da secretária arremessada a “friendzone”, que no filme de Miike tornou a experiência ainda mais psicologicamente desgastante, penso na atriz Selma Blair, a “Jean Lerner” de w Delta z. Ela vestiria muito bem a dor de uma mulher frustrada pelo fato de o homem a quem ama não conseguir enxergá-la como parceira sexual. Essa trágica e patética personagem pode parecer desimportante para a estória, mas sua evocativa e fantasmagórica presença, sempre de pé pelos cantos, fora do campo de visão do chefe, observando-o silenciosamente com um olhar pidão e arrasador, nos leva a crer que o liame que separa fantasias de amor das de horror não passa de uma zona cinzenta e indefinida que pode ser desrespeitada a qualquer segundo. Finalmente, exatamente porque creio que uma reimaginação do original produziria um filme capaz de se sustentar sozinho, proporia a mudança de título. Não sei por quê, mas ao considerar a questão e imaginar o projeto, veio-me a mente algo com os nomes “Nenhum Passo em Falso” ou "Uma Valsa na Escuridão". Evidentemente, essa é a minha ideia de remake, que só teria funcionado lá atrás, em 1999. Se eu fosse o cineasta Brian De Palma, ou mesmo diretor de filmes, o remake descrito acima teria acontecido. Se não saiu do papel na referida época, propícia para as propostas apresentadas, é melhor que jamais tenha ocorrido mesmo. Acho que, se me permitem a ilação, o remake de Audition foi o melhor filme de Brian De Palma que Brian De Palma jamais dirigiu.
Audition é uma saborosa "anomalia" do horror: desde quando, afinal de contas, os amigos já assistiram a um filme de terror que inicialmente se assemelha aos dramas românticos estrelados por Rachel McAdams, só que simultaneamente envolto por eletrizante atmosfera de suspeitas e expectativas, e que depois se torna um suspense surreal sem tréguas nos moldes de um pesadelo imaginado por David Cronenberg ou Clive Barker, com uma vilã metida em bizarra fantasia de couro sadomasoquista, que nos remete aos mesmos trajes a adornarem os cenobitas de "Hellraiser"?Ainda, quais foram os filmes, que não raríssimos casos, que apresentaram personagens tão psicologicamente densos e imprevisíveis como os que conhecemos nessa estória?Ou um roteiro que envolvesse um leque tão variado de contradições da psique humana?O debate a que esse filme convida jamais oferecerá respostas definitivas. No perigoso campo minado dos relacionamentos, as perguntas em aberto estão aí para serem resolvidas desde que o mundo é mundo, e é a busca por respostas que nos instiga adiante. A compreensão do que se passa na mente humana parece mais intrincada do que a do universo que nos rodeia. Como Shakespeare melhor diria, Alguns cupidos caçam com flechas; outros, com armadilhas.
O uso do trailer & imagens é para efeito meramente ilustrativo da resenha. Todos os direitos autorais reservados a Arrow Video.
Quando disse que por pouco Takashi Miike não alcançou a perfeição, foi porque justamente durante a segunda metade pareceu insistir em cenas extremamente agressivas e violentas para passar o recado. Para ilustrar a minha explicação, os amigos podem tomar a primeira metade como o início de um passeio na montanha-russa: o carrinho vai subindo, você se vê cada vez mais distante do chão, apavorado, preso a aquele espaço da cabine sem ter para onde fugir, esperando o momento do “martelo descer sobre a sua cabeça”, o instante da queda. Só a expectativa do que está por vir e as pistas jogadas aqui e acolá bastam para lhe roubar o fôlego. A segunda metade, a descida pelos trilhos, o carrinho despencando da curva mais alta como um trem fumegante, não honra a expectativa criada na hora antecedente, por mais angustiante e bem executada que pareça. A segunda metade, portanto, não chega a ser flácida, fraca ou ineficiente, apenas não corresponde `a absoluta perfeição da primeira metade. O resultado é um filme assombroso que fará os fãs de horror se apaixonarem, porém simultaneamente considerarem que um pouco menos de sangue e violência teria gerado a absoluta perfeição. Eu sempre acreditei que os realizadores dos melhores filmes de horror jamais precisaram de excessos ou violência explícita para criarem obras memoráveis. Ao contrário, os mais eficientes filmes de horror pareceram substituir violência por atmosfera, excelência narrativa e magistral direção. Enquanto o instante em que o “martelo desce sobre a sua cabeça” é o de menos, a expectativa é tudo. Se os amigos lerem “The Hellbound Heart”, o romance de Clive Barker que deu origem ao filme “Hellraiser”, se surpreenderão com o fato de que por mais angustiante e tensa que toda a experiência pareça, os momentos onde você espera pela violência são surpreendentemente sublimados, ou tocados de maneira bastante discreta. No início de “The Hellbound Heart”, as mais eletrizantes páginas do romance, quando Frank invoca os cenobitas após a resolução da configuração da lamentação, há pouca ou quase nenhuma violência. São as bizarrices e a atmosfera tensa e angustiante de toda a situação que elevam o instante ao panteão dos mais memoráveis momentos da literatura de horror. Se os amigos assistirem ao recente The Tall Man, do francês Pascal Laugier, concluirão que muito embora o filme não traga sequer uma gota de sangue, o teor da estória, que envolve a abdução de crianças humildes de uma cidadezinha para um complexo esquema de adoção ilegal e a melodia assombrosa e triste que perdura por toda a projeção foram suficientes para o tornarem um inesquecível, incômodo exercício no horror, que perdura na memória por semanas a fio.
