sábado, 27 de abril de 2019

"A Better Tomorrow" (China, 1986): O grande diretor John Woo inicia a sua caminhada ao topo neste impressionante, violento e lírico filme de ação!


Sinopse: Sung Tse-Ho (Ti Lung) e Kit (Leslie Cheung) são dois irmãos numa encruzilhada. No início do filme, Kit acaba de se formar como policial da força de combate ao crime em Hong Kong, e sonha em se tornar superintendente. Ele vive o melhor período de sua vida, pois conta com o suporte e apoio do irmão mais velho, Sung, com o amor do velho pai enfermo e o carinho de sua doce namorada Jackie (Emily Chu). Embora sempre presente na vida do irmão mais jovem, Sung mantém oculto seu trabalho como um gângster membro da Tríade chinesa. O pai doente sabe da vida secreta do filho mais velho, e mesmo conhecendo o orgulho do gângster pelo fato de o irmão ser um incorruptível homem da lei, lembra-o de quando ambos eram crianças e brincavam de polícia v. bandido: ninguém acabava se machucando, mas então tudo era brincadeira. O pai não quer que acabem brigando na vida real. Sung se sente muito dividido e cheio de remorsos. No dia a dia, ele performa operações ilegais envolvendo a distribuição de notas falsas, ao lado do melhor amigo, o bem humorado e honrado Mark Go (Chow Yun-Fat). No sindicato, ambos são tratados com veneração, e os desdobramentos parecem indicar que, chegada a hora da sucessão, um dos dois ocupará o lugar de chefe da Tríade. Com irreverência, Sung e Mark acolhem o novato desajeitado Shing, um principiante no mundo do crime, e seguem desempenhando as tarefas do sindicato no dia a dia. Ambos se conduzem com estilo, vestindo elegantes casacos e óculos pretos, e inspirando respeito por onde passam. Compreensivelmente, Shing impressiona-se com glamour da máfia, e fica deslumbrado em se tornar um gângster capaz de inspirar temor e reverência. Ele terá a oportunidade de provar seu valor quando, ao invés de Mark como de costume, Sung levar Shing para um trabalho em Taipei, no dia seguinte, uma espécie de "prova de fogo" para o neófito. O trabalho em Taipei se prova uma verdadeira cilada, e depois de uma intensa troca de tiros da qual Sung e Shing escapam por pouco com suas vidas, Sung baleado inclusive, os bandidos responsáveis pela emboscada despacham um assassino para a casa do pai de Sung & Kit para usá-lo como barganha, caso Sung seja preso e acabe tentado a falar tudo o que sabe para entregar a turma inteira à polícia. O pai reage e luta com o vilão. Kit chega a tempo de se deparar com a confusão e ajudar o idoso, mas o velhinho acaba morrendo. Da pior maneira, Kit, um rapaz honesto e obediente às leis, descobre que o irmão fazia parte da Tríade e atraíra para dentro de casa complicações que resultaram na morte do amado pai. Em Taipei, o acuado Sung prefere se entregar à polícia, que montou um cerco na área. Assim, ele dá ao colega Shing a oportunidade de se evadir por outra direção sem ser capturado. Mark vem a ler sobre o ocorrido no dia seguinte, ao comprar o jornal. Entristecido pelo querido parceiro, resolve se vingar. Aprende que o responsável pela emboscada fora o sobrinho do outro chefão de Hong Kong: o rapaz se juntara a uma gangue menor de Hong Kong e passara a perna no tio, fingindo-se soldados do grupo numa transação legítima, quando, na verdade, armavam o golpe o tempo inteiro. Como a honra vale ouro para os verdadeiros homens da Tríade, o chefão passa a Mark todos os dados de que ele precisa para acertar as contas com o sobrinho traidor, e oferece armas & homens. Numa sequência empolgante muito reveladora da habilidade do diretor John Woo em arquitetar cenas estilísticas de ação, Mark "se mistura" aos presentes no restaurante com uma garota de programa até chegar à mesa onde o sobrinho traidor e sua turma jantam. Mark abre fogo e executa os vilões, porém leva um tiro na perna durante a fuga. Os anos, então, se passam muito rapidamente, e vemos como Kit se torna um dos melhores policiais da força de Hong Kong. Sung cumpre a pena com resignação, e ao ser posto em liberdade, deixa a cadeia obstinado em fazer as pazes com o irmão e viver uma existência limpa como motorista de táxi. Durante aquele tempo, Mark, outrora um respeitado membro da Tríade, virou um humilde cuidador de carros, por conta da perna deficiente, e ninguém o respeita mais. Shing, a quem conhecemos como um inocente aprendiz, ascendeu ao topo da organização; agora, é o impiedoso chefão. Sung procura o velho amigo Mark, e eles ajudam um ao outro no longo processo de reabilitação, longe das garras da Tríade. Simultaneamente, Sung batalha para conquistar o perdão do ainda ressentido irmão. Quando Shing passa a armar um plano maquiavélico para trazer Sung de volta ao mundo do crime, os três sabem que precisam unir forças para derrubar o verdadeiro vilão.
Resenha: Por um período relevante, o diretor John Woo foi um dos cineastas mais admirados da Sétima Arte, tendo sido convidado a reger projetos impressionantes, realizados dentro do sistema dos grandes estúdios, sucessos de bilheteria que, paradoxalmente, viam a liberdade criativa do cineasta recrudescer à medida que o escopo das produções se elastecia. Para muitos, o nome do diretor é imediatamente recordado pelos sucessos filmados em Hollywood - "O Alvo", "Broken Arrow", "A Outra Face", "Missão Impossível 2" e "O Pagamento" - mas o alcance dessas ambiciosas produções acabaram por diluir o seu melhor período, anterior à vinda aos Estados Unidos. Na época do lançamento na China, "A Better Tomorrow" foi catapultado à estratosfera das bilheterias, um honorável recorde que só alguns anos mais tarde seria quebrado. Para se ter uma ideia do fenômeno popular de "A Better Tomorrow", os óculos escuros Ray-Ban usados pelo ator Chow Yun-Fat tiveram seus estoques esgotados semanas após a estreia. Os jovens não só adotavam os óculos, como também coadjuvavam o estilo com o longo trench coat e o detalhe do palito de fósforo no canto da boca. Embora extremamente bem-sucedida, a experiência também trouxe dores de cabeça a Tsui Hark, produtor, e o diretor Woo, pois parte da imprensa os acusou de, com o filme, glamorizarem a temerária vida da máfia chinesa, conhecida como Tríade. Ainda que sob percalços, "A Better Tomorrow" emblematizou o começo da maturidade de Woo enquanto cineasta, visto que deixava a ação pela ação para rodar obras cujas tramas se aproximavam dos ambiciosos dramas dirigidos pelo norte-americano Martin Scorsese no período mais cultuado de sua filmografia. A partir de "A Better Tomorrow", Woo, um artesão da violência, preocupou-se em ir além do puro espetáculo visual, explorando o drama interior de seus heróis, usualmente homens violentos regidos por um rígido código de honra. Seus protagonistas podiam agir passional e violentamente, mas sempre faziam escolhas baseados em valores transcendentes ao ego, desde o nobre remorso do assassino profissional de "The Killer" ao carinho do tira Tequila por sua ex-mulher em "Hard Boiled". Em "A Better Tomorrow", John Woo sublinha a ação e pirotecnia com o drama de dois irmãos em lados opostos da lei. Do puro, belo amor fraterno, belissimamente rendido pelo sensível cineasta, ele encontra o fio narrativo apropriado para uma tocante jornada rumo à redenção. Quem assistir a "A Better Tomorrow" esperando ação encontrará algo mais recompensador, pois Woo imbui a trama de ímpar profundidade humana. O filme traz consigo uma poderosa bagagem asiática, entretanto o núcleo dramático, a busca pela redenção, soará familiar a qualquer cristão. Com uma trilha sonora simultaneamente comovente e eletrizante a dar um ar romântico aos procedimentos, "A Better Tomorrow" se destaca como uma produção realmente à parte, com a qual o diretor John Woo ensaia as características responsáveis pela sua identidade como poeta visual da violência.
Ti Lung e Leslie Cheung estrelam o filme como os dois irmãos em lados distintos, e se destacam como atores magistrais, cada um por motivos especiais. Lung encarna o paradigma do anti-herói clássico de uma obra-prima do mestre. Como um gângster, Lung, no papel de Sung Tse-Ho, sabe que para sobreviver no submundo do crime precisa atirar primeiro e não se permitir emoções como compaixão. Ao mesmo tempo, o semblante triste denuncia a preocupação com o futuro do irmão Kit, a quem ama e deseja uma vida distinta da sua, e a fidelidade ao velho amigo Mark, por cuja deficiência se julga responsável. Mesmo na luta pela sobrevivência no submundo à margem da lei, Sung age como um homem íntegro obediente a um código moral, e por seus valores paga um alto preço, conforme vemos durante a emboscada da polícia, quando sacrifica a liberdade e se entrega de modo a dar ao colega Shing, que anos mais tarde o trairá, uma chance de escapar do cerco. Leslie Cheung dá vida a Kit, e confere ao personagem a energia e suavidade arrogante dos jovens, ainda desconhecedores dos muitos tons regedores da dinâmica do mundo. Conhecemo-o como um cadete idealista, testemunhamos a evolução como tira, e culminamos com o seu perfeito desenvolvimento quando, ao fim, perdoa o irmão e o aceita pelo que é, ao perceber as próprias falhas e o fato de, no mundo, a verdade nem sempre vir em preto e branco. Lamentavelmente, o ator Cheung, uma alma gentil e atormentada, cometeria suicídio em 2003, após muitos anos de uma batalha perdida para a terrível enfermidade da depressão. Chow Yun-Fat se consagraria como o ator preferido de Woo, inaugurando uma parceria semelhante a de Martin Scorsese & Robert De Niro. Quando foi escalado para o vital papel de Mark, Yun-Fat encarou o convite como uma bênção, afinal vinha de uma sequência de fracassos e trabalhos inexpressíveis. "A Better Tomorrow" salvou sua carreira e o estabeleceu como um astro do mercado asiático. Mark serve de estepe aos dois irmãos, contudo, mesmo como coadjuvante, praticamente "rouba" os holofotes dos dois protagonistas, conduzindo-se com a elegância & letalidade de uma pantera, tal qual na cena onde caminha abraçado a uma garota de programa, ambos aos beijos, abraços e gargalhadas, ao longo de um corredor de restaurante, e vai aproveitando a encenação para ir depositando pistolas automáticas carregadas nos vasos de flores, numa brilhante estratégia de escapada a preceder o ataque aos bandidos à mesa. Ele desempenhou o trabalho com um charme tal que, mesmo morrendo ao fim, os produtores deram um jeitinho de trazê-lo de volta em "A Better Tomorrow 2" como Ken, o irmão gêmeo de Mark. Quando Ken morreu no desfecho da segunda parte, os caras, determinados a trazerem-no de volta, trataram de bolar uma prequel, uma trama passada antes dos eventos do primeiro filme, qualquer coisa para justificar a contribuição do carismático astro! John Woo dirigiu o segundo, e Tsui Hark, outro habilidoso artífice da ação, comandou o terceiro, ambos ótimos filmes, mas muito diferentes.
