quarta-feira, 29 de abril de 2015

"Monsters" & "Monsters: Dark Continent" Se vocês gostaram do último "Godzilla", conheçam os dois triunfos do cinema independente que devolveram integridade aos filmes de monstro!

Há 6 anos, uma sonda da NASA caiu na América Central, trazendo consigo germes de vida extraterrestre. Em pouco tempo, os esporos geraram os monstros, criaturas alienígenas enormes portadoras de tentáculos semelhantes a grandes lulas, de cujos corpos emana uma fantasmagórica e encantadora fosforescência avermelhada. Os monstros passam a se reproduzir ao Norte do México, próximo à fronteira com os Estados Unidos, o que leva a América do Norte a erguer uma enorme muralha em uma tentativa de isolar o problema. Os Estados Unidos mandam tropas para lutarem na região, e dia e noite, as cidades ao Norte são submetidas aos bombardeios dos aliados e à destruição das confusas criaturas, em uma guerra sem fim.


Andrew Kaulder (Scoot McNairy) é um jovem fotógrafo americano realizando imagens da zona de conflito. O México se tornou uma terra surreal, pois mesmo em meio ao cenário de pesadelo, há resquícios de ordem, alguma presença do Estado. Pessoas humildes tentam ganhar a vida em uma zona sobre a qual jatos e helicópteros passam o dia sobrevoando, e Monstros casualmente se aproximam para causar toda sorte de prejuízos, destruindo prédios e provocando mortes de civis em sua passagem. Aqui, importa mencionar o talento do cineasta Gareth Edwards para fotografia. As tomadas do México sob quarentena nos fazem pensar nas imagens que vemos diariamente do drama da Palestina. Tirando máximo proveito de locações (a produção foi rodada em Belize, México, Guatemala & Costa Rica), Edwards as utiliza como ferramentas para nos situar no contexto da história. A rotina massacrante de Kaulder é interrompida quando recebe inusitadas ordens de seu chefe: ele deve afastar-se de suas ocupações por alguns dias para encontrar a filha, Samantha Wynden (Whitney Able, esposa do ator Scoot McNairy na vida real), e trazê-la sã e salva aos Estados Unidos. Andrew a localiza em um hospital, onde a moça recebe tratamento para uma torção no punho, e após alguma insistência de um colega de trabalho, acata as instruções do patrão. A dupla embarca no próximo trem. A noite chega, e enquanto o trem segue vagarosamente a jornada, Kaulder tira fotografias das colinas por trás das quais emanam um fulgor dourado, produto do bombardeio dos jatos sobre os Monstros.

Para a má sorte dos dois, chegam informes durante a noite que os Monstros danificaram os trilhos mais à frente, obrigando-os a desembarcar e encontrar uma nova saída. Eles saltam do vagão em plena noite fechada, e encontram guarida na casinha de uma humilde família de um vilarejo. Para agravar a situação, a solícita e gentil senhora lhes revela que dentro de 48 horas qualquer travessia, por água, terra ou ar, será bloqueada por um período não inferior a 6 meses. O jeito fácil de Sam & Kaulder para com as crianças fazem a senhora perguntar se os dois são casados. Kaulder explica que ele e Samantha são apenas amigos, mas sentimos um doce flerte entre os dois. Na manhã seguinte, Andrew & Samantha se põem a caminho. Eles precisam alcançar o entreposto a pé. Na viagem, contam com a solidariedade de cidadãos locais, acostumados com as adversidades da vida naquela perigosa região. Os colonos lhes dão carona até a rodoviária, de onde apanham um ônibus. Gareth Edwards dirige essas miscelâneas da travessia com impressionante segurança, e em instante algum parece que estamos assistindo a uma obra de ficção. A interação entre os personagens e situações parecem muito autênticas e reais, a miséria, a simplicidade daquela gente… Quase como um documentário. Em meio ao rio, testemunham sinais da guerra entre humanos e vida extraterrestre nas ferragens de um tanque destruído e abandonado, ao alcance de uma população ribeirinha.

Ao chegar `a cidade portuária, Andrew & Samantha procuram o encarregado da administração de passagens por terra & água. Fortificada por cercas elétricas que mantêm as criaturas distante, mais lembra um complexo de casinhas e serviços de condições muito primitivas, uma espécie de grande favela. Há um vai-e-vem constante de helicópteros e ônibus. Aproveitando-se do fato de estar tratando com dois norte-americanos, o encarregado dá um preço super inflacionado, 5 mil dólares. Viajar pelo rio é luxo para poucos, a maioria dos cidadãos mais pobres precisa tentar a sorte na zona infectada. O casal usa o dinheiro do pai rico de Samantha para comprar bilhetes para a balsa que partirá muito cedo na manhã seguinte. Andrew e Samantha se hospedam em quartos separados de um pequeno hotel. Pela televisão, as últimas notícias do bombardeio local não param de chegar. Enquanto Samantha toma banho, vemos o fotógrafo fazendo um telefonema para o filho. Resultado de um breve namoro, o filho cresceu longe do pai, e Kaulder se sente culpado. Samantha também guarda seus dramas, sobre os quais aprenderemos mais tarde. 

A vida noturna na fronteira é muito agitada. Transitória por natureza, frequentada por pessoas de passagem, não faltam alternativas para quem busca sexo sem compromisso ou um pouco do esquecimento que o conhaque e o uísque têm a oferecer. De clubes noturnos de quinta categoria a biroscas, as portas nunca se fecham. Samantha & Andrew se divertem, experimentando as comidas locais e circulando em meio `a animada feirinha de pratos típicos. Mais tarde, assistem a uma procissão com velas, em homenagem `as mais de 5 mil pessoas mortas no conflito. Detalhe: não foram os Monstros os causadores do Horror, mas os bombardeios dos caças americanos. Depois de um desentendimento bobo, Andrew e Samantha se despedem pelo resto da noite, e o fotógrafo resolve se divertir com uma garota de programa, apenas para descobrir, na manhã seguinte, que a mulher esperou que caísse no sono para furtar os bilhetes. Samantha vai acordá-lo, apologética. Pela linguagem corporal parece arrependida pela discussão da noite anterior. Ela o convida para tomar café da manhã, antes de subir na balsa, no entanto ao vê-lo com outra mulher dentro do quarto, fica chateada. O clima de aproximação entre os dois azeda, e Samantha sai andando, entristecida. Kaulder parte em seu encalço e consegue detê-la, mas nisso a prostituta já "embolsou" o bilhete e caiu fora. Kaulder dá pela falta do bilhete tarde demais.

Samantha perde a chance de voltar aos Estados Unidos pela balsa, e agora precisa empenhar o anel de noivado para duas passagens por uma travessia mais em conta, a se dar por terra e por dentro da zona de quarentena. Há todo um esquema necessário para se cruzar a zona infectada, desde dinheiro para subornar oficiais ao pagamento dos guias por terra, que os levarão até o "paredão", a muralha que separa o México do sul do Texas. Quando Samantha troca o anel pelos bilhetes, fica claro que seu drama pessoal gira em torno do noivado, em crise. O relacionamento não anda bem das pernas. Valiosíssimo e incrustado de diamantes, o anel lhes custeia a jornada ao longo da faixa sob quarentena. Oficiais corruptos do Ministério da Saúde permitem sua passagem, e o casal é levado de camioneta `a beira de um riacho, onde sobe em um precário barquinho para cumprir parte da jornada por água.


O percurso pelo rio é tedioso e demorado. No caminho, o casal assiste aos reflexos da guerra, bem retratados por construções abandonadas e destruídas, por vilas de pessoas muito humildes, pelos restos de aviões e maquinário de guerra. O barquinho volta `a margem para abastecimento, e Samantha aproveita para se aliviar, urinando no mato. Eles escutam, mesmo muito distante, ao primeiro sinal da presença de Monstros na localidade. As criaturas emanam um choro gutural e entristecido. Embora distantes, os choros incutem nos homens a necessidade de terminarem de abastecer para voltarem ao rio o quanto antes.

Ao longo da travessia pelo rio, Samantha & Andrew têm a chance de se conhecerem melhor. Ele fala sobre o filho de 6 anos. A mãe era uma moça que Kaulder conheceu. Os dois se relacionaram por pouco tempo, 2 meses, até que alguns anos mais tarde ela ligou do nada lhe contando sobre a existência do filho. Andrew pediu para vê-lo, mas a ex-namorada fez a ressalva de que embora aceitasse a reaproximação, Andrew jamais seria "o pai", para todos os efeitos seu atual companheiro. Samantha parece tocada com a história. 

Em determinado momento daquela tarde, o motor do barco quebra, e eles se veem forçados a unir forças para consertá-lo. Eles passam uma noite muito tensa, e de madrugada, bem a tempo de o motor volta a funcionar, enxergam um fulgor vindo das profundezas d'água. Testemunham tentáculos subindo para apanhar os destroços de um jato e carregá-los ao fundo. Os viajantes se põem em movimento, e se afastam daquele ponto do rio, que acaba de se tornar extremamente perigoso. O dia começa a amanhecer, e `as margens Andrew & Samantha são apresentados ao grupo de guerrilheiros que os levará pelo último segmento da jornada `a muralha. Por um instante, congelam de Horror ao escutar um rumor muito próximo, mas respiram aliviados ao reconhecer que foi apenas uma vaca.


`A noite, acendem uma fogueira e trocam histórias sobre os Monstros. Um dos guerrilheiros conta sobre uma ocasião em que enxergou um OVNI enorme, cerca de 150 metros de diâmetro. Os mercenários dizem que se encontram em um ponto da floresta particularmente infestado. Vez ou outra, caças dão rasante para despejar arma química. Até mesmo as árvores estão infectadas, os guerrilheiros dizem, e então mostram a Kaulder & Samantha que os troncos parecem cobertos por um fungo sensitivo, na verdade a etapa que antecede a reprodução dos Monstros. Cansados, parte dos homens dorme ao redor da fogueira, enquanto a outra fica de vigília. Kaulder & Samantha têm um momento a dois, e ele se desculpa pela garota de programa da outra noite, pedindo para que não pense nele como um sujeito devasso e canalha.

Durante a madrugada, acordam assustados. Eles precisam continuar a jornada, e rápido. Por rádio, companheiros de guerrilha alertam o grupo para a presença de um Monstro enorme nas redondezas. Já se escuta o ronco dos motores de jatos executando voos sobre aquela parte da mata. Andrew & Samantha sobem na camioneta, e o comboio parte `a toda velocidade para tentar vencer o trecho até a fronteira. Para azar, um dos carros da frente morre. Andrew & Samantha recebem máscaras de proteção contra agente biológico. Repentinamente, a criatura gigantesca surge do nada, apanhando com os tentáculos a camioneta `a frente e a levantando como pluma ao ar. Os guerrilheiros do outro carro descem com as metralhadoras para enfrentar a "lula gigante", e também são mortos. Andrew & Samantha assistem a tudo do carro. O Monstro não lhes dispensa atenção, e parte, sumindo entre a névoa e as árvores mais altas.

