quinta-feira, 16 de maio de 2019

"The Crush" (Estados Unidos, 1993): Revisitando eventos de sua vida pessoal, o diretor Alan Shapiro realiza um filme verdadeiramente apavorante que, além de extraordinário suspense, conserva um período de tempo impossível de se reaver!


Breve sinopse: Nick Eliott (Cary Elwes) é um talentoso e intelectualmente privilegiado jornalista de 28 anos, recém-chegado a Seattle para trabalhar na conceituada Pique Magazine, onde espera honrar todo o potencial criativo e desenvolver a própria voz, ainda ostracizada sob a sombra do legado de seu avô, um dos maiores profissionais do jornalismo norte-americano. Tendo fracassado em encontrar um lugar adequado para morar pelo custo apropriado a sua situação financeira, Nick finalmente acha um belo apartamento conjugado a uma grande propriedade, num bairro de classe média alta, pertencente aos Forrester, um afluente e simpático casal que, como executivos, vivem viajando. Nick começa a apressar a mudança das caixas ao apartamento conjugado, e acaba atraindo a atenção de Darian (Alicia Silverstone), uma adolescente precoce de 14 anos que vem a se apaixonar perdidamente pelo inquilino. Nick se apresenta à redação, e embora angarie a atenção dos colegas e o interesse da fotógrafa Amy, descobre que o chefe Michael não se mostra muito tolerante aos erros dos subordinados. De cara, ele recebe uma matéria investigativa dificílima, envolvendo um caso de corrupção, sem pistas aparentes. Para trabalhar ao lado do novato, Michael escala a simpática e jovial Amy, uma profissional tão perspicaz que logo põe o colega na direção correta para descobrir fatos inéditos sobre o caso. Tendo concluído a mudança, e organizado naquele espaço seu escritório, uma noite, Nick recebe a visita de Darian. Com um jeito obviamente paquerador, ela lhe dirige perguntas sobre a vida. Surpreso com a ousadia da adolescente, o jornalista a leva na esportiva, e não se preocupa muito com a atenção da garota. Eles flertam inocentemente, e Darian parece gostar de fazê-lo ruborescer. Durante a semana, ao levar o artigo para a redação no disquete, ele se assusta ao passar a vista pelo texto, pois descobre que a matéria foi totalmente reescrita. Nick se surpreende ainda mais quando o redator explica que adorou o artigo, e o parabeniza publicamente perante os colegas pela habilidade. Darian passa a perambular pelo apartamento durante as manhãs, e após muita insistência, convence-o a aparecer na casa para a festa a ser dada pelos pais no fim de semana seguinte. Chegada a grande noite, Nick sente-se um tanto quanto deslocado entre convidados pertencentes a uma classe mais elevada. Ele vê Darian entretendo os convidados, tocando piano com impressionante talento, e quando trocam olhares e ela o reconhece, o rosto da adolescente se acende. Reunidos num lugar mais distante do salão de festas, Darian se abre sobre a solidão. Ela se sente apartada do mundo por causa dos pais super protetores, e até mesmo a única amiga, Cheyenne, só é sua colega porque os pais frequentam o mesmo círculo social. Nick a consola, e Darian confessa-se a pessoa por trás da reescrita do artigo. Ela entrara no conjugado enquanto Nick estivera fora, e escrevera o texto para ajudá-lo. Darian pede ao rapaz para levá-la a um lugar muito especial, o Farol dos Namorados, onde jovens casais trocam juras de amor. Lá, eles acabam se beijando. Nick imediatamente se arrepende e diz que vai levá-la de volta a casa, pois está ficando tarde. No decorrer da semana, ela dá um jeito de seguir fechando o cerco ao redor da vida social do rapaz, inclusive expondo-se à beira da piscina para um banho de sol, de forma a atrair olhares. Nick resiste as avanços, e quando a turma da Pique Magazine se encontra no amplo gramado da propriedade para uma confraternização em honra do aniversário de Nick, Amy e o rapaz se aproximam sentimentalmente. A fotógrafa conhece a garota quando vai catar gravetos para preparar os marshmallows para o fogo, e se depara com um casulo de vespas. Darian surge e a orienta a se afastar do casulo, vez que vespas, se provocadas, atacam em grupo. Mais tarde, enquanto ajuda o colega a arrumar o apartamento após a festa, Amy explica que a adolescente dá sinais de paixão pelo jornalista. Nick não entende: ele realmente não fez nada para provocá-la. Outrossim, para se fazer entender melhor, Nick decide procurá-la. Ele a encontra se balançando ao pé da árvore, mas as explicações sobre a diferença de idade entre os dois e o fato de ela poder contar com a sua pessoa como amigo parecem surtir pouco efeito sobre o ânimo da menina. A confusão escala quando, tendo pintado e recuperado o carro, Nick o encontra vandalizado com palavrões riscados no capô. Ele leva as suspeitas aos Forrester, que questionam a filha, de saída para a aula de equitação. Ela nega qualquer envolvimento com um sorriso, mas o rapaz consegue enxergar que Darian foi a autora do vandalismo. Os Forrester, entretanto, acreditam na palavra da filha, e dão a questão por encerrada. No cair da tarde, enquanto tenta polir e recuperar o estrago feito ao automóvel, Nick é visitado por Cheyenne, a melhor amiga de Darian. Muito discretamente, ela antecipa que precisa conversar com o rapaz, e escolhe um lugar no bosque para se encontrarem mais tarde, pois precisa repassar informações importantes sobre Darian. Eles não se dão conta, mas a garota observa o breve encontro, escondida entre as cortinas da janela do quarto. Na aula de equitação, propositalmente, Darian sabota a sela da amiga, e Cheyenne acaba derrubada do cavalo após um salto. Ela quebra o braço. A menina conseguiu evitar o encontro dos dois, e