terça-feira, 31 de março de 2015

"The Babadook" (Jennifer Kent, Austrália, 2014) A dor da perda como o pior dos monstros.

Em uma noite há 7 anos, Amelia (Essie Davis) e seu marido corriam desesperadamente pela estrada, e não era para menos: ela estava em trabalho de parto, e o marido temia que não chegassem a tempo ao hospital. Tragicamente, um carro os colhe no caminho. Apesar de perder o marido e sofrer ferimentos, Amelia escapa com vida, e o bebê nasce sadio. Ela o chama de Samuel. O filme abre com um flashback da terrível noite do acidente automobilístico, e ao final da sequência, vemos Amelia "retornando para o corpo", ou melhor, "caindo de volta" `a cama, onde acorda do pesadelo. O filhinho Samuel a desperta com as reclamações usuais. Ele afirma que há um monstro no armário. Acostumada com os temores do menino, Amelia lhe mostra que não existe coisa alguma sob a cama ou dentro do armário. Ela lê uma historinha e o leva para dormir no seu quarto.

A vida de Amelia obviamente não é fácil. Ela trabalha como cuidadora em um asilo para idosos. Todas as manhãs, precisa sair muito cedo de casa, e ainda encontrar tempo para dar atenção ao menininho. Dono de uma riquíssima imaginação, Samuel bola as "armas" mais incríveis com seus brinquedos e bugigangas, em preparação para quando o "Babadook" aparecer. Aprendemos que a raiz de todos os males da criança sintetiza-se na figura do monstro a quem Samuel chama "Babadook". Samuel também gosta muito de mágica, e antes que a mãe o leve para a escola, lhe apresenta seu mais novo truque. Ao ser abraçada com muito carinho e um pouco mais de força, Amelia reage aborrecida, mas imediatamente parece arrependida por perder o temperamento. Apesar de amá-lo, aqueles 7 anos desde o acidente certamente começaram a pesar sobre seus ombros.

O comportamento de Samuel também não tem ajudado a harmonia em casa. Amelia é chamada pela direção do colégio quando seus professores encontram uma arma branca nas mãos do menino. A coordenação sugere a visita de uma assistente social, mas algo no tom dos diretores a deixa profundamente ofendida. Amelia interrompe a conversa, promete tirar o filho do colégio e deixa os supervisores falando sozinhos ao se retirar da reunião. Em um tocante cena, testemunhamos a inocência de Samuel, quando ao ser levado pela mãe para as compras, começa a conversar com uma menina, e a mãe da garotinha se aproxima para irem embora. Ela diz para a garotinha algo nas linhas de "Vamos, filha, seu pai está nos esperando", e Samuel observa inocentemente "Meu pai mora no cemitério". Ele segue falando sobre as circunstâncias da morte do pai. A mulher escuta a tudo pega de surpresa, e reage com compaixão, claramente tocada pela espontaneidade da criança.  Ao deixar, declara "Sua mamãe tem muita sorte de tê-lo".

Amelia o leva ao parquinho, onde encontra a irmã Clare. Não sabemos muito sobre o passado das duas, mas já que se passou tanto tempo desde a morte do marido, deduzimos que Clare cansou das necessidades da problemática Amelia. Sente-se uma hostilidade no tom com que Clare se dirige `a irmã. Clare explica que, diferente dos outros anos, pretende realizar o aniversário de Ruby separadamente ao de Samuel. Amelia reage com aceitação, mas Clare soa genuinamente ressentida, reiterando que só queria que Amelia fosse feliz novamente. Enquanto brinca no parquinho, Samuel exclama que quando o monstro vier, esmagará a sua cabeça. Clare assiste a tudo com uma expressão incomodada. Distraídas, as duas irmãs não veem quando Samuel escala um brinquedo mais alto e quase cai.

