segunda-feira, 30 de setembro de 2019

"Sonata de Tóquio" ("Tokyo Sonata", Japão, 2008): O perene chamado de volta à casa restaura os frágeis laços que unem uma doce família japonesa em queda livre, nesta obra-prima do sensível cineasta Kiyoshi Kurosawa.

Breve sinopse: Numa manhã sem novidades no escritório da firma, o executivo Ryuhei Sasaki (Teruyuki Kagawa) é chamado à sala do chefe, que não lhe traz boas novas. Com o Japão desmoronando graças a uma das mais agudas crises financeiras de sua história, as multinacionais japonesas se viram forçadas a "enxugar" os gastos com servidores, e como a fusão com os chineses lhes valerá mão de obra barata, muita gente caiu na lista de corte. Ryuhei não pretende se adequar às imposições do escritório, e se vê subitamente desempregado, tendo de carregar as coisas em duas sacolas, caminhando pelas calçadas do centro comercial de Tóquio, sem direção certa. Na mesma manhã, ele procura uma agência de emprego, determinado a encontrar uma posição financeiramente equivalente à anterior. Ele se surpreende com a fila. Muitos cidadãos japoneses procuram oportunidade, pois a crise não poupou nenhuma categoria de trabalhador. Quando a tarde se vai, Ryuhei volta para casa, num típico bairro de classe média, como se nada de muito sério tivesse ocorrido. Ele omite da esposa, Megumi (Kyoku Koizumi), a demissão. Eles têm dois filhos: Kenji (Kai Inowaki) é o garotinho inteligente e melancólico, que ao regressar da escola sempre atravessa o caminho do pai ao desembocarem na calçada que dá para a casa; e Takashi (Yu Koyanagi), o mais velho, sonha em viver uma grande aventura, longe de casa. Ryuhei entrega à Megumi o salário da semana, provavelmente ponderando até quando será capaz de manter a farsa e esconder da família a preocupante situação. O filme nos apresenta momentos do dia a dia dos Sasaki. Aos poucos, vamos desvendando dramas e sonhos não necessariamente vocalizados. Travesso na escola, a rebeldia de Kenji se deve à intransigência de Ryuhei, que aos filhos reserva pouca atenção e uma dura disciplina. O menino vive atormentando o compreensivo Prof. Kobaiyashi (Kazuya Kojima), amolando-o e o provocando, uma válvula de escape para as tensões de casa, principalmente em razão do fato de o professor jamais perder a paciência e o tratar benevolentemente. Uma tarde, ao voltar para casa, uma linda melodia de piano chama a atenção da criança para a sala de estar da casa da professora de música Kaneko (Haruka Igawa). Tamanha beleza desperta no garoto o interesse pelo piano; contudo, durante o jantar, ao expressar a vontade ao pai, é respondido com a recusa de Ryuhei. O pai, um homem meio antiquado, considera piano uma arte para mulheres, e proíbe o filho de frequentar as aulas de música. Ryuhei sustenta a farsa de sair de casa toda manhã para fingir que vai à firma, mas seus dias se passam sem grandes novidades. Um dia, próximo à hora do almoço, enquanto espera os voluntários de uma instituição de caridade que provêm refeições a moradores de rua, reconhece Kuroso, um velho amigo dos tempos de escola, por ali passeando. Com muito bom humor, Kuroso o cumprimenta. Ele dá a impressão de um executivo ocupado, tendo de interromper a conversa para atender uma ligação de negócios. Kuroso aponta para as pessoas carentes, e, como quem não soubesse, pergunta do que se trata a fila. Ryuhei também finge desconhecimento, e responde que voluntários providenciam quentinhas para as pessoas mais humildes. Kuroso o convida a se integrarem à fila, afinal seria uma ótima oportunidade de matar a curiosidade quanto ao sabor da refeição. Evidentemente, após a refeição improvisada, enquanto conversam mais à vontade em um canto da praça, os amigos se abrem um ao outro. Ryuhei admite o desemprego; Kuroso também perdeu a posição de destaque há três meses. Como manter as aparências o ajuda a acalmar os nervos, Kuroso programa o celular para chamar regularmente, pois assim transparece a imagem de um executivo ocupado, daí a ligação de há pouco, quando haviam acabado de se encontrar. Ele se torna companheiro de caminhadas de Ryuhei, e, dia após dia, passam a atravessar a cidade de ponta a ponta, em busca de emprego. Ryuhei resiste às oportunidades de colocações mais braçais. O cavalheiro da agência de reposicionamento procura lhe explicar que seria praticamente impossível conseguir um emprego do mesmo nível do anterior. Assim como Ryuhei, Kuroso sustenta as aparências de modo a esconder da mulher e filha o desemprego, e, uma noite, chama Ryuhei para jantar em casa. À mesa, eles conversam como dois colegas de escritório, preocupados com as demandas diárias da firma, uma forma de enganar a esposa e a filha do amigo. Algo no semblante da mulher e da adolescente, entretanto, aponta a suspeita do pior. De fato, ao se escusar para ir ao banheiro para lavar as mãos, Ryuhei é procurado pela adolescente, que o espera do lado de fora. Ao vê-lo, a menina lhe pede para cuidar bem do pai. Enquanto Ryuhei tenta assimilar as regras de sobrevivência, tais como a conta onde deve depositar o seguro-desemprego para fazê-lo durar, os outros membros do lar vivem os próprios dramas. Kenji guarda o dinheiro do lanche e o usa para financiar as aulas de piano. Ele se prova um fantástico aprendiz, e vem a formar uma bonita amizade com a professora, uma mulher muito deprimida, traumatizada por um turbulento divórcio. Sempre serena, Megumi, que passou a vida cuidando de casa, ensaia seus primeiros passos rumo à independência ao obter sucesso no exame de direção e receber a carta de motorista, uma metáfora para desejos de juventude irrealizados, quando o mundo estivera ao seu alcance e a vida se resumia ao futuro. Ela tenta mediar os conflitos entre o amargurado Ryuhei e os filhos, mas nem sempre consegue evitar os atritos, e sua fortaleza emocional mascara um lado triste e carente. Eventualmente, Takashi embarca na tão sonhada aventura além-mar, contra o desejo do pai, mas ajudado pelo suporte da mãe, e Kenji passa a se aperfeiçoar no piano com a professora Kaneko. À medida que a dura realidade segue se assomando diante da família, tornando cada vez mais insustentável a farsa de Ryuhei e testando o comprometimento de todos para com os valores do lar, os Sasaki entendem que por mais que a sequência de adversidades os afaste de maneira a torná-los átomos soltos, seus corações insistem em levá-los de volta à casa, onde reside seu melhor tesouro.
Resenha: O talentoso cineasta Kiyoshi Kurosawa, celebrado pelos perturbadores filmes de horror fantástico, rejeita o rótulo de diretor de gênero, e realiza um drama sensacional. Com sensibilidade agridoce, ele retrata a inter-relação de dois mundos aparentemente indissociáveis: o microcosmo das relações familiares inserido no macrocosmo dos problemas sociais de nosso tempo, em especial da sociedade nipônica, onde as emoções tendem a ser empurradas ao âmbito mais íntimo, num artifício de enclausurá-las, com consequências sufocantes. Apreciadores do terror japonês reconhecem o nome do talentoso cineasta, responsável por um dos melhores exemplares do gênero, "Kairo", já resenhado há alguns anos neste blog. Após "Kairo", rodado em 2001, Kurosawa revisitou o horror com frequência, sempre lançando mão de abordagens gradualmente delicadas, dando às obras uma contundência existencial engrandecedora, num processo semelhante ao acontecido ao cineasta Brian De Palma, que num espaço de praticamente quinze anos foi da escatologia à tétrica elegância de "Vestida para Matar". Se prestarmos atenção ao primeiro grande momento do Sr. Kurosawa, o suspense "Cure", de 1997, sobre um detetive psicologicamente exaurido à caça de um serial killer, pontuaremos sua preocupação em evocar uma sensação de abstração intelectual, num estilo reminiscente do saudoso Andrei Tarkovski, e, a partir daí, trabalhar os elementos mais usuais do gênero. A adaptação  de ambições artísticas tão ímpares a fórmulas consagradas do horror resultou em filmes maravilhosos, sendo "Kairo" seu mais elogiado momento, possivelmente o trabalho responsável por tê-lo colocado no mapa dos grandes diretores contemporâneos. À medida que a filmografia foi crescendo, o terror foi perdendo a importância, e se em "Kairo" já se observava a assertividade do diretor ao analisar a alienação do homem moderno, foram nas obras seguintes que ele verdadeiramente lapidou a sensibilidade, livre das amarras das expectativas geradas pelo passado no cinema fantástico. Recebido com aclamação pela crítica, "Sonata em Tóquio" foi o grande vencedor do conceituado prêmio do juri "Un certain regard" do festival de cinema de Cannes de 2008. Entre tantos elogios, nenhuma resenha o definiu tão bem quanto a do sr. Tom Mes, do "Midnight Eye", ao acenar ao passado de Kurosawa para saudar seu mais profícuo período, encontrando, no exercício comparativo, pontos de correlação entre o horror fantástico & o drama existencial. Sr. Tom Mes escreve: "'Sonata em Tóquio' é a epítome das qualidades cinematográficas de Kurosawa. Conforme mencionei, o filme não contém elementos sobrenaturais: nada de fantasmas, assassinos, ou fauna & flora monstruosas. Ainda assim, é o filme mais aterrorizante rodado pelo Sr. Kiyoshi Kurosawa: é aterrorizante, pois se trata de nós".