Em "A Better Tomorrow", pinçamos as qualidades responsáveis por terem feito de Woo um dos diretores instantaneamente reconhecidos em termos de visual & estilo. Woo encontrou a identidade ao balancear a ação cinética, tão própria dos asiáticos, com a poesia do enquadramento das imagens. Para sintetizar magia, estetizou os tiroteios e a violência com tomadas em câmera lenta, reminiscentes das obras-primas de Sam Peckinpah. A redução proposital da velocidade, a aplicação de zoom e os movimentos inesperados de câmera instilaram no seu olhar uma conotação lírica & shakespeariana, e, a partir de "A Better Tomorrow", com muita razão, as pessoas passaram a esperar de cada novo trabalho seu uma festança aos olhos. Ele não desapontou, atingindo o ápice criativo com o melhor filme de ação do século XX, "Hard Boiled", lançado no Brasil como "Fervura Máxima", uma ópera de tiroteios, traições e duelos de homens com duas pistolas nas mãos! Após "Fervura Máxima", Woo seria assediado por Hollywood, interessada em importar o talento do chinês. O intercâmbio se realizaria em 1993, com "O Alvo" ("Hard Target"), estrelado por Jean Claude Van Damme, então um nome em ascensão. Os desconhecedores da filmografia de Woo tiveram a oportunidade de descobrir o talento do cineasta com "O Alvo", uma superprodução de enorme visibilidade. Já ali, todavia, pronunciava-se o problema que viria a assolar os dez anos nos quais dirigiria em Hollywood: por reger filmes de estúdio, Woo também precisava lidar com os massivos egos de estrelas internacionais, vaidosas demais para permitirem que o estilo do cineasta ofuscasse suas presenças. Não obstante excepcional, "O Alvo" esgotou o cineasta emocionalmente, cortesia das constantes discussões com Van Damme, mas Woo sagrou-se vencedor, imprimindo ao filme a sua marca autoral. A experiência seria diferente com "Missão Impossível 2", seu primeiro grande desapontamento com o sistema de trabalho dos super estúdios. Quando o astro Tom Cruise inaugurara a franquia em 1996 com o primeiro "Missão Impossível", ninguém sabia se a série daria certo. Para a cadeira de diretor, foi escalado um dos maiores virtuosos do suspense moderno, Brian De Palma, com quem o astro Tom Cruise protagonizaria discussões pelo efetivo controle da caríssima produção. De Palma ganhou o duelo de vaidades, dirigiu o filme à sua maneira, e o resultado foi uma das maiores bilheterias de todos os tempos. Quando Woo se apresentou no set de "Missão Impossível 2", o equilíbrio de forças era distinto, e Tom Cruise tinha detrás de si o estrondoso sucesso do primeiro filme para dar as cartas. Woo lutou para emprestar ao projeto sua visão, mas ao bater de frente com as opiniões do ator principal, sem o mesmo poder de barganha, acabou derrotado. Lançado para absoluto sucesso no competitivo verão de 2000, "Missão Impossível 2" consolidou o nome de Tom Cruise como herói de filmes de ação, porém quem se recordava de John Woo pelos filmes rodados em Hong Kong décadas atrás não mais reconhecia na tela a típica paixão poética. Sua direção passava a impressão de lassidão, quiçá frouxa e quase automática. Três anos depois, ao comandar a ficção-científica "O Pagamento", encabeçada por outro astro, Ben Affleck, Woo viveria o mesmo drama ao ter a liberdade criativa tolhida em nome das vaidades do elenco de estrelas. Em 2003, a experiência de John Woo no Ocidente somava quase uma década. Não apenas o brilho do diretor se dissipara: genericamente, os filmes de ação haviam sofrido uma guinada a partir de "Matrix", de 1999, e o público, ao menos em sua maioria, não mais nutria interesse por diretores de visão, afinal o espetáculo, e não as personalidades, havia passado a ser tudo. Não somente Woo amargaria essa realidade; visionários um dia tidos como os maiores agora também agonizavam e se viam obrigados a comandar projetos menores, como o finlandês Renny Harlin. Depois de o ter importado, Hollywood não sinalizava que daria a John Woo a tão sonhada liberdade criativa de antigamente, e ele regressou para a China.
De volta a sua terra, Woo reencontrou o prumo. O cineasta retomou a liberdade a partir da qual poderia reaver as melhores qualidades responsáveis pela sua marcante filmografia no período pré-Hollywood. A partir de 2008, com "A Batalha dos 3 Reinos", ressurgiria como o familiar, maravilhoso virtuoso de "A Better Tomorrow", num impressionante processo de retomada artística das origens. Na China, dirigiria um de seus trabalhos mais excitantes: para os fãs, "Manhunt", de 2017, encapsularia o John Woo vintage, onde as excentricidades mais malucas e maravilhosas se viriam reunidas num pacote só, anos-luz à frente das superproduções de Hollywood. Sem estrelas de cinema para azucrinarem-no, com "Manhunt", Woo fielmente dirigiu um projeto nascido de suas visões e crenças, e os fãs reagiram com gratidão por tê-lo de volta. Hoje, tantos anos mais tarde da passagem pelos Estados Unidos, Woo se recorda do período sem nenhum tipo de mágoa. Ele fala sobre como se sentiu enaltecido com os projetos que chegavam à sua escrivaninha, e com especial apreço se recorda de como ficou lisonjeado quando os criadores de James Bond o convidaram pessoalmente para reger "007 contra Golden Eye": ele não topou, mas apreciou o convite! Mais amadurecido, Woo transmite a sapiência de um homem cujo melhor projeto encontra-se a alguns anos no futuro. De várias maneiras, a saga do diretor nos convida a pensar na realidade de muitos outros artistas de abençoadas visões. Eu poderia citar o sr. José Padilha, o elogiado cineasta responsável por "Tropa de Elite 1&2", entre outros premiados trabalhos no cinema & TV. A energia exibida em "Tropa de Elite" valeu ao sr. Padilha o convite para comandar o aguardadíssimo remake de "RoboCop", um projeto que durante a concepção passou pelos gabinetes de cineastas respeitados, como Darren Aronofsky. Lançado em 2013, o remake de "RoboCop" se destacou como um filme muito bom e antenado `as revisões narrativas demandadas pela adaptação de algo originalmente concebido em 1987. Ocorre-me, porém, a impressão de que sr. Padilha não chegou a entregar o produto originalmente desenhado pela sua privilegiada mente. É muito possível que o cineasta tenha reservado a "RoboCop" sacadas geniais, todavia, ao apresentá-las ao estúdio na pré-produção, precisou suportar as interferências dos produtores responsáveis pelo dinheiro da feitura da produção. Possivelmente temerosos com os dividendos financeiros, os executivos devem ter limitado o leque de escolhas de um cineasta interessado em realizar seu melhor filme. Semelhante impasse ocorreu a outro consagrado diretor brasileiro, sr. Walter Salles, cujo portfólio chamara a atenção dos grandes estúdios, interessados em tê-lo a bordo de um grande projeto. Pelo sistema de Hollywood, o brasileiro rodou "Água Negra", refilmagem de um celebrado filme de horror japonês, realocado para os Estados Unidos, e produzido em 2005, na esteira do absurdo sucesso de "O Chamado". A misteriosa história de fantasma, sobre uma mãe falível empenhada em cuidar da filha, ambas habitando um apartamento de um condomínio onde, alguns anos antes, uma pobre garotinha vítima de abusos desaparecera misteriosamente, foi reimaginada para a realidade & tensões ocidentais pelo sensível Salles. Em que pese as qualidades, "Água Negra" não chega a criativamente decolar, destino do qual se infere uma interferência do estúdio no processo de filmagens. Da experiência, certamente uma das melhores recompensas do sr. Salles deve ter sido dirigir a talentosíssima atriz Jennifer Connelly, a estrela do projeto. Ela, inclusive, vocalizou satisfação com o trabalho do sr. Salles e fez votos de participar de outros projetos seus. Enfim, voltando ao cineasta objeto da resenha, John Woo, as últimas movimentações de sua carreira apontam a felicidade de um homem novamente detentor de um eixo criativo e em pleno controle de sua capacidade para escolhas artísticas, hoje temperadas por maturidade, e bem-assessoradas pelo respaldo dos chineses à sua autoridade.
Os cinéfilos ainda alheios `as origens de John Woo ficarão felizes em saber que todas as principais produções do período pré-Hollywood podem hoje ser facilmente encontradas em DVD por um valor quase irrisório diante de sua relevância histórica. Lançado com todas as honras em DVD, "A Better Tomorrow" teve imagem & som restaurados graças a um empenhado processo de transferência. Curiosamente, o DVD não foi o primeiro contato dos fãs brasileiros com a obra, afinal, em 1994, a Flashstar o lançara em fita de vídeo com o título "Alvo Duplo", para "surfar na crista da onda" do então recente sucesso de "O Alvo", com Van Damme. Se você estiver interessado em iniciar estudos da carreira de Woo pelo seu melhor trabalho, "Fervura Máxima", eu recomendaria "A Better Tomorrow" como mais apropriado ponto de partida. Aqui, encontrarão interessantíssimos esboços das técnicas que ele lapidaria nos anos seguintes, tanto dramática quanto esteticamente. Em termos de recursos dramáticos, Woo trata os vilões com seu familiar apreço por antagonistas. O grande público se recordará do franzino, memorável Lance Henricksen no papel do vilão Emile Fouchon, de "O Alvo": magérrimo, intelectualizado e entusiasta pianista, ele portava uma super pistola e se movia com uma desenvoltura capaz de intimidar o musculoso herói vivido por Van Damme. O carinho de Woo ao retratar a extravagância dos vilões como criaturas maiores que a vida, todavia, inicia-se muito antes, em 1986, com "A Better Tomorrow", onde o vilão Shing, interpretado por Waise Lee, corrobora a assertiva. Na primeira parte do filme, o jeito amador e atrapalhado nos convida a enxergá-lo com a benevolência e bom humor reservados aos principiantes, mas, com o desenvolvimento da trama, aprendemos como o poder, uma fraqueza tão corruptível, transforma até mesmo ingênuos em monstros. Shing é um homem corrompido pelo poder, pois tendo sido salvo por Sung no começo da trama, ao invés de usar o sacrifício do colega para se tornar um ser humano melhor, deixa o ego tomar conta e permite-se galgar implacavelmente degraus cada vez maiores dentro do sindicato do crime, até se tornar o Senhor da Tríade. Esteticamente, "A Better Tomorrow" turbina a violência ao revesti-la com uma melancólica beleza, como se os duelos se dessem consoante coreografias milenares de uma dança secreta, protagonizada em tiroteios de tirar o fôlego. Como um todo, o cinema asiático costuma impressionar pelos exuberantes espetáculos de lutas. Eu nunca gostei de artes marciais, com a exceção talvez do pugilismo por causa dos grandes boxeadores do passado, mas admiro os atores e atrizes que performam tais modalidades perante as câmeras, mesmo sob riscos à saúde. Muitas atrizes sofrem sérios reveses ao desempenharem proezas, como a inglesa Kate Beckinsale, que em um dos filmes sobre vampiros v. lobisomens causou em si mesma uma hérnia, salvo engano umbilical, por causa de um salto e um chute acrobático realizados sem o devido preparo. Artistas de cinema ganham bons salários, mas sofrem no corpo as demandas exigidas pelo processo de filmagem! Ninguém realiza tão bem os saltos e movimentos como os chineses. John Woo adaptou as proezas das artes marciais, reciclando-as nos duelos à pistola, e em invés de a saltos e super golpes, direcionou seu olhar poético à acrobática troca de fogo.
Muitos cineastas confessam a influência de John Woo em seus trabalhos, e devem as carreiras ao peculiar modo do artista chinês ao retratar a ação. O ótimo Isaac Florentine temperou suas duas melhores obras, "Ninja 1&2", com pitadas estilísticas claramente emprestadas de Woo. Exaustivamente copiado, o diretor perdura numa classe só sua, e em especial para as pessoas que foram adolescentes nos anos 90, seu trabalho conserva um doce chamado nostálgico, convite a uma época mais simples. A meu ver, John Woo faz parte de um seleto grupo de cineastas e artistas por quem reservei muito apreço enquanto crescia. Aos quinze anos, recheava as paredes do quarto com pôsteres de todos aqueles filmes e estrelas. Claro, na época, tentava substituir um enorme vazio interior com aquelas imagens fantásticas, mas então não sabia que um mero minuto de eucaristia teria me dado tudo o que os filmes jamais conseguiriam. De qualquer modo, por todas essas obras de arte do cinema, eu sempre terei singelo carinho, e se o texto levar meia dúzia de leitores a conhecerem a filmografia de John Woo, terei retribuído o mestre do cinema por todo o bem que me fez, em particular. Eu me recordo de 1995, quando "Fervura Máxima" foi trazido aos cinemas brasileiros com quatro anos de atraso (afinal, foi filmado em 1991) e exibido no circuito de arte: eu tinha quinze anos, minha mãe levara a mim e a um grande amigo para vermos o filme, e assistir à obra-prima de John Woo na tela grande, naquela noite distante de 1995, foi uma experiência mágica, até agora muito fresca na minha memória. Mesmo hoje, quando passo pelo espaço no shopping onde existia o cinema onde vimos o filme, arrepio-me ao me recordar das pessoas em suas poltronas assistindo ao espetáculo eletrizadas. Quando criança, eu sonhava em ser cineasta, e queria me tornar uma espécie de John Woo. Aqui, ao examinar quão pouco se sabe da vida na adolescência, descrevo meus sentimentos com uma fala do sr. Clint Eastwood, em "As Pontes de Madison". O sr. Eastwood afirma: "Os velhos sonhos foram bons sonhos. Eles não se realizaram, mas foi bom tê-los". E então: o que você está esperando para procurar ainda hoje a obra de John Woo, o maestro do balé da violência?