quando Nick comparece ao bosque, depara-se com Darian, e não Cheyenne. Ele toma um susto. Com um olhar gélido, Darian o ameaça sutilmente, contando-lhe a história da queda e comentando o quanto jamais se pode ter cuidado demais. Nick fica ali no bosque, atônito e genuinamente angustiado. A partir daquela tarde, os ataques se intensificam, principalmente quando ele se envolve romanticamente com Amy e os dois dormem juntos. Às vésperas da apresentação da matéria à redação, em um primeiro momento, Nick não encontra o disquete. Vai vê-lo sob o tapete que dá para o porão do conjugado, como se alguém quisesse atrair sua atenção ao lugar secreto. Ao descer ao porão, ele se arrepia. O local assemelha-se a um santuário para Nick, cheio de fotos suas, cercadas por velas acesas e bilhetes de incondicional paixão. Apavorado, ele sobe as escadas, lacra a passagem com pregos, e trata de reescrever furiosamente a longa matéria, enquanto Darian enche sua secretária eletrônica com ameaças, insistindo que os dois conversem. Por um triz, Nick termina o artigo a tempo e o apresenta aos colegas de redação. O susto lhe valeu a lição. Agora, precisa encontrar um outro lugar para morar. Ele acha um quarto na casa de uma simpática idosa, e acerta com a proprietária os detalhes da mudança. O foco da fúria da adolescente foca-se na rival, e ela usa seu conhecimento de vespas para lançá-las pelo duto de ventilação de um laboratório de fotografias enquanto a moça se encontra trancada pelo lado de fora. Ao remover a adversária de cena, Darian insiste em se aproximar emocionalmente do jornalista, sem resultados. Furiosa, arruína os planos de mudança, ao ligar para a proprietária e sujar o seu bom nome ao conectá-lo a atividades de tráfico de drogas. Na confraternização de fim de ano da Pique Magazine, Darian aparece no salão com o uniforme de equitação e causa um escândalo ao esbofetear o rapaz na cara. Para destruí-lo por completo, ela apanha do lixo um preservativo usado pelo jornalista ao fazer amor com Amy, e "planta" o material genético em si, dando credibilidade à acusação de estupro. O pai da menina avança sobre Nick, intentando matá-lo, e a vida dele é salva pelos policiais por um triz. Profundamente abalado, seu editor paga a fiança e o livra da cadeia, mas Nick resolve deixar a cidade, com a vida em frangalhos. Ele visita o conjugado por uma última vez, à noite, para recolher as coisas, quando Cheyenne aparece. Eles finalmente têm a oportunidade de conversar, e a menina expõe fatos da vida de Darian, como a misteriosa morte de um professor por envenenamento, há alguns anos. Ele fora objeto da paixão da garota, porém ao recusar qualquer envolvimento romântico, morrera de forma misteriosa. Os sinais apontam para a dimensão do perigo enfrentado pelo rapaz. Darian preferirá matá-lo a deixá-lo partir.
Resenha: Só o mérito como suspense fora de série gabarita "The Crush" a elogios; todavia, revisitado quase três décadas mais tarde, o filme preserva em âmbar um passado recente de nostálgico apelo. Lançado nos cinemas em 1993, "The Crush" remonta a uma época pré-internet mais prolífica e descomplicada, quando uma produção não necessariamente dependia de estrelas para merecer lançamento nas salas. Estrelado por Cary Elwes & Alicia Silverstone, o filme não chegou a registrar uma marcante carreira nas bilheterias, por mais que tenha recuperado os custos (rodado por seis milhões de dólares, "The Crush" fez modestos treze milhões durante sua passagem pelos cinemas), mas, ao longo dos anos, foi sendo descoberto por novas pessoas, e o alto gabarito da produção reanimou o interesse pelo então esquecido thriller, a ponto de vir sendo relançado em sucessivas edições em DVD. Compará-lo a qualquer filme de nossa época levará a instigantes conclusões, a mais importante delas a discrepância entre os estilos de se rodar filmes de terror no passado & agora. Ao passo que as superproduções forçaram os profissionais da câmera a adotarem uma montagem mais hábil para sustentação visual, os suspenses de três décadas atrás encantavam pela condução dramática & psicológica, numa charmosa marcha lenta pela qual se permitia aos espectadores uma degustação mais agradável dos desdobramentos, sem precisarem ser atropelados por exageros. O público moderno, surpreendentemente, manifesta o desejo pela retomada de um tempo mais simples, e ao testemunharmos o impressionante sucesso do diretor James Wan, um cineasta à velha moda, autor de filmes fantásticos de horror fortemente imbuídos de nostalgia, como "Invocação do Mal 1&2", percebemos que, independente de quanto tempo se passe, inesquecíveis histórias de terror são justamente isso, inesquecíveis, e, consequentemente, atemporais. Se você vem de uma geração mais recente, provavelmente notará, logo de cara, o ritmo desacelerado de "The Crush", mas se verá psicologicamente investido nos eventos de uma forma que, a novos filmes, tem ficado cada vez mais raro. Hoje, para merecerem um lançamento de maior alcance, as produções se atrelam à capacidade de espetáculo, de sorte que assistir a um lançamento não diferiria, por exemplo, de comprar ingressos para um show musical. Mais contundentemente, os suspenses enfrentam uma crise de identidade, e enquanto os realizadores permeiam as tramas com efeitos de ponta, desavisadamente alienam o público pagante, interessado em assistir a dramas mais sinceros com cujos personagens possam se identificar e encontrar alguma catarse para os problemas do dia a dia. Nesse sentido, se você não viu "The Crush", mas apreciou o recente "Invocação do Mal", dou como certa a sua apreciação deste empolgante e misterioso suspense de 1993.