Certos filmes gozam de uma certa inflexão na tristeza que lhes valem vantagem. Ao assistir a determinadas histórias, não há nenhum momento onde você se recorde de ter se debulhado em lágrimas; entretanto, elas permanecem contigo muito após a exibição. Eu me recordo de ter me sentido semelhante ao ver "Antes do Pôr do Sol", a sequência de "Antes do Amanhecer". O americano vivido pelo ator Ethan Hawke escreve um romance baseado no belo encontro ocorrido dez anos antes, em 1994, com uma jovem parisiense, e no último dia de tour na Cidade da Luz para a promoção da obra, é visitado pela mesma pessoa, hoje uma mulher aos trinta e poucos. Eles têm apenas uma tarde até a hora do voo do escritor para conversar, e ao longo do dia, com Paris a ocupar gloriosamente o pano de fundo, trocam reminiscências daquele dia tão longínquo, formando dentro de si a convicção de que o reencontro não foi mero fruto de acaso, mas uma grande oportunidade de recomeço. Recheado por instantes psicologicamente ricos, "Antes do Pôr do Sol" permanece na memória graças a uma pletora de momentos muito contundentes, como quando a mulher afirma não apenas se recordar de todos os passos daquele dia em 1994, como também se lembrar especialmente do modo como a luz do sol brilhou no cavanhaque do rapaz, "na manhã em que você partiu"; ou quando, ao chegar a hora da despedida, depois de o rapaz tê-la deixado no condomínio, e culminarem no jardim, a moça vê seu gato entre as flores, e fala algo nas linhas de "Você sabe o que eu mais admiro nele? É que toda manhã, olha para esse jardim como se fosse pela primeira vez". Você provavelmente definiria o filme como uma interessante história, mas algo intrigante acontece: uma, duas semanas mais tarde, você se dá conta de que fica insistentemente revisitando passagens como as mencionadas acima, num processo de reciclagem de uma serena, silenciosa e elegante melancolia. Poucos filmes deixam marcas tão profundas. Eu citaria os documentários "A Ponte", de Eric Steel, e o recente, magistral "Gatos" como duas obras cinematográficas capazes de evocar sentimentos muito poderosos, de sorte a terem sua melancolia distribuída a posteriori. "Sonata de Tóquio" une-se ao panteão da concorrida lista, e faz do tempo seu melhor aliado para reafirmar o poder de mensagem & voz. Ao assistir à história da família japonesa pela primeira vez, nada de muito espetacular salta aos olhos; contudo, diferente do que acontece à maioria dos filmes, no caso deste drama do sr. Kiyoshi Kurosawa, a força da mensagem consiste na determinação com a qual a trama simplesmente se recusa a deixar nossas cabeças, bem como ocorre à vida real, consoante, aliás, o próprio personagem do sr. Ethan Hawke explica, na introdução de "Antes do Pôr do Sol". Ele discorria sobre como, embora sua jornada não tivesse sido  recheada de intriga política ou perseguições em alta velocidade, soava ainda mais interessante pela magia por trás da suposta "previsibilidade". O que o movera a escrever o livro fora justamente a tentativa de resgatar, capturar um desses eventos simples e mágicos, mais exatamente o encontro no trem para Viena com a moça parisiense em 1994, afinal, a seu ver, era ali onde se escondia seu joie de vivre, e a vida se engrandecia nos momentos especiais mascarados por trás da impressão de ordinariedade. "Sonata de Tóquio" foi concebido nessa batida. Não há nada de particularmente intrigante ou fora de série na jornada dos Sasaki, mas seu arco permanece conosco, ajudando-nos a enxergar muito de nós mesmos por uma ótica mais gentil e compassiva. O sr. Kurosawa não arma um dramalhão para descortinar o infortúnio do desemprego e da depressão, preferindo a discrição do silêncio para nos convidar a refletir sobre uma dor capaz de levar um cidadão aparentemente forte como o amigo Kuroso a dar cabo de si e da mulher. Kuroso é um personagem secundário, porém sua relação com Ryuhei se destaca como a melhor parte da primeira hora de projeção. Em suas andanças, eles parecem homens à espera da redenção, e a amizade resgatada aperfeiçoa-se através dos ensinamentos professados pelo amigo, desempregado há mais tempo e, consequentemente, familiarizado com os esquemas e a etiqueta para "continuar respirando", um dia de cada vez, aguardando a manhã na qual será contemplado com uma vaga. A cena na qual Ryuhei vai procurá-lo em casa, e a vizinha lhe conta que Kuroso se suicidou com a esposa através do vazamento proposital de gás, na data anterior, encapsula o sentimento de tristeza enrustida que faz da história da família uma jornada tão imprevisível e tocante: antes de voltar para casa após um dia de notícias horrendas, Ryuhei força-se sorrisos, ensaiando-os ansiosamente antes de abrir a porta, como uma marionete que precisa macaquear felicidade antes de entrar no palco, quando, na verdade, começa a duvidar seriamente se ele não será o próximo. Outra semelhante cena ocorre na sequência em que a Sr. ª Megumi sonha com a visita do filho, após a estadia além-mar a serviço das forças armadas americanas, e o recebe de volta como um homem mudado, triste e metido em introspecção. Após o mau presságio, ela desperta do pesadelo com o coração aflito, preocupada com os paradeiros do rapaz, e tenta contatar oficiais das forças armadas capazes de lhe dar notícias de Takashi. Ela não quer que o desejo de desbravar o mundo, tão próprio aos jovens, acarrete sequelas psicológicas ao filho. O sonho incute medo, quase como um aviso premonitório.
Muitas pessoas apontam aos elementos puramente orientais ao discorrerem sobre a excelência de "Sonata de Tóquio". Respeitosamente, penso de maneira diversa. O drama dos Sasaki transcende origens culturais, e fala a qualquer pessoa a um nível muito íntimo e familiar. Eu vislumbro, por exemplo, similaridades entre este filme do sr. Kurosawa e "O Quarto do Filho", do italiano Nanni Moretti. Ao passo que os dramas se dão em realidades culturalmente distintas, as pessoas experimentam perda e dor de forma parecida. Se, em última análise, "Sonata de Tóquio" enfoca a resiliência do espírito humano, "O Quarto do Filho" também revolve uma história de sobrevivência, ao nos apresentar `a saga de uma família italiana - o psicanalista Giovanni, a editora de moda Paola, e a filha Irene - que, de uma hora para a outra, se veem surpreendidos pela fatalidade, quando o filho Andreas sai com os amigos para mergulhar depois que o pai precisa atender a uma consulta de última hora, e acaba se afogando dentro de uma gruta. A morte inesperada subitamente escancara aos olhos da família a efemeridade da segurança com a qual contavam para alicerçar o dia a dia, e eles precisam desbravar uma nova direção, descobrindo, na jornada, se são fortes o suficiente para permanecerem juntos após a tragédia. "Sonata de Tóquio" explora um outro manancial de dores, o do desemprego, o da falta de alento de um homem incapaz de prover pela família; porém, seja pela perda de um ente querido como no caso de "O Quarto do Filho", seja pela impossibilidade de cuidar da família como em "Sonata de Tóquio", é quando o homem chega ao fundo do poço, não tem como cair mais fundo, perde todos os amigos, e junto a eles os álibis, que passa a desvendar os mistérios fundamentais da vida. Ambos os filmes, dessemelhantes que sejam, pertencem à mesma classe dramática, explorações da inconstância humana filmadas por cineastas de poética alma, capazes de capturar camadas e nuances de tragédia. Ao passo que, muito provavelmente, o sr. Kurosawa tenha realizado "Sonata de Tóquio" sem influência alguma de "O Quarto do Filho", é muito revelador que haja tantos insights em comum, independente das culturas que os tenha gestado. As etapas da jornada dos Sasaki não diferem das da jornada dos italianos. Eles iniciam a longa caminhada à recuperação confusos e acuados, e só depois de um lento processo catártico de libertação da dor e juntada dos cacos, redescobrem um denominador comum a partir do qual podem sonhar com uma nova vida ainda que imperfeitamente juntos. Durante o período mais delicado do luto, em ambas as produções, raramente se vê os membros da família pelo mesmo enquadramento: cada um se mete no seu espaço seguro para sofrer isoladamente, à medida que os laços vão se desfazendo, tornando o que antes era uma família num arregimentado de pessoas sem identidade, a não ser pelo horror do desemprego ("Sonata de Tóquio") ou da morte ("O Quarto do Filho"). Há uma cena emocionalmente idêntica ao desfecho do filme italiano, quando a Sr. ª Megumi leva o filho à rodoviária e permanece ao lado do rapaz, à espera da partida do ônibus. No momento da despedida, pouco é dito com palavras, mas quando pela janela ele presta continência à mãe, à medida que o ônibus vai se afastando, ocorre-nos que nada pode ser tão bem expressado quanto olhos marejados. Por falar em semelhanças, curiosamente, ambos os filmes recorrem, no segmento final, à aparição de um personagem inesperado para ajudar as famílias a enxergarem seus dilemas sob refrescante perspectiva. Em "O Quarto do Filho", a namorada do menino morto surge para visitá-lo, e a família, surpreendida pela visita, a informa do afogamento. Ela está somente de passagem, então a levam à fronteira da Itália com a França, em uma viagem através da autoestrada ao longo da madrugada. Enquanto os meninos (a filha, a ex-namorada do menino morto e um colega) dormem no banco detrás, o psicanalista e a esposa têm a oportunidade de conversarem melhor e fazer as pazes. Ao fim, ao sabor da visão do deslumbrante céu da manhã, tendo chegado à fronteira com a França, a família é vista dentro do mesmo frame. No caso de "Sonata de Tóquio", a Sr. ª Megumi é surpreendida pela invasão de um assaltante. Apesar do susto inicial, o ladrão revela-se um atrapalhado amador, um sujeito meio bobão, sem verdadeira maldade dentro de si: ele a "sequestra" e a leva a uma praia, ironicamente por insistência da pobre dona de casa, e não sua! Com o estranho, a Sr. ª Megumi se abre sobre a própria tristeza, e, enquanto ela dorme à beira do mar, no curso da madrugada, um bonito sentimento redentor brota no assaltante trapalhão, que se dá conta da própria estupidez, e desiste do crime. Ele abandona o carro ali mesmo na praia, e resolve voltar à vida de sempre, por mais difíceis que sejam as necessidades materiais de qualquer homem honesto. Até aquele instante, a Sr. ª Megumi estava pronta para desistir de casa, da vida, mas por uma surpresa do destino, conseguiu recobrar os sentidos sobre o valor das coisas que tolamente cogitara abandonar. Naquela mesma noite, Ryuhei vaga pela sarjeta, tomado pela desesperança, também determinado a não regressar. Ele chega a dormir nos becos, entre latas de lixo. Kenji se mete numa aventura, ao tentar ajudar um amiguinho a fugir de casa; felizmente, o pai do garoto impede a fuga, e Kenji, trancado no mutismo graças à depressão, passa uma noite no distrito policial, ao se recusar a contar aos policiais quem são os seus pais ou fornecer qualquer número de telefone dos responsáveis. Depois desse período de desencontros, como por uma graça de Deus, os Sasaki conseguem se reunir à mesa para o café na manhã seguinte. Algum tempo se vai, e ao reencontrarmos Ryuhei, o vemos melhor aclimatado ao trabalho de limpeza no shopping. A família atende ao concerto de Kenji, e ele performa divinamente. Após o exaurimento do luto, assim como se vê numa manhã ensolarada após a passagem da tormenta, as famílias dos dois filmes finalmente desembocam no mesmo quadro, como unidade: eles sobreviveram, e alcançaram a aceitação. Quando os créditos sobem, só Deus sabe como se reorganizarão, porém, ao menos, atravessaram a tormenta, e estão genuinamente juntos após muito tempo, mesmo em face de todas as adversidades que a vida lançou sobre seus colos.