quarta-feira, 31 de janeiro de 2018

Verônica ("Verónica", 2017, Espanha, Paco Plaza) Ela só queria brincar com o jogo do copo, mas alguém atendeu a seu chamado.

Baseado em fatos reais. Madri, 15 de junho de 1991. Às 01:35 de uma madrugada chuvosa, a polícia recebe o desesperado telefonema de uma família, e enquanto a despachante tenta manter a pessoa na linha até a chegada dos socorristas, dois carros correm para atender o caso do bloco n° 08 da rua Gerardo Núñez. A vítima mal pode conter o terror e explicar satisfatoriamente a natureza da emergência. "Está dentro, está dentro", a pessoa insiste, levando a despachante a imaginar, compreensivelmente, que se trata de uma invasão domiciliar. O inspetor e os policiais chegam a um condomínio de blocos residenciais, e já se pode notar certa comoção entre os moradores, reunidos no pátio, por conta da gritaria vinda do apartamento em questão. Três crianças choram na calçada molhada, e, bastante assustada e confusa, a mãe chega naquele instante para abraçá-las. O detetive e dois policiais entram com lanternas e pistolas em riste, e encontram um cenário de desolação repleto de detalhes macabros, como símbolos esquisitos rabiscados à lápis de cera pelas paredes do corredor e um crucifixo no chão. Cautelosos, ao abrirem a porta da sala-de-estar, seus rostos se enchem de puro pavor ao testemunharem uma cena cujo teor, nesse ponto, ainda não nos será revelado. O filme, então, volta no tempo, para nos contar como os fatos se desenrolaram até chegar ao trágico desfecho.

A confusão começou três dias antes, e a trama se inicia apresentando o transcorrer de uma típica manhã na vida da menina Verônica (Sandra Escacena, em grande atuação), uma adolescente de quinze anos dedicada aos três irmãos pequenos: Lucia, Irene e o caçula, um doce, inocente menininho chamado Antoñito. Cabe à adolescente o compromisso diário de despertá-los e prepará-los para a escola. As meninas cuidam de certas incumbências, como pôr a roupa suja na máquina de lavar e preparar a mesa para o café da manhã; Antoñito exige mais atenção, pois, sendo o menor, costuma urinar na cama, uma resposta do subconsciente às tensões familiares que, logo mais, conheceremos melhor. Há certa urgência no ar. À mesa do café, as meninas procuram negativos de filme para o "grande evento". Um raro eclipse ocorrerá naquela manhã. No dia anterior, a coordenadora recomendou que as crianças trouxessem negativos para observarem, da cobertura do prédio, o belo fenômeno do encobrimento do sol pela lua. Verônica termina de amarrar os cadarços do tênis do menino, e, caminhando distraidamente pelo corredor, dá com o crucifixo no chão, uma espécie de presságio das coisas ruins por virem. Com cuidado, ela empurra a porta da suíte, e checa a mãe, adormecida sob os lençóis. O pesar com que Verônica passa a vista pelas fotos do pai sugere a razão da tensão, ou seja, sua recente morte. Deprimida e atarefada com os cuidados da pizzaria da família, a mãe, Ana, confia à filha as tarefas mais prementes do dia-a-dia. A senhora então desperta, e a adolescente recomenda que ela trate de descansar um pouco mais, pois cuidará dos afazeres.

Na sala de aula, a professora explica a dinâmica do eclipse. Verônica e sua melhor amiga Rosa não parecem interessadas nos slides. Elas trocam recadinhos através de bolinhas de papel, e Verônica aponta para a bolsa, indicando a tábua para o jogo do copo. A professora exibe um slide com gravuras medievais, e discorre sobre as superstições atreladas à ocorrência do eclipse, como a crença de culturas primitivas, crentes de que o céu reproduz o que ocorre na Terra. Por esse viés, o eclipse marcaria o período dentro do qual o mundo se encontraria submerso na escuridão espiritual. Chega o momento de subirem à cobertura para o grande evento. Rosa e Verônica conseguem despistar o grupo, e se encontram com uma terceira menina, Diana, para somente então partirem para o porão onde performarão o ritual do copo. Verônica deseja conversar com o pai, já Diana, ex-namorada de um rapaz falecido tragicamente num acidente de moto, tem seus próprios motivos para se unir ao círculo. Elas usam lanternas para encontrarem um canto apropriado para o ritual. Velas são acesas, e uma foto do pai de Verônica, preparada no meio do círculo. As meninas põem os dedos indicadores sobre o copo e convidam qualquer espírito presente a se manifestar.



Elas esperavam contatar o espírito do pai de Verônica ou Manolo, o ex-namorado morto, porém tudo o que conseguem atrair é um demônio malicioso. Enquanto as adolescentes tentam compreender o movimento aleatório do copo, as crianças e professoras daquele colégio católico assistem ao impressionante escurecimento quando a Lua se põe entre o Sol e a Terra. De fato, o acontecimento parece canalizar uma energia de outro mundo, pois mesmo os pássaros, em revoada, batem em retirada, alarmados. No porão, o copo subitamente estaciona sobre o ícone do sol, e se estilhaça, cortando o dedo de Verônica. As duas outras meninas, que jamais esperavam um encontro tão intenso com o sobrenatural, se afastam, mas Verônica, em transe, deixa que gotas de sangue pinguem sobre a imagem do sol, na tábua. Um pequeno fogo risca o tabuleiro partido, e logo se extingue, junto às velas. Rosa e Diana perdem Verônica de vista, e enquanto esta sobe as escadas para buscar ajuda, aquela penetra no breu com a lanterna para tentar encontrá-la. Verônica está prostrada no chão mais adiante, hipnotizada. Rosa se ajoelha ao seu lado e aproxima o rosto para escutar o estranho murmúrio da amiga. O que Verônica afirma a deixa estupefata. O conteúdo da fala será apresentado mais tarde. Subitamente, para o susto de Rosa, Verônica deixa o transe com um grito impressionante e consistente. Logo mais, ela desmaia.

Verônica desperta na enfermaria, com uma médica examinando suas pupilas. Ela lhe dirige uma série de perguntas, mas, afinal de contas, conclui que a síncope se deveu à baixa pressão sanguínea. Verônica apanha os irmãos e os faz prometerem que nada revelarão à mãe. Na saída, uma das meninas comenta que "Irmã Morte" as está "observando" da janela da diretoria. "Irmã Morte", na verdade, chama-se "Irmã Narcisa", uma freira idosa cuja cegueira lhe empresta um ar macabro e soturno, principalmente entre as sugestionáveis crianças. Aprenderemos, no transcorrer do filme, que a senhora tem razões para sua reserva, mas trata-se de uma boa pessoa com uma histórico pessoal muito trágico, envolvendo comunicação com o "outro lado". No caminho para o condomínio, as crianças dão uma passada na pizzaria. Como de costume, a mãe vê-se atropelada por tarefas perante os fregueses, e, impaciente, não lhes dispensa muita atenção, para a visível frustração de Verônica, que gostaria de lhe contar o ocorrido.