"The Crush" foi muito comparado a "Play Misty for Me", estrelado pelo grande Clint Eastwood, o suspense inaugural do subgênero das histórias de horror sobre stalkers. Uma das maiores bilheterias da década de 70, "Play Misty for Me" muito revela sobre os hábitos e a cultura de seu era. Por que "Play Misty for Me" tocou fogo nas bilheterias e recebeu tanta aclamação na época do lançamento? A resposta talvez se insira no contexto do tempo no qual foi produzido. "Play Misty for Me" contava a história de um radialista paquerador e irresponsável que, numa noite num bar, conhece uma moça muito bonita & interessante, e dorme com ela. A estação de rádio vinha recebendo ligações de uma moça de voz triste que sempre lhe pedia para tocar a mesma música, "Play Misty for Me", e depois da noite de amor, o radialista descobre que a garota bonita é a dona da voz. Ele crê que ali, tacitamente, resta findado seu envolvimento com a moça. Quando ela começa a procurá-lo no trabalho, ele compreende a profundidade do problema causado pelo momento de fraqueza. Certamente, a carreira bem-sucedida do filme não se deve só aos excelentes artistas. O modo como foi escrito - concisa & realisticamente - estabelecia um liame entre os espectadores e o drama, pois os homens conseguiam projetar as ansiedades no pesadelo vivido pelo protagonista. Ainda hoje, "Play Misty for Me" cativa as pessoas com impressionante facilidade. Seu charme nada tem a ver com movimentação, e sim a forma como o diretor Clint Eastwood consegue inserir nos instantes de espera ou contemplação o peso das complicações trazidas pela mera convivência humana. Produzido quase vinte e dois anos após "Play Misty for Me", "The Crush" oferece uma experiência de suspense igualmente imersiva, e assim como o pai do subgênero, fia-se em drama, e não nas emoções fáceis; em horrores verossímeis, e não nas fantasias. O roteiro, escrito pelo próprio diretor Shapiro, encadeia os momentos de crescente assédio numa ordem cronológica e irrefreável, a ponto de experimentarmos a impotência horrorosa do protagonista. Os episódios de esquisitas manifestações de amor introduzem-se ingenuamente na vida do rapaz, e antes que se dê conta, também a obsessão. A diferença fundamental entre as duas histórias reside no tipo de emoção despertada pelos protagonistas. Em "The Crush", o jornalista não fez nada de substancial para atrair para si o ódio da vilã; em "Play Misty for Me", o comportamento irresponsável & mulherengo do personagem principal dificulta qualquer empatia pelos seus problemas, e isso se formos generosos, pois, no frigir dos ovos, se houve um responsável pelo horror, foi exatamente a sua pessoa. Explico: em "Play Misty for Me", até o ínterim no qual ele aborda a moça no bar, ainda há tempo de parar. Ele sabia muito bem que se seguisse adiante, feriria a namorada "oficial", pois o comportamento adúltero é um pecado terrível; ademais, além de seus amigos, havia outra pessoa com quem se preocupar, justamente a mulher sentada naquele banco na extremidade do bar. Se ele tivesse escutado a razão e pedido para parar, teria sido mais nobre deixar aquele night club e regressar para casa. Quando o personagem leva adiante o impulso e dorme com a moça, uma memorável interpretação da atriz Jessica Walters, ele acredita que sairá da experiência intocado. No curso da história, porém, à medida que desvenda o passado traumático da mulher e o seu frágil estado psicológico, amadurece com a lição das consequências. Quando a mulher franqueou ao protagonista acesso à sua intimidade, ela lhe confiou a alma. Se para muitas mulheres tudo não passaria de um caso passageiro, as circunstâncias do passado da moça imprimem ao ato um poderoso simbolismo compromissório, e ao virar as costas e deixar, o homem comete o maior dos insultos. Tendo levado consigo algo tão caro à mulher, sua intimidade, passa-lhe a mensagem de que a usou como meio para alcançar um prazer momentâneo, nada mais. Nada justifica o comportamento da mulher, mas, por esse viés, passa-se a enxergar o homem como alguém igualmente irresponsável e imaturo, em grande parte causador de todas as coisas ruins. A atriz Jessica Walters se tornou uma estrela de cinema por causa do papel, mas vocalizou a preferência pelo roteiro original, que lhe dava uma janela de redenção, pois finalmente nutriríamos compaixão e passaríamos a enxergá-la não como vilã, mas vítima do amante. Quando o diretor Eastwood insistiu na mudança, reescrevendo o desfecho como um duelo de vida ou morte, a atriz se sentiu desapontada. Ainda assim, a edição final permite que a enxerguemos como um ser humano que, ao cometer erros tão graves, o fez, em parte, por causa de um agente causador que tripudiou em cima de seu afeto. No filme, um "Por que", enquanto em "The Crush" tudo permanece encoberto pelo mistério. O detalhe diferencia as duas obras e revela qualidades distintas. Ao passo que "Play Misty for Me" é um filme mais psicologicamente enriquecido e sofisticado, "The Crush" prefere investir no suspense crescente, e mesmo não contando com a mesma densidade psicológica do anterior, o primoroso roteiro não desperdiça o potencial da história, e cumpre com o esperado, ou seja, nos aterroriza lenta e gradualmente, até olharmos de frente para o abismo do qual esse cara está dependurado.
Uma das melhores qualidades do escritor H.P. Lovecraft, um dos mestres do pessimismo existencialista & materialismo científico, era a absurdidade do horror. Ele sabia como escrever acerca da solidão humana face a um cosmo que enxergava como indiferente e macabro. Ao assistir a "The Crush", faço a associação às obras literárias de Lovecraft em razão da aleatoriedade envolvida no destino do protagonista. Em um brevíssimo período de tempo, Nick vê sua vida se desintegrar num fluxo irrefreável, e lutar contra uma menina superprotegida de quatorze anos se revela uma batalha tão perdida quanto contra a correnteza do mar. Para mim, "The Crush" é um filme que reproduz o claustrofóbico sentimento de se encontrar na situação de uma pessoa assediada por um psicopata. A engenhosidade com a qual a menina vai isolando o rapaz lembra "Poughkeepsie Tapes", mais especificamente a parte na qual assistimos a abordagem do "Carniceiro de Water Street" ao sequestrar uma pobre moça, Cheryl, a sua "preferida". Antes de dar o bote, o monstro se diverte com as minúcias do procedimento. Em "The Crush", a vilã parece se deleitar com a forma como corrói, lenta e incansavelmente, o senso de segurança e autoconfiança do rapaz, e o diretor Alan Shapiro evoca das armadilhas da garota situações de extrema tensão. O roteiro, muito bem amarrado, cria uma história de extremo horror, ao passar a impressão de que a jornada do protagonista poderia ser vivida por qualquer pessoa, dadas as circunstâncias. Nick não principiou nenhuma ação para merecer o assédio, mas não acontece assim na vida real, nos dramas vividos por todos nós? Não "pedimos", por exemplo, por uma doença, porém então, inadvertidamente, um diagnóstico de uma enfermidade letal bate à porta e transforma nossos mundos. Atores gabaritados dão vida ao roteiro com vivacidade e eloquência. Do ator Cary Elwes, sempre se pode esperar uma primorosa performance, e o papel principal em "The Crush" parecia o veículo ideal para lhe abrir as portas ao estrelato. Não obstante não tenha virado "estrela de cinema", ele consolidou uma maravilhosa carreira, cheia de desempenhos