"Sonata de Tóquio" é um lindo filme cujo impacto depõe sobre a desintegração das relações de nosso tempo. Ao passo que nos mostra uma difícil, dolorosa história a respeito das consequências destrutivas e desagregadoras do desemprego, também nos permite redescobrir o redentor poder curativo existente ao menos potencialmente em todo lar. O filme não apresenta soluções fáceis, e o desfecho pouco acrescenta quanto `a inédita realidade financeira dos Sasaki; entretanto, o cineasta Kiyoshi Kurosawa sublima o apego a respostas, e se foca na essência. Se nem mesmo os Sasaki parecem muito preocupados em conseguir um desfecho redondinho; por que haveríamos de nos importar? Ora, a mensagem do filme reside na lição das coisas realmente duradouras, entre elas a família, que teria de justificar as mais importantes escolhas que tomamos. Independente de quão preparado o indivíduo se ache, a tragédia sempre dará um jeito de visitá-lo. A janela de vida humana transcorre repleta de dramas e impasses, e a tentativa de driblar a infelicidade deságua em situações ainda mais gravosas. Pouco importa, pois a questão sequer precisa de um debate mais aprofundado: simplesmente, felicidade neste mundo é uma ilusão fugaz, e mesmo que não a fosse, seria parcial, tênue, e nos abandonaria na hora da morte. A família, unida ou em crise, destaca-se como o denominador da tocante jornada dos Sasaki porque mesmo em face da inevitabilidade da dor, a casa para onde voltamos no fim da tarde vale muito mais do que os dissabores do lado de cá. A constatação remonta à parábola do filho pródigo. Indiferente de quantos elementos da história variem ao sabor do tempo, a espinha dorsal permanece inalterada, aplicando-se aos lares de diferentes épocas. Por mais diligente que um homem se conduza quanto a questões de família, inevitavelmente, a tragédia ou o encontrará, ou tocará um dos seus. Do mesmo jeito que ocorre a "Sonata de Tóquio", o tamanho da dor jamais obliterará o propósito da mesma: o que importa, isto sim, é a resposta à chegada da tragédia. Na parábola do filho pródigo, conforme afirma o evangelho de São Lucas, o filho mais novo pede a parte da herança e vai embora. Ele desperdiça a herança financiando prazeres efêmeros e ilícitos, e, tendo perdido as posses, aprende que nada suprirá seu vazio. Ele precisa regressar para casa. Ao invés de rejeitá-lo, o pai reage com alegria por tê-lo de volta após tantos anos. Eu percebi a flexibilidade e a maleabilidade da parábola, adaptável a qualquer tempo, porque tanto ontem quanto hoje jamais se foge da dor. Até o homem que tenha preservado a família e caminhado pelas veredas do Senhor não se livrará de seu gosto azedo. Ainda que crie bem os filhos, os eduque na vontade de Deus, a inconstância da vida não lhe garantirá, por exemplo, que um deles não enveredará por um mau caminho. Nesse exato ponto, todavia, enxerga-se melhor o pilar da parábola do filho pródigo. No frigir dos ovos, só uma questão importa: quando a vida vier para cima, e ela virá, você terá um plano? Um lar para onde voltar? Algum tempo atrás, por mais que um jovem deixasse sua casa completamente embriagado pelas ilusões do mundo, por mais que se entregasse às seduções passageiras com que o espírito deste tempo nos bombardeia a cada volta, uma vez que a vida viesse com toda a fúria para cima, e ele saísse chamuscado dos horrores, sempre haveria o consolo de um lar a esperar pacientemente o retorno. Se a família permaneceu, até os párias, após uma existência na sarjeta, não morrem sozinhos. Eles morrem nos braços dos pais, consolado pelo calor humano de seus parentes. Hoje, poucos se recordariam do caminho de volta a suas casas; famílias foram premeditadamente encorajadas à dissolução pelas mentiras ardilosas do "espírito deste tempo", e o lar restou pulverizado em núcleos sem verdadeira conexão. "Sonata de Tóquio" me comoveu por abordar o drama com muita sinceridade, e a maestria com a qual o diretor Kiyoshi Kurosawa realça a importância da casa como o último bastião contra o avanço da desumanização lhe vale o merecimento de uma fatia maior de público. Recentemente, eu assisti a "Pet Sematary" (foto), a nova versão do aterrorizante romance do escritor Stephen King. Pela maior parte da vida até há pouco tempo, eu apreciei filmes de horror. Uma de minhas alegrias era imaginar como diretores e atores concebiam aquelas imagens cheias de luzes, cores e imaginação. Hoje, penso diferente. Uma vez que se desperta para a vida, e tendo eu retornado aos bancos da igreja para onde minha avó me levara na infância, afastei-me daqueles filmes por ter ganho discernimento quanto aos perigos instilados por suas "fantasias inofensivas". Os anos se passam, e por mais que quando criança tenhamos apreciado certas coisas, você vê que, independente do número de voltas e desencontros, a vida acaba te levando ao Senhor como centro do universo, apartando-o das efemeridades, conforme preconiza Coríntios: "Quando eu era criança, falava como criança, pensava como criança, raciocinava como criança; desde que me tornei homem, eliminei as coisas de criança". Assim como fiz a fitas e discos de filmes, também atirei fora os pôsteres que até aquela altura haviam decorado as paredes do gabinete. Quando eu menos esperava, tolices que um dia haviam sido tão fundamentais tinham perdido a razão de existir: eu estava enjoado de ver os mesmos rostos todo santo dia. As pessoas nas imagens, eu vim a perceber, haviam sido "avatares" de gente real aos quais eu me apegara quando criança para suprir um vazio, mas então meus olhos se abriram ao fato de que tanto as estrelas de cinema quanto as figuras cujos lugares haviam tomado não só eram seres imperfeitos e problemáticos, como também jamais me dariam o que um único minuto da eucaristia faria por mim sem pedir nada em troca. A aprovação deles não significava mais coisa alguma. Agora, embora cinema não me valha nada, quando penso em me entreter, ainda lhe concedo algum tempo: vou à Paulinas e procuro conteúdo realmente agregador, tais como a vida de São Filipe Neri ou a de Santo Padre Pio. Abri uma exceção, obviamente, ao novo "Pet Sematary" pelos valores inesperadamente católicos encontrados tanto no romance original quanto no saudoso, extraordinário filme de 1989: ali, não se tratava de horror, e sim, em última análise, de um poderoso testemunho da resiliência da família quando sob ataque de uma entidade demoníaca obstinada a arruiná-la. Como arma para seduzi-la à destruição, o demônio se serve da sugestionabilidade humana ante a morte, prometendo um "atalho" para burlá-la, na forma da terra para além dos bosques, originalmente ocupada pelos índios Micmacs, onde tudo aquilo que se põe para "descansar" acaba voltando para você. Quando a família é testada por uma tragédia (o atropelamento de uma criança por uma carreta), o demônio logo vem lhes sussurrar no ouvido para "retomarem a felicidade", enterrando o menino naquela terra. Embora contasse com momentos genuinamente apavorantes, no cerne, "Pet Sematary" ainda é uma obra atual pela riqueza psicológica dos personagens e pela descrição muito intensa do stress que atravessam. Com adorável assertividade, o sr. Stephen King discorria sobre a vida dos protagonistas com amável sensibilidade. Ele nos cativava ao descrever momentos a partir dos quais os personagens se tornavam gente como a gente. A relação de Louis e Rachel, o rochedo da história, era destrinchada de modo a nos vermos inseridos nos dramas do dia a dia do casal, gente jovem aos trinta e poucos anos de idade, procurando manter viva a chama do romance em meio às demandas do trabalho do homem como médico do campus de uma cidadezinha do interior e dos afazeres diários da mulher como mãe de duas crianças pequenas e levadas. Quando a tragédia bate à porta, já estamos emocionalmente investidos na jornada da família, projetando em Louis Rachel facetas de nossas próprias personalidades. Além de escrever honestamente sobre a identidade de uma família, o sr. Stephen King também narra muito realisticamente a desesperada luta dos protagonistas contra uma força espiritual cuja natureza não se compreende claramente, porém que se serve do artifício inventado pelo demônio, a promessa da felicidade. A terra para depois do bosque "promete" devolver um ente querido, mas jamais o entrega "completamente", pois parte do "espírito dos ares" volta servindo-se do corpo como "veículo". O demônio não precisa de fisicalidade para influenciar a vida da família, basta-lhe aquela parte de nós que verdadeiramente deseja suprir a angústia existencial com coisas ou pessoas, por mais lícito que seja amá-las. Ele apenas ri e aguarda pacientemente; quem efetivamente introduz a cadeia de trágicos eventos é o protagonista, convicto de que, enquanto a nenhuma outra pessoa a felicidade se assomou, ocorrerá diferente no seu caso. Quanto ao mérito do filme, eu apreciei a refilmagem, com certas ressalvas. Infelizmente, o impacto e a dramaticidade da história original pareceram-me diluídos em favor de um ritmo mais movimentado e escancaradamente apavorante. O novo filme cumpre o esperado pela nova geração: os realizadores adaptaram a trama ao século XXI, de modo a desovar um espetáculo de horror desenfreado, enfatizando as inesquecíveis aparições da irmã de Rachel, Zelda, morta em decorrência de meningite. O original, todavia, perdura como a melhor versão, afinal de contas, suas ambições jamais giraram em torno do puro terror. Sim, tínhamos uma cadeia de eventos aterrorizantes; entretanto, mais do que um mero filme de horror, tratava-se de um tocante drama assolado por acontecimentos horrorosos, e não o caminho inverso proposto pelos diretores da versão de agora. Eu tive de citar "Pet Sematary" para contrapor as visões das épocas distintas das produções do original & refilmagem, e revelar o olhar mais pujante do primeiro quanto a questões de família, a espinha dorsal de qualquer boa história. É uma obra de ficção, mas sua descrição do mal, principalmente na versão literária, onde adquire contornos mais intangíveis, confere perfeitamente com a verdade, com a forma como ele age em nossas vidas, o que naturalmente me faz escrever sobre dois casos muito reais a partir dos quais compreende-se melhor São Paulo, ao escrever, em Efésios: "Porque não temos que lutar contra a carne e o sangue, mas, sim, contra os principados, contra as potestades, contra os príncipes das trevas deste século, contra as hostes espirituais da maldade, nos lugares celestiais". Ao se compreender melhor os fatos da vida, você percebe que a existência de demônios nada tem a ver com as formas icônicas a povoarem o imaginário moderno. Um indivíduo como Anton Lavey emblematizaria essa percepção exacerbada, mas nada é mais distante da realidade. Trata-se de uma filosofia de vida muito bem estruturada onde seus integrantes acreditam piamente na atuação objetiva do demônio. Eles desprezam o comportamento e as crenças dos desajustados que tomam por satanismo vestir-se de túnicas pretas e oferecer sacrifícios. Os verdadeiros satanistas genuinamente creem na força criativa do Mal, que apenas desejaria nos salvar da "infância evolutiva" para cumprirmos nosso potencial, tornando-nos "como Deus". Eu creio que a descrição mais acertada dessa gente foi dada pelo sr. Stanley Kubrick ao rodar "De Olhos Bem Fechados", em duas prolongadas cenas, para ser mais específico: aquela que abre o filme, a festa de Natal de Victor Ziegler, e a da orgia. Estilísticos, charmosos, inteligentíssimos, refinados, lindos, bem-humorados e no topo da hierarquia social: esses são os verdadeiros satanistas que sabem que anjos decaídos não são "figuras de linguagem", verdadeiramente existem, apenas não da forma ridícula como o imaginário popular criou para lidar com algo além da capacidade de compreensão. Pensamos através de "signos": se eu digo a palavra "gato", você consegue pensar num felino, pois usa partes de vários gatos que viu antes para construir uma imagem associada à palavra. Entretanto, como fica se eu falar sobre "anjos"? "Anjo" refere-se a uma criatura que, na escala da criação, encontra-se muito acima do homem. Nem de corpo precisa, pois foi concebida espiritualmente. Sendo assim, guarda uma inteligência infinitamente superior, e conhece as coisas intuitivamente; anjos não são como a gente, que precisamos aprender e conhecer a verdade gradualmente. Anjos, mesmo os decaídos, de tudo sabiam, do princípio ao fim, pois lhes foi apresentado o plano de Deus. Alguns escolheram não servir, "non serviant": Deus não criou o diabo, Deus criou um anjo chamado Lúcifer e desejou o bem, foi Lúcifer quem "criou" Satanás ao cair. Simultaneamente, não experimentam sensações que somente nós, em nossa maravilhosa, doce vulnerabilidade, somos capazes de sentir, de provar: eles ignoram, por exemplo, o que seria se deliciar com uma torta de chocolate, ou até mesmo amar. Ao mesmo tempo, possuem algumas semelhanças conosco, e as usam para nos perder. Anjos decaídos entendem soberba, sabem o que é sentir inveja, orgulho. Dentre