Não faz nem vinte e quatro horas que as adolescentes estupidamente mexeram com o jogo do copo, e já ao retornar ao apartamento, incidentes bizarros se precipitam muito sutilmente sobre a vida da garota, indicativos da presença de uma entidade malévola que seus olhos, despreparados, ainda não conseguem ver, ao menos diretamente. Verônica guarda a bolsa com a tábua partida em cima do guarda-roupa, contudo basta deixar o cômodo para que a mesma seja jogada ao chão. Na primeira vez, ela não pensa muito a respeito, todavia na segunda, depois que devolve a bolsa ao guarda-roupa, dá as costas e a mesma volta a ser atirada, se toca da presença da entidade do porão, agora no apartamento. As meninas e o garotinho se reúnem à mesa para o almoço, um saboroso prato de almôndegas, e o clima entre os irmãos é de pura descontração, até que Verônica se mete num inexplicável transe, estacionando o garfo diante da boca, como se não conseguisse engolir. Naquela tarde, as meninas atendem a uma ligação de Rosa, desmarcando o compromisso de se encontrar com Verônica no apartamento. Verônica estranha o fato de Rosa não ter pedido para falar pessoalmente com ela, e quando a adolescente retorna a ligação para a casa da amiga e a mãe de Rosa atende, a mentira cai por terra, pois a senhora inocentemente conta que a filha saiu com Diana e esperava que Verônica também tivesse ido ao encontro das duas. Por alguma razão, Rosa a evitou.

Ela dá um banho no irmãozinho, até ser interrompida por um barulho gerado na sala. Ao pôr a cabeça no corredor para pedir para as meninas se comportarem, Verônica constata que elas se encontram no outro lado do apartamento, de modo que não poderiam ser as autoras da comoção. Um brinquedo genius tem as luzes coloridas acionadas, sem que ninguém o tenha tocado, e a lâmpada do corredor dá sinais de instabilidade de tensão. Repentinamente, a porta do banheiro se encerra sozinha, e o garotinho começa a gritar. À custa de muito esforço, Verônica abre a porta e fecha a torneira. A água quente fora acionada, sem explicação aparente, e o incidente provocou queimaduras em Antoñito. Nada grave, mas definitivamente assustador. Ela consegue tranquilizá-lo, e o enxuga e o prepara para a cama. Pondo-o para dormir, Verônica passa pomada no peito do menininho, e se desculpa pelo descuido. Antoñito responde que a culpa não foi da irmã. Depois de lavar a louça, Verônica se prepara para a noite. Misteriosamente, a televisão aviva-se, com uma música radiante e banal de uma telenovela qualquer. A adolescente desliga o aparelho e finalmente se recolhe.

Naquela noite, ela sofre um horrendo pesadelo, onde encontra as irmãs encolhidas e atemorizadas dentro do guarda-roupa e, mais à frente, um vulto que a chama pelo nome. À medida que o vulto se aproxima, e penetra sob a cobertura da luz do abajur, materializa-se como o pai morto das crianças. Verônica recua, amedrontada, até cair com as costas contra a cama, de onde muitos braços surgem para segurá-la, enquanto o demônio se põe bem ao lado do colchão e enfia os dedos através de sua garganta. Ela desperta arfando por ar, e descobre que a manhã já se pôs em curso, de maneira que chegarão atrasados à escola. Durante a aula, sua impressão sobre Rosa se confirma quando a garota, ao invés de atirar bolinhas de papel com recadinhos para ela, manda-as à Diana, sua nova melhor amiga. As duas estão mesmo a tratando friamente. Desapontada, Verônica inventa uma desculpa qualquer para o professor e escusa-se para ir ao toalete. O semblante de Rosa, então, se fecha, uma manifestação do remorso que, naquele ínterim, faz suas expressões pesarem.

O porão passa a impressão de abandono. Tocadas pela escuridão, os móveis empoeirados e ferramentas inúteis dão ao lugar uma atmosfera opressiva. Pensativa, Verônica apanha a foto do pai, deixada no chão no dia anterior. Ela toma um susto quando Irmã Narcisa anuncia a presença ao se levantar da escada. Usando uma metáfora, a senhora discorre sobre como não se precisa de visão para saber o que há na mesa ao se sentar para o café: você sente o cheiro de canela, de pão quentinho, de leite, de café no bule, e percebe que olhos pouco importam para se guardar uma noção muito real daquilo que se encontra perante a si. Irmã Narcisa, evidentemente, refere-se à sessão do jogo do copo do outro dia, e de como, mesmo cega, consegue "enxergar" o ocorrido. Ela até mesmo menciona o machucado na mão de Verônica, provocado pelo estilhaço do copo, e lhe explica que a brincadeira do tabuleiro nada traz de bom. "Não importa com quem você quis falar, e sim a coisa que efetivamente te respondeu!", ela frisa, e, dando uma baforada no ar a sua frente, exclama para que "parem de se mover". Verônica retruca que não há ninguém ali, fora as duas, e Irmã Narcisa a corrige: "Você não está mais sozinha, algo respondeu a seu chamado e agora anda contigo". O sino do recreio trina com algazarra e põe termo à breve reunião. Verônica deixa o porão. Irmã Narcisa performa uma curta prece para o bem-estar e a libertação da adolescente.

Ao fim da manhã, Verônica resolve conversar com Rosa para esclarecer a situação da amizade. Agora, Rosa e Diana parecem melhores companheiras, e quando Verônica cita o jogo do copo como motivo para o esfriamento da relação, a menina reage meio constrangida. Diana se aproxima e menciona uma festa que as duas darão no apartamento de Rosa, naquele fim de semana, desastradamente provando que as desculpas da garota para o distanciamento - tarefas delegadas pelos pais - não passam de argumentos esfarrapados. Rosa parece ainda mais arrependida e envergonhada, mas Diana logo a toma pela mão e a leva dali, lembrando-a de que logo as lojas do shopping-center fecharão. Verônica fica parada, assistindo às duas se afastarem. Rosa ainda olha para trás e pede que a ex-melhor amiga apareça no fim de semana, para a festa.

Verônica foca-se nas recomendações de Irmã Narcisa sobre proteger os irmãos. Ela pesquisa meios de defesa espiritual em revistas do oculto, e encontra uma matéria a respeito de símbolos célticos capazes de afugentar demônios. Verônica reproduz os desenhos em folhas de papel e, enquanto as meninas brincam insuspeitas sobre suas camas, pendura as gravuras no teto, como uma espécie de amuleto, sem dar maiores explicações. Verônica é assomada à porta por batidas. A vizinha do andar inferior, uma senhora antipática por quem os condôminos nutrem aversão, reclama da "algazarra" das crianças. Verônica explica que ali ninguém está fazendo barulho, porém a mulher retruca que a impressão é a de que uma festa de arromba se encontra em curso bem sobre sua cabeça! Ela também cita uma mancha negra no teto. O borrão, pela posição, deve vir do quarto da unidade do andar superior, ou seja, do cômodo da adolescente. Em dado momento da noite, Verônica separa as roupas para levá-las para a lavanderia. Através das janelas vazadas, guarda boa visão do interior do apartamento e da janela do quarto das crianças. Distraída com a tocante visão de um pai que visita a filha entretida com os estudos, para lhe dar boa noite, alguns andares abaixo, Verônica deixa o lençol soltar-se do varal e cair. Depois de recolhê-lo e subir as escadas, ao retornar para a lavanderia, pela primeira vez, enxerga a forma materializada do demônio que a persegue, através da janela, transitando livremente dentro do quarto das meninas, enquanto uma voz semelhante a um prolongado chiado insiste em chamar seu nome pelo rádio de brinquedo.

O demônio se vale das luzes do jogo genius para criar uma película sobre a qual projeta a sombra contra a parede, tingindo-a com as cores produzidas pela fanfarra do escandaloso brinquedo. "Verônica" não foi o primeiro filme a tomar emprestado o potencial macabro do genius. Quem assistiu a "Atividade Paranormal: Marcados pelo Mal", já resenhado no blog, se recordará de que os criadores do melhor exemplar da franquia se valeram do mesmo expediente. Ao tocar com a sombra as folhas de papel onde a adolescente rabiscou o amuleto céltico, o demônio os consome com suas chamas. Uma grande confusão se precipita, e as crianças despertam, apavoradas. Agora, a adolescente anuncia que dormirão juntos, na suíte da mãe. Verônica acaba cochilando, e, em determinado momento da madrugada, acorda preocupada. Uma voz masculina gutural a chama pelo nome, até a sala de estar. A cena, muito bem coreografada, executa uma intrigante "mescla", pois gira em torno de um contexto onde "dois mundos se encontram". Explico: paralelamente à ação (Verônica entrando cautelosamente na sala, para proteger as irmãs de uma sombra, que ela enxerga através do vidro fosco no passadiço para a cozinha), se vale de um filme de horror espanhol dos anos 70, a que as meninas assistem, deitadas no colchão na sala-de-estar, e cujo estilo, datado e extravagante, acaba por embaralhar o drama que se confunde com a ficção exibida na telinha. Algo no estilo resgata a atmosfera daqueles nostálgicos filmes de horror de Dario Argento, como "Suspiria" e "Phenomena". Verônica reúne as irmãs na cintura, ergue o crucifixo em direção à porta e desafia o demônio. A porta é aberta, e as crianças suspiram aliviadas ao perceberem que se trata da mãe, em casa após uma estafante noite na pizzaria. Ana toma um susto ao se deparar com as crianças naquela inusitada posição. Ela ordena que os menores tratem de dormir, e vai conversar com a adolescente no quarto.


Para desgosto da mãe, Verônica revela sua brincadeira com a tábua dos espíritos, alguns dias atrás, e explica que só quis conversar com o pai. Há uma forte tensão entre mãe e filha, e a menina se queixa da ausência de sua ausência. Ana costuma exigir da filha o comportamento de mulher madura, pois ficou sozinha, no entanto, enterra-se nos afazeres para sublimar a dor da perda. A mãe pede para que a adolescente durma, pois conversarão melhor na manhã seguinte. Verônica sofre um novo pesadelo, onde desperta com os irmãozinhos pulando ao seu redor, em cima da cama. Mesmo esbravejando para que deixem de traquinagens, os irmãos a surpreendem com dentadas, e passam a devorá-la. Nisso, a mãe aparece, na cabeceira, e com uma expressão soturna, anuncia: "Necessito que você amadureça". Sangue jorra através do lençol, como se Verônica menstruasse pela primeira vez, copiosamente. Se momentos antes o diretor homenageou o estilo dos melhores trabalhos de Dario Argento, aqui, presta saudações a George Romero, mais especificamente a "Dia dos Mortos", de 1985, no que tange às gráficas cenas de canibalismo. O filme, aliás, deve compor o imaginário de Paco Plaza, pois mesmo anteriormente, na cena em que Verônica cai de costas ao colchão e vários braços pretos emergem para agarrá-la por todos os lados, temos uma possível referência à introdução do filme de Romero (última foto), quando a personagem de Lori Cardille é apanhada por inúmeros braços escurecidos saídos repentinamente da parede (também um pesadelo). Ao despertar, coberta de suor, Verônica nota a mancha de sangue no lençol; de fato, durante o sono, menstruou pela primeira vez.