notáveis. Recentemente, foi redescoberto por uma nova geração, graças à franquia "Jogos Mortais". O brilhante cineasta James Wan, um fã de cinema dado a restaurar as carreiras de seus atores preferidos, honrou o potencial de Elwes ao escalá-lo para o papel do Dr. Gordon, no primeiro e melhor filme. Como o Nick de "The Crush", do ator emana uma aura de honradez, cavalheirismo e bom-mocismo. Ele realmente se sobressai como uma íntegra presença, por quem é fácil torcer. Em nenhum momento age com canalhice e oportunismo, e ao passo que deseja o bem para Darian, deve encarar a crueza dos fatos, pois razões nobres de nada valem quando se está sob o ataque de uma psicopata. No papel periférico de Cheyenne, Amber Benson brilha nas poucas cenas, entre as quais se encontra a mais atmosférica, ao se encontrar com Nick e o colocar a par da gravidade da situação. O momento da rememoração de fatos sobre a estranha morte do professor por quem Darian nutrira sentimentos descortina diante de Nick a profundidade da ameaça: ele se encontra na linha de fogo, e se a menina não hesitou em envenenar um homem antes, sua vida também corre perigo. A breve conversa dá ao suspense, até aquele instante muito bem rendido, uma conotação de irrestrito horror, vez que não se trata mais de sustos bolados por uma adolescente apaixonada, sim de um jogo onde alguém sairá morto. Muitos excelentes filmes de terror fiam-se nesse expediente: um ator talentoso capaz de roubar a cena aparece, desempenha seu papel, usualmente para explicitar a dimensão de um problema, e sai de cena, nos deixando embasbacados. Eu poderia citar o trabalho do sr. J.K. Simmons no aterrorizante "Os Escolhidos", no qual interpreta um estudioso dos "Cinza", responsável por repassar a uma pobre família objeto do assédio a realidade das criaturas por trás do pesadelo, na verdade seres extraterrestres. Eles resistiam a crer na natureza extraterrestre do assédio; o diálogo com o especialista rasga o véu do mistério e lhes dá uma necessária amostra de realidade. Para conceber cenas genuinamente horripilantes, um cineasta não precisa de muito. Bons atores, diálogos empolgantes e um senso de atmosfera bastam para instilar eletricidade na história. Quando assisto a filmes de suspense, sempre torço para que o diretor nos abençoe com um momento do tipo, onde você se sente convidado a participar da trama. Eu poderia citar um grande número de momentos cinematográficos do tipo, mas a cena de "Os Escolhidos" sumariza a referida magia. No seu primeiro grande papel, Alicia Silverstone criou uma vilã memorável. "The Crush" abriu muitas portas para a atriz, mas ela levaria um par de anos até o estrelato, com "As Patricinhas de Beverly Hills". "The Crush" já nos apresenta ao seu imenso carisma. O modo como trabalha faz da personagem um grande mistério. Darian é superdotada, exímia pianista estudiosa de insetos. Ela coleciona notas excelentes e integra o time de equitação; por outro lado, faltam-lhe elementos de sociabilidade, uma notória ausência até mesmo no jeito com que troca um olhar e esboça o sorriso de flerte para Nick, ao embargar a passagem ao conjugado, sentada no caminho, nas escadas. A atriz é tão expressiva que consegue recriar um traço próprio aos psicopatas, difícil de descrever. Trata-se de uma superfície polida, quase como um quadro em branco, onde se enxergam emoções exageradas, que mais parecem imitadas do que espontâneas. Após "As Patricinhas de Beverly Hills", Alicia Silverstone esteve no topo por alguns anos, findos os quais deixou os papéis principais para se focar em produções menores e mais artísticas. Ela fez parte da geração dos anos 90, anterior à vinda da década seguinte, com "Meninas Malvadas", de 2004, o grande sucesso revelador de atrizes como Rachel McAdams e Amanda Seyfried. Muitas estrelas dos anos 90 não conseguiram capitalizar o sucesso de seus primeiros papéis; algumas migrariam para material mais sério, fazendo uma transição serena à fase adulta da carreira. Houve aqueles que não resistiram a pressão. Recentemente, o elenco de "As Patricinhas de Beverly Hills" se reuniu para um especial, no qual trocavam reminiscências das filmagens, realizadas tantos anos atrás, em 1994/1995. Evidentemente, é surpreendente ver o quanto as pessoas mudam, num certo hiato de tempo. Os atores não só pareciam mais maduros (e melhores do que nunca), mas interiormente engrandecidos. Embora marcada por bom humor e felizes recordações, pesa sobre a reunião a ausência da atriz Britanny Murphy, companheira de elenco, falecida prematuramente em 2009, quando tentava realizar a transição para papéis mais sérios. A reunião do elenco é muito marcante, pois nota-se, o tempo todo, o quanto parecem comovidos em razão da trágica ausência da falecida colega. Quando os atores discorrem sobre aquele período de tempo no qual fizeram "As Patricinhas de Beverly Hills", nos levam a um nostálgico passeio pelo túnel do tempo, e passeios do tipo tendem a ou terminar em risos de alegria ou em lágrimas de saudade. No caso do elenco, os artistas parecem divididos entre as emoções: risos pelos bons tempos & tristeza pela sentida ausência de uma colega, e, no encontro, há um pouco de cada.
Assistir a "The Crush" não apenas recupera um modelo mais simples e eficiente de se fazer cinema; o filme também nos devolve a uma saudosa época, impossível de se reaver. Recentemente, encantei-me com um lindo vídeo com belas imagens de Nova York, tomadas em 1993, com uma câmera de alta resolução, sublinhadas por uma comovente música. Impressiona-me como, embora antes pouco se diferencie de hoje, a sutileza mostra o contraste, afinal, de fato, ali em 1993, vivia-se um ar de ingenuidade, tão tangível na atmosfera daquela gente caminhando sem celulares pelas largas calçadas. Com o tempo, essa impressão viria a se rarefazer. Mesmo na pueril troca de olhares apaixonados de um casal à espera para atravessar a rua, pronuncia-se um adorável tom de concordância e harmonia, há muito desaparecido. Sobre o vídeo, um senhor comenta como o 11 de setembro levou consigo parte daquela tranquilidade, e quão distintos se contrastam os dois mundos, Nova York em 1993 & hoje, por mais que se precise de sensibilidade para pontuar tais diferenças. "The Crush" nos brinda com semelhante surpresa. Enquanto suspense, sustenta a atenção, mas não extrapola os limites do bom gosto; enquanto drama, trata seus personagens como seres humanos com os quais podemos nos identificar. Em termos de estilo, leva-nos para um passeio de volta aos anos 90, convidando-nos a nos recordar de onde nos encontrávamos na linha do tempo. O filme foi lançado no Brasil em VHS, em 1994, sob o título "Paixão sem Limite". Particularmente, ao revisitá-lo, sempre me lembro com carinho de meados dos anos 90, com uma nostalgia semelhante à evocada pelo vídeo de Nova York, em 1993. Eram outros tempos, e as estrelas de cinema. Recordo-me do Natal daquele ano de 1994: Jean Claude Van Damme era astro, e "Street Fighter" havia acabado de chegar aos cinemas brasileiros. Fomos ver o filme na estreia, eu e um amigo, acho que todo garoto daquele tempo se apaixonou pela Kyle Minogue, que no filme interpretava a Cammy! Jean Claude Van Damme teria mais alguns bons anos pela frente, até sua estrela enfraquecer a partir da década seguinte, pondo fim a uma era ensolarada, e inaugurando novos, incertos e tristes tempos, a começar por uma certa manhã em setembro de 2001.