todos, o querubim que é o chefe deles é quem mais sofre, pois tendo sido criado tão belo, não suportou que a seres tão imperfeitos e falíveis como nós Deus tivesse reservado puro amor, a ponto de se rebaixar e morrer pregado num monte de tábuas vagabundas apenas para nos mostrar o alcance de Seu convite salvífico. Embora pareça uma constatação tão extraordinária, quando olhamos para as vidas de homens como o sr. Joseph Sciambra e o sr. Joe Martinez, sobre cujos casos discorrerei adiante, familiarizamo-nos com essas coisas mesmo que só indiretamente, dado o paradoxo de sua natureza. Sempre pensei nisto: formigas existem e foram criadas de determinada forma. Agora, se pegássemos uma só formiga e passássemos a vida tentando lhe transmitir que dois mais dois são quatro, elas jamais entenderiam. Sua capacidade não alcança uma verdade tão indiscutivelmente simples quanto a de uma operação matemática elementar. Nós somos a formiga; essas coisas são mais do que "Matemática Básica", elas são "Cálculo Integral", "Matemática Estrutural", infinitamente mais complicadas. Ora, se comparativamente não nos livraremos nunca do impasse oferecido por dois mais dois, que dizer de Limites, Derivadas e Integrais. Sabemos pouco: são puros espíritos e meras criaturas, não gozam de onipresença e onisciência, sua ação é sempre limitada, "cães numa coleira". Por não terem acesso direto a nossa alma, tiram conclusões ao compensarem a desvantagem nos observando muito bem, afinal sempre estiveram aqui. Como disse antes, "anjos decaídos" conhecem intuitivamente. Não há de se falar em "arrependimento" por parte de demônios, não é como se fossem um dia entender o peso do "non serviant" e voltar para casa restaurados. Eles sabiam exatamente o que faziam ao não servir, pois viram as consequências do ato até o fim. Presos a um destino selado, nos odeiam profundamente, pois não querem a salvação de criaturas inferiores, especialmente quando eles mesmos estão fadados ao pior. Como a única pessoa capaz de levar alguém ao inferno é ela mesma, é assim que agem. Servem-se das ferramentas que nós lhe confiamos, usando fantasias, feridas afetivas, qualquer coisa para nos perder, prometendo a mentira de sempre, um falso senso de felicidade, de distanciamento de Deus, daí a falácia da Nova Era ao tentar nos apregoar conceitos vazios do tipo "todos somos Deus", a mais antiga das mentiras, proferida aos nossos primeiros pais antes da queda, por sinal. Recordo-me de algo dito pelo sr. Adam Blai, demonologista da Igreja Católica, ao descrevê-los como "legalistas". Demônios atravessam seu caminho quando, conscientemente ou não, você lhes dá senhorio sobre sua vida pela via do pecado, por mais que não tenha compreendido a gravidade do mesmo ao cometê-lo. Nas vidas de grandes santos como Padre Pio e São João Maria Vianney, o demônio tomou uma surpreendente fisicalidade. Ambos foram violentamente agredidos e, de uma estranha forma, o assédio crescia proporcionalmente ao bem que praticavam, como se pagassem na própria saúde o custo do pecado das pessoas salvas pela confissão diária. São Vianney acostumara-se tanto à vexação que dizia: "O diabo? Ora, o diabo e eu somos praticamente camaradas!". Ele foi um homem extremamente humilde, simples e desapegado, e seu corpo macilento foi levado ao limite. Só comia algumas batatas por dia, e dormia apenas um par de horas depois do almoço, pois, à noite, os gritos e provocações de fosse o que fosse que o seguia não o deixavam em paz. A coisa parecia odiá-lo especialmente pela humildade, pois lhe exigia, aos berros, por que não pregava pomposamente como os "veste roxa", os bispos da época, uma raça de víboras orgulhosas e prepotentes que a Jesus só conheciam de nome e da boca para fora. Quando estava para fechar os olhos de exaustão, o pobre idoso era arrancado do sono pela voz desencarnada, jurando possui-lo. Ele respondia tranquilamente: "Você não me põe medo". Já no caso de Padre Pio, ele conheceu o inimigo na infância, na forma de um homem muito alto que o visitava consistentemente. Da sua entrada ao seminário até a morte, seria constantemente procurado, ora por um cachorro preto falante, ora por um distinto, elegante e inteligentíssimo cavalheiro cujo rosto Padre Pio jamais via nitidamente por causa da tela do confessionário, dado a se fingir de fiel arrependido apenas para lhe falar as piores, mais maliciosas imoralidades, e desaparecer com um riscado no chão assim que o sangue de Cristo e o nome de Maria eram invocados. Sobre a permissão para a ação diabólica nas vidas dessas pessoas santas, sr. Marco Tosatti, autor do livro "Padre Pio contro Satana: la battaglia finale", tem isto a dizer: "O caso do Padre Pio é especial porque sua luta não era apenas espiritual, mas tinha também momentos extremamente físicos. Tanto é que os frades que com ele viviam escutavam os barulhos da luta vindos de sua cela e, na manhã seguinte, encontravam os ferros da cama retorcidos, como se uma força sobrenatural os tivesse dobrado. Viam ainda o Padre Pio com contusões e golpes, como se o tivessem espancado. O superior chegou a pedir-lhe, quando ele ainda era um jovem frade, antes de ser enviado a San Giovanni Rotondo, que rezasse ao Senhor pedindo que não permitisse ao demônio fazer tantos ruídos, já que os outros irmãos ficavam apavorados. Era algo muito visível. Isso acontecia com o Padre Pio quando ele lutava para arrancar almas das mãos do demônio. De fato, houve muitos santos que lutaram com o demônio, mas o Padre Pio é especial porque sua luta foi contínua, física, evidente, a ponto de a verem inclusive outras pessoas… […] São santos que selecionei porque creio ilustrarem que, embora tenha um amplo campo de ação, o demônio está limitado por Deus. Por exemplo, o que sabemos de Mariam Baouardy está atestado em documentação científica da época. Assim como muito do que sabemos sobre o Padre Pio. É como se o mundo quisesse fechar os olhos para o sobrenatural, mas o sobrenatural não se deixa esconder. Vemos que Deus se serve do demônio, de forma misteriosa, como um instrumento, um instrumento estranho, vá lá, mas que serve à santificação das pessoas. Vemos gente de grande santidade pessoal, mas que sofre sob o poder do demônio, às vezes até mesmo possessos, durante um tempo, embora mantendo-se livres na alma e na vontade. Sempre me chamou a atenção a familiaridade com que o demônio, no Livro de Jó, se aproxima do trono de Deus, e Ele o recebe tranquilamente, e conversam… O demônio não passa de outro instrumento de Deus. É um mistério. É como ver um bordado pela parte de trás: parece-nos um caos, um emaranhado de fios e cores. Mas o bordador, que o vê de cima, costurando o desenho, sabe bem o que faz". Por outro lado, para a maioria da qual fazemos parte, ele age diversamente, diria até pior, afinal dentro da aparência de normalidade causa os piores danos, espertamente distribuídos ao longo da vida. Nas jornadas particulares dos dois cavalheiros mencionados, sr. Joseph Sciambra e sr. Joe Martinez, é impressionante assistir ao desdobramento de duas histórias "do lado de fora", pela perspectiva de observador. Embora aos homens tantos anos tenham sido desperdiçados até que se dessem conta da presença de algo misteriosamente maior, revisando-se tudo como conhecedor dessas coisas nos leva a cogitar: mas como eles não perceberam isso antes? Conheci a história do sr. Sciambra graças a um vídeo de Padre Paulo Ricardo, e, a partir do primeiro contato, encontrei um documentário de aproximadamente uma hora de duração, no qual o sr. Sciambra reconta sua jornada ao longo de uma tarde de visitas a lugares-chave do passado no distrito de Castro, em San Francisco. Quando criança, aparentemente por obra do acaso, encontrou uma revista com fotos sensuais de mulheres bonitas nas coisas do pai, e se fascinou com as imagens. Ele não imaginava o que convidava para sua vida, mas já estava fisgado, porque quando se morde a isca, não se morde somente a isca; na verdade, você morde a fisga por trás da isca, e a partir daquele momento a adicção estabelece uma relação pessoal contigo. Um novo mundo secreto se abriu perante os olhos do menino, inocentemente. À medida que os anos foram se passando, também foi aumentando a profundidade do abismo. De repente, as fotos de modelos mal vestidas não saciavam a curiosidade, e ele partiu para as revistas mais pesadas, cujas imagens ofereciam uma nudez mais explícita e agressiva. Não custou-lhe desejar uma ação dentro de um contexto. Justamente nessa época, segunda metade dos anos 70 e começo dos anos 80, os videocassetes começaram a se popularizar. Produtoras independentes desovavam filmes pornôs aos borbotões em locadoras de bairro, e assim teve acesso a um material mais extravagante e vívido, em movimento, o oposto de simples fotos. A ação entre homem e mulher logo deixou de despertá-lo, e ele procurou filmes com cenas entre mulheres somente, mas logo isso também perdeu o valor da novidade, e Joseph buscou coisas piores. Ele chegou muito jovem ao distrito de Castro, e não lhe faltaram homens mais velhos para "adotá-lo" e sustentá-lo. A introdução do sr. Sciambra ao submundo pornográfico como ator se deu em vídeos amadores rodados pelos homens mais velhos, que depois trocavam as fitas entre si. Dali para frente, por mais de uma década, iniciou seu passeio pela escuridão, e o documentário reconstitui seus passos pelas palavras do próprio sr. Sciambra. As imagens conservam uma qualidade quase surreal, pois as filmagens se desenrolam ao longo de uma tarde de sol, capturando a linda paisagem de San Francisco, porém o conteúdo das revelações trata de uma indescritível feiura, uma história de horror especial para cada lugar por onde passou, como os armazéns alugados para a gravação de pornô. Aproximadamente em 1999, algo aconteceu ao sr. Sciambra que reformulou seu modo de enxergar o mundo. Ele participava da gravação de uma cena de sexo em grupo, e ao voltar para casa, começou a passar mal. A mãe o levou ao hospital, onde os médicos diagnosticaram a hemorragia interna. Tudo aconteceu rapidamente, pois ele logo foi preparado para a cirurgia. O sr. Sciambra estava morrendo, quando, por uma razão inexplicável, tentou desesperadamente rezar, sem sucesso. Ele se esquecera de qualquer oração. Finalmente, conformou-se em pedir chorosamente por Cristo. Ele se recorda da impressão muito nítida, enquanto o drama se desenrolava, de duas presenças horrorosas o ladeando, presentes no centro cirúrgico para levá-lo embora, até que foi devolvido ao corpo. A partir daí, voltou como um homem transformado, subitamente muito ciente da realidade espiritual que o cercara ao longo da vida. De fato, o sr. Sciambra descreve a sensação de volta à vida como se um nevoeiro tivesse se dissipado, e sua vista calibrada enxergasse agora à distância. Por alguns anos após a experiência de quase morte, desapareceu do radar, e fugiu. Ele deixou San Francisco, traumatizado pelos eventos, mas acabou regressando por sentir um especial chamado para arrancar ex-amigos e companheiros daquela existência macabra. Escreveu um livro sobre sua aterradora jornada, "Swallowed by Satan: How Our Lord Jesus Christ Saved Me from Pornography, Homosexuality and the Occult", e voltou à Santa Igreja Católica. Ainda hoje, sofre com os impulsos e tentações da antiga vida, mas mantém-se firme em seu amor a Cristo e no propósito de n'Ele buscar consolo para jamais voltar a cair. Para o sr. Sciambra, recontar sua história escancara emoções viscerais. Em diversos momentos, ele precisa parar e chorar. Noutros, tem ânsia de vômito, e o diretor se vê movido a interromper as filmagens. A história do sr. Sciambra muito tem a ver com a do sr. Joe Martinez, um sofrido homem que provavelmente teria prosseguido no caminho da autodestruição, não fosse uma foto que salvou sua vida. O sr. Martinez ficou famoso por causa de um elemento extraordinário do caso, a "foto do cachorro". Assim como o sr. Sciambra, ele precisou da perspectiva do tempo para perceber a natureza daquilo que agia, e de uma ajuda extra do destino, na forma de uma fotografia. Resignado a constantes batalhas perdidas com a dependência química, o sr. Martinez não prestou muita atenção ao posar com a esposa Patty na festa de bodas dos sogros. Na verdade, somente cerca de dez anos mais tarde, durante uma das recaídas na luta contra a dependência, ao voltar casualmente ao álbum, horrorizou-se com a foto ao examiná-la mais detalhadamente. Para seu terror, deu-se conta da presença do que parecia ser um cachorro esticando a cabeça por sobre um de seus ombros. Não havia cachorros na festa, e pelo ângulo de enquadramento não fazia sentido que um cão se encontrasse na posição só para dar uma de penetra na foto. "Era um demônio", Joe afirma, convicto, sentado ao lado da esposa Patty para uma matéria para o canal Fox News. De olhos marejados, o sr. Martinez conta que após a surpresa, conseguiu definitivamente atirar fora os vícios da vida pretérita. Carregando-a sempre consigo na carteira para se focar em não