A manhã chega, não há sinal de Monstro. Kaulder & Samantha descem e se deparam com o estrago deixado pela passagem do alienígena. Há corpos e pedaços de veículos por todas as partes. Kaulder fica surpreso ao reconhecer um dos corpos, a garota de programa com quem dormira dias antes. Ele deduz que a garota roubara a passagem não para si, mas para que algum filho ou ente querido tivesse a oportunidade de partir pelo meio seguro, a balsa, enquanto preferira tentar as chances na travessia mais arriscada. Kaulder se sente mal pelo ocorrido, colhe um par de flores e as deixa ao lado do corpo. O percurso final é vencido `a pé, o casal enfrentando a trilha ao longo de uma exaustiva tarde.


Andrew & Samantha avistam uma ruína maia, e ao escalá-la, surpreendem-se ao finalmente enxergar, logo do outro lado do rio raso, a enorme muralha que separa México dos Estados Unidos. Sentados no topo para observar aquela maravilha arquitetônica, eles parecem contemplativos, transformados pelas experiências que passaram. Kaulder pondera "É diferente olhar para a América do lado de fora, sentarmos aqui fora e olhar para dentro. Chegaremos em casa e será tão fácil esquecer tudo o que se passou. Amanhã retomaremos nossas vidas separadas, em nossas casas separadas, tudo pelo que passamos não importará mais". Kaulder se pergunta quantos anos teria uma das meninas mortas que vira na floresta. Samantha também parece emocionada.

Eles passam a noite nas ruínas, e no dia seguinte realizam a travessia, chegando ao outro lado e efetivamente pisando em solo norte-americano. O Texas virou uma terra de ninguém, uma cidade fantasma, deserdada por pessoas e fora da ingerência do governo. `A vista, apenas a ampla rodovia de acesso, e um silencioso vazio. Algumas casas estão destruídas, provavelmente resultado dos bombardeios. Uma senhora empurrando um carrinho subitamente surge, e quando Samantha lhe dirige a palavra, a mulher responde gritando, tendo obviamente perdido a cabeça. Samantha a observa se afastando com um olhar triste.

Ao final da tarde, após terem seguido com obstinação pela freeway, encontram um posto de gasolina abandonado, e conseguem contatar o Exército Norte-Americano. Eles fornecem a localização do posto, e a telefonista lhes pede que aguardem pelo Resgate, que logo estará ali para retirá-los. Agora que a jornada chegou ao fim, Samantha & Andrew resolvem ligar para seus familiares mais próximos. Está muito tarde, mas Andrew consegue falar com o filhinho. É a madrugada do dia de seu aniversário, e Andrew liga apenas para o felicitar e dizer o quanto sente saudade. Ao telefone, acaba se emocionando quando escuta a criança falando empolgada sobre o presente que ganhou. Em seu entusiasmo inocente, o menino não percebe que enquanto fala o pai chora silenciosamente. Samantha conversa com o noivo e diz que precisam conversar quando se encontrarem. Apesar da usual troca de "eu te amo", ao final da ligação, Samantha parece ter perdido, há muito, o encanto do primeiro amor. Andrew deita ao lado de uma das bombas de gasolina, pensativo. Ele é o primeiro a enxergar o enorme Monstro que silenciosamente se aproxima e fica bem sobre o posto: dentro do estabelecimento, Samantha só vai percebê-lo quando os tentáculos entram pela janela. Apesar de certa de que o Monstro a apanhará, surpreende-se quando seus tentáculos apenas afagam a televisão. As criaturas são atraídas por eletricidade, de modo que ao desligar o aparelho, Samantha deixa o Monstro desinteressado. A criatura se afasta, e nisso o casal se encontra do lado de fora para testemunhar o espetáculo. Há uma segunda criatura. Envoltos pelo breu, os Monstros emanam um fulgor avermelhado ao se deslocarem. As criaturas se tocam pelos tentáculos, e parecem chorar ao sabor do contato. Por um momento, é como se estivessem a bailar, um ritual de acasalamento. Depois de algum tempo de conexão, as solitárias, patéticas e tristes criaturas desaparecem engolidas pela noite, como se jamais tivessem existido, o estrondo de seus passos cada vez mais longínquo. Samantha & Andrew assistem àquela incomum cena de amor com lágrimas nos olhos, e entendem que humanos e alienígenas são muito semelhantes mesmo em suas diferenças, especialmente na expectativa de amar e ser amado. O casal se beija, e o filme termina.

O grande blockbuster de 2014 "Godzilla" lançou os filmes-catástrofes de monstros `a estratosfera, e seu retumbante sucesso de público & crítica valeu ao diretor, Gareth Edwards, o convite para rodar uma continuação ainda mais grandiosa, a lançar seu monstro principal, Godzilla, num confronto contra a Mothra & King Ghidorah. 2018 ainda parece distante, mas há muita gente salivando pela oportunidade de ver o que Edwards fará com o suporte de um grande estúdio, disposto a apoiar a sua visão, seja lá qual for. Antes de 2014, todavia, quando Gareth Edwards ainda se aperfeiçoava como especialista de efeitos visuais em documentários como "Na Sombra da Lua", foi o seu primeiro relevante trabalho como diretor, um pequeno filme independente produzido pela Vertigo a um custo de oitocentos mil dólares, que despertou fãs de ficção científica e grandes estúdios à sensibilidade & talento do cineasta. Edwards foi indicado a muitos prêmios importantes, o mais valioso deles o BAFTA, uma espécie de Oscar britânico, como Melhor Cineasta Estreante. "Monstros" não foi um sucesso estrondoso, mas assim como outras maravilhosas produções da Vertigo, como "w Delta z", mereceu uma espetacular carreira no circuito cult, e abriu as portas dos grandes estúdios para Edwards, que seria o homem responsável pelo renascimento de Godzilla.


4 anos após o lançamento de "Monsters", o filme ganhou uma continuação. Aqueles que realmente haviam amado o primeiro não esperavam muito de uma sequência filmada nas mais adversas circunstâncias. Seria difícil reproduzir os pontos fortes que tinham tornado o primeiro tão especial, e sua história de amor, espinha dorsal e parte do motivo pelo qual o original soava tão pessoal, não teria como ser revisitada, vez que o destino de seus protagonistas terminara bem resolvido. Eis que o praticamente estreante Tom Green conseguiu realizar uma obra que embora prestigiasse o original, agregava novos, próprios valores ao amplo imaginário do anterior. Embora distinto, a mesma brisa de frescor do original agracia a continuação, mais especificamente o ar elegante e artístico que o torna revestido de um estilo que o aproxima do cinema de arte europeu. Os filmes não dividem a mesma história, mas não há dúvida que pertencem ao mesmo pacote. 

Alguns anos após os eventos do primeiro filme, a quarentena imposta à América Latina falhou, e as formas de vida trazidas pela sonda da NASA vazaram para o restante do mundo. Quando o Oriente Médio passa a ser assolado pelos Monstros, agora maiores após o processo de seleção natural, assim como anteriormente feito com o México, os Estados Unidos enviam tropas para conter a ameaça. Caracterizada por um forte sentimento antiocidental, aquela região do Oriente Médio oferece riscos não apenas pelos Monstros, que parecem alheios e desinteressados, mas pelos insurgentes, que passam a sabotar o trabalho das tropas americanas. O que antes começa como uma missão de contenção se torna uma luta diária contra guerrilheiros locais. Veterano Sargento Frater (Johnny Harris) é o epítome do obstinado atirador de elite. Ele serve na Força há 17 anos, e se voluntariou a 8 tours pela zona de guerra. Preciso e silencioso, está à frente do combate aos guerrilheiros, e no início do filme, nós o vemos eliminando friamente mais um alvo, apertando o gatilho da cobertura de um prédio qualquer, em uma região violenta de um típico centro populacional do Oriente Médio.

Michael (Sam Keeley), Frankie (Joe Dempsie), Williams (Parker Sawyers) e Inkelaar (Kyle Soller) são 4 jovens melhores amigos que diante da pouca perspectiva de vida para os nascidos naquele bairro pobre de Detroit decidem se alistar nas Forças Armadas. Michael conhece Frankie desde pequeno, quando o amigo costumava defendê-lo dos outros meninos, quando estes o provocavam dizendo que não tinha pais (Michael cresceu em um orfanato). Hoje, adultos, são como irmãos. Quando o filme começa, a turma está a um dia de embarcar no avião que os levará para a Base do Exército no Oriente Médio. Michael vai apanhar Frankie para levá-lo à "despedida de solteiro" e flagra o amigo fazendo amor com a namorada. Irreverente, Frankie pouco parece se importar. Em um outro lugar da vizinhança, Williams passa por um sufoco. Ele está consolando a esposa, que naquela manhã está dando à luz um lindo bebezinho. Para sua sorte, conta com o suporte de Inkelaar, estudante de Medicina e o mais inteligente do quarteto. Williams não terá oportunidade de aproveitar melhor o filho, pois em menos de 24 horas precisará se despedir para partir para seu "tour" pela zona dos Monstros. Como uma família unida, Michael & Frankie assistem ao parto.

Eles jogam basquete na quadra do quarteirão, e Michael e Frankie trocam impressões sobre a jornada por vir. Ambos falam sobre os tempos em que apoiavam um ao outro, e se comprometem a se ajudar mutuamente no Oriente Médio. Aprontando e tirando sarro uns com os outros, os quatro mostram o quanto são unidos, e que ali entre os membros do grupo não há nenhuma espécie de reserva. Eles comparecem a uma "rinha", onde a galera barra pesada do bairro põe cachorros para brigar com Monstros menores e faz apostas, e depois "tomam todas" em um bar local onde arrumam prostitutas. Em um quarto de motel barato, os rapazes se divertem com as meninas e consomem toda sorte de drogas para relaxar e tirar a cabeça da aventura por vir.