Engrandecido por uma premissa intrigante, direção precisa, performances fantásticas e momentos de suspense de roer as unhas, "The Crush" é o candidato perfeito para receber o tratamento da refilmagem. Vejam o que aconteceu ao clássico "Pet Sematary", refeito para uma nova geração. Todos esperamos ansiosamente a estreia no próximo dia 09! Antes que o mesmo destino ocorra a "The Crush", todavia, seria preferível que as pessoas procurassem a fonte, pois há elementos inerentes à época do lançamento responsáveis por torná-lo um suspense fora de série, e um dos toques de magia, impossível de se reproduzir, dá-se nas particularidades do período no qual veio ao mundo pela primeira vez, inigualável como a fragrância das flores na esteira da adorável chegada da primavera.

sábado, 27 de abril de 2019

"A Better Tomorrow" (China, 1986): O grande diretor John Woo inicia a sua caminhada ao topo neste impressionante, violento e lírico filme de ação!


Sinopse: Sung Tse-Ho (Ti Lung) e Kit (Leslie Cheung) são dois irmãos numa encruzilhada. No início do filme, Kit acaba de se formar como policial da força de combate ao crime em Hong Kong, e sonha em se tornar superintendente. Ele vive o melhor período de sua vida, pois conta com o suporte e apoio do irmão mais velho, Sung, com o amor do velho pai enfermo e o carinho de sua doce namorada Jackie (Emily Chu). Embora sempre presente na vida do irmão mais jovem, Sung mantém oculto seu trabalho como um gângster membro da Tríade chinesa. O pai doente sabe da vida secreta do filho mais velho, e mesmo conhecendo o orgulho do gângster pelo fato de o irmão ser um incorruptível homem da lei, lembra-o de quando ambos eram crianças e brincavam de polícia v. bandido: ninguém acabava se machucando, mas então tudo era brincadeira. O pai não quer que acabem brigando na vida real. Sung se sente muito dividido e cheio de remorsos. No dia a dia, ele performa operações ilegais envolvendo a distribuição de notas falsas, ao lado do melhor amigo, o bem humorado e honrado Mark Go (Chow Yun-Fat). No sindicato, ambos são tratados com veneração, e os desdobramentos parecem indicar que, chegada a hora da sucessão, um dos dois ocupará o lugar de chefe da Tríade. Com irreverência, Sung e Mark acolhem o novato desajeitado Shing, um principiante no mundo do crime, e seguem desempenhando as tarefas do sindicato no dia a dia. Ambos se conduzem com estilo, vestindo elegantes casacos e óculos pretos, e inspirando respeito por onde passam. Compreensivelmente, Shing impressiona-se com glamour da máfia, e fica deslumbrado em se tornar um gângster capaz de inspirar temor e reverência. Ele terá a oportunidade de provar seu valor quando, ao invés de Mark como de costume, Sung levar Shing para um trabalho em Taipei, no dia seguinte, uma espécie de "prova de fogo" para o neófito. O trabalho em Taipei se prova uma verdadeira cilada, e depois de uma intensa troca de tiros da qual Sung e Shing escapam por pouco com suas vidas, Sung baleado inclusive, os bandidos responsáveis pela emboscada despacham um assassino para a casa do pai de Sung & Kit para usá-lo como barganha, caso Sung seja preso e acabe tentado a falar tudo o que sabe para entregar a turma inteira à polícia. O pai reage e luta com o vilão. Kit chega a tempo de se deparar com a confusão e ajudar o idoso, mas o velhinho acaba morrendo. Da pior maneira, Kit, um rapaz honesto e obediente às leis, descobre que o irmão fazia parte da Tríade e atraíra para dentro de casa complicações que resultaram na morte do amado pai. Em Taipei, o acuado Sung prefere se entregar à polícia, que montou um cerco na área. Assim, ele dá ao colega Shing a oportunidade de se evadir por outra direção sem ser capturado. Mark vem a ler sobre o ocorrido no dia seguinte, ao comprar o jornal. Entristecido pelo querido parceiro, resolve se vingar. Aprende que o responsável pela emboscada fora o sobrinho do outro chefão de Hong Kong: o rapaz se juntara a uma gangue menor de Hong Kong e passara a perna no tio, fingindo-se soldados do grupo numa transação legítima, quando, na verdade, armavam o golpe o tempo inteiro. Como a honra vale ouro para os verdadeiros homens da Tríade, o chefão passa a Mark todos os dados de que ele precisa para acertar as contas com o sobrinho traidor, e oferece armas & homens. Numa sequência empolgante muito reveladora da habilidade do diretor John Woo em arquitetar cenas estilísticas de ação, Mark "se mistura" aos presentes no restaurante com uma garota de programa até chegar à mesa onde o sobrinho traidor e sua turma jantam. Mark abre fogo e executa os vilões, porém leva um tiro na perna durante a fuga. Os anos, então, se passam muito rapidamente, e vemos como Kit se torna um dos melhores policiais da força de Hong Kong. Sung cumpre a pena com resignação, e ao ser posto em liberdade, deixa a cadeia obstinado em fazer as pazes com o irmão e viver uma existência limpa como motorista de táxi. Durante aquele tempo, Mark, outrora um respeitado membro da Tríade, virou um humilde cuidador de carros, por conta da perna deficiente, e ninguém o respeita mais. Shing, a quem conhecemos como um inocente aprendiz, ascendeu ao topo da organização; agora, é o impiedoso chefão. Sung procura o velho amigo Mark, e eles ajudam um ao outro no longo processo de reabilitação, longe das garras da Tríade. Simultaneamente, Sung batalha para conquistar o perdão do ainda ressentido irmão. Quando Shing passa a armar um plano maquiavélico para trazer Sung de volta ao mundo do crime, os três sabem que precisam unir forças para derrubar o verdadeiro vilão.