recair, ele explica que a imagem lhe traz o conforto de saber que o pior ficou para trás: "Existe o Bem e o Mal nesta vida. Aqui nesta foto há o Bem à minha direita (a esposa) e o Mal à esquerda (o cachorro)". As histórias desses homens ilustram comoventemente o modus operandi habitual do Mal, e nos mostram por que na seara do abstrato o demônio é ainda pior. Retomo a questão do "legalismo" necessário para o assédio, pois em ambos os casos anjos ruins foram "convocados" pelas escolhas das vítimas, ainda que à época não compreendessem inteiramente a gravidade do próprio hedonismo, um ao jogar a vida fora com drogas, o outro ao se lançar de cabeça no mundo da pornografia e do sexo corrompido. Ambos procuravam a felicidade, a concretização de uma promessa não cumprida, raiz de todo pecado. Ao comparar os casos, recordo-me de uma conversa com o pároco da Catedral Metropolitana, quando ele me falava sobre como, sendo puro espírito, essas coisas tinham de recorrer a "instrumentos", "ferramentas", nada mais que as pessoas ou coisas deste mundo. Para o sr. Martinez, uma revista com mulheres mal vestidas não teria bastado para arruiná-lo, pois não era essa - a pornografia - sua fraqueza; para o sr. Sciambra, tomar drinques com amigos provavelmente não passaria de uma happy hour prolongado, e não lhe teria custado a sanidade, afinal sua pedra de tropeço residia na pornografia, e não nas drogas. É a forma como o demônio atua, pois para cada pessoa ele confecciona um plano. Conhecem-nos desde sempre, pois se encontram aqui há milhões de anos, de sorte que gostam de se fingir de guias espirituais, anjos da guarda ou parentes mortos para estabelecer uma relação de intimidade; a escolha do curso de ação depende da imaginação da vítima. Toda a farsa já foi dissecada pelos brilhantes trabalhos do sr. Lamartine Posella ao abordar a maldade intrínseca da "Nova Era". Fico pensando na cena introdutória de "A Paixão de Cristo", a agonia do Senhor no horto das oliveiras. Entre tantas grandes escolhas que o sr. Mel Gibson tomou, merece especial elogio pela maneira com a qual retratou Satanás. Ele foi o primeiro cineasta a lhe emprestar uma fisicalidade correspondente ao charme do Mal: uma atriz muita bonita interpreta Satanás, mas ela transcende a aparência, e se encarrega de imbuir a performance de uma candura tão convincente que, ao aparecer no Horto das Oliveiras, você chega a trepidar e cogitar quando ela apresenta seus ótimos argumentos a nosso Salvador. Hoje, dois mil anos após aquele impasse intelectual que durou minutos e ninguém sabe especificar como se deu, enxergamos o significado, o indescritível peso do duelo. Ali, nossa salvação esteve seriamente em risco, e foi o mais próximo que nos encontramos do abismo, do qual fomos salvos no último momento, quando Cristo resolve carregar a cruz monte acima para quitar nossas dívidas no madeiro. O encontro durou apenas alguns minutos, mas mudou para sempre o mundo como o conhecíamos. Quanto à beleza de Satanás no filme, acontece semelhante com o magnetismo atrativo do Mal no mundo, não? O Mal é igualmente convincente, atraente e tentador; todavia, em algum lugar no recesso de nossas mentes, tentamos calar a voz que nos avisa "Algo não anda inteiramente correto aqui". De fato, basta prestar atenção ao redor. O mundo recicla o Mal por um esquisito combustível de gratificação. Os mais devassos, cruéis e malvados são justamente os que prosperam e do mundo recebem lauréis; pessoas genuinamente boas e caridosas são implacavelmente transformadas em espantalhos, desumanizadas, perseguidas, ridicularizadas e assediadas por narcisistas que são poços sem fundo de puro orgulho. Por que o mundo, em sua maioria, é perverso? Por que se escolhe o pecado, ou seja, Satanás, e pretere-se a glória de Deus? Para responder, volto a Paulo: "...não temos que lutar contra a carne e o sangue, mas, sim, contra os principados, contra as potestades". A briga não se desenrola do lado de fora, meus amigos, e sim dentro de nossas mentes. O papel de parede e um jogo de luz se somaram para criar o estranho "cachorro" acima do ombro do sr. Martinez, até porque anjos decaídos não se assemelham a cachorros ou a qualquer outra coisa, eles não tem corpos. Uma série de acasos "criaram" o cachorro; entretanto, o "cachorro" faz breve eco ao anjo muito real & objetivo que passou a vida perseguindo o sr. Martinez. A fotografia é legítima, e registra a imagem de um demônio, apenas não inteiramente da forma que esperamos. Não aconteceu só aos senhores Sciambra & Martinez, nós trazemos conosco demônios igualmente insistentes e cruéis. Ao passo que de vez em quando possamos "vê-los" de relance, num canto do plano de fundo talvez, como o sr. Martinez, a guerra se trava primordialmente no âmbito interior. Entenda que a escolha não se resume a servir a Deus ou a Satanás. Se as escolhas fossem assim tão claras, ninguém escolheria o inferno. Mas acontece que nosso destino eterno não resulta de uma única escolha direta e explícita entre o céu e o inferno, e sim das pequenas escolhas nas quais vamos nos esquecendo de Deus aos poucos. Se minhas palavras parecem pessimistas, na verdade lhe peço para se alegrar, fazendo eco à profética palavra do sr. Marco Tosatti. Na grande jornada humana, os demônios são absolutamente necessários, pois através da terrível tentação a que nos submetem, surge a oportunidade perfeita para exercitarmos o livre arbítrio, coisa que anjos decaídos não têm mais, e amar a Deus acima de todas as outras coisas. Fora "Pet Sematary", ao escrever a resenha de "Sonata de Tóquio", ocorreu-me um episódio da série "Além da Imaginação" que, em meros vinte minutos, descortinava uma história fantástica, igualmente memorável, baseada na derradeira escolha pela família. O episódio se chama "Achados & Perdidos", apresentado pelo grande ator Forest Whitaker, e estrelado por um rapaz mais conhecido pelo "Barrados no Baile" original. No episódio, ele interpretava o CEO de uma grande empresa do café, às vésperas de vender o negócio por uma soma inimaginável. Visitado por uma misteriosa jornalista que deseja escrever uma peça sobre a transação, ele é levado a reavaliar fatos da vida graças a uma série de coincidências. Por exemplo, depois da primeira entrevista com a mulher, ele encontra, na gaveta, uma bola de baseball cuja origem atrela-se a escolhas feitas lá atrás. A bola, assinada por um lendário batedor, pertencera ao falecido pai. Quase há vinte anos, quando o protagonista cursava o colegial, ele furtara a bola para vendê-la a um colecionador, de modo a juntar dinheiro para sair de casa, mudar-se de cidade e começar o próprio negócio longe da família. Embora tenha construído uma vida para si graças à ambição, sua atitude gerou consequências desgraçadas: o pai morreu desiludido algum tempo após a partida do filho; sua mãe, tendo entrado em depressão, tornou-se mentalmente instável por conta da desintegração do lar. Ele também tinha uma namoradinha do colegial, que o amava incondicionalmente. Juntos, haviam feito planos de permanecerem juntos, mas quando a oportunidade para começar seu império em outro lugar se materializou, ele a abandonou sem hesitação, nem chegando a se despedir. Naquela mesma noite, após a entrevista, ainda emocionalmente chacoalhado, ao fazer amor com uma garota de programa de luxo na cobertura, depara-se com a jaqueta do colegial, com as iniciais grafadas. O dia a dia do homem é invadido por lembranças inesperadas, e por mais que tente se livrar da bola de baseball, ela sempre encontra um jeito de voltar às suas mãos. Ao ligar para o jornal onde a misteriosa mulher supostamente trabalha, ele tem uma surpresa. Lá não há ninguém com o nome fornecido, e o rapaz passa a crer que a repórter é a namorada do colegial. Ela mudou muito, a ponto de não tê-la imediatamente reconhecido, mas passa a crer que, sim, trata-se da ex-namorada. Ademais, a facilidade com que ela surge e interage fá-lo cogitar que ela tenha morrido em algum ponto do passado, e esteja vendo um fantasma. Cheio de remorso, o homem repensa as escolhas, e durante a apresentação para selar a venda, ao invés de assistir à peça publicitária, vê um vídeo amador filmado por ele mesmo, no fim dos anos 80, com os pais defronte ao jardim de casa, felizes e saudáveis, e a namorada, com a jaqueta do colégio, em alguma manhã ensolarada. Incapaz de lidar com a crise existencial, ele busca a mãe para lhe entregar a bola, mas ela não a quer mais. De certa forma, a mulher o culpa pela dissolução da família. Hoje, viúva e psicologicamente incapacitada, espera o ônibus todas as tardes, para amenizar a saudade. Com a vida consumida pela culpa, o homem regressa para o lugar onde tudo começou, a casa onde morou com os pais. A mulher ressurge, e confirma ser a namorada do colegial. A essa altura, com profundo pesar, o homem enxerga a vida sob um prisma diferente. Como por concessão divina, ao ter diante de si a chance de recomeçar, vê-se subitamente devolvido a aquela tarde no fim dos anos 80, quando seus pais eram felizes, ele tinha a namorada, e o futuro inteiro estava para acontecer. Ao voltar, ele desiste do furto da bola, e resolve traçar uma nova trajetória. Ele permanecerá ao lado da família, incondicionalmente. O protagonista abraça a namoradinha, e se despede dos pais, pois precisam correr para chegar a tempo da sessão de cinema daquela tarde em 1988. O pai ainda pergunta ao filho se precisa de algum dinheiro para os ingressos. Ele sorri e arremata: "Eu já tenho tudo de que preciso". No desfecho, o grande Forest Whitaker, o apresentador, volta à cena para a despedida, apontado-nos que acabamos de assistir a história de um homem que abriu mão de qualquer soma de dinheiro deste mundo, por uma chance de zerar a vida e começar de novo. Particularmente, o episódio me falou volumes. Costumo dizer que não consigo entrar numa igreja sem me emocionar, especialmente quando olho para um padre, um homem que pôs aos pés de Cristo crucificado a razão para tudo o que faz. Eu me emociono pois me deparo com a versão que genuinamente desejaria para minha vida. O tempo, lamentavelmente, não quis a mesma coisa. Mencionei esse episódio específico ao padre da Catedral Metropolitana com quem sempre converso, e quando o disse, à época, imaginei que não existiria melhor presente, a oportunidade de atuar concretamente na seara da alternativa. Se apenas eu tivesse escutado melhor a minha avó, a única pessoa que sempre fez de tudo para me preservar, se apenas tivesse zingrado a juventude indo de mãos dadas a ela à missa e adorado aos pés de Maria, se apenas aos dezessete anos tivesse tido discernimento para antever o sacerdócio, pois então haveria tempo de sobra para os anos de seminário, se apenas eu tivesse me atirado de cabeça na vida intelectual... Eu sei que jamais seria um Padre José Augusto, um Padre Paulo Ricardo, pois esses homens estão em um outro nível acima, mas ao menos seria infinitamente mais rico. O padre olhou para mim bem sério e perguntou se eu queria emprestada sua garrucha velha. Ele então abriu um sorriso compreensivo, para mostrar que só estava brincando, colocou a mão sobre meu ombro e concluiu: "Sua vida já vale à pena, meu filho". A conversa instilou algo de positivo em mim, mas eu só compreenderia melhor mais tarde. Eu pensei neste episódio de "Além da Imaginação" ao ver "Sonata de Tóquio" pois mesmo com um tempo de duração reduzido, a história reforça uma importante mensagem sobre o valor daquilo que pomos em jogo dia após dia. "Sonata de Tóquio" afirma a mesma coisa, apenas sem a atuação de um elemento fantástico para corrigir a rota dos personagens. Felizmente, mesmo sem a sobrenatural reparação dos velhos erros, o desfecho de "Sonata de Tóquio" é igualmente redentor, afinal o ato de os Sasaki saírem de cena juntos indica a escolha pela família, independente dos desencantos. De certa forma, a cena equivale ao momento do episódio de "Além da Imaginação", na conclusão, a tarde ensolarada na qual o rapaz e a moça se despedem para chegar a tempo da sessão de cinema: todos estão cientes da responsabilidade de seus papéis, certamente o dever mais recompensador que a vida oferecerá gratuitamente a qualquer criatura. Aquele que não desperdiçar a família, não a deixar se desintegrar com artimanhas como abortos, adultérios e divórcios, jamais morrerá sozinho. Ele morrerá nos braços dos pais, tios e irmãos. E mesmo cem anos após partir, ainda continuará a melhorar o mundo, pois aqui estarão netos e bisnetos dando continuidade a um projeto iniciado um século atrás. Se a sua história familiar tem sido falida até agora, se as pessoas erigiram um castelo de cartas inconstante derrubado ao primeiro sopro, rompa definitivamente com qualquer paradigma distinto do da caminhada com Deus e escreva uma nova história para si e para a família que você ainda vai constituir sem qualquer tipo de temor ou relutância: quando o demônio tentar te desanimar te lembrando de onde você veio, lembre-o de para onde ele vai, que é um lago de fogo, e siga andando.