A vizinha, uma simpática velhinha, nutre especial carinho por Samuel. Talvez pela experiência de vida consiga enxergar a dor que impera na casa ao lado. O primeiro sinal da presença de uma força desconhecida no lar de Amelia se dá quando observa o animal de estimação, um cachorrinho, arranhando a porta que dá para o porão.  Naquela noite, Samuel mostra `a Amelia o livro escolhido para a leitura antes de dormir. Ela não se lembra de tê-lo visto na estante anteriormente. O livro se chama "Mister Babadook", obedece o formato de obras infantis em relevo (cada página, quando aberta, revela uma montagem, as figuras ganhando vida pelo mero ato de folhear), e apesar de dirigido a crianças, seu conteúdo soa sinistro. A história revolve o tal "Babadook", um monstro de cartola que só pode ser visto desde que você realmente preste atenção. Todos estes detalhes - Amelia não se recordar de um livro que existia na sua própria estante, a necessidade de se observar com atenção para se individualizar o "Babadook" - serão importantes, mais tarde. Samuel cai no pranto, assustado com o "Babadook". Amelia o consola e o põe para dormir. Intrigada, depois que o menino dorme, apanha o livro para uma segunda vistoria. Para sua surpresa, há folhas em branco, como se o final da história do "Babadook" estivesse para ser escrito. Também digno de nota, não há referências no corpo da obra - editora, autor, absolutamente nada. Até onde se sabe, a história pode ter sido ilustrada por um artista anônimo.

Samuel assusta a mãe saltando sobre a cama e exclamando que o "Babadook" apareceu no quarto. Amelia o conforta até fazê-lo dormir, porém de alguma forma aquela história também começa a afetá-la. Quando vai deitar, uma pancada vinda da porta a deixa ligeiramente enervada. O trabalho que Samuel dá acaba por lhe custar preciosas horas de sono. Ela chega um pouco mais tarde no asilo de idosos. Robbie, um colega de trabalho, procura se aproximar de Amelia. Genuinamente preocupado com a amiga, parece interessado em envolvimento amoroso. Em um turbulento momento da vida, porém, Amelia não parece inclinada a recomeçar a vida sentimental. Distraída, somente mais tarde dá pelas 10 ligações da irmã. Ao chegar `a casa de Clare, encontra o menininho sentado no jardim, e Clare com Ruby no colo. Clare explica que o menino assustou a filha com suas histórias sobre "Babadook". O menino desafia a tia e retruca que o monstro é bastante real.

Em casa, o comportamento de Samuel piora. Ele furta a chave do porão e apanha um porta-retratos com fotos do pai. O menino está criando uma espécie de armadilha, e vestindo a capa de mágico, brinca com espoletas enquanto brada para seu cachorrinho como derrotará o monstro quando este finalmente der as caras. Robbie presta uma visita e traz flores para Amelia. Ele não tinha noção da gravidade dos problemas no lar, mas uma vez ali, compreende que Amelia tem razões de sobra para sempre parecer triste. Quando Samuel aparece e Robbie lhe entrega um presente, o menininho desata a explicar que odeia a mãe por não deixá-lo mexer nas coisas do pai. Ao examinar o porão, Amelia o encontra ornamentado com as fotos do falecido marido, tiradas do álbum. Certa de que o livro tem mexido com a cabeça do menino, Amelia rasga "Mister Babadook" e arremessa os pedaços na cesta de lixo do jardim.

Amelia e Samuel comparecem `a festa de aniversário de Ruby. A presença dos dois parece motivo de desagrado para Clare, e até mesmo suas amigas a olham diferenciado. As duas irmãs procuram se entender, mas apenas pioram as coisas. Amelia a acusa de jamais se importar, e Clare responde com lágrimas nos olhos que não é verdade, apenas não tolera ficar perto do menino, a quem julga uma grave ameaça. Amelia reage profundamente ofendida. Nisso, atazanado pela menina chata na casinha da árvore, Samuel a empurra e Ruby machuca o nariz, o que efetivamente azeda a festa e faz com que Amelia resolva partir com o filho. No caminho para casa, o menino sofre convulsões dentro do automóvel, insistindo que o monstro se encontra ali.