Durante os momentos finais de Audition, depois que Asami consegue imobilizar Aoyama e começa a trucidá-lo, Miike desafia as convenções do bom senso, e lamentavelmente, ao invés de sugerir por vias mais sutis o que está se sucedendo com os dois personagens, prefere colocar as lentes sobre a ferida. O que aos olhos provoca terrível impacto visual também enfraquece o conjunto. É como se nesse instante, toda a classe, elegância, mistério e beleza que Miike conseguiu estabelecer tão bem na primeira hora perdesse valor, graças a mais desnecessária exploração de escatologia e violência. Não é o suficiente para prejudicar substancialmente o filme de Miike, mas sem dúvidas o impede de decolar como o suspense impecável que a primeira hora prometera. A gratuidade da violência gerou protestos e afastou pessoas deste suspense que ironicamente e em sua maior parte veste elegância, mistério e eletricidade.
A cena mais arrepiante do filme, que aliás não precisou de exposição alguma, te fará pular no sofá. Quando Asami está aguardando, deprimida e chorosa, pela ligação de Aoyama, o telefone toca e ela sorri aliviada. Nesse ínterim, o saco amarrado que está em um canto da sala subitamente se mexe e faz um horroroso barulho, semelhante a um grunhido. Não enxergamos o quê se encontra dentro do saco – saberemos mais tarde que se trata de um ex-namorado de Asami – mas o horror provocado pelo súbito movimento do saco e o grunhido que o segue são dignos de fazer os cabelos eriçarem. O mesmo ocorre quando, ao encontrar o bar onde Asami afirmou ter trabalhado e ocorreu um homicídio, Aoyama alucina com o terrível cenário do assassinato, abalado pela força da narração do estranho que aparecera por ali e lhe contara o segredo. Mais sutilmente, e baseado exclusivamente em performances e direção, também nos traz muita inquietude, muito desconforto, o momento em que Yoshikawa procura colocar algum senso no apressado Aoyama, avisando-lhe que está entrando de cabeça em uma situação onde há muitas informações desencontradas e perguntas sem respostas. Sentimo-nos como observadores, naquela cobertura, testemunhas silenciosas da troca de impressões entre os amigos.
Miike é um cineasta cujo conturbado olhar cria imagens memoráveis e marcantes, mais eficientes do que qualquer violência gratuita posta na tela. Há um momento prova disto, muito contundente, mostra de sua criatividade melancólica, quando Aoyama, dividido pela culpa, vez que está se apaixonando novamente, sonha com a falecida esposa o observando detrás de uma árvore em um vasto campo, com o olhar cheio de dor e decepção. Esse breve momento perdura na memória, dada a incomum tristeza. A criatividade tétrica do diretor encontra absoluto suporte no provocante roteiro, que presenteia Miike com personagens psicologicamente aprofundados e difíceis com que possa trabalhar. É o caso dos protagonistas e, significantemente, de uma personagem periférica menor, que contribui para enriquecer a honestidade psicológica dessa trágica estória. Trata-se da secretaria de Aoyama, uma bonita jovem que inicialmente parece apenas mais uma personagem desimportante. Posteriormente, ao longo do filme, deduzimos que nutre sentimentos românticos secretos que jamais serão correspondidos pelo chefe. Em um momento bastante revelador, a garota aparece na porta do escritório para avisar que já está indo, e Aoyama, concentrado nos afazeres, levanta os olhos por sobre o monitor, para a moça, diz algo nas linhas de Oh está tudo bem, Senhorita Fulana de Tal, pode ir e volta a seus afazeres. Ela permanece na porta, silente, os olhos tomados pela amargura, tendo caído na real de que Aoyama sequer a enxerga sob a ótica da possibilidade de envolvimento amoroso. Essa menina foi “friendzonada” tão definitivamente que não apenas nesse instante como nos demais em que aparece mais para a frente, toda a dor da rejeição segue emanando de sua performance, cortesia do excelente desempenho da atriz.