A resenha não ficaria completa sem um olhar mais apurado à instituição do casamento, pois da momentânea insatisfação de marido & mulher também se denota uma força de tensão no lar, fora o desemprego. Quando a situação adquire contornos desesperadores, e os membros da família viram átomos soltos, a necessidade de uma escolha por parte da Sr. ª Megumi a põe sob o derradeiro teste, na noite na praia, quando, felizmente, enxerga a verdade e volta ao lar enquanto há tempo. Ao acompanharmos o dilema da Sr. ª Megumi, a dinâmica com a qual pondera os prós e contras e toma a direção correta, compreendemos de onde vem a tentação que quase lhe custa a família. Todo casal deve passar por semelhante impasse. Depois de um tempo, perguntam-se se a vida a dois reproduz fidedignamente a imagem ideal construída por suas mentes no começo. A armadilha esconde-se por trás do sedutor, mentiroso fanfarreio do mundo, que entre tantas mentiras romantiza o conceito de supostas "almas gêmeas", pessoas "feitas umas para as outras" que, tendo se encontrado, farão dessa vida a felicidade absoluta. Há uma série de elementos cruelmente enganosos no conceito, o mais grave deles o desconhecimento da natureza verdadeiramente decaída do mundo, e o veneno sutilmente instilado nos corações das pessoas, pelo qual se alimenta irreais expectativas já no início da caminhada, a artimanha perfeita do demônio para preparar o caminho para adultério, divórcio e toda sorte de vicissitudes que custam a alma. De certa forma, o assunto coadjuva perfeitamente o parágrafo acima, onde descrevi o mecanismo de ação do Mal. Tanto acima quanto aqui, a resposta perfeita perante a palavra ilusória do demônio que promete a felicidade sempre será a cruz onde nossas digressões foram definitivamente remidas e quitadas no madeiro. A cruz que crava os nossos pés no chão é a única, verdadeira arma, e embora pareça pouco diante do volume de iniquidades, é tudo de que precisamos. A análise perfeita do tema cabe ao sr. J.R.R. Tolkien, que em uma carta ao filho desnudou a discussão acerca de ilusões passageiras e descreveu a família com a lucidez que o Senhor espera da gente. Escreveu: "Quando o deslumbramento desaparece, ou simplesmente diminui, eles [os casados] acham que cometeram um erro, e que a verdadeira alma gêmea ainda está para ser encontrada. A verdadeira alma gêmea com muita frequência mostra-se como sendo a próxima pessoa sexualmente atrativa que aparecer. Alguém com quem poderiam de fato ter casado de uma maneira muito proveitosa 'se ao menos…'. Por isso o divórcio, para fornecer o 'se ao menos…'. E, é claro, via de regra eles estão bastante certos: eles cometeram um erro. Apenas um homem muito sábio no fim de sua vida poderia fazer um julgamento seguro a respeito de com quem, entre todas as oportunidades possíveis, ele deveria ter casado da maneira mais proveitosa! Quase todos os casamentos, mesmo os felizes, são erros: no sentido de que quase certamente (em um mundo mais perfeito, ou mesmo com um pouco mais de cuidado neste mundo muito imperfeito) ambos os parceiros poderiam ter encontrado companheiros mais adequados. Mas a ‘verdadeira alma gêmea’ é aquela com a qual você realmente está casado. Na verdade, você faz muito pouco ao escolher: a vida e as circunstâncias encarregam-se da maior parte (apesar de que, se há um Deus, esses devem ser seus instrumentos ou suas aparências). [...] Neste mundo decaído, temos como nossos únicos guias a prudência, a sabedoria (rara na juventude, tardia com a idade), um coração puro e fidelidade de vontade".
Mesmo alheio à religião, "Sonata de Tóquio" é uma das histórias mais cristãs feitas em anos recentes. O diretor Kiyoshi Kurosawa documenta com muita empatia e carinho os esforços de uma família na tentativa de permanecer com a cabeça fora d'água, quando suas vidas parecem irremediavelmente avassaladas pelos problemas financeiros. Ele reafirma sua fé no espírito humano ao guiá-los magistralmente à conclusão, quando encontramos os Sasaki juntos, para além das dificuldades. O filme tem muito a oferecer em termos de comunicar uma mensagem pertinente à atualidade, nos quais o desemprego aumenta exponencialmente, e as pessoas encontram muita dificuldade na reinserção no mercado de trabalho, a maioria das vezes passando anos em busca de novas oportunidades. O recado do filme consiste em estabelecer que, embora a vida seja marcada pelo carregar da cruz, infortúnios como o desemprego, no caso dos Sasaki, ou o divórcio, como no caso da professora de piano, sempre são temporais, limitados a uma certa janela de tempo. Nossas ambições não podem se conformar a coisas regradas pela janela do tempo, e sim atender a um chamado para a realização fora do mundo passageiro, espraiada na eternidade, num ato de fé para o qual a família sempre será o primeiro e mais importante passo. E aqui volto `aquela manhã quando o padre me disse, sorrindo: "Sua vida já vale à pena, meu filho". Ele tentava abrir meus olhos para quão frágil era minha fé, e me mostrar que independente do quanto eu me preocupasse por não ter antecipado meu chamado ao sacerdócio enquanto houvera tempo, a verdade era que, como leigo, Deus me preparara algo distinto da vida de padre, porém igualmente significativo. Pode-se até duvidar desta lógica, ao se contrastar a distância entre aquilo que se imagina para si, no começo da caminhada, e o que efetivamente se consegue materialmente conquistar, mas você verá claramente mais tarde, principalmente se levar em conta que as coisas permanentes são as invisíveis: o tempo inteiro, mesmo lá atrás ao permitir as tribulações, o Senhor sempre tem um plano melhor para você e sua família.

quinta-feira, 16 de maio de 2019

"The Crush" (Estados Unidos, 1993): Revisitando eventos de sua vida pessoal, o diretor Alan Shapiro realiza um filme verdadeiramente apavorante que, além de extraordinário suspense, conserva um período de tempo impossível de se reaver!