Levados à base por helicópteros de guerra, os amigos ficam pasmos ao enxergar o tamanho das criaturas, agora parte do hostil, escaldante deserto. Os Monstros guardam em média a mesma altura de um edifício de 20 andares. As criaturas se sustentam sobre várias pernas, e suas cabeças são compridas e esticadas, como uma tromba. Apesar da visão apocalíptica, os amigos parecem excitados com a aventura, e acham que terão os dias de suas vidas ali no Oriente Médio. Um movimento desavisado de uma das criaturas quase faz o helicóptero perder o controle, mas logo o piloto o estabiliza, sob os gritos de alegria do quarteto. Depois de se distanciarem da zona, eles veem quando outros helicópteros executam o reconhecimento e jogam bombas sobre os Monstros. Na base, são apresentados a Frater e Sargento Forrest (Nicholas Pinnock, uma das grandes performances do filme, aqui criando um personagem divertido e energético que muito lembra Denzel Washington em "Dia de Treinamento"). Frater os enquadra no novo esquema, e reitera que aquele que deixar as próprias emoções controlá-lo estará condenando-se à morte. Se Frater parece duro, é porque os meninos não conhecem o Sargento Forrest. O Sargento lhes explica a gravidade da situação. Quando os Monstros primeiro apareceram, o Exército Americano bombardeou as montanhas para pôr fim à praga. Claro que as bombas também mataram cidadãos locais, o que inflamou o ódio dos jihadistas. Assim, a guerra aos Monstros foi substituída por uma nova guerra contra fundamentalistas, suicidas e terroristas. O objetivo maior da unidade é infiltrar-se entre membros da população local e eliminar qualquer célula insurgente.


Quando Inkelaar & Frankie se entreolham com sorrisinhos, Forrest fica louco da vida e tira uma onda com todos os quatro. Ele os reduz a pó, com seus xingamentos. Inkelaar é seu alvo predileto. Forrest grita algo nas linhas de "E você, seu filho da puta de olhos tristes... Por que tá com essa cara de quem quer chorar?Como quem gostaria de estar em outro lugar?Você não está!Faz parte de um time agora!". Apesar do tom hostil, Forrest precisa ser durão para mantê-los unidos. Os rapazes precisarão endurecer para suportar o stress da missão. Não custam a se sentirem em casa, e logo estão disputando partidas de futebol americano nas horas vagas. Forrest não custa a se tornar mais próximo dos rapazes, e durante a viagem do comboio rememoram as namoradas, que deixaram para trás. No centro populacional para reconhecimento, a atmosfera é de tensão. Entre transeuntes e homens sentados na varanda, qualquer um pode se revelar jihadista. Cidadãos são entrevistados e fotografados, e em um momento muito bonito, as crianças e adolescentes locais provam-se livres de quaisquer preconceitos odiosos ao receber os rapazes com risos e abraços.

A unidade chega a um sítio afastado, supostamente utilizado como ponto estratégico para atividades terroristas. Frater e os garotos esperam a noite chegar, e quando tudo parece quieto, invadem com visores noturnos. Não há mais jihadista algum na propriedade, apenas um senhor idoso que parece revoltado. Ele se queixa da morte do filho, cuja vida fora perdida após um dos bombardeios. Explica que não é terrorista, apenas um homem comum que vive da terra. Naquele momento, à frente das colinas, Frater e os demais avistam um Monstro enorme se aproximando muito vagarosamente. Agitado, o velho causa toda sorte de problemas, até levar uma coronhada que o silencia. Frater e os rapazes apanham as armas mais pesadas e derrubam o Monstro a tiros. Ao retornarem para a Base, levam uma dura do Sargento. Ele os acusa de não terem agido mais rapidamente com o velho, e que tiveram sorte de que não se tratava de um homem-bomba. Da próxima vez, poderão lidar com um suicida com bombas atadas ao corpo. Frater tem uma filha em casa, e quer voltar vivo para os Estados Unidos. Os soldados jamais o viram tão exaltado. "Essa guerra é real, metam isso nas suas cabeças de uma vez por toda!", ele grita. Mais tarde, Forrest presta uma visita a Frater, e até consegue fazê-lo sorrir ao contar de maneira brincalhona sobre a noite de amor com a esposa na última vez que esteve em casa. Vemos o Sargento no corredor, realizando uma ligação para os Estados Unidos. A mulher soa fria e distante, o casamento não vai bem, porém tudo o que Frater deseja é escutar a voz da filhinha, o que acontece e o deixa com os olhos cheios de lágrimas.

Naquela manhã, tendo sido o primeiro a despertar, na linha do horizonte e contra o Sol nascente, Michael assiste ao movimento das gigantescas trombas muito distantes, impressionantes pela envergadura. Eles terão um dia difícil, conforme a preleção de Frater. Há 5 horas atrás, a Base perdeu contato com outra unidade, em um vale notório pela população repleta de jihadistas. O trabalho do grupo será o de descer o vale, encontrá-los e tirá-los. Frater lhes mostra pastas com as fotos dos soldados desaparecidos e pede para que as gravem na cabeça. Não voltarão para casa enquanto não os salvarem. Antes da partida, Inkelaar tira uma foto do grupo, unido. Eles embarcam no helicóptero e são deixados em um ponto a partir do qual seguirão por terra, em comboio. O ânimo está ótimo, todos prontos para a ação. Aqui, há um dos momentos mais visualmente fantásticos do filme, quando em alta velocidade seus carros são acompanhados e ladeados por uma vertente diferente de Monstros, semelhantes a ágeis búfalos, com cabeças muito estreitas e compridas, o que lhes confere maior agilidade na corrida.


Um dos carros subitamente passa por cima de uma mina. Frater, Michael e Inkelaar dão a sorte de estarem no outro carro. Williams sofre graves ferimentos da cintura para baixo, e ao procurar se afastar dos destroços em chamas, pisa em uma nova mina, desta vez perdendo as pernas. Dentro do carro, Forrest está morto. Jihadistas os cercam, protegidos por trás de escombros e abrindo fogo. Frater devolve os tiros e cobre seus homens, que conseguem arrastar o ferido Williams para uma construção abandonada. Inkelaar usa sua perícia para tentar manter o amigo vivo, mas Williams está lentamente deslizando para a inconsciência. Fortemente armados, os jihadistas usam um lança foguetes para explodir o outro carro. Agora, só há Frater, Inkelaar, Williams & Frankie. Não há salvação para Williams, e os rapazes logo o veem morrer. Cercados por todos os lados, os sobreviventes realizam uma resistência heroica, pondo abaixo uma porção de jihadistas. Agora, precisam deixar o corpo de Williams e seguir para o ponto de extração, a se dar na vila onde a outra unidade foi vista pela última vez. Suporte aéreo joga bombas sobre a faixa onde se encontram os inimigos, e os rapazes conseguem correr até um novo prédio, aparentemente vazio.

Os homens cometem o grave erro de relaxar do lado de fora. Uma bala vara a cabeça de Inkelaar, matando-o instantaneamente. Frankie também é atingido. Subitamente, muitos jihadistas surgem e assaltam a construção, tomando-os como reféns. Frater sussurra a Michael que não perca a cabeça e tenha paciência. Os 3 sobreviventes são levados à central de operações dos jihadistas. Amarrados nas cadeiras e submetidos a interrogatórios, só lhes resta esperar. Lamentavelmente, Frankie sangra até a morte, para a desolação dos companheiros. A noite chega, e tremores de terra sinalizam que os Monstros estão se aproximando. A maioria dos jihadistas sobe nas camionetas, e os veículos arrancam. Sobram apenas alguns guerrilheiros na base, incluíndo o líder da célula, que foi o mais cruel de todos. Frater usa o ombro para tirar momentaneamente o equilíbrio de um dos guerrilheiros, e quando o jihadista cai, quebra-lhe a cara e o pescoço sob o peso de suas botas. Frater ajuda o companheiro Michael a se desamarrar. É o próprio Michael que tomado de fúria satisfaz a vingança sobre o líder terrorista. Surpreendido, o terrorista ainda tenta esboçar uma reação, mas Michael usa um cano para golpeá-lo até a morte, em uma cena violentíssima. 

Michael corre para fora do prédio, e enxerga o Monstro vagando perigosamente ao lado da construção. Os clarões vindo de dentro indicam que Frater está fuzilando os jihadistas retardatários. Os americanos encontram duas motos e partem pelo deserto, em direção ao vale. Michael não suporta mais a pressão, e chega a descer da moto e se ajoelhar no chão louco para desistir. Frater insiste que não perca a cabeça. Eles seguem com a jornada em meio a uma tempestade de areia, e quando começa a entardecer, alcançam trilhos no entorno de um canal. O vagão certamente foi mais uma casualidade dos bombardeios. Ainda inteiro, oferece guarida para que passem a noite com segurança. Pela primeira vez, Frater se abre um pouco, discorrendo sobre como os tours pela zona o transformaram por dentro. Da última vez que voltou para casa, sentiu-se, por um breve momento, pelo olhar da filha, um completo estranho. Ela não parecia reconhecê-lo mais. Frater está cheio de remorsos e acha que se encontra há tantos anos no meio daquela confusão no Oriente Médio que pensa estar se tornando um desconhecido para a família.

No dia seguinte, encontram os restos de um Monstro, derrubado na noite anterior por bombas americanas. Como efeito colateral, o ataque também atingiu um ônibus de refugiados que procurava deixar o canal. Frater & Michael encontram uma criança, ainda viva. O Sargento explica que o mais humano a fazer seria a eutanásia, mas Michael o impede de finalizar o garoto. Repentinamente, jihadistas a cavalo aparecem, e os colegas veem que não terão chances caso os inimigos queiram lutar. Para sua surpresa, os jihadistas não lhe fazem mal. Sob o pano, percebe-se que a líder dos homens é uma jovem mulher, mãe do garoto. Michael entrega a criança nos braços. Os jihadistas abaixam as armas.



Os nativos os conduzem a um riacho, e Frater & Michael saciam a sede e deixam que a água cristalina lave as feridas. Limpos e descansados, se sentam com os nômades ao redor de fogueiras, e são recebidos com respeito e carinho. Um menininho estende a mão para os americanos. Não há qualquer sinal de animosidade por parte daquela gente sofrida. Chega a noite. As mulheres se preparam para o ritual de despedida. O garotinho não resistiu e morreu. Elas levam seu corpo e lampiões, bem para o meio do canal onde o ônibus foi originalmente encontrado. Quando Frater vai verificar o colega na tenda, dá pela sua falta. Michael está acompanhando as mulheres de longe, participando da cerimônia do Adeus. O corpo da criança é repousado no chão. A cena a seguir não apenas é visualmente impecável, é emocionalmente massacrante. A combinação de imagens e trilha cria o melhor momento de toda a série, algo realmente lindo de se assistir. As mulheres repousam os lampiões no chão, e um Monstro gigantesco aparece no canal. Ao se deparar com o corpo da criatura morta, o Monstro solta um choro de partir o coração. Subitamente, libera os esporos, organismos semelhantes a minúsculas águas vivas, e é como se uma chuva de polens azulados descendesse sobre o deserto inteiro. Do mesmo jeito que no primeiro filme o encontro dos Monstros é apresentado como analogia para o amor em formação entre Andrew & Samantha, o diretor Tom Green traça um paralelo entre humanos e criaturas, a dor do Monstro ao perder a criatura semelhante à dor daquela moça ao perder o filho. Monstros & seres humanos não são tão diferentes, apenas lados opostos das mesmas trágicas circunstâncias.