Ao devolver um livro infantil à estante e perguntar por que Antoñito foi mexer com o mesmo, visto não ter idade para lê-lo, o garotinho a surpreende ao tagarelar sobre a visita do pai, na noite anterior. Segundo Antoñito, o pai o visitou para explicar que não demoraria a levá-lo. Angustiada, Verônica o orienta a não escutar o "pai" jamais, a tapar os ouvidos e gritar pelo seu nome, se ele retornar, pois assim virá a seu socorro. Ocorre-lhe a ideia de levantar o colchão do menino, e ela descobre uma mancha negra, como mofo, do outro lado. A mancha forma uma figura, como se o vulto de uma pessoa grande tivesse repousado naquele espaço. As camas das meninas também apresentam a mesma mancha. Verônica se recorda da vizinha encrenqueira, quando apareceu dias antes para se queixar de uma mancha negra no teto do apartamento, que, pela disposição das unidades, só podia vir do chão do quarto da adolescente. Disposta a agir, ela precisa de liberdade para investigar, e visita a mãe com as crianças, no restaurante. Como se trata de sábado, não terão de se apresentar no colégio. Verônica se justifica com a desculpa de terminar um dever de casa com Rosa, e Ana, acreditando, oferece-se a ficar com os meninos pelo dia.


Verônica visita o colégio, e encontra Irmã Narcisa absorta em reflexões no mesmo porão onde as garotas brincaram com o jogo do copo. Ao pedir por orientações, Verônica recebe de Irmã Narcisa a mais importante instrução para lidar com o mal: ela trouxe o problema para sua vida ao se esquecer de "fechar a porta", ou seja, despedir-se do demônio no âmbito do próprio jogo. Irmã Narcisa sabe o que fala. Quando tinha a mesma idade da aluna, sendo profundamente sensitiva, enxergava aparições que a enchiam de angústia, e não ficou cega por acidente. Na verdade, as feridas causadoras de sua cegueira foram provocadas pela própria Irmã Narcisa, desesperada para deixar de vê-las. Verônica encontra, numa banca de revistas, uma tábua do jogo do copo à venda, acompanhada por uma pequena brochura com recomendações básicas para o ritual. Ali, lê que não se pode terminar a sessão sem se despedir do demônio. Se uma pessoa não disser "adeus" após a sessão, a coisa permanecerá nessa dimensão. Quando Verônica aparece à porta do apartamento de Rosa, depara-se com a festa organizada pelas duas, Rosa e Diana, para a qual mal foi convidada. Rosa abre a porta com uma expressão apreensiva. Ela a convida a entrar, mas Verônica vai direto ao assunto, tentando explicar por que as três devem revisitar a tábua do jogo o quanto antes. Verônica reage nervosamente quando Rosa tenta acalmá-la, e basicamente invade o apartamento "na marra", vencendo uma porção de gente a lotar os cômodos, exclamando o nome de Diana. Os rapazes acabam a pondo para fora, mas Rosa ainda tenta colocar um pouco de senso na cabeça da colega. Com os olhos assustados, ela lhe conta que, naquela manhã, ao entrar em transe, Verônica repetira que morreria naquela data. Rosa se apavora quando enxerga a mancha roxa na mão de Verônica, prova do assédio do demônio. Aturdida com o choque de realidade, Verônica se dá conta de que, para todos os efeitos, ficou sozinha nessa aventura. Ela dá as costas para a amiga e vai embora.

Em desalento, Verônica caminha pelas ruas, com a cabeça encurvada sob o peso de maus pensamentos. Aqui, há um interessante momento, quando ela gradualmente desperta para a presença de uma moça vindo do sentido oposto, na calçada, e só um pouco depois se toca de que se trata dela mesma. Verônica cessa os passos, se vira e enxerga a si mesma, em um breve encontro com o sobrenatural, alusivo ao marcante "mockumentary" australiano de 2008, "O Segredo do Lago Mungo". A movimentação na pizzaria aumenta exponencialmente nos fins de semana, porque os fregueses se reúnem para confraternizar e assistir às partidas de futebol pelo televisor. Como de se esperar, Verônica encontra a mãe metida num entra-e-sai, da cozinha às mesas, com os pratos. Ana fica feliz ao vê-la, comentando que já era hora de ela ter aparecido, pois as crianças precisam ir para casa. Verônica se empenha em comunicar a natureza de seus medos. Ana, uma excelente mãe, se esforça, contudo o problema reside na sua descrença nas "estórias" da filha, e no desconhecimento da real gravidade do problema. Ela promete reservar um tempo para as crianças no domingo, como se um mero passeio fosse resolver tão terrível impasse. Verônica desiste de pedir socorro à mãe, e volta para o apartamento, para o duelo final.

Verônica junta os dois pedaços da tábua e a conserta. Ela orienta Antoñito a desenhar o símbolo celta de proteção nas paredes do corredor, para a guerra espiritual. O tempo chuvoso reflete o estado de ânimo dentro do apartamento. Alguns minutos antes da meia-noite, Verônica inicia a tentativa de contato através da tábua. As três irmãs sentam-se no chão, formando um círculo, ladeadas por velas. Verônica começa a elaborar perguntas para a entidade, pedindo para que a mesma anuncie sua presença, se for o caso. A porta da sala-de-estar fecha-se solitariamente. Verônica afirma que realiza a sessão para se despedir da entidade, para que parta e não os incomode mais, todavia a coisa se nega a obedecer. As três meninas entoam uma música alegre, a da novela, usando-a como mantra para afastar o demônio. Uma série de batidas nas paredes deixa os nervos das meninas à flor da pele. Um sopro espontâneo e inexplicável extingue as velas, e o copo sai rolando, obedecendo a um comando invisível, até ir de encontro à porta de um quarto fechado.

Verônica abre a porta, e se ajoelha diante da mancha do colchão. Um braço negro emerge da superfície, e por pouco não a puxa para dentro. As manifestações do demônio ganham envergadura, e um corpo esguio "vaza" da cama, ganhando uma fisicalidade ameaçadora e urgente. Plaza novamente tira o chapéu para outro clássico do passado, porque aqui acena para um dos momentos mais brutais de "Hellraiser 2", quando Julia emerge do colchão como uma forma grotesca reduzida a músculos e sangue, acopla-se a um doente mental debilitado que se auto-mutilara a golpes de navalha, e se alimenta de seus nutrientes até deixá-lo como uma casca sem vida. A adolescente corre para a sala-de-estar e liga para a polícia. Tamanho o nervosismo, não obtém êxito em comunicar razoavelmente a situação explosiva, e entendemos que a cena se reporta ao começo do filme, quando policiais atenderam a ocorrência na Rua Gerardo Núñez. Durante a confusão, Antoñito é apanhado pelo demônio, e arrancado da sala para o corredor. Uma frenética busca se inicia pelos corredores, até Verônica escorregar no banheiro e bater com a cabeça no chão. Ao recobrar a consciência, pega o irmão nos braços e corre com as meninas para fora do prédio. Em termos de iluminação e claustrofobia, a sequência nos lembra o clímax do excelente "Insidious", de James Wan, com a família Lambért tentando resgatar o filho mais novo do limbo, e o mundo sobrenatural mescla-se ao natural, gerando um pavoroso "meio termo" entre as duas realidades, habitado por gente e também por espíritos atormentados.

Só depois de alcançar a segurança da calçada, Verônica enxerga a ardilosidade do demônio, pois Antoñito, diferente do que pensava, não se encontra nos seus braços. O demônio criou uma ilusão para levá-la a crer na salvação do irmão, mas ali na calçada só há as duas irmãs. Determinada a tirá-lo com vida do apartamento, ela retorna sozinha para a zona de guerra espiritual, mais reativa do que nunca. Objetos são atirados durante a passagem da adolescente pelo corredor, e as luzes, instáveis, atingem picos como se o prédio estivesse sofrendo intensas variações de tensão. Verônica encontra Antoñito dentro da banheira. Ao prestar atenção ao próprio reflexo, Verônica se dá conta da direta e gradual influência do demônio sobre seus pensamentos. Com um pedaço de vidro do espelho quebrado e um olhar perturbador, Verônica chama pelo irmão, agora à solta dentro do apartamento. Caminhando vagarosamente pelo corredor e movida a más intenções, Verônica traz consigo o demônio nas costas. A sombra da coisa se movimenta através da superfície da parede, e vai rasgando pôsteres até se deter diante do guarda-roupa e abri-lo, revelando a criança atemorizada. Com as mãos nos ouvidos, Antoñito obedece as instruções dadas pela irmã noutra oportunidade, a recomendação de que não desse ouvido ao demônio e apenas a chamasse pelo nome. Diante da firmeza do irmão, Verônica reage `a poderosa influência do demônio sobre sua mente. A entidade tenta corromper seu coração, para conseguir que ela cometa alguma maldade contra a criança. No derradeiro momento, o amor por Antoñito fala mais forte do que as sugestões diabólicas, e, preferindo a morte a fazer mal ao irmão, ela golpeia o próprio pescoço com o pedaço de vidro, bem no instante que o Inspetor e os dois policiais militares entram no apartamento (como visto no início do filme). O inspetor e os policiais testemunham os últimos segundos de vida da adolescente. Ela é flagrada praticamente levitando, em uma posição irreal, explicável somente pela assunção de que uma força invisível consegue ampará-la. Na calçada, com muita dor, Ana pressente a tragédia. Ela esbarra com os paramédicos removendo a filha na maca, ainda com vida, e, numa cena comovente, tem a oportunidade de chamar a adolescente por nomes doces, uma manifestação do amor materno. Lamentavelmente, Verônica não resiste ao ferimento, e morre.

Na cena do crime, o inspetor vistoria o recinto, ainda apegado à crença nas explicações racionais. Ele queima os dedos ao tocar num porta-retrato com a foto de Verônica, e se surpreende quando o mesmo sofre combustão espontânea. As luzes retornam como se nada tivesse acontecido, bem no instante em que recebe pelo rádio a notícia da morte da adolescente. Na escuridão do gabinete, de volta à delegacia, o inspetor se debruça sobre a máquina de escrever, atônito em face de fatos muito além de sua capacidade de compreensão como homem de polícia, homem de ciência. Ele acende um cigarro, contemplativo, até finalmente se pôr a descrever a dinâmica dos estranhos fatos. Um texto conclui com os seguintes dizeres: "Em quinze de junho de 1991, o inspetor da polícia José Ramon Romero (Inspetor Negri, no caso real) acudiu o domicílio situado na rua Gerardo Nuñes, número oito, em Madri, respondendo a um chamado de emergência. Na colhida dos depoimentos, familiares da menina explicaram que após ter participado de uma sessão do jogo Ouija, a jovem havia começado a manifestar uma série de estranhos sintomas, e que fenômenos paranormais tinham começado a se suceder dentro de casa. Dois dos agentes que inspecionaram o imóvel subitamente precisaram abandonar o lugar, depois de terem sofrido de fortes náuseas, vômitos, tremores e perda de visão, e permaneceram duas semanas de licença do serviço. Um mês após os eventos, o Inspetor Romero solicitou a transferência a outro distrito policial. Em seu relatório, testemunhou a ocorrência de fenômenos qualificados literalmente como 'sob qualquer ponto de vista, inexplicáveis'. Trata-se do único relatório policial na história da Força espanhola onde um policial presta testemunho de atividades paranormais".