Audition é um dos poucos filmes japoneses de horror que não recebeu o tratamento da refilmagem. Parte das produções refeitas nos Estados Unidos padecem quando comparadas aos originais. Se Audition tivesse sido refilmado da maneira correta, haveria muito a se agregar ao trabalho original de Takashi Miike. Uma considerável barreira que atrapalhou a tradução do material por um cineasta ocidental deveu-se ao cerne essencialmente nipônico. Na cultura patriarcal japonesa, as mulheres parecem lidar com maior repressão, com amarras mais apertadas que as prendem a valores machistas seculares e as mantêm sob o jugo dos homens. Se encararmos a questão por esse viés, o trabalho de Miike parece a catártica resposta feminista a questionamentos difíceis de serem respondidos, mas experimentados nas vidas individuais das pessoas que compõem a referida sociedade. O mesmo não se observa na sociedade ocidental, onde as mulheres obtiveram avanços que as colocaram em posição de “igualdade” com os homens, muito embora, particularmente, acredite que tais conquistas tenham sido desvirtuadas, e que suposta igualdade represente em última análise enganosa deturpação, que mais têm arruinado famílias do que as formado, que mais têm alienado do que unido, que mais têm gerado homens sensibilizados, fracotes, românticos, apologéticos e vulneráveis do que homens fortes, decididos, orgulhosos, corretos, honrados, que não aceitam ser capacho de mulher, e estão preparados para os desafios da vida. Pessoalmente, acredito que o equilíbrio está em algum lugar no meio.
Vencida a questão cultural, o que somente poderia ser alcançado através de um roteiro cuidadoso, a escolha de diretor e elenco principal viria em seguida. Se a problemática da violência foi o que impediu o original de decolar como o suspense perfeito, e o que se busca, para aperfeiçoar a ideia original é a sustentação da atmosfera e eletricidade por meio de estilo, Brian De Palma seria o homem certo para dirigir o projeto. Em 1999/2000, a época certa para que Audition tivesse sido refilmado, De Palma estava no auge estilístico, tendo sido o seu último trabalho Mission to Mars, uma extravagância visual enriquecida pela trilha sonora de Ennio Morricone que encapsulava tudo o que o tornava um artista apaixonado. Eu não tenho dúvidas de que sob sua batuta o projeto teria dado certo. As suas técnicas de split screen, por exemplo, aperfeiçoadas em Snake Eyes, dariam personalidade, vibração e alma ao imaginário do remake. A escolha do elenco para um filme tão arriscado deveria recair sobre atores que você jamais esperaria ver em algo do tipo. Ao mesmo tempo, seria o talento dessas escolhas surpreendentes que traria vida aos personagens, e o resultado da perigosa aposta vingaria em magnéticos dividendos. O que não se deveria buscar, quanto a escolha de protagonistas, seria o lugar comum, “astros do momento”. A meu ver, em 1999/2000, dois anos após o renascimento artístico obtido com Boogie Nights Prazer sem Limites, e ainda na faixa etária para o personagem de Aoyama (ou seja lá qual fosse o nome no remake), Burt Reynolds teria sido a melhor escolha de De Palma para o papel do publicitário viúvo. Quem viu a sua performance como o diretor de filmes eróticos e “pai substituto” de uma trupe de atores pornôs na contundente, violenta e triste obra de Paul Thomas Anderson, sabe que não haveria melhor escolha. No filme de Miike, a primeira vez que Asami chama a atenção de Aoyama acontece depois que ele e o seu amigo dão uma pausa nas entrevistas, e Aoyama vai lavar as mãos no banheiro. No caminho para o toalete, Aoyama passa pela sala de espera, onde as moças que atenderam ao chamado para teste aguardam sua vez, e enxerga essa garota sentada de costas, solitariamente, tão destoante de todas as outras barulhentas, e de alguma forma, já naquele momento, vê-se sob o domínio de seu poder e