Resenha: Por um período relevante, o diretor John Woo foi um dos cineastas mais admirados da Sétima Arte, tendo sido convidado a reger projetos impressionantes, realizados dentro do sistema dos grandes estúdios, sucessos de bilheteria que, paradoxalmente, viam a liberdade criativa do cineasta recrudescer à medida que o escopo das produções se elastecia. Para muitos, o nome do diretor é imediatamente recordado pelos sucessos filmados em Hollywood - "O Alvo", "Broken Arrow", "A Outra Face", "Missão Impossível 2" e "O Pagamento" - mas o alcance dessas ambiciosas produções acabaram por diluir o seu melhor período, anterior à vinda aos Estados Unidos. Na época do lançamento na China, "A Better Tomorrow" foi catapultado à estratosfera das bilheterias, um honorável recorde que só alguns anos mais tarde seria quebrado. Para se ter uma ideia do fenômeno popular de "A Better Tomorrow", os óculos escuros Ray-Ban usados pelo ator Chow Yun-Fat tiveram seus estoques esgotados semanas após a estreia. Os jovens não só adotavam os óculos, como também coadjuvavam o estilo com o longo trench coat e o detalhe do palito de fósforo no canto da boca. Embora extremamente bem-sucedida, a experiência também trouxe dores de cabeça a Tsui Hark, produtor, e o diretor Woo, pois parte da imprensa os acusou de, com o filme, glamorizarem a temerária vida da máfia chinesa, conhecida como Tríade. Ainda que sob percalços, "A Better Tomorrow" emblematizou o começo da maturidade de Woo enquanto cineasta, visto que deixava a ação pela ação para rodar obras cujas tramas se aproximavam dos ambiciosos dramas dirigidos pelo norte-americano Martin Scorsese no período mais cultuado de sua filmografia. A partir de "A Better Tomorrow", Woo, um artesão da violência, preocupou-se em ir além do puro espetáculo visual, explorando o drama interior de seus heróis, usualmente homens violentos regidos por um rígido código de honra. Seus protagonistas podiam agir passional e violentamente, mas sempre faziam escolhas baseados em valores transcendentes ao ego, desde o nobre remorso do assassino profissional de "The Killer" ao carinho do tira Tequila por sua ex-mulher em "Hard Boiled". Em "A Better Tomorrow", John Woo sublinha a ação e pirotecnia com o drama de dois irmãos em lados opostos da lei. Do puro, belo amor fraterno, belissimamente rendido pelo sensível cineasta, ele encontra o fio narrativo apropriado para uma tocante jornada rumo à redenção. Quem assistir a "A Better Tomorrow" esperando ação encontrará algo mais recompensador, pois Woo imbui a trama de ímpar profundidade humana. O filme traz consigo uma poderosa bagagem asiática, entretanto o núcleo dramático, a busca pela redenção, soará familiar a qualquer cristão. Com uma trilha sonora simultaneamente comovente e eletrizante a dar um ar romântico aos procedimentos, "A Better Tomorrow" se destaca como uma produção realmente à parte, com a qual o diretor John Woo ensaia as características responsáveis pela sua identidade como poeta visual da violência.
Ti Lung e Leslie Cheung estrelam o filme como os dois irmãos em lados distintos, e se destacam como atores magistrais, cada um por motivos especiais. Lung encarna o paradigma do anti-herói clássico de uma obra-prima do mestre. Como um gângster, Lung, no papel de Sung Tse-Ho, sabe que para sobreviver no submundo do crime precisa atirar primeiro e não se permitir emoções como compaixão. Ao mesmo tempo, o semblante triste denuncia a preocupação com o futuro do irmão Kit, a quem ama e deseja uma vida distinta da sua, e a fidelidade ao velho amigo Mark, por cuja deficiência se julga responsável. Mesmo na luta pela sobrevivência no submundo à margem da lei, Sung age como um homem íntegro obediente a um código moral, e por seus valores paga um alto preço, conforme vemos durante a emboscada da polícia, quando sacrifica a liberdade e se entrega de modo a dar ao colega Shing, que anos mais tarde o trairá, uma chance de escapar do cerco. Leslie Cheung dá vida a Kit, e confere ao personagem a energia e suavidade arrogante dos jovens, ainda desconhecedores dos muitos tons regedores da dinâmica do mundo. Conhecemo-o como um cadete idealista, testemunhamos a evolução como tira, e culminamos com o seu perfeito desenvolvimento quando, ao fim, perdoa o irmão e o aceita pelo que é, ao perceber as próprias falhas e o fato de, no mundo, a verdade nem sempre vir em preto e branco. Lamentavelmente, o ator Cheung, uma alma gentil e atormentada, cometeria suicídio em 2003, após muitos anos de uma batalha perdida para a terrível enfermidade da depressão. Chow Yun-Fat se consagraria como o ator preferido de Woo, inaugurando uma parceria semelhante a de Martin Scorsese & Robert De Niro. Quando foi escalado para o vital papel de Mark, Yun-Fat encarou o convite como uma bênção, afinal vinha de uma sequência de fracassos e trabalhos inexpressíveis. "A Better Tomorrow" salvou sua carreira e o estabeleceu como um astro do mercado asiático. Mark serve de estepe aos dois irmãos, contudo, mesmo como coadjuvante, praticamente "rouba" os holofotes dos dois protagonistas, conduzindo-se com a elegância & letalidade de uma pantera, tal qual na cena onde caminha abraçado a uma garota de programa, ambos aos beijos, abraços e gargalhadas, ao longo de um corredor de restaurante, e vai aproveitando a encenação para ir depositando pistolas automáticas carregadas nos vasos de flores, numa brilhante estratégia de escapada a preceder o ataque aos bandidos à mesa. Ele desempenhou o trabalho com um charme tal que, mesmo morrendo ao fim, os produtores deram um jeitinho de trazê-lo de volta em "A Better Tomorrow 2" como Ken, o irmão gêmeo de Mark. Quando Ken morreu no desfecho da segunda parte, os caras, determinados a trazerem-no de volta, trataram de bolar uma prequel, uma trama passada antes dos eventos do primeiro filme, qualquer coisa para justificar a contribuição do carismático astro! John Woo dirigiu o segundo, e Tsui Hark, outro habilidoso artífice da ação, comandou o terceiro, ambos ótimos filmes, mas muito diferentes.