Na manhã seguinte, Frater & Michael têm uma discussão acalorada. O Sargento não quer que o soldado se envolva com aquela gente, principalmente no segmento final da missão. Ele explica que precisam seguir caminho, e assim se põem à pé rumo ao vale, o local onde acreditam que encontrarão a unidade perdida, o ponto de extração. Mesmo no meio daquela paisagem quente e inóspita, os americanos encontram um inocente menininho local mexendo com uma latinha. Ao abri-la, nos revela uma nova manifestação de vida alienígena, desta vez uma colorida, bela libélula. A libélula tem uma cabeça com pequeninas trombas, uma espécie de rascunho da versão adulta. Ela bate as asas e voa, e ao pousar na areia, se divide em várias fitas, que penetram na terra e desaparecem. Mesmo tendo puxado a pistola para atirar, Frater não o faz, encantado com a criatura, e talvez, pela primeira vez, movido por todo o drama.

Por sobre a colina, os soldados guardam um visual muito amplo e revelador do vale abaixo, várias casas alinhadas em ruas arranjadas de modo bem simples. O sinal de destruição ao redor indica que aquela gente há muito se vê refém dos bombardeios. Frater na frente, a dupla vai realizando a vasculha entre vielas bem estreitas, até que tem a atenção capturada por uma criança no meio da rua, brincando com um capacete do Exército. Furioso, Frater exige que o menino lhe conte onde arrumou o capacete. Outras crianças locais exibem uma metralhadora. O Sargento segura um dos meninos pela gola e o força a apontar onde arrumou as coisas. Ele os leva a uma construção, um casebre muito humilde, onde uma idosa ora ao lado dos corpos dos membros da unidade perdida. Até onde sabemos, os soldados podem ter sido vítimas de um ataque aéreo, "fogo amigo", mas Frater não quer saber. Ele está com "sangue nos olhos" e matará toda a gente daquela vila por vingança. O Sargento finalmente parece ter cedido à loucura, e se comporta como um cão raivoso.

Na primeira casa que encontra pela frente, apanha uma família de idosos e pessoas inofensivas. Aponta a metralhadora para o patriarca e estoura seus miolos sem pensar duas vezes. O próximo em quem faz mira é uma criança indefesa. Michael saca a pistola e suplica para que o amigo não cometa tamanha loucura. Quando entende que Frater perdeu a cabeça e seguirá matando, não resta outra saída que não disparar. Frater é atingido nas costas. Ele ainda sai cambaleante pelas ruas em direção ao vale que se estende à sua frente, uma revoada de pássaros simbolizando a volta para casa, que para Frater jamais virá. Eventualmente, o Sargento cai de joelhos e morre. Michael, que o acompanha a uma distância, se detém diante da planície que se estende até ao horizonte, sendo posta abaixo por bombas. Também agonizantes, aqueles gigantes, tão distantes de seu planeta, se despedem. O helicóptero se aproxima para levar Michael para casa.

Enquanto o cinema independente gerou fenômenos como "V/H/S" & "The Babadook", oxigenando o gênero Horror como os "abre-alas" de uma década que promete ser tão produtiva e imperdível quanto a dos anos 70, a Ficção-Científica também atravessa um processo de amadurecimento e reaproximação a raízes mais sérias, com filmes como "Europa Report" & "Under the Skin". "Monsters" & "Monsters: Dark Continent" pertencem a esta mesma safra, e prova de seu valor é o fato de Gareth Edwards ter sido imediatamente "sequestrado" pelos grandes estúdios para realizar aquilo que toda a soma do mundo não consegue criar: imprimir aos blockbusters um sabor de identidade, personalidade, algo que o torne notável em meio a tantas histórias esquecíveis produzidas e lançadas nos cinemas. Incrivelmente originais, "Monster" & "Monsters: Dark Continent" se complementam de maneira perfeita, em que pese a distinção entre enredos & personagens. Da fonte original, "Monsters: Dark Continent" leva consigo a matriz, mas se aventura com a premissa por outro viés. Aqui, não há de se falar no melhor filme, porque em suas diferenças parecem individualmente perfeitos, mas sempre frutos da mesma árvore.

Filmado a um custo de 500 mil dólares, o primeiro "Monsters" deixou os fãs atônitos com o que se é possível produzir com pouco dinheiro e muita paixão. Edwards partiu de uma premissa cansativa - a invasão de alienígenas - e criou um universo de ricos detalhes, o que alavancou sua visão, destacando-a pela originalidade, separando-a da maioria de ficções-científicas aprisionadas ao lugar comum. Difícil de categorizar, parece injusto pensar em "Monsters" como filme de Horror. Lembro-me de uma excelente resenha que o ilustrou como uma versão mais sombria de "Antes do Amanhecer", a obra-prima de Richard Linklater sobre dois jovens que se encontram em um trem e aproveitam ao máximo uma romântica madrugada em Viena, vez que na manhã seguinte precisarão dizer Adeus. Ímpar e eletrizante no senso de urgência criado, "Antes do Amanhecer" bem serve para se definir, ao menos em parte, o significado que Edwards queria imprimir a "Monsters". Muitas coisas ao mesmo tempo, por mais intrigante que pareça, "Monsters" busca em última análise o desenvolvimento de uma história de amor, contada no estilo de um autêntico, melancólico, internacional e transitório "road movie".


Tendo traçado considerações sobre o primeiro, para que se compreenda o mérito do segundo, faz-se necessário um aparte. Agora que enxergamos o valor do trabalho de Gareth Edwards, sua contribuição ao processo de renovação pelo qual atravessa o gênero de ficção-científica, voltemos um pouco no tempo, ao ano de 2003, quando após uma sucessão de desapontamentos, o diretor britânico Danny Boyle fez "28 Days Later", redimindo a carreira e fazendo ressurgir como a fênix das cinzas o filão dos "mortos-vivos". Apesar do sucesso fenomenal de "28 Days Later", Danny Boyle criou "28 Days Later" como algo íntimo, um filme de arte pela definição literal da palavra. Encabeçado por atores de muita coragem e talento, `a época largamente desconhecido, "28 Days Later" emanava um senso de estilo que o tornava mais experimento do que típica produção de Horror. Em suas peculiaridades e diferenças, o filme de Boyle "matava a bola no peito" e corria com a mesma, como artilheiro, levando a ideia a lugares magníficos, sacadas geniais. Não obstante em seu cerne apenas requentar um dos maiores temores da humanidade - o colapso da sociedade como a conhecemos durante uma crise mundial incontrolável, no caso a disseminação de um letal, potencializado vírus da Raiva, acidentalmente vazado de um laboratório na Grã-Bretanha por ativistas do Greenpeace, - Boyle reinventou a fórmula, contando a mesma história por um novo prisma, mais apropriado a filmes de arte europeus. Enriquecido por algumas das cenas mais plasticamente belas possíveis, que tornam a experiência parecida a algo como admirar uma exposição de obras de arte, uma trilha de batida contundente e angustiante, uma fotografia granulada que captura Londres e o interior da Inglaterra como alguns dos recantos mais chuvosos, frios, cinza e sombrios da face da Terra, "28 Days Later" nasceu do amor do diretor Danny Boyle e do cuidado do roteirista Alex Garland, que pelo modesto orçamento, 8 milhões de dólares, jamais esperavam criar um blockbuster. Queriam, isso sim, apenas concretizar aquilo que estava em seus corações, cuidar do desenvolvimento daquela "criança", o filme por assim dizer, da maneira que melhor compreendessem. Quis o destino que "28 Days Later" caísse na graça do grande público, um feito raro e apenas para poucos.


Era inevitável que o estúdio desse carta branca para a continuação, a ser produzida em grande escala, e em 2007 chegou aos cinemas "28 Weeks Later". As pessoas que tinham amado o primeiro, com direito a todas as "esquisitices" do Danny Boyle, não souberam como reagir diante de "28 Weeks Later". Não obstante escrito como continuação direta, focando-se nos efeitos da disseminação do vírus da Raiva, que torna os infectados máquinas de matar, e na luta dos norte-americanos para restaurar a ordem em uma Inglaterra destruída, o filme não possuía nem de longe uma pequena parte do charme do original. Quando falo sobre a dificuldade de se criar magia, sempre cito o exemplo do filme de Danny Boyle. O sucesso de "28 Days Later" encorajou um grande estúdio a não poupar esforços para produzir algo ainda maior, e de fato, com "28 Weeks Later", a ação e os efeitos e a escala foram potencializados. Ocorre que tudo o que tornara o primeiro tão especial, tão aterrorizante, tão único, jamais poderia ser reproduzido, por mais dinheiro que o estúdio estivesse disposto a investir. No final, apesar de oficialmente parte de uma mesma história, "28 Weeks Later" não pareceu mais do que um regular filme de ação, algumas cenas bem feitas, mas comum demais para deixar alguma marca, gozar de alguma relevância. Retomando os eventos do primeiro, o diretor Juan Carlos Fresnadillo se provou um excelente "diretor de filmes de James Bond". Soube onde colocar as câmeras, seguiu a cartilha, fez as suas cenas de ação grandiosas. Apenas se esqueceu daquilo que jamais falta a um Cronenberg ou a um De Palma ou a um Clive Barker ou a um James Wan. Pura paixão. A coragem para correr riscos, destemor completo em expressar qualquer desejo ou obsessão, traduzindo dores muito pessoais em imagens para as telas.


Eu precisei da comparação acima para ilustrar quão fácil teria sido para os criadores de "Monsters" caírem na mesma armadilha. Assim como "28 Days Later", "Monsters" ganhou status de cult pois foi crescendo nos corações das pessoas pelo tom incomum com que o diretor Gareth Edwards contou a história de amor para seus tão bem escritos personagens e a honestidade com que tratou os "Monstros", nos sugerindo o cenário mais plausível para a vinda de seres extraterrestres `a Terra. Considerando a importância do original, a concepção de uma sequência parecia uma péssima ideia antes mesmo que algo sobre o enredo tivesse sido veiculado. Quando "Monsters: Dark Continent" entrou em gestação, eu mesmo imaginei que teríamos uma ficção científica frouxa e barulhenta que em nada homenagearia a paixão e o frescor tão marcantes no anterior. Qual foi a surpresa, o segundo filme apenas agregou mais originalidade e valor `a premissa.