Breve sinopse: Nick Eliott (Cary Elwes) é um talentoso e intelectualmente privilegiado jornalista de 28 anos, recém-chegado a Seattle para trabalhar na conceituada Pique Magazine, onde espera honrar todo o potencial criativo e desenvolver a própria voz, ainda ostracizada sob a sombra do legado de seu avô, um dos maiores profissionais do jornalismo norte-americano. Tendo fracassado em encontrar um lugar adequado para morar pelo custo apropriado a sua situação financeira, Nick finalmente acha um belo apartamento conjugado a uma grande propriedade, num bairro de classe média alta, pertencente aos Forrester, um afluente e simpático casal que, como executivos, vivem viajando. Nick começa a apressar a mudança das caixas ao apartamento conjugado, e acaba atraindo a atenção de Darian (Alicia Silverstone), uma adolescente precoce de 14 anos que vem a se apaixonar perdidamente pelo inquilino. Nick se apresenta à redação, e embora angarie a atenção dos colegas e o interesse da fotógrafa Amy, descobre que o chefe Michael não se mostra muito tolerante aos erros dos subordinados. De cara, ele recebe uma matéria investigativa dificílima, envolvendo um caso de corrupção, sem pistas aparentes. Para trabalhar ao lado do novato, Michael escala a simpática e jovial Amy, uma profissional tão perspicaz que logo põe o colega na direção correta para descobrir fatos inéditos sobre o caso. Tendo concluído a mudança, e organizado naquele espaço seu escritório, uma noite, Nick recebe a visita de Darian. Com um jeito obviamente paquerador, ela lhe dirige perguntas sobre a vida. Surpreso com a ousadia da adolescente, o jornalista a leva na esportiva, e não se preocupa muito com a atenção da garota. Eles flertam inocentemente, e Darian parece gostar de fazê-lo ruborescer. Durante a semana, ao levar o artigo para a redação no disquete, ele se assusta ao passar a vista pelo texto, pois descobre que a matéria foi totalmente reescrita. Nick se surpreende ainda mais quando o redator explica que adorou o artigo, e o parabeniza publicamente perante os colegas pela habilidade. Darian passa a perambular pelo apartamento durante as manhãs, e após muita insistência, convence-o a aparecer na casa para a festa a ser dada pelos pais no fim de semana seguinte. Chegada a grande noite, Nick sente-se um tanto quanto deslocado entre convidados pertencentes a uma classe mais elevada. Ele vê Darian entretendo os convidados, tocando piano com impressionante talento, e quando trocam olhares e ela o reconhece, o rosto da adolescente se acende. Reunidos num lugar mais distante do salão de festas, Darian se abre sobre a solidão. Ela se sente apartada do mundo por causa dos pais super protetores, e até mesmo a única amiga, Cheyenne, só é sua colega porque os pais frequentam o mesmo círculo social. Nick a consola, e Darian confessa-se a pessoa por trás da reescrita do artigo. Ela entrara no conjugado enquanto Nick estivera fora, e escrevera o texto para ajudá-lo. Darian pede ao rapaz para levá-la a um lugar muito especial, o Farol dos Namorados, onde jovens casais trocam juras de amor. Lá, eles acabam se beijando. Nick imediatamente se arrepende e diz que vai levá-la de volta a casa, pois está ficando tarde. No decorrer da semana, ela dá um jeito de seguir fechando o cerco ao redor da vida social do rapaz, inclusive expondo-se à beira da piscina para um banho de sol, de forma a atrair olhares. Nick resiste as avanços, e quando a turma da Pique Magazine se encontra no amplo gramado da propriedade para uma confraternização em honra do aniversário de Nick, Amy e o rapaz se aproximam sentimentalmente. A fotógrafa conhece a garota quando vai catar gravetos para preparar os marshmallows para o fogo, e se depara com um casulo de vespas. Darian surge e a orienta a se afastar do casulo, vez que vespas, se provocadas, atacam em grupo. Mais tarde, enquanto ajuda o colega a arrumar o apartamento após a festa, Amy explica que a adolescente dá sinais de paixão pelo jornalista. Nick não entende: ele realmente não fez nada para provocá-la. Outrossim, para se fazer entender melhor, Nick decide procurá-la. Ele a encontra se balançando ao pé da árvore, mas as explicações sobre a diferença de idade entre os dois e o fato de ela poder contar com a sua pessoa como amigo parecem surtir pouco efeito sobre o ânimo da menina. A confusão escala quando, tendo pintado e recuperado o carro, Nick o encontra vandalizado com palavrões riscados no capô. Ele leva as suspeitas aos Forrester, que questionam a filha, de saída para a aula de equitação. Ela nega qualquer envolvimento com um sorriso, mas o rapaz consegue enxergar que Darian foi a autora do vandalismo. Os Forrester, entretanto, acreditam na palavra da filha, e dão a questão por encerrada. No cair da tarde, enquanto tenta polir e recuperar o estrago feito ao automóvel, Nick é visitado por Cheyenne, a melhor amiga de Darian. Muito discretamente, ela antecipa que precisa conversar com o rapaz, e escolhe um lugar no bosque para se encontrarem mais tarde, pois precisa repassar informações importantes sobre Darian. Eles não se dão conta, mas a garota observa o breve encontro, escondida entre as cortinas da janela do quarto. Na aula de equitação, propositalmente, Darian sabota a sela da amiga, e Cheyenne acaba derrubada do cavalo após um salto. Ela quebra o braço. A menina conseguiu evitar o encontro dos dois, e quando Nick comparece ao bosque, depara-se com Darian, e não Cheyenne. Ele toma um susto. Com um olhar gélido, Darian o ameaça sutilmente, contando-lhe a história da queda e comentando o quanto jamais se pode ter cuidado demais. Nick fica ali no bosque, atônito e genuinamente angustiado. A partir daquela tarde, os ataques se intensificam, principalmente quando ele se envolve romanticamente com Amy e os dois dormem juntos. Às vésperas da apresentação da matéria à redação, em um primeiro momento, Nick não encontra o disquete. Vai vê-lo sob o tapete que dá para o porão do conjugado, como se alguém quisesse atrair sua atenção ao lugar secreto. Ao descer ao porão, ele se arrepia. O local assemelha-se a um santuário para Nick, cheio de fotos suas, cercadas por velas acesas e bilhetes de incondicional paixão. Apavorado, ele sobe as escadas, lacra a passagem com pregos, e trata de reescrever furiosamente a longa matéria, enquanto Darian enche sua secretária eletrônica com ameaças, insistindo que os dois conversem. Por um triz, Nick termina o artigo a tempo e o apresenta aos colegas de redação. O susto lhe valeu a lição. Agora, precisa encontrar um outro lugar para morar. Ele acha um quarto na casa de uma simpática idosa, e acerta com a proprietária os detalhes da mudança. O foco da fúria da adolescente foca-se na rival, e ela usa seu conhecimento de vespas para lançá-las pelo duto de ventilação de um laboratório de fotografias enquanto a moça se encontra trancada pelo lado de fora. Ao remover a adversária de cena, Darian insiste em se aproximar emocionalmente do jornalista, sem resultados. Furiosa, arruína os planos de mudança, ao ligar para a proprietária e sujar o seu bom nome ao conectá-lo a atividades de tráfico de drogas. Na confraternização de fim de ano da Pique Magazine, Darian aparece no salão com o uniforme de equitação e causa um escândalo ao esbofetear o rapaz na cara. Para destruí-lo por completo, ela apanha do lixo um preservativo usado pelo jornalista ao fazer amor com Amy, e "planta" o material genético em si, dando credibilidade à acusação de estupro. O pai da menina avança sobre Nick, intentando matá-lo, e a vida dele é salva pelos policiais por um triz. Profundamente abalado, seu editor paga a fiança e o livra da cadeia, mas Nick resolve deixar a cidade, com a vida em frangalhos. Ele visita o conjugado por uma última vez, à noite, para recolher as coisas, quando Cheyenne aparece. Eles finalmente têm a oportunidade de conversar, e a menina expõe fatos da vida de Darian, como a misteriosa morte de um professor por envenenamento, há alguns anos. Ele fora objeto da paixão da garota, porém ao recusar qualquer envolvimento romântico, morrera de forma misteriosa. Os sinais apontam para a dimensão do perigo enfrentado pelo rapaz. Darian preferirá matá-lo a deixá-lo partir.
Resenha: Só o mérito como suspense fora de série gabarita "The Crush" a elogios; todavia, revisitado quase três décadas mais tarde, o filme preserva em âmbar um passado recente de nostálgico apelo. Lançado nos cinemas em 1993, "The Crush" remonta a uma época pré-internet mais prolífica e descomplicada, quando uma produção não necessariamente dependia de estrelas para merecer lançamento nas salas. Estrelado por Cary Elwes & Alicia Silverstone, o filme não chegou a registrar uma marcante carreira nas bilheterias, por mais que tenha recuperado os custos (rodado por seis milhões de dólares, "The Crush" fez modestos treze milhões durante sua passagem pelos cinemas), mas, ao longo dos anos, foi sendo descoberto por novas pessoas, e o alto gabarito da produção reanimou o interesse pelo então esquecido thriller, a ponto de vir sendo relançado em sucessivas edições em DVD. Compará-lo a qualquer filme de nossa época levará a instigantes conclusões, a mais importante delas a discrepância entre os estilos de se rodar filmes de terror no passado & agora. Ao passo que as superproduções forçaram os profissionais da câmera a adotarem uma montagem mais hábil para sustentação visual, os suspenses de três décadas atrás encantavam pela condução dramática & psicológica, numa charmosa marcha lenta pela qual se permitia aos espectadores uma degustação mais agradável dos desdobramentos, sem precisarem ser atropelados por exageros. O público moderno, surpreendentemente, manifesta o desejo pela retomada de um tempo mais simples, e ao testemunharmos o impressionante sucesso do diretor James Wan, um cineasta à velha moda, autor de filmes fantásticos de horror fortemente imbuídos de nostalgia, como "Invocação do Mal 1&2", percebemos que, independente de quanto tempo se passe, inesquecíveis histórias de terror são justamente isso, inesquecíveis, e, consequentemente, atemporais. Se você vem de uma geração mais recente, provavelmente notará, logo de cara, o ritmo desacelerado de "The Crush", mas se verá psicologicamente investido nos eventos de uma forma que, a novos filmes, tem ficado cada vez mais raro. Hoje, para merecerem um lançamento de maior alcance, as produções se atrelam à capacidade de espetáculo, de sorte que assistir a um lançamento não diferiria, por exemplo, de comprar ingressos para um show musical. Mais contundentemente, os suspenses enfrentam uma crise de identidade, e enquanto os realizadores permeiam as tramas com efeitos de ponta, desavisadamente alienam o público pagante, interessado em assistir a dramas mais sinceros com cujos personagens possam se identificar e encontrar alguma catarse para os problemas do dia a dia. Nesse sentido, se você não viu "The Crush", mas apreciou o recente "Invocação do Mal", dou como certa a sua apreciação deste empolgante e misterioso suspense de 1993.
"The Crush" foi muito comparado a "Play Misty for Me", estrelado pelo grande Clint Eastwood, o suspense inaugural do subgênero das histórias de horror sobre stalkers. Uma das maiores bilheterias da década de 70, "Play Misty for Me" muito revela sobre os hábitos e a cultura de seu era. Por que "Play Misty for Me" tocou fogo nas bilheterias e recebeu tanta aclamação na época do lançamento? A resposta talvez se insira no contexto do tempo no qual foi produzido. "Play Misty for Me" contava a história de um radialista paquerador e irresponsável que, numa noite num bar, conhece uma moça muito bonita & interessante, e dorme com ela. A estação de rádio vinha recebendo ligações de uma moça de voz triste que sempre lhe pedia para tocar a mesma música, "Play Misty for Me", e depois da noite de amor, o radialista descobre que a garota bonita é a dona da voz. Ele crê que ali, tacitamente, resta findado seu envolvimento com a moça. Quando ela começa a procurá-lo no trabalho, ele compreende a profundidade do problema causado pelo momento de fraqueza. Certamente, a carreira bem-sucedida do filme não se deve só aos excelentes artistas. O modo como foi escrito - concisa & realisticamente - estabelecia um liame entre os espectadores e o drama, pois os homens conseguiam projetar as ansiedades no pesadelo vivido pelo protagonista. Ainda hoje, "Play Misty for Me" cativa as pessoas com impressionante facilidade. Seu charme nada tem a ver com movimentação, e sim a forma como o diretor Clint Eastwood consegue inserir nos instantes de espera ou contemplação o peso das complicações trazidas pela mera convivência humana. Produzido quase vinte e dois anos após "Play Misty for Me", "The Crush" oferece uma experiência de suspense igualmente imersiva, e assim como o pai do subgênero, fia-se em drama, e não nas emoções fáceis; em horrores verossímeis, e não nas fantasias. O roteiro, escrito pelo próprio diretor Shapiro, encadeia os momentos de crescente assédio numa ordem cronológica e irrefreável, a ponto de experimentarmos a impotência horrorosa do protagonista. Os episódios de esquisitas manifestações de amor introduzem-se ingenuamente na vida do rapaz, e antes que se dê conta, também a obsessão. A diferença fundamental entre as duas histórias reside no tipo de emoção despertada pelos protagonistas. Em "The Crush", o jornalista não fez nada de substancial para atrair para si o ódio da vilã; em "Play Misty for Me", o comportamento irresponsável & mulherengo do personagem principal dificulta qualquer empatia pelos seus problemas, e isso se formos generosos, pois, no frigir dos ovos, se houve um responsável pelo horror, foi exatamente a sua pessoa. Explico: em "Play Misty for Me", até o ínterim no qual ele aborda a moça no bar, ainda há tempo de parar. Ele sabia muito bem que se seguisse adiante, feriria a namorada "oficial", pois o comportamento adúltero é um pecado terrível; ademais, além de seus amigos, havia outra pessoa com quem se preocupar, justamente a mulher sentada naquele banco na extremidade do bar. Se ele tivesse escutado a razão e pedido para parar, teria sido mais nobre deixar aquele night club e regressar para casa. Quando o personagem leva adiante o impulso e dorme com a moça, uma memorável interpretação da atriz Jessica Walters, ele acredita que sairá da experiência intocado. No curso da história, porém, à medida que desvenda o passado traumático da mulher e o seu frágil estado psicológico, amadurece com a lição das consequências. Quando a mulher franqueou ao protagonista acesso à sua intimidade, ela lhe confiou a alma. Se para muitas mulheres tudo não passaria de um caso passageiro, as circunstâncias do passado da moça imprimem ao ato um poderoso simbolismo compromissório, e ao virar as costas e deixar, o homem comete o maior dos insultos. Tendo levado consigo algo tão caro à mulher, sua intimidade, passa-lhe a mensagem de que a usou como meio para alcançar um prazer momentâneo, nada mais. Nada justifica o comportamento da mulher, mas, por esse viés, passa-se a enxergar o homem como alguém igualmente irresponsável e imaturo, em grande parte causador de todas as coisas ruins. A atriz Jessica Walters se tornou uma estrela de cinema por causa do papel, mas vocalizou a preferência pelo roteiro original, que lhe dava uma janela de redenção, pois finalmente nutriríamos compaixão e passaríamos a enxergá-la não como vilã, mas vítima do amante. Quando o diretor Eastwood insistiu na mudança, reescrevendo o desfecho como um duelo de vida ou morte, a atriz se sentiu desapontada. Ainda assim, a edição final permite que a enxerguemos como um ser humano que, ao cometer erros tão graves, o fez, em parte, por causa de um agente causador que tripudiou em cima de seu afeto. No filme, um "Por que", enquanto em "The Crush" tudo permanece encoberto pelo mistério. O detalhe diferencia as duas obras e revela qualidades distintas. Ao passo que "Play Misty for Me" é um filme mais psicologicamente enriquecido e sofisticado, "The Crush" prefere investir no suspense crescente, e mesmo não contando com a mesma densidade psicológica do anterior, o primoroso roteiro não desperdiça o potencial da história, e cumpre com o esperado, ou seja, nos aterroriza lenta e gradualmente, até olharmos de frente para o abismo do qual esse cara está dependurado.