fascínio. Quando penso em termos de remake, em uma atriz norte-americana para interpretar uma personagem capaz de mover tão profundamente com a cabeça de um homem a partir de sua mera presença, e de deixá-lo ainda mais perdido pela posterior ausência, somente consigo pensar em Jennifer Connelly. O time frame do remake teria permitido a escolha, pois em 1999/2000, ela estava entrando na casa dos trinta anos. Ela havia feito esse filme chamado Amor Maior que a Vida, e o que me impressionou neste e em todos os outros que fizera e os em que veio a atuar depois foi o seu olhar singularmente triste e misterioso. Você assiste a Jennifer Connelly, e mesmo nos momentos de silêncio, um caleidoscópio de emoções contraditórias, indecifráveis e perigosas está se passando no universo que são os olhos. Alguns dizem que os olhos são o espelho da alma. Quando Jennifer Connelly os combina com a força de seu sorriso ilegível, ela é o epítome da mesma força que permitiu a Asami desmontar a racionalidade e a cabeça do ponderado e experiente Aoyama, e arrastá-lo sem tréguas para um pesadelo onde não havia esperança de salvação. Para o pivotal papel da secretária arremessada a “friendzone”, que no filme de Miike tornou a experiência ainda mais psicologicamente desgastante, penso na atriz Selma Blair, a “Jean Lerner” de w Delta z. Ela vestiria muito bem a dor de uma mulher frustrada pelo fato de o homem a quem ama não conseguir enxergá-la como parceira sexual. Essa trágica e patética personagem pode parecer desimportante para a estória, mas sua evocativa e fantasmagórica presença, sempre de pé pelos cantos, fora do campo de visão do chefe, observando-o silenciosamente com um olhar pidão e arrasador, nos leva a crer que o liame que separa fantasias de amor das de horror não passa de uma zona cinzenta e indefinida que pode ser desrespeitada a qualquer segundo. Finalmente, exatamente porque creio que uma reimaginação do original produziria um filme capaz de se sustentar sozinho, proporia a mudança de título. Não sei por quê, mas ao considerar a questão e imaginar o projeto, veio-me a mente algo com os nomes “Nenhum Passo em Falso” ou "Uma Valsa na Escuridão". Evidentemente, essa é a minha ideia de remake, que só teria funcionado lá atrás, em 1999. Se eu fosse o cineasta Brian De Palma, ou mesmo diretor de filmes, o remake descrito acima teria acontecido. Se não saiu do papel na referida época, propícia para as propostas apresentadas, é melhor que jamais tenha ocorrido mesmo. Acho que, se me permitem a ilação, o remake de Audition foi o melhor filme de Brian De Palma que Brian De Palma jamais dirigiu.
Audition é uma saborosa "anomalia" do horror: desde quando, afinal de contas, os amigos já assistiram a um filme de terror que inicialmente se assemelha aos dramas românticos estrelados por Rachel McAdams, só que simultaneamente envolto por eletrizante atmosfera de suspeitas e expectativas, e que depois se torna um suspense surreal sem tréguas nos moldes de um pesadelo imaginado por David Cronenberg ou Clive Barker, com uma vilã metida em bizarra fantasia de couro sadomasoquista, que nos remete aos mesmos trajes a adornarem os cenobitas de "Hellraiser"?Ainda, quais foram os filmes, que não raríssimos casos, que apresentaram personagens tão psicologicamente densos e imprevisíveis como os que conhecemos nessa estória?Ou um roteiro que envolvesse um leque tão variado de contradições da psique humana?O debate a que esse filme convida jamais oferecerá respostas definitivas. No perigoso campo minado dos relacionamentos, as perguntas em aberto estão aí para serem resolvidas desde que o mundo é mundo, e é a busca por respostas que nos instiga adiante. A compreensão do que se passa na mente humana parece mais intrincada do que a do universo que nos rodeia. Como Shakespeare melhor diria, Alguns cupidos caçam com flechas; outros, com armadilhas.