Apesar de diversificados em enfoque, para ambos os filmes o plano de fundo segue imutável, qual seja a vida extraterrestre em sua mais extravagante, melancólica forma. Não apenas se repete o plano de fundo, mas também o tratamento que os cineastas Gareth Edwards & Tom Green dispensam a seus mistérios, mantendo-os nas sombras, respeitando-os, retratando-os em sua divindade e magia com muita discrição. Eu prefiro tratar sobre pontos tão importantes fazendo um comparativo entre os filmes objeto de minha resenha e os grandes clássicos a partir dos quais parece mais fácil falar sobre tudo o que veio depois. Assim, Gareth & Tom devem ter aprendido com Clive Barker e sua obra seminal "Hellraiser" que "menos é mais", e que o beijo da morte para qualquer filme de Horror acontece quando seus monstros ou maravilhosos encantos perdem o mistério pelo pecado da super exposição, o tiro no pé que mais derruba histórias do tipo. Ao contrário, quanto menos se mostra, e mais crédito se dá `a criatividade humana para preencher as lacunas, eis o caminho para um grande filme de Terror. Cinéfilos que amam os Monstros verão uma representação fantástica e surreal de vida alienígena. Deslumbrantes e enormes e poéticas, as criaturas fogem a qualquer categorização, difícil explicar. Lembro-me de um conto do grande Clive Barker, "The Skin of Their Fathers", onde descreve monstros do tipo como enormes e extravagantes, "um pássaro desenhado por um esquizofrênico". Alguém precisaria da genialidade de Clive Barker para procurar reproduzir o impacto de tão impressionantes criações, em uma resenha, portanto tomo a liberdade de transcrever um trecho para que pela leitura de sua prosa tenham uma noção da poesia envolvida na concepção dos Monstros dos dois filmes. Mesmo obras distintas - o conto de Barker & os filmes de Edwards & Green - o tratamento ao elemento da fantasia é o mesmo:


"Fora da casa, Lucy tinha ouvido o diálogo. Abandonou o refúgio de sua choça, sabendo o que ia ver contra o céu deslumbrante, mas nem por isso menos atraída pelas monumentais criaturas que se reuniram em torno da casa. Sentiu angústia ao recordar as alegrias perdidas daquele dia, seis anos antes. Ali estavam todas aquelas criaturas inesquecíveis, uma incrível seleção de formas...
Cabeças piramidais coloridas de rosa, torsos de uma proporção clássica, que caíam em franjas de carne murcha. Uma beleza chapada e acéfala cujos seis braços de madrepérola brotavam em torno de uma boca que ronronava e pulsava. Uma criatura parecida com uma onda de corrente elétrica, em constante movimento, que emitia um som doce e modulado. Criaturas muito fantásticas para serem reais, muito reais para duvidar, anjos caídos. Tinha uma cabeça que balançava para frente e para trás sobre um pescoço muito fino, como se fosse um pêndulo absurdo, azul como o céu de uma noite que chega antes de tempo, e salpicado de uma dúzia de olhos como outros tantos sóis. O corpo de outro pai se parecia com um leque que se abria e fechava de excitação, e cuja carne laranja se avermelhou ainda mais quando soou de novo a voz do menino.

– Papai!" (Clive Barker, Livros de Sangue, "As Peles dos Pais")

No texto acima, há um elemento de fantástico, de conto de fadas, e ao se falar na representação das criaturas de "Monsters", semelhante tratamento se aplica. No primeiro "Monsters", as criaturas guardam um certo padrão, lulas gigantes grandalhonas, mas não tão enormes assim, cheias de tentáculos, emitindo uma charmosa fosforescência. Para a continuação, o diretor Tom Green procurou trabalhar em cima de um maior leque criativo, com monstros que atingem o tamanho de prédios de 20 andares, aproximadamente, outros menores, que correm como búfalos em manada, e alguns semelhantes a libélulas, capazes de serem guardados dentro de caixinhas. Em ambos os filmes, as criaturas inspiram um poderoso sentimento de tristeza. Ali estão os monstros, primeiramente na América Central, depois no deserto do Oriente Médio, confusos, em um mundo que não o seu. As criaturas não pediram pela guerra, foram arrastadas para o confronto forçadas por um acidente com a sonda da NASA, que trouxe os esporos. A vida daqueles seres misteriosos resume-se a perambular por cenários desolados enquanto são incansavelmente perseguidas e odiadas. Atrapalhadas e irracionais, guiadas por puro instinto de sobrevivência, não diferem quase em nada de um animal selvagem, por exemplo, solto na civilização. Dia desses, estava assistindo a um filme de um ator até hoje muito querido, Christopher Lambert. Quando eu tinha 14, 15 anos, eu me lembro que Christopher Lambert fazia aqueles filmes de ação que costumavam passar nos cinemas, estilo "Marcado para Morrer" & "Os Franco-Atiradores". Eu não os perdia, jamais, do mesmo jeito que não deixava de conferir as coisas que o Steven Seagal e o Van Damme lançavam todos as férias de meio de ano. Estamos falando de 1994, 1995, eram outros tempos, mais simples, e as pessoas ainda não haviam se tornado tão cínicas. Enfim, nessa proposta nostálgica, eu me recordo do primeiro filme do Christopher Lambert, que o tornou astro, nos anos 80, um drama histórico chamado "Greystoke", a lenda de Tarzan. Christopher Lambert interpretava o protagonista tirado das selvas e trazido de volta ao convívio da sociedade britânica depois de ter passado toda a vida na natureza selvagem e feito dos animais selvagens sua família. Ao visitar um zoológico, ele reconhece o gorila que na selva fora seu pai, e o animal selvagem também o reconhece. Decidido a ajudá-lo, ele abre a jaula e o ajuda a escapar, mas quando ambos são encurralados em um parque e o animal sobe na árvore para se proteger, é abatido a tiros, para o desespero do personagem do Christopher Lambert, que chora e diz que aquele era seu pai. Essa cena permaneceu na minha cabeça, por todos esses anos, e a acho emblemática para definir a tragédia das criaturas de "Monsters" & "Monsters: Dark Continent": incompreendidas, no lugar errado, afastadas de seu habitat natural, perseguidas, odiadas, amedrontadas, acuadas. A destruição causada, a razão primordial do Horror, não se deve a nenhum senso de antagonismo ou maldade, apenas ao medo e `a incongruência do convívio entre seres tão enormes e incompreensíveis em um mundo de seres humanos míopes e odiosos.

"Monsters: Dark Continent" utiliza os Monstros com o mesmo propósito, como o onipresente elemento fantástico indiferente, no plano de fundo, observadores imparciais dos dramas de gente comum em uma terra onde impera a magia. Como drama central, o diretor Tom Green realizou o tipo de filmes que as pessoas que apreciaram "Guerra ao Terror" vão salivar diante do prospecto. Ambientado no Oriente Médio, "Monsters: Dark Continent" atira um grupo de amigos norte-americanos e nós juntos em uma jornada pelo coração dos mais desoladores, perigosos recantos. Os Monstros, aqui diferentes e evoluídos desde que os vimos pela primeira vez, não são a maior preocupação dos heróis. Visto como suspense de guerra, "Monsters: Dark Continent" em nada fica devendo a "Guerra ao Terror", e assim como o premiado filme de Kathryn Bigelow, parte do bom desenvolvimento dos personagens para criar algum sentimento de empatia e identificação. Do momento em que "compramos" essa turma como autênticos amigos e sabemos identificá-los por suas diferentes personalidades, o diretor Tom Green nos "coloca no bolso", e nos carrega juntos para a linha de fogo. Sabemos que a maioria daqueles rapazes não resistirá até o final, mas a antecipação de quem será o próximo a cair torna a experiência um "ataque cardíaco" de aproximadamente duas horas de duração. Enquanto o trunfo de Gareth Edwards tenha sido o desenrolar de uma história de amor, uma espécie de "Antes do Amanhecer" sombrio e aterrorizante, o diretor Tom Green reúne tudo o que há de melhor nos filmes de guerra e nos conta como um conflito pode transformar a dinâmica de relacionamentos e os espíritos dos soldados, imbuindo sua sequência com um ar de "Heart of Darkness" de Joseph Conrad, onde ao invés do misterioso rio, os homens precisam atravessar vales desertificados para cumprir a missão. Vocês veem como os dois filmes se complementam muito bem. Apesar de não retomar a continuação exatamente a partir de onde a história deixara os protagonistas, "Monsters: Dark Continent" obedece o modus operandi do original, respeitando a mitologia de suas criaturas, mas explorando outros terrenos. Edwards, que volta como produtor executivo do segundo filme, não podia ser mais generoso ao colega Green, tendo lhe concedido a liberdade para escrever sobre o que quisesse. O cineasta sempre disse que um dos aspectos que mais o fascinara no primeiro era a intervenção do Estado e a administração da crise, a ocupação militar de americanos em terras estrangeiras. Fica patente a razão por que Green seguiu a proposta de soldados no Oriente Médio.

Edwards & Green merecem reconhecimento pela sensibilidade com que trataram o "diferente". Apesar de seus Monstros renderem cenas inesquecíveis em termos de visual e impressionantes efeitos, as criaturas exercem um papel muito claro nos dois filmes, permanecendo a maior parte do tempo vagando ao fundo, enquanto os protagonistas humanos que tanto temem as criaturas se veem mais vítimas de seus próprios sentimentos ou da maldade dos semelhantes do que da presença de vida extraterrestre. Não foi a primeira vez que a ideia foi explorada, e ultimamente tivemos excelentes suspenses sobre a visita de alienígenas, o mais notório deles "Os Escolhidos". "Monsters 1&2" se destacam por ousarem experimentar com a premissa, contar uma história de amor fadada ao término assim que o fim da jornada chegar, por exemplo, no primeiro, ou sobre como soldados voltam tão diferentes para casa após suas guerras, a externa, da qual escapam com vida, e interna, que precisarão carregar consigo para sempre, no segundo. Pela ousadia, destacam-se como os dois melhores filmes de monstros da última década. De certa forma, não diferem muito de "Ôdishon", de Takashi Miike. O filme de Miike começa como drama, o herói perdendo a esposa para o câncer e amargando 7 anos de viuvez, depois adquire cores dos típicos romances açucarados com leves momentos de humor estrelados por Rachel McAdams, quando o amigo do herói o incentiva a encontrar uma namorada a partir de um processo de audição de atrizes para um filme, e o cara conhece uma misteriosa bailarina de olhos tristes, e finalmente vira um pesadelo "cronenberguiano" quando as informações dadas pela moça naquele dia da audição não batem com a realidade, e o protagonista passa a desconfiar de que ela é uma serial killer. Os filmes de Edwards, Green & Miike exploram arcos narrativos e correm riscos, e em uma época de pouca a nenhuma ousadia, verdadeiros artistas surgem em poucas luas. Aproveitem.