2017 foi um ano espetacular para o gênero fantástico, riquíssimo em motivos para o regozijo dos cineastas estrangeiros de horror, sobretudo aqueles com um forte vínculo com a Espanha e sua cultura. Embora mexicano, o cineasta Guilhermo del Toro, último vencedor do Globo de Ouro como melhor diretor por "A Forma da Água", começou a chamar a atenção há aproximadamente dezesseis anos, com "El Espinazo del Diablo", uma nostálgica, melancólica estória de fantasmas ambientada nos terríveis últimos dias da sangrenta guerra civil espanhola, em um orfanato esquecido no escaldante deserto. O filme o "colocou no mapa", e mesmo que grandes filmes de estúdio tenham sucedido "El Espinazo del Diablo", o romantismo sobrenatural deste ainda está para ser repetido por del Toro. Outro diretor que já mostrou a que veio, e que em 2017 lapidou o próprio talento a ponto de lhe reinventar com elegância, foi Paco Plaza, o cineasta por trás do excelente "Verônica". Os fãs do terror, entretanto, já se lembram de Plaza desde 2007, quando tomou o cinema fantástico de assalto com sua visão particular de inferno.

Naquele tempo, Plaza e seu amigo Jaume Ballagueró foram laureados nas passagens pelos principais festivais europeus com o impressionante "[REC]", uma intrigante adição ao nicho que poderíamos classificar como "filmes de George Romero", ou seja, tramas envolvendo pessoas em cenários apocalípticos sob o assalto de uma ameaça exterior, seja uma horda de mortos-vivos, seja uma de maníacos sexuais com estupro em mente ("Shivers", de 1975, de David Cronenberg). Em "[REC]", Plaza & Ballagueró ambientaram o drama em um condomínio fechado de Barcelona onde, aos poucos, emergem sinais de uma infecção por uma poderosíssima variante do vírus da Raiva. "[REC]" gerou duas boas continuações e um fraco último filme, bem como uma excelente refilmagem, comandada por John Erick Dowdle & Drew Dowdle, os irmãos responsáveis por "The Poughkeepsie Tapes".

Após o sucesso de "[REC]", aguardávamos o próximo passo de Paco Plaza (foto). Não obstante se pensasse que o cineasta se renderia ao sistema dos grandes estúdios e filmaria um projeto nos moldes da mesmice do gênero fantástico, as consequências da aclamação guiaram Plaza a uma direção diametralmente oposta, e o resultado, "Verônica", exibe o charme e a melancolia européia que nos conquistaram previamente com "[REC]", há dez anos. Diferente de del Toro, que após o fantástico, profundo "El Espinazo del Diablo" mudou-se com malas para Hollywood e lançou "Blade 2", "Hellboy 1 &2" e "Círculo de Fogo", Plaza preferiu "ficar em casa", para a sorte dos apreciadores dos filmes cult, e rejeitar a conformação a regras e paradigmas de um modelo que dá sinais de sistêmico cansaço. Assim como outros grandes artistas estrangeiros antes dele, Plaza parece inclinado a ditar o próprio ritmo, e determinado a não se distanciar do estilo que melhor lhe serviu. Infelizmente, sabemos o preço pago, criativamente falando, quando um talento é "importado" para Hollywood. O francês Pascal Laugier, criador dos polêmicos "Martyrs" & "The Tall Man", tem muita história para contar, pois sentiu na pele a dor do desapontamento quando, após o sucesso de "Martyrs" no circuito europeu, foi "convidado" a integrar o sistema dos estúdios, e teve de ver os sonhos ruírem quando produtores praticamente o deixaram de mãos atadas, criando toda sorte de entraves para impedi-lo de rodar a sua poderosíssima reimaginação para o clássico "Hellraiser". Laugier saiu da experiência bastante magoado. O chinês John Woo, o poeta da violência, espécie de "segunda vinda de Sam Peckinpah", deu a Jean Claude Van Damme seu mais sólido veículo, "O Alvo", em 1993, após ser "adotado" por Hollywood, tendo feito história na China com suas obras-primas "A Better Tomorrow" & "Hard Boiled". Tudo o que veio depois, em Hollywood, infelizmente, desapontou os fãs da poesia de Woo, uma sucessão anti-climática de superproduções chatas estreladas por nomes famosíssimos, sem uma gota da saudosa paixão, tão palpitante no período chinês da carreira. Woo só reencontrou a inspiração ao dar as costas para a América, regressar à China e redescobrir suas raízes. Seus fãs devem saber que o novo "Manhunt", em vias de lançamento, marca o reencontro de Woo com os "cop thrillers" icônicos recheados de cenas de tiroteio e banho de sangue em câmera lenta, emblemáticos de suas verdadeiras convicções. O brasileiro José Padilha fez por merecer um convite para filmar lá fora após a recepção dos ótimos "Tropa de Elite 1 & 2". Hoje, sabe-se que a refilmagem de "Robocop", um filme um tanto quanto raso, não traduziu as verdadeiras intenções do ótimo cineasta, vítima da interferência do estúdio, do "pessoal do dinheiro". Paco Plaza presta um favor a si e se poupa da desilusão. Não se sabe quais foram os convites feitos pela América ao diretor, todavia se o preço da recusa foi "Verônica", sua esnobada valeu à pena.

Plaza escolheu um tipo de filme cujos elementos, quando esmiuçados, contrastam duas formas - européia & americana - de se contar estórias. Nos Estados Unidos, o recente "Ouija" também nos brindava com uma trama muito parecida, sobre jovens desavisados que cometem um grave erro ao mexer com o jogo do copo e despertam um espírito malévolo e atuante, engajado em destruí-los. Distingue-os, outrossim, o tom utilizado pelos criadores. Como gostos diferem pela dosagem, há aqueles mais afetos à tristeza de "Verônica", e outros, interessados em uma maior movimentação, com um desfecho bem-amarrado e apto a satisfazer as suas expectativas. As qualidades clássicas de um típico "crowd pleaser", de um "blockbuster", saltam mais aos olhos em "Ouija", onde ritmo suplanta credibilidade. Sustos e ações ganham vida graças a bem-orquestrados efeitos visuais, valendo ao produto a energia cinética de algo alinhado a "O Chamado", com direito à familiar estrutura narrativa baseada numa heroína que, para vencer o mal, precisa correr contra o tempo numa aterrorizante aventura investigativa cheia de revelações e reviravoltas. Comparada a "Verônica", "Ouija" satisfará melhor o gosto de quem aprecia um estilo de horror digerido em salas multiplex barulhentas, com os amigos, em uma sessão regada à pipoca. "Verônica" supera o similar americano, por outro lado, se desprezarmos ação em favor de certo requinte europeu, de certas sofisticação e elegância não encontradas no mise-en-scène do espetáculo inconsequente ou no barulho do horror pelo horror. Com efeitos especiais assinados pela equipe de produções como "O Vingador do Futuro" e "Transformers", "Ouija" colore as terríveis mortes dos personagens com excessos, e as aparições da vilã, o espírito da menina de boca costurada, concebida com a acuidade visual dos grandes estúdios, concede à estória um impressionante ar de espetáculo. Modesto em efeitos, "Verônica", na contramão, não pretende ingressar no clube do "cinema espetáculo", e ao adotar um approach mais dramático e pesaroso, ganha a autenticidade que, no caso de "Ouija", passa longe. E eis o diferencial: "Ouija" nos carrega com os altos e baixos da montanha-russa; já "Verônica", sendo mais quieto e gentil em concepção, nos cativa pelo significado dos momentos silenciosos, pela doçura com que crianças reagem à tragédia, e pelo realismo envolvido nas consequências de uma morte familiar, o que, diferente de "Ouija", nos estimula a refletir. Sob as variáveis da vida, a verdadeira tragédia tende a se insinuar sem glamour ou efeitos visuais. Se, para efeito de comparação, "Ouija" foi o passeio na montanha-russa, "Verônica" propõe uma experiência mais meditativa. Um passeio na montanha-russa tende a deixar nossas lembranças do instante em que saímos do trem, afinal não há significado mais profundo, uma montanha-russa, afinal de contas, foi projetada para entreter. Uma proposta mais européia e sofisticada, entretanto, deixa um sabor mais duradouro. Não leiam minha constatação de modo equivocado. "Verônica" oferece, sim, sequências muito bem coreografadas, porém Paco Plaza as realiza com o comedimento de, digamos, James Wan, nos dois "Insidious". O demônio do filme de Plaza ganha fisicalidade como uma elegante sombra sem expressões dada a projetar-se nas paredes dos quartos e mover quadros e objetos com as mãos, como uma perene presença no seio daquela família madrilenha, nas linhas do demônio chegado a aparar as unhas enormes no amolador do primeiro "Insidious", ou da simplicidade visual, no segundo, da "Mãe de Parker Crane", uma aparição graficamente incômoda e tensa. As manifestações do demônio também foram criadas com a simplicidade de técnicas muito antigas e mecânicas, quase sem retoques de efeitos digitais, uma ode ao compromisso com o realismo. A cruz de Jesus Cristo, sob o constante ataque que a lança da parede sem tréguas, e os objetos e móveis, atirados por forças invisíveis, resgatam lembranças da eletrizante, sóbria eficiência de "O Exorcista", cuja protagonista, aliás,  convida para si o demônio Pazuzu através do mesmo erro, mexendo com a tábua do jogo dos espíritos. As duas personagens, também similarmente, vêm de lares desfeitos, e a pressão das respectivas tragédias sobre suas mentes parece abrir a pequena, ideal fresta para a entrada do invasor. A ausência da figura paterna, seja pelo divórcio, no caso da menina Reagan de "O Exorcista", seja pela morte, no caso de Verônica, as seduz à desesperada procura para suprir uma lacuna impossível de ser satisfeita, ao menos pelas coisas desse mundo. Os resultados são desastrosos. Diferentes nas vertentes criadas pelos seus respectivos calvários, Reagan e Verônica dividem, entretanto, o mesmo chamado de sereia, pois os que as seduz à tábua é a irresistível palavra ilusória do demônio, prometendo uma perfeita felicidade que nada desse mundo poderia, no frigir dos ovos, proporcionar.