Em "A Better Tomorrow", pinçamos as qualidades responsáveis por terem feito de Woo um dos diretores instantaneamente reconhecidos em termos de visual & estilo. Woo encontrou a identidade ao balancear a ação cinética, tão própria dos asiáticos, com a poesia do enquadramento das imagens. Para sintetizar magia, estetizou os tiroteios e a violência com tomadas em câmera lenta, reminiscentes das obras-primas de Sam Peckinpah. A redução proposital da velocidade, a aplicação de zoom e os movimentos inesperados de câmera instilaram no seu olhar uma conotação lírica & shakespeariana, e, a partir de "A Better Tomorrow", com muita razão, as pessoas passaram a esperar de cada novo trabalho seu uma festança aos olhos. Ele não desapontou, atingindo o ápice criativo com o melhor filme de ação do século XX, "Hard Boiled", lançado no Brasil como "Fervura Máxima", uma ópera de tiroteios, traições e duelos de homens com duas pistolas nas mãos! Após "Fervura Máxima", Woo seria assediado por Hollywood, interessada em importar o talento do chinês. O intercâmbio se realizaria em 1993, com "O Alvo" ("Hard Target"), estrelado por Jean Claude Van Damme, então um nome em ascensão. Os desconhecedores da filmografia de Woo tiveram a oportunidade de descobrir o talento do cineasta com "O Alvo", uma superprodução de enorme visibilidade. Já ali, todavia, pronunciava-se o problema que viria a assolar os dez anos nos quais dirigiria em Hollywood: por reger filmes de estúdio, Woo também precisava lidar com os massivos egos de estrelas internacionais, vaidosas demais para permitirem que o estilo do cineasta ofuscasse suas presenças. Não obstante excepcional, "O Alvo" esgotou o cineasta emocionalmente, cortesia das constantes discussões com Van Damme, mas Woo sagrou-se vencedor, imprimindo ao filme a sua marca autoral. A experiência seria diferente com "Missão Impossível 2", seu primeiro grande desapontamento com o sistema de trabalho dos super estúdios. Quando o astro Tom Cruise inaugurara a franquia em 1996 com o primeiro "Missão Impossível", ninguém sabia se a série daria certo. Para a cadeira de diretor, foi escalado um dos maiores virtuosos do suspense moderno, Brian De Palma, com quem o astro Tom Cruise protagonizaria discussões pelo efetivo controle da caríssima produção. De Palma ganhou o duelo de vaidades, dirigiu o filme à sua maneira, e o resultado foi uma das maiores bilheterias de todos os tempos. Quando Woo se apresentou no set de "Missão Impossível 2", o equilíbrio de forças era distinto, e Tom Cruise tinha detrás de si o estrondoso sucesso do primeiro filme para dar as cartas. Woo lutou para emprestar ao projeto sua visão, mas ao bater de frente com as opiniões do ator principal, sem o mesmo poder de barganha, acabou derrotado. Lançado para absoluto sucesso no competitivo verão de 2000, "Missão Impossível 2" consolidou o nome de Tom Cruise como herói de filmes de ação, porém quem se recordava de John Woo pelos filmes rodados em Hong Kong décadas atrás não mais reconhecia na tela a típica paixão poética. Sua direção passava a impressão de lassidão, quiçá frouxa e quase automática. Três anos depois, ao comandar a ficção-científica "O Pagamento", encabeçada por outro astro, Ben Affleck, Woo viveria o mesmo drama ao ter a liberdade criativa tolhida em nome das vaidades do elenco de estrelas. Em 2003, a experiência de John Woo no Ocidente somava quase uma década. Não apenas o brilho do diretor se dissipara: genericamente, os filmes de ação haviam sofrido uma guinada a partir de "Matrix", de 1999, e o público, ao menos em sua maioria, não mais nutria interesse por diretores de visão, afinal o espetáculo, e não as personalidades, havia passado a ser tudo. Não somente Woo amargaria essa realidade; visionários um dia tidos como os maiores agora também agonizavam e se viam obrigados a comandar projetos menores, como o finlandês Renny Harlin. Depois de o ter importado, Hollywood não sinalizava que daria a John Woo a tão sonhada liberdade criativa de antigamente, e ele regressou para a China.
De volta a sua terra, Woo reencontrou o prumo. O cineasta retomou a liberdade a partir da qual poderia reaver as melhores qualidades responsáveis pela sua marcante filmografia no período pré-Hollywood. A partir de 2008, com "A Batalha dos 3 Reinos", ressurgiria como o familiar, maravilhoso virtuoso de "A Better Tomorrow", num impressionante processo de retomada artística das origens. Na China, dirigiria um de seus trabalhos mais excitantes: para os fãs, "Manhunt", de 2017, encapsularia o John Woo vintage, onde as excentricidades mais malucas e maravilhosas se viriam reunidas num pacote só, anos-luz à frente das superproduções de Hollywood. Sem estrelas de cinema para azucrinarem-no, com "Manhunt", Woo fielmente dirigiu um projeto nascido de suas visões e crenças, e os fãs reagiram com gratidão por tê-lo de volta. Hoje, tantos anos mais tarde da passagem pelos Estados Unidos, Woo se recorda do período sem nenhum tipo de mágoa. Ele fala sobre como se sentiu enaltecido com os projetos que chegavam à sua escrivaninha, e com especial apreço se recorda de como ficou lisonjeado quando os criadores de James Bond o convidaram pessoalmente para reger "007 contra Golden Eye": ele não topou, mas apreciou o convite! Mais amadurecido, Woo transmite a sapiência de um homem cujo melhor projeto encontra-se a alguns anos no futuro. De várias maneiras, a saga do diretor nos convida a pensar na realidade de muitos outros artistas de abençoadas visões. Eu poderia citar o sr. José Padilha, o elogiado cineasta responsável por "Tropa de Elite 1&2", entre outros premiados trabalhos no cinema & TV. A energia exibida em "Tropa de Elite" valeu ao sr. Padilha o convite para comandar o aguardadíssimo remake de "RoboCop", um projeto que durante a concepção passou pelos gabinetes de cineastas respeitados, como Darren Aronofsky. Lançado em 2013, o remake de "RoboCop" se destacou como um filme muito bom e antenado `as revisões narrativas demandadas pela adaptação de algo originalmente concebido em 1987. Ocorre-me, porém, a impressão de que sr. Padilha não chegou a entregar o produto originalmente desenhado pela sua privilegiada mente. É muito possível que o cineasta tenha reservado a "RoboCop" sacadas geniais, todavia, ao apresentá-las ao estúdio na pré-produção, precisou suportar as interferências dos produtores responsáveis pelo dinheiro da feitura da produção. Possivelmente temerosos com os dividendos financeiros, os executivos devem ter limitado o leque de escolhas de um cineasta interessado em realizar seu melhor filme. Semelhante impasse ocorreu a outro consagrado diretor brasileiro, sr. Walter Salles, cujo portfólio chamara a atenção dos grandes estúdios, interessados em tê-lo a bordo de um grande projeto. Pelo sistema de Hollywood, o brasileiro rodou "Água Negra", refilmagem de um celebrado filme de horror japonês, realocado para os Estados Unidos, e produzido em 2005, na esteira do absurdo sucesso de "O Chamado". A misteriosa história de fantasma, sobre uma mãe falível empenhada em cuidar da filha, ambas habitando um apartamento de um condomínio onde, alguns anos antes, uma pobre garotinha vítima de abusos desaparecera misteriosamente, foi reimaginada para a realidade & tensões ocidentais pelo sensível Salles. Em que pese as qualidades, "Água Negra" não chega a criativamente decolar, destino do qual se infere uma interferência do estúdio no processo de filmagens. Da experiência, certamente uma das melhores recompensas do sr. Salles deve ter sido dirigir a talentosíssima atriz Jennifer Connelly, a estrela do projeto. Ela, inclusive, vocalizou satisfação com o trabalho do sr. Salles e fez votos de participar de outros projetos seus. Enfim, voltando ao cineasta objeto da resenha, John Woo, as últimas movimentações de sua carreira apontam a felicidade de um homem novamente detentor de um eixo criativo e em pleno controle de sua capacidade para escolhas artísticas, hoje temperadas por maturidade, e bem-assessoradas pelo respaldo dos chineses à sua autoridade.