Todos os direitos autorais reservados a Vertigo Filmes. O uso dos trailers é para efeito meramente ilustrativo da resenha.

terça-feira, 31 de março de 2015

"The Babadook" (Jennifer Kent, Austrália, 2014) A dor da perda como o pior dos monstros.

Em uma noite há 7 anos, Amelia (Essie Davis) e seu marido corriam desesperadamente pela estrada, e não era para menos: ela estava em trabalho de parto, e o marido temia que não chegassem a tempo ao hospital. Tragicamente, um carro os colhe no caminho. Apesar de perder o marido e sofrer ferimentos, Amelia escapa com vida, e o bebê nasce sadio. Ela o chama de Samuel. O filme abre com um flashback da terrível noite do acidente automobilístico, e ao final da sequência, vemos Amelia "retornando para o corpo", ou melhor, "caindo de volta" `a cama, onde acorda do pesadelo. O filhinho Samuel a desperta com as reclamações usuais. Ele afirma que há um monstro no armário. Acostumada com os temores do menino, Amelia lhe mostra que não existe coisa alguma sob a cama ou dentro do armário. Ela lê uma historinha e o leva para dormir no seu quarto.

A vida de Amelia obviamente não é fácil. Ela trabalha como cuidadora em um asilo para idosos. Todas as manhãs, precisa sair muito cedo de casa, e ainda encontrar tempo para dar atenção ao menininho. Dono de uma riquíssima imaginação, Samuel bola as "armas" mais incríveis com seus brinquedos e bugigangas, em preparação para quando o "Babadook" aparecer. Aprendemos que a raiz de todos os males da criança sintetiza-se na figura do monstro a quem Samuel chama "Babadook". Samuel também gosta muito de mágica, e antes que a mãe o leve para a escola, lhe apresenta seu mais novo truque. Ao ser abraçada com muito carinho e um pouco mais de força, Amelia reage aborrecida, mas imediatamente parece arrependida por perder o temperamento. Apesar de amá-lo, aqueles 7 anos desde o acidente certamente começaram a pesar sobre seus ombros.

O comportamento de Samuel também não tem ajudado a harmonia em casa. Amelia é chamada pela direção do colégio quando seus professores encontram uma arma branca nas mãos do menino. A coordenação sugere a visita de uma assistente social, mas algo no tom dos diretores a deixa profundamente ofendida. Amelia interrompe a conversa, promete tirar o filho do colégio e deixa os supervisores falando sozinhos ao se retirar da reunião. Em um tocante cena, testemunhamos a inocência de Samuel, quando ao ser levado pela mãe para as compras, começa a conversar com uma menina, e a mãe da garotinha se aproxima para irem embora. Ela diz para a garotinha algo nas linhas de "Vamos, filha, seu pai está nos esperando", e Samuel observa inocentemente "Meu pai mora no cemitério". Ele segue falando sobre as circunstâncias da morte do pai. A mulher escuta a tudo pega de surpresa, e reage com compaixão, claramente tocada pela espontaneidade da criança.  Ao deixar, declara "Sua mamãe tem muita sorte de tê-lo".

Amelia o leva ao parquinho, onde encontra a irmã Clare. Não sabemos muito sobre o passado das duas, mas já que se passou tanto tempo desde a morte do marido, deduzimos que Clare cansou das necessidades da problemática Amelia. Sente-se uma hostilidade no tom com que Clare se dirige `a irmã. Clare explica que, diferente dos outros anos, pretende realizar o aniversário de Ruby separadamente ao de Samuel. Amelia reage com aceitação, mas Clare soa genuinamente ressentida, reiterando que só queria que Amelia fosse feliz novamente. Enquanto brinca no parquinho, Samuel exclama que quando o monstro vier, esmagará a sua cabeça. Clare assiste a tudo com uma expressão incomodada. Distraídas, as duas irmãs não veem quando Samuel escala um brinquedo mais alto e quase cai.

A vizinha, uma simpática velhinha, nutre especial carinho por Samuel. Talvez pela experiência de vida consiga enxergar a dor que impera na casa ao lado. O primeiro sinal da presença de uma força desconhecida no lar de Amelia se dá quando observa o animal de estimação, um cachorrinho, arranhando a porta que dá para o porão.  Naquela noite, Samuel mostra `a Amelia o livro escolhido para a leitura antes de dormir. Ela não se lembra de tê-lo visto na estante anteriormente. O livro se chama "Mister Babadook", obedece o formato de obras infantis em relevo (cada página, quando aberta, revela uma montagem, as figuras ganhando vida pelo mero ato de folhear), e apesar de dirigido a crianças, seu conteúdo soa sinistro. A história revolve o tal "Babadook", um monstro de cartola que só pode ser visto desde que você realmente preste atenção. Todos estes detalhes - Amelia não se recordar de um livro que existia na sua própria estante, a necessidade de se observar com atenção para se individualizar o "Babadook" - serão importantes, mais tarde. Samuel cai no pranto, assustado com o "Babadook". Amelia o consola e o põe para dormir. Intrigada, depois que o menino dorme, apanha o livro para uma segunda vistoria. Para sua surpresa, há folhas em branco, como se o final da história do "Babadook" estivesse para ser escrito. Também digno de nota, não há referências no corpo da obra - editora, autor, absolutamente nada. Até onde se sabe, a história pode ter sido ilustrada por um artista anônimo.

Samuel assusta a mãe saltando sobre a cama e exclamando que o "Babadook" apareceu no quarto. Amelia o conforta até fazê-lo dormir, porém de alguma forma aquela história também começa a afetá-la. Quando vai deitar, uma pancada vinda da porta a deixa ligeiramente enervada. O trabalho que Samuel dá acaba por lhe custar preciosas horas de sono. Ela chega um pouco mais tarde no asilo de idosos. Robbie, um colega de trabalho, procura se aproximar de Amelia. Genuinamente preocupado com a amiga, parece interessado em envolvimento amoroso. Em um turbulento momento da vida, porém, Amelia não parece inclinada a recomeçar a vida sentimental. Distraída, somente mais tarde dá pelas 10 ligações da irmã. Ao chegar `a casa de Clare, encontra o menininho sentado no jardim, e Clare com Ruby no colo. Clare explica que o menino assustou a filha com suas histórias sobre "Babadook". O menino desafia a tia e retruca que o monstro é bastante real.

Em casa, o comportamento de Samuel piora. Ele furta a chave do porão e apanha um porta-retratos com fotos do pai. O menino está criando uma espécie de armadilha, e vestindo a capa de mágico, brinca com espoletas enquanto brada para seu cachorrinho como derrotará o monstro quando este finalmente der as caras. Robbie presta uma visita e traz flores para Amelia. Ele não tinha noção da gravidade dos problemas no lar, mas uma vez ali, compreende que Amelia tem razões de sobra para sempre parecer triste. Quando Samuel aparece e Robbie lhe entrega um presente, o menininho desata a explicar que odeia a mãe por não deixá-lo mexer nas coisas do pai. Ao examinar o porão, Amelia o encontra ornamentado com as fotos do falecido marido, tiradas do álbum. Certa de que o livro tem mexido com a cabeça do menino, Amelia rasga "Mister Babadook" e arremessa os pedaços na cesta de lixo do jardim.

Amelia e Samuel comparecem `a festa de aniversário de Ruby. A presença dos dois parece motivo de desagrado para Clare, e até mesmo suas amigas a olham diferenciado. As duas irmãs procuram se entender, mas apenas pioram as coisas. Amelia a acusa de jamais se importar, e Clare responde com lágrimas nos olhos que não é verdade, apenas não tolera ficar perto do menino, a quem julga uma grave ameaça. Amelia reage profundamente ofendida. Nisso, atazanado pela menina chata na casinha da árvore, Samuel a empurra e Ruby machuca o nariz, o que efetivamente azeda a festa e faz com que Amelia resolva partir com o filho. No caminho para casa, o menino sofre convulsões dentro do automóvel, insistindo que o monstro se encontra ali.

O pediatra não consegue individualizar um problema específico com a saúde de Samuel. Ao contrário, ele pensa que os sintomas se devam a um generalizado quadro de ansiedade. O médico receita antidepressivos. `A noite, Samuel conversa com a mãe e, choroso, explica que não quer que Amelia morra. Ela minimiza seus temores e lhe dá um calmante. Na manhã seguinte, uma batida na porta chama a atenção de Amelia. Ao abrir, não há ninguém ali… Apenas o livro, "Mister Babadook", que alguém não apenas se deu o trabalho de emendar as páginas de volta, como também escrever nas folhas em branco, exibindo, em gravuras, a tirinha de uma mulher enlouquecida matando o cachorro e o filho, e depois cometendo suicídio com uma faca. Amelia fica apavorada. Naquela mesma manhã, recebe a ligação de alguém que não se identifica, apenas murmura, com uma voz sinistra, "Ba-ba-dook-dook". A polícia não a leva muito a sério quando insiste que ela e o filho estão sendo vítimas de um stalker. Em seu frágil estado psicológico, Amelia enxerga uma capa e cartola penduradas, e imediatamente as associa`a figura do "Babadook". Ela deixa a delegacia sem formalizar queixa.

Quando Amelia volta para casa, no final da tarde, encontra o filho com a velhinha que mora ao lado. Samuel se dá muito bem com a idosa, a única pessoa com sensibilidade e paciência para escutar tudo o que ele tem para dizer. Naquela tarde, Amelia recebe a visita de dois assistentes sociais. Apesar de se esforçar para aparentar normalidade, não consegue mascarar a atmosfera de tensão e tristeza que permeia o ambiente. A primeira vez que o "Babadook" se materializa diante dos olhos de Amelia, ela está lavando louça, com uma expressão cansada e distante. Ao lançar o olhar para a janela da vizinha, enxerga muito rapidamente o "Babadook" em um canto escuro da sala da vizinha. Ao piscar os olhos, Amelia não encontra a figura de cartola mais por ali. Na mesma noite, a figura macabra presta uma visita. Amelia enxerga aquele corpanzil envolvido pela escuridão se insinuar pelo quarto, subir para o teto, e repentinamente cair sobre seu corpo enquanto parece em transe. Ao vencer o transe, Amelia liga as luzes, desperta o menino, e o carrega no colo para a sala. O intento é o de permanecerem acordados, livres da influência daquela entidade inexplicável. 