A protagonista, Verônica, interpretada pela atriz Sandra Escacena, nos é apresentada como uma menina absolutamente comum, dotada de uma espécie de conhecimento de vida advindo da dor, o que a torna uma espécie de mãe substituta para os irmãos pequenos. Mesmo sem jamais perder de vista as pesadas responsabilidades de Verônica naquele carente contexto familiar, o diretor Plaza foge da armadilha de pintá-la como uma espécie de mártir. Sim, ela sofreu uma imensa perda, e a ausência temporária da mãe a sobrecarrega com responsabilidades irreais perante as crianças, porém as interações com as amigas, no colégio, ou com os irmãozinhos não nos deixam perder de vista que, independente da ocasional melancolia externa, ela é só uma adolescente com direito a pisar nas armadilhas de sempre, porque somente precisa de tempo para amadurecer. A construção do caráter, muito justa, indica a preocupação do também roteirista Plaza em nos oferecer um filme inteligente e fora do lugar comum, um esmero verificado mais regularmente em pequenos filmes de horror, como o recente "Starry Eyes", um projeto fundado no âmbito da campanha na internet, realizado com baixo orçamento, riquíssimo na caracterização de personagens, todos donos de vozes e personalidades interessantes. Ángela Fabián e Carla Campra (uma espécie de "Rachel McAdams da terra de Cervantes") auxiliam o diretor Plaza a criar em Verônica uma presença humana, deliciosamente honesta, pois o convívio entre as três meninas injeta verossimilhança à proposta de lugar/espaço usada como palco para a estória, Madri, em 1991. Suas conversas e pequenos planos nos transportam para um específico tempo nas nossas próprias vidas, quando o mundo, menor que fosse, incutia empolgação, vez que mágico, preenchido por vinhetas compostas por expectativas e brincadeiras nos corredores do colégio, por conversas secretas sobre colegas de classe objetos de nossa devoção, romanticamente falando, pela execução das pequenas traquinagens típicas de adolescência, como se aproveitar da viagem dos pais para organizar uma festa dentro de casa. Chama-me a atenção a sensibilidade com que o roteiro desenvolve a proximidade entre Verônica e Rosa, afinal, mais tarde, quando mesmo depois de nos ter sugerido tão inquebrantável elo, as meninas se afastam por causa da interferência de uma "forasteira", Diana, a sacada retrata com muita fidelidade a transitoriedade de qualquer relação humana, e a confusão da protagonista perante o choque do desmoronamento de uma amizade tida como sólida reflete o despreparo quando se é jovem, e, desavisadamente, espera-se do mundo ou das pessoas perfeição e absoluta felicidade. Verônica continuará a se permitir caminhar voluntariamente para dentro de tempestades onde o único desfecho será o de um coração partido, até que o tempo se encarregue de cumprir com seu papel, dar-lhe a compreensão que do momento que se nasce ao que se morre, viver demanda um constante exercício de eliminação de mentiras, algumas fundamentais, outras menores, incrustadas em nossas almas e responsáveis diretas pela miopia com que enxergamos e reagimos equivocadamente às coisas próprias do mundo, um lugar de certa beleza onde, sim, é possível alguma bem-aventurança, mas uma alegria acompanhada por um pouco de frustração; felicidade, por um pouco de tristeza; prazer, por um pouco de dor. Foi o ator Sylvester Stallone quem disse a James Lipton, do Inside the Actor's Studio, que a vida fatalmente arrancará, aos poucos e inexoravelmente, para cada um de nós, camadas e mais camadas de trivialidades, até nada mais restar, que não o essencial. Em outras palavras, apenas constatou os fatos da vida com uma descrição muito didática e visualmente bela, não tão bela quanto uma outra, que desemboca na mesma conclusão, apenas a descreve mais sublimemente: a representação de viver encontra correspondência na imagem de uma longa e feliz noite de núpcias, e, por consequência, também na de uma lenta caminhada rumo à lua de mel. Você não precisa ser necessariamente casado para compreender o impacto da alegoria, pois mesmo os solteiros presumirão quão especial é para duas pessoas que trocaram alianças a privacidade da noite vindoura. Até o grande momento, o do bem-vindo silêncio da privacidade entre marido & mulher enfim sós, há uma etiqueta a se seguir, uma escalada até o clímax, ou, melhor escrevendo, uma festa de núpcias cheia de convidados inesperados de última hora, cujas mesas visitamos, para abraçá-los e derramarmos juntos algumas sufocadas lágrimas salgadas e gostosas, vindas de algum lugar sincero do coração. "Eu estou feliz por vocês, boa sorte!", os convidados fazem votos, ao apertarem as mãos dos recém-casados, todavia será quando a noite começar a avançar e o salão a esvaziar que se assentará na convicção dos consortes a real escala de felicidade possível aqui na Terra, a medida de uma felicidade que necessariamente implica em um pouco de tristeza; da alegria do reencontro, temperada com uma pitada de frustração ao se dizer "adeus"; de prazer,  embaralhado por um pouco de dor, sobre o qual Clive Barker escreveu e filmou de modo tão magistral em "Hellraiser". A política da vida se confunde com a noite de núpcias, e convidados estão constantemente se levantando das mesas para nos parabenizar e nos deixar a sós, à medida que a noite se aproxima do desfecho e a orquestra vê seu repertório diminuir. E se por um lado o esvaziamento do salão de festas parece trágico, há um sabor de consolação na enorme expectativa de logo mais, quando consortes terão a calada da noite para o momento da consumação do compromisso, e tudo o que importa são as duas pessoas que trocaram alianças. Por mais que tenha sido o máximo reencontrar pais, amigos e familiares na grande festa do salão, não se caminha para a consumação do ato na suíte esperando-se levar consigo toda essa gente: a intimidade, ou melhor, as expectativas em torno da mesma, só serão liquidadas entre marido & mulher. Paralelamente ao desenrolar da festa, sucedem-se as perdas naturais da vida. Beleza, saúde, amigos: a perda desses bens corresponde aos convidados que deixam as mesas para se despedirem. No silêncio da suíte, depois que os convidados já se foram e marido & mulher se encontram para se amar por trás do manto da privacidade, temos o ser humano face a face com sua noiva, a própria mortalidade, quando nada mais lhe resta, a não ser se entregar com destemor aos seus braços, à consumação do ato, ou melhor, `a consolação de se saber que mesmo após a morte, você estará deixando para trás uma vida vivida sob compasso moral. E como acontece a objetos, cuja razão de existir jamais se encontra na coisa em si, e sim fora dela, a mortalidade crava nossos pés no chão ao nos lembrar que o mistério da cruz suportada por cada um nesse mundo jamais será respondido agora, somente mais tarde, uma vez encerrado o capítulo da curta estadia por essas paragens. Mas é mesmo como Sylvester Stallone declinou, no penúltimo filme do Rocky, de 2006, "Seja mais gentil e humilde para com o mundo, meu caro, e isso é só o começo da história, porque você encontra pessoas enquanto está subindo a montanha, mas as reencontra depois que começa a descer".

Uma competente campanha de publicidade bastaria para propalar o sucesso de "Verônica" no mercado estrangeiro, afinal o mérito dramático/criativo da produção se encarregaria do restante para chamar a atenção do público internacional e garantir um resultado muito superior a similares do gênero, um excitante entretenimento para as pessoas órfãs dos filmes de terror de James Wan, agora que o talentoso diretor parece ter deixado seus dias de "Insidious" e "The Conjuring 1&2" para trás, para se focar nos filmes de ação para o verão americano. Ainda, impressiona-me sobremaneira o fato de "Verônica" basear-se numa impressionante história real. O caso ocorreu em 1991, em um distrito de Madri conhecido como Vallecas, e vitimou uma menina chamada Estefania Lazáro (fotos). Duas semanas após a morte da avó, Estefania, então uma jovem aos dezoito anos, começou a agir de modo esquisito. Ela brincara com o jogo do copo, numa tentativa de se comunicar com a avó, e subitamente passara a sofrer convulsões, que evoluíram para ataques epilépticos. Os professores contaram à polícia que Estefania e as amigas haviam usado uma tábua na tentativa de contatarem espíritos. Durante a sessão, o copo se despedaçou, e, em seguida, materializou-se uma espécie de fumaça muito densa e escura. A fumaça desapareceu ao penetrar pelas narinas de Estefania. A partir daí, ela mergulhou em uma coma cataléptica, da qual jamais se recuperaria. A moça morreria algumas noites depois, em uma crise de gritos e convulsões, bem diante do olhar aterrorizado dos pais. A autópsia nada pôde apontar de verossímil para a súbita morte por paradas cardíaca & respiratória, levando-se em conta sua tenra idade. O verdadeiro horror, contudo, se introduziria na vida da família após a morte, com a eclosão de inexplicáveis fenômenos de poltergeist dentro de casa. Do banheiro, viriam os apelos de uma estranha voz feminina, clamando "mamãe, mamãe". Quando a porta era aberta, os familiares da menina nada encontravam. Isso ocorreria sempre de madrugada. Embora o quarto de Estefania tivesse sido fechado, lençóis e objetos seriam achados espalhados em uma grande bagunça pelo chão. Com o tempo, os pais e irmãos distinguiriam um rumor ao longo do corredor em direção ao quarto da garota. Não demoraria para que o som se aperfeiçoasse até virar uma clara, distinta risadinha "semelhante à de uma velha". Com a chegada do outono, no ano da morte de Estefania, a família recorreria ao expediente de empurrar móveis contra as portas, para evitar que as mesmas fossem abertas por uma força invisível e insistente. A precaução de nada adiantaria.