Uma das melhores qualidades do escritor H.P. Lovecraft, um dos mestres do pessimismo existencialista & materialismo científico, era a absurdidade do horror. Ele sabia como escrever acerca da solidão humana face a um cosmo que enxergava como indiferente e macabro. Ao assistir a "The Crush", faço a associação às obras literárias de Lovecraft em razão da aleatoriedade envolvida no destino do protagonista. Em um brevíssimo período de tempo, Nick vê sua vida se desintegrar num fluxo irrefreável, e lutar contra uma menina superprotegida de quatorze anos se revela uma batalha tão perdida quanto contra a correnteza do mar. Para mim, "The Crush" é um filme que reproduz o claustrofóbico sentimento de se encontrar na situação de uma pessoa assediada por um psicopata. A engenhosidade com a qual a menina vai isolando o rapaz lembra "Poughkeepsie Tapes", mais especificamente a parte na qual assistimos a abordagem do "Carniceiro de Water Street" ao sequestrar uma pobre moça, Cheryl, a sua "preferida". Antes de dar o bote, o monstro se diverte com as minúcias do procedimento. Em "The Crush", a vilã parece se deleitar com a forma como corrói, lenta e incansavelmente, o senso de segurança e autoconfiança do rapaz, e o diretor Alan Shapiro evoca das armadilhas da garota situações de extrema tensão. O roteiro, muito bem amarrado, cria uma história de extremo horror, ao passar a impressão de que a jornada do protagonista poderia ser vivida por qualquer pessoa, dadas as circunstâncias. Nick não principiou nenhuma ação para merecer o assédio, mas não acontece assim na vida real, nos dramas vividos por todos nós? Não "pedimos", por exemplo, por uma doença, porém então, inadvertidamente, um diagnóstico de uma enfermidade letal bate à porta e transforma nossos mundos. Atores gabaritados dão vida ao roteiro com vivacidade e eloquência. Do ator Cary Elwes, sempre se pode esperar uma primorosa performance, e o papel principal em "The Crush" parecia o veículo ideal para lhe abrir as portas ao estrelato. Não obstante não tenha virado "estrela de cinema", ele consolidou uma maravilhosa carreira, cheia de desempenhos notáveis. Recentemente, foi redescoberto por uma nova geração, graças à franquia "Jogos Mortais". O brilhante cineasta James Wan, um fã de cinema dado a restaurar as carreiras de seus atores preferidos, honrou o potencial de Elwes ao escalá-lo para o papel do Dr. Gordon, no primeiro e melhor filme. Como o Nick de "The Crush", do ator emana uma aura de honradez, cavalheirismo e bom-mocismo. Ele realmente se sobressai como uma íntegra presença, por quem é fácil torcer. Em nenhum momento age com canalhice e oportunismo, e ao passo que deseja o bem para Darian, deve encarar a crueza dos fatos, pois razões nobres de nada valem quando se está sob o ataque de uma psicopata. No papel periférico de Cheyenne, Amber Benson brilha nas poucas cenas, entre as quais se encontra a mais atmosférica, ao se encontrar com Nick e o colocar a par da gravidade da situação. O momento da rememoração de fatos sobre a estranha morte do professor por quem Darian nutrira sentimentos descortina diante de Nick a profundidade da ameaça: ele se encontra na linha de fogo, e se a menina não hesitou em envenenar um homem antes, sua vida também corre perigo. A breve conversa dá ao suspense, até aquele instante muito bem rendido, uma conotação de irrestrito horror, vez que não se trata mais de sustos bolados por uma adolescente apaixonada, sim de um jogo onde alguém sairá morto. Muitos excelentes filmes de terror fiam-se nesse expediente: um ator talentoso capaz de roubar a cena aparece, desempenha seu papel, usualmente para explicitar a dimensão de um problema, e sai de cena, nos deixando embasbacados. Eu poderia citar o trabalho do sr. J.K. Simmons no aterrorizante "Os Escolhidos", no qual interpreta um estudioso dos "Cinza", responsável por repassar a uma pobre família objeto do assédio a realidade das criaturas por trás do pesadelo, na verdade seres extraterrestres. Eles resistiam a crer na natureza extraterrestre do assédio; o diálogo com o especialista rasga o véu do mistério e lhes dá uma necessária amostra de realidade. Para conceber cenas genuinamente horripilantes, um cineasta não precisa de muito. Bons atores, diálogos empolgantes e um senso de atmosfera bastam para instilar eletricidade na história. Quando assisto a filmes de suspense, sempre torço para que o diretor nos abençoe com um momento do tipo, onde você se sente convidado a participar da trama. Eu poderia citar um grande número de momentos cinematográficos do tipo, mas a cena de "Os Escolhidos" sumariza a referida magia. No seu primeiro grande papel, Alicia Silverstone criou uma vilã memorável. "The Crush" abriu muitas portas para a atriz, mas ela levaria um par de anos até o estrelato, com "As Patricinhas de Beverly Hills". "The Crush" já nos apresenta ao seu imenso carisma. O modo como trabalha faz da personagem um grande mistério. Darian é superdotada, exímia pianista estudiosa de insetos. Ela coleciona notas excelentes e integra o time de equitação; por outro lado, faltam-lhe elementos de sociabilidade, uma notória ausência até mesmo no jeito com que troca um olhar e esboça o sorriso de flerte para Nick, ao embargar a passagem ao conjugado, sentada no caminho, nas escadas. A atriz é tão expressiva que consegue recriar um traço próprio aos psicopatas, difícil de descrever. Trata-se de uma superfície polida, quase como um quadro em branco, onde se enxergam emoções exageradas, que mais parecem imitadas do que espontâneas. Após "As Patricinhas de Beverly Hills", Alicia Silverstone esteve no topo por alguns anos, findos os quais deixou os papéis principais para se focar em produções menores e mais artísticas. Ela fez parte da geração dos anos 90, anterior à vinda da década seguinte, com "Meninas Malvadas", de 2004, o grande sucesso revelador de atrizes como Rachel McAdams e Amanda Seyfried. Muitas estrelas dos anos 90 não conseguiram capitalizar o sucesso de seus primeiros papéis; algumas migrariam para material mais sério, fazendo uma transição serena à fase adulta da carreira. Houve aqueles que não resistiram a pressão. Recentemente, o elenco de "As Patricinhas de Beverly Hills" se reuniu para um especial, no qual trocavam reminiscências das filmagens, realizadas tantos anos atrás, em 1994/1995. Evidentemente, é surpreendente ver o quanto as pessoas mudam, num certo hiato de tempo. Os atores não só pareciam mais maduros (e melhores do que nunca), mas interiormente engrandecidos. Embora marcada por bom humor e felizes recordações, pesa sobre a reunião a ausência da atriz Britanny Murphy, companheira de elenco, falecida prematuramente em 2009, quando tentava realizar a transição para papéis mais sérios. A reunião do elenco é muito marcante, pois nota-se, o tempo todo, o quanto parecem comovidos em razão da trágica ausência da falecida colega. Quando os atores discorrem sobre aquele período de tempo no qual fizeram "As Patricinhas de Beverly Hills", nos levam a um nostálgico passeio pelo túnel do tempo, e passeios do tipo tendem a ou terminar em risos de alegria ou em lágrimas de saudade. No caso do elenco, os artistas parecem divididos entre as emoções: risos pelos bons tempos & tristeza pela sentida ausência de uma colega, e, no encontro, há um pouco de cada.
Assistir a "The Crush" não apenas recupera um modelo mais simples e eficiente de se fazer cinema; o filme também nos devolve a uma saudosa época, impossível de se reaver. Recentemente, encantei-me com um lindo vídeo com belas imagens de Nova York, tomadas em 1993, com uma câmera de alta resolução, sublinhadas por uma comovente música. Impressiona-me como, embora antes pouco se diferencie de hoje, a sutileza mostra o contraste, afinal, de fato, ali em 1993, vivia-se um ar de ingenuidade, tão tangível na atmosfera daquela gente caminhando sem celulares pelas largas calçadas. Com o tempo, essa impressão viria a se rarefazer. Mesmo na pueril troca de olhares apaixonados de um casal à espera para atravessar a rua, pronuncia-se um adorável tom de concordância e harmonia, há muito desaparecido. Sobre o vídeo, um senhor comenta como o 11 de setembro levou consigo parte daquela tranquilidade, e quão distintos se contrastam os dois mundos, Nova York em 1993 & hoje, por mais que se precise de sensibilidade para pontuar tais diferenças. "The Crush" nos brinda com semelhante surpresa. Enquanto suspense, sustenta a atenção, mas não extrapola os limites do bom gosto; enquanto drama, trata seus personagens como seres humanos com os quais podemos nos identificar. Em termos de estilo, leva-nos para um passeio de volta aos anos 90, convidando-nos a nos recordar de onde nos encontrávamos na linha do tempo. O filme foi lançado no Brasil em VHS, em 1994, sob o título "Paixão sem Limite". Particularmente, ao revisitá-lo, sempre me lembro com carinho de meados dos anos 90, com uma nostalgia semelhante à evocada pelo vídeo de Nova York, em 1993. Eram outros tempos, e as estrelas de cinema. Recordo-me do Natal daquele ano de 1994: Jean Claude Van Damme era astro, e "Street Fighter" havia acabado de chegar aos cinemas brasileiros. Fomos ver o filme na estreia, eu e um amigo, acho que todo garoto daquele tempo se apaixonou pela Kyle Minogue, que no filme interpretava a Cammy! Jean Claude Van Damme teria mais alguns bons anos pela frente, até sua estrela enfraquecer a partir da década seguinte, pondo fim a uma era ensolarada, e inaugurando novos, incertos e tristes tempos, a começar por uma certa manhã em setembro de 2001.

Engrandecido por uma premissa intrigante, direção precisa, performances fantásticas e momentos de suspense de roer as unhas, "The Crush" é o candidato perfeito para receber o tratamento da refilmagem. Vejam o que aconteceu ao clássico "Pet Sematary", refeito para uma nova geração. Todos esperamos ansiosamente a estreia no próximo dia 09! Antes que o mesmo destino ocorra a "The Crush", todavia, seria preferível que as pessoas procurassem a fonte, pois há elementos inerentes à época do lançamento responsáveis por torná-lo um suspense fora de série, e um dos toques de magia, impossível de se reproduzir, dá-se nas particularidades do período no qual veio ao mundo pela primeira vez, inigualável como a fragrância das flores na esteira da adorável chegada da primavera.