Acredita-se que todo filme de Terror tenha um momento definitivo pelo qual passa a ser celebrado. Em "O Exorcista", a cena mais contundente se dá quando Karras sonha com a mãe ascendendo para as calçadas do Brooklyn, pelas escadas do metrô, ao menos por um breve instante, e o jovem padre gritando desesperadamente para que o espere. A velhinha volta a descer, desaparecendo de seu campo de visão. Friedkin roda a cena subtraindo-lhe qualquer som, o que a torna ainda mais notável. No caso de "The Babadook", penso que a cena a seguir permanecerá na minha mente por muitos anos. Amelia senta-se na sala, disposta a aguentar a noite acordada, e a partir de determinado momento as imagens que se sucedem na TV passam a fazer menos e menos sentido. A sequência de imagens em preto e branco reflete o frágil estado mental de Amelia, quando assistimos a cenas muito borradas, tais quais as de um filme da Era do Cinema em Preto & Branco, onde um mágico realiza truques e revela a figura antiquada, mesmo patética e triste, do "Babadook".

Amelia perde mais um dia de trabalho, e na manhã seguinte, também a paciência com o filho. Cheia de remorsos, tenta fazer as pazes com o garotinho. Ela se esforça para ter um dia normal com o menino, até mesmo o levando para tomar sorvete. Na sorveteria, a algazarra de crianças com os pais na mesa ao lado a ajuda a pensar em dias mais ensolarados. Na volta para casa, Amelia bate o carro, nada muito grave, mas o suficiente para deixá-los mais atordoados. Eles retomam o caminho para casa antes que o motorista do outro automóvel pergunte se estão bem. A velhinha que mora ao lado os vê quando retornam, e sente que o menino corre perigo. Força dos calmantes, Amelia não demora a cochilar, e quando desperta, de madrugada, tem a atenção capturada por rumores de vozes chegando da cozinha: Samuel está conversando com a vizinha pelo telefone, obviamente falando de suas preocupações e o medo de que a mãe atente contra sua vida. Amelia toma o telefone e desculpa-se com a senhora, pedindo que não se preocupe com a fértil imaginação do garoto.

Furiosa, Amelia apanha uma faca de cozinha e corta o fio do telefone. A situação está prestes a sair dos trilhos. O menino apenas finge tomar as pílulas para dormir, porque sabe que a mãe o matará se pegar no sono. Amelia tem visões horrorosas. Ela enxerga o filho com a garganta cortada, o corpinho estirado no sofá. Por um momento, desespera-se ao acreditar que finalmente matou o menino em um momento de loucura, porém percebe se tratar de uma alucinação. Ela sofre outras visões, como por exemplo assiste a uma reportagem na TV sobre o bárbaro homicídio de uma mãe que matou filho e cachorro, e foi morta a tiros quando os policiais atenderam a ocorrência. Durante a reportagem, enquanto enxerga policiais retirando os corpos, há uma mulher sorridente por trás das cortinas, a própria Amelia, com um sorrisinho malicioso. Claro que Amelia desperta da alucinação, mas entende que está perdendo a sensatez.

Atraída ao sótão, ela pensa enxergar o falecido marido, até compreender que se trata do "Babadook", tendo adotado a forma do rapaz para brincar com sua cabeça. Amelia se refugia no quarto, mas nada parece manter o "Babadook" do lado de fora. A criatura toma posse de sua mente, e Amelia mata o cachorrinho. Certo de que a mãe também o matará, Samuel utiliza as armadilhas preparadas para o "Babadook" para incapacitá-la. Ele a atrai ao porão, e Amelia tropeça em uma corda propositalmente deixada nos degraus. Samuel a amarra, e suplica que a mãe resista aos impulsos homicidas provocados por aquela energia ruim. Enquanto estrangula o filho com as próprias mãos, Amelia reganha a humanidade quando o menininho afaga carinhosamente seu rosto. Amelia vomita um líquido negro, a representação do "Babadook" que tomara morada dentro de seu corpo. Em um confronto final, Amelia desafia o espírito e ordena que deixe aquela casa. Ao expulsá-lo de sua vida, o demônio parece retroceder ao porão e se esconder ali dentro. Ao chão, caem pesadamente casaco e cartola, as vestes do "monstro". Samuel e Amelia finalmente foram deixados em paz.

Algum tempo se passa. Amelia voltou a ser uma mulher bem humorada e bonita, interessada no trabalho e no futuro de sua família. Depois de muito tempo, o sorriso finalmente retornou a seu ainda jovem rosto. Samuel conservou a mesma doçura, e parece cheio de ânimo e sonhos. Mãe e filho comemoram o aniversário com a presença da velhinha que mora ao lado e agora se tornou parte da família. Samuel mostra `a mãe um truque novo, fazendo surgir uma pomba branca, e a mãe fica realmente impressionada. Vemos Amelia e Samuel catando minhocas no jardim, e depois a mãe descendo ao porão. Aprendemos que apesar de o "Babadook" ter deixado a família em paz, e tomado morada no porão, A Coisa precisa ser alimentada de vez em quando. Amelia deixa o porão e se reúne ao filho no jardim. Eles estão em paz e mais unidos do que nunca.

Tendo colecionado indicações aos prêmios mais importantes do cinema fantástico de 2014, talvez o maior legado de "The Babadook" não seja nenhum desses merecidos reconhecimentos de crítica, mas as generosas palavras de ninguém menos que William Friedkin, um dos mais importantes cineastas, diretor de "O Exorcista", que sobre "The Babadook" escreveu, em seu twitter: "Jamais vi um filme tão aterrorizante quanto este!". Dirigido por Jennifer Kent, uma diretora praticamente estreante, esse perturbador thriller psicológico pulsa com a energia que aos filmes de suspense de grandes estúdios parece rarear a cada nova tentativa. Neste espaço de um ano, "The Babadook" permanece como um dos filmes mais comentados de 2014/2015, ao lado de um outro, igualmente intrigante, sobre o qual tecerei comentários ao final da resenha, chamado "It Follows". Por ora, fiquemos com "The Babadook".

Em uma Era onde o cinema tem sido mais sobre sustentação visual do que histórias sobre seres humanos, a diretora Jennifer Kent conseguiu realizar um feito realmente monumental: ela contou uma história muito apavorante, mas também sensível, que apesar de não temer nos arrastar a uma jornada muito sombria, não tem vergonha alguma de tratar com muito carinho sua espinha dorsal, o amor de um filho pela mãe e como tentam sobreviver ao assédio de uma presença misteriosa, na verdade uma representação das devastadoras consequências do luto. "The Babadook" conta com a performance de uma carreira por parte da veterana Essie Davis, e revela o talento do maravilhoso Noah Wiseman. As pessoas mais velhas que assistiram a "O Sexto Sentido" nos cinemas em 1999 e saíram encantadas com a performance de Haley Joel Osment não sabem o que lhes é reservado com "The Babadook". Pouquíssimas vezes no cinema de Horror a infância foi retratada com tão agridoce realismo. A devastadora atuação de Noah Wiseman estilhaçará seu coração como uma marretada contra uma vulnerável película de vidro. "The Babadook" levou um banho de indicações a prêmios importantíssimos, desde New York Film Critics Circle ao notório Saturn Awards (o mais respeitado prêmio concedido a obras do gênero Horror), a maioria das indicações revolvendo as poderosas performances de Essie Davis & Noah Wiseman.

Como poucos diretores conseguiram antes, Jennifer Kent fez do tom minimalista de "The Babadook" seu maior trunfo. Com modestos efeitos especiais - e mesmo assim aqueles existentes básicos e elementares - são as escolhas de Kent por takes e música que dão `as suas cenas a sobrevida que o tornará um filme memorável e comentado, anos por vir. Mais do que nunca, a simplicidade da combinação de uma cartola com casaco prova-se muito mais contundente e ressoante que imagens exageradas concebidas por efeitos especiais extravagantes. Como os grandes diretores de Horror certamente atestariam a seu favor, Clive Barker com os cenobitas de "Hellraiser 1&2" & Spielberg com o Tubarão do filme homônimo, Jennifer Kent não poderia ter feito melhor escolha do que empurrar seu monstro para um cantinho do enquadramento, até mesmo mantê-lo imerso em sombras, exibindo o mínimo para mover o enredo. A força das imagens reside no mistério, e nada feriria mais o mistério do que excessos, do que a falta de refinamento e elegância.

Em se tratando de um drama muito sério sobre as consequências do luto, fundamentado sobre imagens & simbolismos, qualquer variação imprópria na percepção da ameaça tornaria o conjunto menos impactante ou até mesmo tolo. Aqui, mais do que nunca, vale a tese de que "Menos é mais". O "Babadook" parece aterrorizante, não em uma riqueza de detalhes esdrúxulos, e sim na sua datada, antiquada e macabra representação teatral. Ele mais se assemelha a um Nosferatu sorridente de cartola, uma aberração circense e atemporal, nada mais do que o somatório de todas as frustrações e tristezas de sua heroína, que calha de se materializar naquela "Coisa" da qual a mãe jamais conseguirá totalmente se dissociar. Por esse viés, poderíamos interpretar o "Babadook" como as lembranças do marido, alimentadas pelo luto de Amelia. Interessante que o casaco e a cartola caídos sobre o assoalho, que ao longo do filme caracterizaram a figura do "Babadook", sejam, em última análise, parte do espólio do falecido marido, roupas deixadas para trás, após sua trágica morte. Lembram-se quando falei sobre o livro infantil "Mister Babadook", deixado na porta de casa?Durante o filme, descobrimos que um dos trabalhos de Amelia, antes da depressão, era o de ilustradora. Ora, foi ela quem escreveu "Mister Babadook", ela quem o deixou na porta de casa!Este filme não deve ser visto de modo literal, exige interpretação.

Creio que o filme se prove uma experiência ainda mais valiosa para as pessoas que se prepararem para enxergá-lo além das aparências. Apesar de aterrorizante, não é pela pretensa existência de um bicho papão onipresente que a história agride, e sim pelo reflexo muito real do fraturado psicológico de uma mulher atravessando um severo colapso nervoso. Poucos filmes de Horror elegeram o luto como plano de fundo para suas tramas. Eu me recordo de "O Segredo do Lago Mungo", porém de nenhum outro que o tenha feito com a mesma propriedade. Talvez por oferecerem muito trabalho para seus diretores, que precisariam dar um jeito para que Horror & Luto se complementassem coordenadamente, obras do tipo aconteçam apenas raramente. Assim como ocorre com "O Segredo do Lago Mungo", "The Babadook" merece elogios pela facilidade com que cria momentos realmente inesquecíveis, e pela dignidade com que trata seus personagens. Por soarem muito honestos e falíveis, por se portarem como gente como a gente, o filme se torna cada vez mais desesperador, porque diferente do que ocorre com tantos outros thrillers, por essa mãe & filho em particular aprendemos a nutrir muito carinho e lhes desejar o bem. Em termos de estrutura, semelhante trama pode ser encontrada nas páginas de "O Iluminado", de Stephen King, que com sua genialidade criou uma história nos mesmos moldes, também sobre doenças mentais, também sobre os devastadores efeitos de uma energia malévola atuando na psique de pessoas vulneráveis, e a tocante história de amor entre pais falíveis & filhos emocionalmente instáveis.