Os cinéfilos ainda alheios `as origens de John Woo ficarão felizes em saber que todas as principais produções do período pré-Hollywood podem hoje ser facilmente encontradas em DVD por um valor quase irrisório diante de sua relevância histórica. Lançado com todas as honras em DVD, "A Better Tomorrow" teve imagem & som restaurados graças a um empenhado processo de transferência. Curiosamente, o DVD não foi o primeiro contato dos fãs brasileiros com a obra, afinal, em 1994, a Flashstar o lançara em fita de vídeo com o título "Alvo Duplo", para "surfar na crista da onda" do então recente sucesso de "O Alvo", com Van Damme. Se você estiver interessado em iniciar estudos da carreira de Woo pelo seu melhor trabalho, "Fervura Máxima", eu recomendaria "A Better Tomorrow" como mais apropriado ponto de partida. Aqui, encontrarão interessantíssimos esboços das técnicas que ele lapidaria nos anos seguintes, tanto dramática quanto esteticamente. Em termos de recursos dramáticos, Woo trata os vilões com seu familiar apreço por antagonistas. O grande público se recordará do franzino, memorável Lance Henricksen no papel do vilão Emile Fouchon, de "O Alvo": magérrimo, intelectualizado e entusiasta pianista, ele portava uma super pistola e se movia com uma desenvoltura capaz de intimidar o musculoso herói vivido por Van Damme. O carinho de Woo ao retratar a extravagância dos vilões como criaturas maiores que a vida, todavia, inicia-se muito antes, em 1986, com "A Better Tomorrow", onde o vilão Shing, interpretado por Waise Lee, corrobora a assertiva. Na primeira parte do filme, o jeito amador e atrapalhado nos convida a enxergá-lo com a benevolência e bom humor reservados aos principiantes, mas, com o desenvolvimento da trama, aprendemos como o poder, uma fraqueza tão corruptível, transforma até mesmo ingênuos em monstros. Shing é um homem corrompido pelo poder, pois tendo sido salvo por Sung no começo da trama, ao invés de usar o sacrifício do colega para se tornar um ser humano melhor, deixa o ego tomar conta e permite-se galgar implacavelmente degraus cada vez maiores dentro do sindicato do crime, até se tornar o Senhor da Tríade. Esteticamente, "A Better Tomorrow" turbina a violência ao revesti-la com uma melancólica beleza, como se os duelos se dessem consoante coreografias milenares de uma dança secreta, protagonizada em tiroteios de tirar o fôlego. Como um todo, o cinema asiático costuma impressionar pelos exuberantes espetáculos de lutas. Eu nunca gostei de artes marciais, com a exceção talvez do pugilismo por causa dos grandes boxeadores do passado, mas admiro os atores e atrizes que performam tais modalidades perante as câmeras, mesmo sob riscos à saúde. Muitas atrizes sofrem sérios reveses ao desempenharem proezas, como a inglesa Kate Beckinsale, que em um dos filmes sobre vampiros v. lobisomens causou em si mesma uma hérnia, salvo engano umbilical, por causa de um salto e um chute acrobático realizados sem o devido preparo. Artistas de cinema ganham bons salários, mas sofrem no corpo as demandas exigidas pelo processo de filmagem! Ninguém realiza tão bem os saltos e movimentos como os chineses. John Woo adaptou as proezas das artes marciais, reciclando-as nos duelos à pistola, e em invés de a saltos e super golpes, direcionou seu olhar poético à acrobática troca de fogo.
Muitos cineastas confessam a influência de John Woo em seus trabalhos, e devem as carreiras ao peculiar modo do artista chinês ao retratar a ação. O ótimo Isaac Florentine temperou suas duas melhores obras, "Ninja 1&2", com pitadas estilísticas claramente emprestadas de Woo. Exaustivamente copiado, o diretor perdura numa classe só sua, e em especial para as pessoas que foram adolescentes nos anos 90, seu trabalho conserva um doce chamado nostálgico, convite a uma época mais simples. A meu ver, John Woo faz parte de um seleto grupo de cineastas e artistas por quem reservei muito apreço enquanto crescia. Aos quinze anos, recheava as paredes do quarto com pôsteres de todos aqueles filmes e estrelas. Claro, na época, tentava substituir um enorme vazio interior com aquelas imagens fantásticas, mas então não sabia que um mero minuto de eucaristia teria me dado tudo o que os filmes jamais conseguiriam. De qualquer modo, por todas essas obras de arte do cinema, eu sempre terei singelo carinho, e se o texto levar meia dúzia de leitores a conhecerem a filmografia de John Woo, terei retribuído o mestre do cinema por todo o bem que me fez, em particular. Eu me recordo de 1995, quando "Fervura Máxima" foi trazido aos cinemas brasileiros com quatro anos de atraso (afinal, foi filmado em 1991) e exibido no circuito de arte: eu tinha quinze anos, minha mãe levara a mim e a um grande amigo para vermos o filme, e assistir à obra-prima de John Woo na tela grande, naquela noite distante de 1995, foi uma experiência mágica, até agora muito fresca na minha memória. Mesmo hoje, quando passo pelo espaço no shopping onde existia o cinema onde vimos o filme, arrepio-me ao me recordar das pessoas em suas poltronas assistindo ao espetáculo eletrizadas. Quando criança, eu sonhava em ser cineasta, e queria me tornar uma espécie de John Woo. Aqui, ao examinar quão pouco se sabe da vida na adolescência, descrevo meus sentimentos com uma fala do sr. Clint Eastwood, em "As Pontes de Madison". O sr. Eastwood afirma: "Os velhos sonhos foram bons sonhos. Eles não se realizaram, mas foi bom tê-los". E então: o que você está esperando para procurar ainda hoje a obra de John Woo, o maestro do balé da violência?