Um dia, uma foto de Estefania foi atirada da parede e sofreu combustão. O fogo se concentrou no rosto sorridente da garota morta. Vizinhos não demoraram a reportar sombras atravessando as paredes dos apartamentos. Na mais apavorante manifestação de poltergeist, as irmãs de Estefania despertaram de madrugada sob a forte impressão de assovios para o lado da porta, um som logo comutado em um grunhido intimidador. À medida que a luz do lado de fora da janela foi se assentando dentro do quarto, as meninas viram claramente uma sombra de rosto preto e sem expressões rastejar no tapete. Logo, a coisa passou a engatinhar maliciosamente em direção às crianças, ao mesmo tempo em que as bonecas nas estantes pareciam vivas, dada a força com que eram atiradas. Quando os gritos das meninas se avolumaram a ponto de atraírem os pais, o fenômeno esvaneceu. Em novembro de 1991, o inspetor da polícia José Negri e seus soldados atenderam a uma ocorrência no apartamento, às 02:40 da madrugada, depois de terem sido informados acerca de "sombras muito altas e estranhas", uma declaração interpretada por Negri, à primeira vista, como típico caso de invasão domiciliar. Seu relato impressionante serve como confirmação da atividade do poltergeist. Consoante declarações de Negri, eles assistiram a gavetas perfeitamente fechadas se abrirem sem nenhuma manipulação, e a uma toalha sobre a mesa do telefone exibir uma repugnante substância viscosa de cor amarronzada, como o babado de um animal selvagem, tipo um lobo. Negri visitou os quartos, onde assistiu a um crucifixo pôr-se de cabeça para baixo, sozinho, e ter a figura do Cristo extirpada, com um súbito impulso invisível. Negri relata como os cabelos da nuca se eriçaram ao visitar os cômodos, um sentimento confirmado pelos soldados. Mesmo hoje, tantos anos mais tarde, e tendo esgotado um leque de tentativas para lidar com a coisa, de visita de sacerdotes a exorcismos, a família declara que jamais se viu inteiramente absolvida do assédio do demônio, não obstante o antigo apartamento, hoje habitado por uma nova família, não mais servir de palco às manifestações. A "coisa", afinal de contas, parece atrelada a pessoas, e não a lugares. Nesse ponto, recordo-me da melhor cena de "Atividade Paranormal", quando o casal cuja residência serve de cenário para fenômenos insólitos recebe a visita de um parapsicólogo. Ao tomar o apontamento das reminiscências da moça, queixosa da condição de alvo dos tormentos sobrenaturais desde a infância, ele observa: "Então, se você me explica que se trata de algo que te seguiu de onde você morava aos oito anos, para outro lugar onde você vivia aos treze, e agora até aqui, parece-me que é com isso com que estamos lidando, com algo conectado a você. Minha área de expertise revolve lidar com fantasmas, foi como construí uma carreira, ajudando pessoas a contatarem entes falecidos, ou seja, espíritos de gente morta. Um demônio é algo diferente. Trata-se de uma entidade relacionada a algo não-humano. Há muito debate e discussão acerca da natureza desse 'algo', mas não é uma pessoa. Lidar com demônios não é minha área, sinto-me muito desconfortável com isso, e te digo, francamente, que sinto a presença da coisa nessa casa. Você não pode fugir disso, ela vai te seguir. Ela pode permanecer adormecida por anos. Algo pode engatilhá-la, tornando-a mais ativa, e ela tentará, de tempo em tempo, estender a mão para se comunicar". Outra história real semelhante ao caso de Estefania, onde a "cisma" do demônio provocou um tipo de assédio capaz de se estender por décadas, foi o caso da família Smurl, de West Pittston, Pensilvânia, já contado no apavorante filme "A Casa das Almas Perdidas", disponibilizado gratuitamente em sítios de vídeo.

Ainda sobre casos reais, há uma outra poderosa história que, com o tempo, se tornou uma espécie de lenda urbana, pois jamais foi esclarecida. O caso merece ser descoberto, e se assemelha bastante aos fatos do filme de Paco Plaza. Trata-se da história de uma senhora identificada somente como Clarita, que, em 1995, ligou para um programa de rádio mexicano. Naquela data, comemorava-se o dia das bruxas, e a rádio reservara o horário para contar estórias mentirosas de terror, numa grande gozação. Tudo ia bem, até essa senhora entrar ao vivo. Embora se pensasse que ela narraria alguma lorota, desabafou a centenas de ouvintes sobre o drama do filho. Após brincar com o jogo do copo, sua vida virara de cabeça para baixo, e estranhas manifestações haviam tornado a vida dentro de casa insustentável. Os senhores podem encontrar o vídeo com muita facilidade, basta procurar, no sítio de vídeos, pelo termo "O menino possuído - Caso Clarita". O cavalheiro responsável pelo vídeo realizou uma excelente pesquisa, e lhe cabem aplausos por ter redescoberto e disponibilizado o áudio da conversa, ainda arrepiante, mesmo depois de tantos anos. Desafio-os a escutarem até o final sem se inquietarem. "Verônica" rende um produtivo debate sobre a veracidade do jogo do copo. Muitos o tratam como uma grande diversão, e o fato de vir sendo comercializado como brinquedo pelo selo Hasbro indica a pouca seriedade reservada ao tabuleiro. O "valor" da brincadeira se deveria, nesse diapasão, ao enorme poder sugestivo da mente, aos sentimentos e impressões que a manipulação da "lenda urbana" despertaria. Há, todavia, um limbo de casos reais mal-explicados envolvendo a Ouija, e a zona cinzenta alimenta uma lacuna de mistérios. Só Deus, em Sua infinita graça & sabedoria, conhece a verdade por trás de tais segredos.

Digno de destaque, também, é o senso de intimidade com que o diretor nos leva à jornada de Verônica. Quando assistimos a filmes de terror demasiadamente fantásticos, desafiamos os nossos medos a uma distância segura, dado o absoluto abismo entre os eventos na tela e a realidade de quem lhes assiste. Clive Barker já falou algo nesses moldes, sobre como uma das melhores qualidades de filmes de horror consiste na simulação do medo, um convite a "vivê-lo" de maneira indolor. "Verônica", entretanto, foi concebido com tamanha fidelidade aos elementos da vida cotidiana de uma família comum madrilenha que seria impossível não nos vermos um pouquinho nas pequenas alegrias e enormes tristezas típicas do rito de passagem de toda criança/adolescente. Nesse sentido, a realidade dos personagens, por ressoar tão intimamente às coisas do nosso cotidiano, vale importantes pontos ao conjunto, revestindo-o com um refrescante aroma de familiaridade e empatia. "Atividade Paranormal: Marcados pelo Mal" se prestou anteriormente a semelhante propósito; dentre os outros filmes da franquia, sobressai-se como o mais instigante, e parte do destaque rastreia-se à genial sacada de sediar a trama no coração de um palpitante bairro latino em Los Angeles, uma cultura religiosa, vibrante e cheia de vida, apegada a valores como o da família. Em "Verônica", Paco Plaza volta as câmeras para a realidade de cidadãos espanhóis madrilenhos no começo dos anos 90, e nos reconecta a sensações que emergem em nossos corações, dada a tocante, doce sinceridade do resgate. Para imbuir o passeio pelo túnel do tempo de veracidade, utiliza uma trilha sonora cheia de batidas de sintetizadores, reminiscentes dos velhos filmes de John Carpenter, e, mais recentemente, de "Corrente do Mal". "Verônica", um filme que pertence ao seu próprio tempo graças aos fatos em torno do caso verídico, também veste com louvor um anacronismo muito peculiar, cortesia das escolhas e licenças artísticas adotadas pelo cineasta.

Finalmente, mas não menos importante, preciso reservar algumas linhas ao fundamental papel das crianças nessa estória. Em filmes de horror, a presença de atores-mirins sempre acaba atraindo como poderoso ímã as atenções, e "Verônica" não foge à regra. Em "The Babadook", um poderosíssimo drama sobre o demônio da depressão, o garoto Noah Wiseman conquistou corações no papel de Samuel, filhinho de uma mulher amargurada sob a perversa influência de uma "coisa", de um demônio chamado "Babadook", que, alegoricamente, poderíamos interpretar como a agonia do luto pela morte do marido. A representação de tal demônio, no filme, surge como uma figura triste e patética com um sorriso cartunesco e estúpido, metida em sobretudo e cartola ridiculamente enormes para seu real tamanho, uma horrenda, memorável representação para tão nefasto e sufocante sentimento. Em "El Espinazo del Diablo", uma evocativa estória sobre as relações viciadas entre adultos perversos dentro de um orfanato no meio do deserto, nos últimos dias da guerra civil espanhola, o obscuro segredo de um fantasma que assombra os carcomidos prédios do local se descortina perante nossos olhos através do ponto de vista das crianças, testemunhas acuadas de toda espécie de sexo corrompido e joguinhos psicológicos entre a "gente grande" em cujas mãos repousam seus destinos individuais. Com "Verônica", Plaza confia a responsabilidade às crianças, Bruna González, Cláudia Placer e Iván Chavero, que dá a performance excepcional. As duas meninas pequenas comportam-se com certa autoconfiança, porque mesmo como crianças, sendo as filhas "do meio", guardam melhor discernimento das demandas da vida. Antoñito, entretanto, nos arrasa pela tocante inocência. Por trás dos óculos, seus olhinhos assustados absorvem eventos muito além de sua capacidade de processamento. O amor de Verônica pelo menino, tangível nos detalhes, como o carinho com que dá banho ou passa pomada em seu peito para amenizar a dor das queimaduras, torna o destino da moça ainda mais trágico, não tanto por Verônica, e sim pela criança, sobre cujos ombros pesará a ausência. Tanto é verdade que filmes nos encantam em demasia, que costumamos construir castelos no ar, "imaginar" desdobramentos para aquilo que veio depois, para os personagens, uma vez encerrada a estória. Richard Linklater, o talentoso cineasta responsável pelas obras-primas "Antes do Amanhecer" e "Antes do Pôr-do-Sol", dizia algo nessas linhas, no "making-of" de "Antes do Pôr-do-Sol", de 2004. Ele afirmava algo sobre como qualquer filme que você faz continua existindo na sua mente, "especialmente esses dois (os personagens de Ethan Hawke e Julie Delpy), eles sempre permaneceram crescendo (no hiato entre o primeiro filme, de 1994, e o segundo, de 2004)". No primeiro, "Antes do Amanhecer", Julie Delpy diz algo parecido, num plácido, pequeno cemitério em Viena, ao personagem de Ethan Hawke. Ela confidencia ao rapaz o quanto lhe parece estranho contemplar aquela lápide de uma menina falecida prematuramente, aos quinze anos: todos os anos, ao ali passar, não deixa de notar a lápide, e vai para casa pensativa, refletindo que embora esteja ficando mais velha, a menina seguirá com seus quinze anos de idade. Retomando a análise de "Verônica", entre os demais personagens, Antoñito se destaca como a lembrança a se levar do filme, porque a ingenuidade e pureza de criança sempre roubam a cena. Como cada adulto um dia foi criança, qualquer um pode atestar que em nenhum outro tempo nossos canais se veem tão abertos. Faça um experimento e procure revisitar mentalmente um espaço/tempo quando, para parafrasear Coríntio 13:11, você pensava como criança, sentia como criança e falava como criança. Você dá de barato, afinal de contas, que reminiscências de um tempo a longo perdido não significam tanto assim, pois são tão inconstantes quanto o mundo daquela época. Ora parecem ocorridas há uma hora, ora há um século. A verdade, claro, encontra-se em algum lugar no meio.

Todos os direitos autorais reservados a Sony Pictures. O uso do trailer e das imagens é para efeito meramente ilustrativo da resenha.