Similarmente ao que ocorre em "The Babadook", King desenrola a história de Horror sobre um hotel construído em território indígena, na remota região das Serras Nevadas, utilizando como espinha dorsal o drama familiar. Jack Torrance ama o filhinho Danny mais do que a própria vida, mas, vulnerabilizado pelo alcoolismo, não demora a ser arrastado a um turbilhão de confusão mental e maldade, graças à energia ruim preponderante no lugar. No filme de Stanley Kubrick, que Stephen King não gosta, o amor entre pai & filho quase passa despercebido, pelo fato de Kubrick ter preterido o tema em favor do exercício de estilos. Stephen King chegou a produzir uma minissérie em 1997 porque desejava que seu romance fosse traduzido mais literalmente para as telas. Na excelente minissérie, o cerne da obra literária de King resta preservado, de modo que o produto final, embora não tão extravagante e estilístico quanto o filme de Kubrick, goza da redenção que ao original de 1980 faltou. A jornada dos dois protagonistas - Amelia em "The Babadook" & Jack Torrance em "O Iluminado" - se dá em meio a um vívido, insano imaginário de demônios & fantasmas, que logo os joga `a beira de um precipício que dá para a insanidade. Uma vez que a barreira é ultrapassada, não há volta, a irretroatividade da tragédia muito bem encapsulada pelo infanticídio, a ameaça a pairar sobre suas cabeças durante todo o filme/romance. Enquanto no livro de Stephen King o "Babadook" de Jack Torrance é a tentação do alcoolismo, no filme de Kent o monstro toma forma na dor da perda e as implicações da ausência do marido na criação do filhinho, uma criança doce de fértil imaginação que infelizmente tem de pagar caro pela tragédia/pecados dos adultos. Os dois heróis são pais falhos, comuns. Muitas vezes, Torrance & Amelia soam estúpidos e agem como irresponsáveis, todavia no instante seguinte desmancham-se em poças de dor ao se debulharem em lágrimas para suplicar perdão aos filhos. Mesmo que os odiemos, o fazemos apenas por um curto espaço de tempo, porque logo nos é lembrado que afinal de contas são humanos passíveis de todas as falibilidades, e amam seus filhos mais do que a si mesmos.

Também em análogo, ambas as histórias se permitem uma espécie de redenção depois de tanta dor. No romance de Stephen King, Torrance conta com um último momento, um instante de lucidez, quando silencia as vozes que o deixavam louco, diz ao filho Danny que sempre vai amá-lo, pede para que o menininho corra, e morre heroicamente ao subir a temperatura da caldeira para mandar o hotel amaldiçoado pelos ares. No filme de Jennifer Kent, os afagos de Samuel conseguem acender dentro de sua cabeça perturbada uma centelha em meio `a loucura, e o amor de mãe finalmente consegue expurgar o demônio "Babadook", na verdade o imponderável sentimento da solidão, pondo termo ao pesadelo de assombrações e imagens tenebrosas. No desfecho escrito especialmente para a minissérie produzida por King, o autor deixa explícito o peso do relacionamento entre pai & filho na fonte original, porque conclui com uma cena alguns anos após os eventos no Hotel, quando aprendemos que Danny está se formando com louvor. Apesar das angústias da infância, cresceu para se tornar um homem estudioso, bem humorado, gentil e de muito valor. Na audiência, assistindo `a entrega do diploma, vemos a mãe Wendy e o velho Hallorann (o único amigo de Danny, quando criança, durante a aventura no Hotel). Danny é chamado para recebê-lo, as pessoas presentes aplaudem, e há um brevíssimo instante quando sente a presença do pai. Danny olha, e de fato enxerga o fantasma do pai Jack, jovem e feliz, livre daquela energia horrorosa do Hotel. Cheio de orgulho e com os olhos marejados, o fantasma do pai diz, "Belo trabalho, doc". Com um momento tão doce e emocionante assim, King sinaliza que apesar de ter se empenhado em nos apavorar durante a jornada, desde o começo seu objetivo foi o de encontrar mesmo em meio ao Horror lugar para compaixão e esperança. O olhar assertivo que King dedica `a inocência da infância ganha semelhante vida em carne e osso pela performance de Noah Wiseman. O grande James Wan, a quem eu costumo nominar de "O Novo Steven Spielberg", porque creio que se consagrará como uma das mais importantes forças criativas de Hollywood na próxima década, soube retratar o mundo sempre mágico e por vezes aterrorizante da infância com "Sobrenatural 1 & 2", mas a figura triste de Samuel é ainda mais impactante do que as crianças de "Sobrenatural", possivelmente porque o filme de Jennifer Kent, menor em escala, fundamente-se em traumas mais dolorosamente humanos e próximos `a nossa realidade, enquanto o de Wan tome a liberdade de sonhar mais além. Ainda sobre "The Babadook", em que pese sua trama depressiva por natureza, Jennifer Kent a fecha com uma bela, realista conclusão. Parece-me que ao indicar que o "Babadook" ainda toma morada naquela casa, em algum lugar escuro do porão, respeitando o acordo de não mexer mais com as vidas de Samuel & Amelia desde que alimentado de vez em quando, Kent está nos mostrando que na verdade foi a depressão de Amelia o "monstro" empurrado para o porão, para o lugar de difícil acesso. Em distintos momentos da vida, todos nós passamos por perdas ou experiências terríveis, e não obstante as marcas deixadas, conseguimos empurrar a amargura para um ponto menos acessível de nossas almas, afastar tais recordações ou frustrações para um canto mais remoto de nossos corações, de modo a nos permitirmos a felicidade e o prazer pelas coisas boas do dia a dia. Torna-se novamente possível planejar o futuro, e seguir em frente com nossos projetos, mesmo levando-se em conta tudo o que passou. O ser humano guarda uma capacidade impressionante para recomeçar e perseverar, e "The Babadook" apenas reitera a resiliência do espírito para a superação. Amelia sofreu, e provavelmente carregará consigo uma pequenina parte daquela amargura, que pode ser rastreada `a noite do acidente automobilístico. Acontece que finalmente foi capaz de empurrar a tristeza para um porão, um lugar mais discreto de seu coração, para finalmente focar-se nas coisas boas da vida. Ela ainda é jovem, despertou o interesse de um rapaz de valor, o colega de trabalho - eis a possibilidade para recomeçar uma nova família e viver inéditas experiências ao lado de um companheiro - e o seu filhinho é uma inocente, doce criança de imaginação fértil e inteligência fora do comum, que certamente construirá um amanhã ainda melhor para si. A dor da perda de Amelia pode ser devastadora, mas os motivos para voltar a sorrir são ainda maiores. 

Acho que se pensarmos em nossas infâncias, nos lembraremos que então o mundo parecia bem maior. Quando crianças, nossos sentidos estão tão aguçados que somos receptores, amplificadores, absorvemos tudo o que nos cerca como esponja, nada escapa `a percepção. A passagem dos anos chega para amortecer a maneira como as ações dos adultos reverberam nos nossos ossos, até porque nos tornamos tão adultos quanto eles. São poucos os filmes que capturaram a infância em toda sua glória, em todos suas pequenas alegrias e incomensuráveis desencantos. A história de "The Babadook" abre um canivete suiço de possibilidades perfeitas para que seus protagonistas explorem o fértil terreno da infância, desde as dores de se crescer sem a referência paterna aos monstros originados pela somatização de tantas angústias. Não obstante o elemento fantástico, esta é uma história com que muitas pessoas poderão vir a se identificar, seja na qualidade de pai, seja na da criança que todos um dia fomos, perdida em um mundo cheio de mistérios, o universo interpretado e rearranjado pela mente infantil. Guillermo del Toro conseguiu trabalhar o tema como tempero para a fórmula, dando a sua história de fantasmas "El Espinazo del Diablo" uma relevância ainda mais pronunciada e trágica do que a teria em diferentes circunstâncias. Ao recontar os eventos acerca do misterioso desaparecimento de um menino e a forma como seu espírito passa a assombrar um orfanato perdido no meio de um escaldante deserto na Espanha, tudo visto através da perspectiva das crianças que habitam aquele mundo, durante a Guerra Civil, del Toro prefere enxergar o elemento sobrenatural filtrado pelo mais gentil, romântico e fantástico prisma infantil, o que torna o resultado muito mais cativante. "The Babadook" acessa semelhante energia, um conto triste e sombrio sobre fantasma, visto sob a perspectiva de uma mãe doente e seu filhinho impressionável, duas pessoas sozinhas em um mundo enorme que nos faz pensar na inconstância e efemeridade da vida.

Amigos, gostaria de concluir a resenha mencionando um filme que certamente os interessará. Trata-se de "It Follows", a ser lançado no Brasil como "Corrente do Mal". Este pequeno thriller independente vem ganhando prêmios pelos festivais de cinema por onde tem passado, talvez o mais importante o grande prêmio dos críticos para seu diretor David Robert Mitchell, no festival de Cannes do ano passado. Elogiado pelo seu estilo retrô, desde trilha sonora com sintetizadores `a atmosfera, o filme tem sido descrito como uma homenagem aos climáticos, saudosos suspenses dos anos 70/80. Não por menos, "It Follows" venha merecendo insistentes comparações com o primeiro "Halloween", de John Carpenter. "It Follows" traz uma premissa muito intrigante, assim como "The Babadook" tratando seu monstro com o abstracionismo que o torna aberto a um leque de inteligentes e interessantes discussões. O filme fala sobre uma garota que após sua primeira noite de amor, herda uma "maldição", uma entidade que se materializa como uma pessoa na multidão, por exemplo, e te segue ameaçadoramente. A garota reúne seus amigos com o intento de desvendar o segredo da maldição e escapar de seu destino. Bastante aclamado, as pessoas têm discutido bastante sobre o simbolismo envolvido, que parece uma metáfora sobre doenças venéreas, ou até mesmo algo maior. Enquanto a tese de doença venérea soa aplicável ao quebra-cabeça, graças `a ligação entre sexo desprotegido e AIDS, você também poderia interpretar a "Coisa" por um viés mais amplo, como a soma das coisas que você fez, e na época pareceram inconsequentes, e que encontraram um jeito de voltar para te morder. Por esse enfoque de causa/consequência, a interpretação obedeceria as linhas do que Stephen King escreveu no seu romance "Pet Sematary", quando o personagem de Jud Crandall, o velho conhecedor da magia reinante naquela terra indígena e quem primeiro orienta o médico Louis Creed a enterrar o gato Church no "Cemitério Maldito", para trazê-lo de volta, diz "Um homem planta o que pode, e colhe aquilo que planta… E tudo o que é seu encontra um jeito de voltar para você".