O pediatra não consegue individualizar um problema específico com a saúde de Samuel. Ao contrário, ele pensa que os sintomas se devam a um generalizado quadro de ansiedade. O médico receita antidepressivos. `A noite, Samuel conversa com a mãe e, choroso, explica que não quer que Amelia morra. Ela minimiza seus temores e lhe dá um calmante. Na manhã seguinte, uma batida na porta chama a atenção de Amelia. Ao abrir, não há ninguém ali… Apenas o livro, "Mister Babadook", que alguém não apenas se deu o trabalho de emendar as páginas de volta, como também escrever nas folhas em branco, exibindo, em gravuras, a tirinha de uma mulher enlouquecida matando o cachorro e o filho, e depois cometendo suicídio com uma faca. Amelia fica apavorada. Naquela mesma manhã, recebe a ligação de alguém que não se identifica, apenas murmura, com uma voz sinistra, "Ba-ba-dook-dook". A polícia não a leva muito a sério quando insiste que ela e o filho estão sendo vítimas de um stalker. Em seu frágil estado psicológico, Amelia enxerga uma capa e cartola penduradas, e imediatamente as associa`a figura do "Babadook". Ela deixa a delegacia sem formalizar queixa.

Quando Amelia volta para casa, no final da tarde, encontra o filho com a velhinha que mora ao lado. Samuel se dá muito bem com a idosa, a única pessoa com sensibilidade e paciência para escutar tudo o que ele tem para dizer. Naquela tarde, Amelia recebe a visita de dois assistentes sociais. Apesar de se esforçar para aparentar normalidade, não consegue mascarar a atmosfera de tensão e tristeza que permeia o ambiente. A primeira vez que o "Babadook" se materializa diante dos olhos de Amelia, ela está lavando louça, com uma expressão cansada e distante. Ao lançar o olhar para a janela da vizinha, enxerga muito rapidamente o "Babadook" em um canto escuro da sala da vizinha. Ao piscar os olhos, Amelia não encontra a figura de cartola mais por ali. Na mesma noite, a figura macabra presta uma visita. Amelia enxerga aquele corpanzil envolvido pela escuridão se insinuar pelo quarto, subir para o teto, e repentinamente cair sobre seu corpo enquanto parece em transe. Ao vencer o transe, Amelia liga as luzes, desperta o menino, e o carrega no colo para a sala. O intento é o de permanecerem acordados, livres da influência daquela entidade inexplicável. 

Acredita-se que todo filme de Terror tenha um momento definitivo pelo qual passa a ser celebrado. Em "O Exorcista", a cena mais contundente se dá quando Karras sonha com a mãe ascendendo para as calçadas do Brooklyn, pelas escadas do metrô, ao menos por um breve instante, e o jovem padre gritando desesperadamente para que o espere. A velhinha volta a descer, desaparecendo de seu campo de visão. Friedkin roda a cena subtraindo-lhe qualquer som, o que a torna ainda mais notável. No caso de "The Babadook", penso que a cena a seguir permanecerá na minha mente por muitos anos. Amelia senta-se na sala, disposta a aguentar a noite acordada, e a partir de determinado momento as imagens que se sucedem na TV passam a fazer menos e menos sentido. A sequência de imagens em preto e branco reflete o frágil estado mental de Amelia, quando assistimos a cenas muito borradas, tais quais as de um filme da Era do Cinema em Preto & Branco, onde um mágico realiza truques e revela a figura antiquada, mesmo patética e triste, do "Babadook".

Amelia perde mais um dia de trabalho, e na manhã seguinte, também a paciência com o filho. Cheia de remorsos, tenta fazer as pazes com o garotinho. Ela se esforça para ter um dia normal com o menino, até mesmo o levando para tomar sorvete. Na sorveteria, a algazarra de crianças com os pais na mesa ao lado a ajuda a pensar em dias mais ensolarados. Na volta para casa, Amelia bate o carro, nada muito grave, mas o suficiente para deixá-los mais atordoados. Eles retomam o caminho para casa antes que o motorista do outro automóvel pergunte se estão bem. A velhinha que mora ao lado os vê quando retornam, e sente que o menino corre perigo. Força dos calmantes, Amelia não demora a cochilar, e quando desperta, de madrugada, tem a atenção capturada por rumores de vozes chegando da cozinha: Samuel está conversando com a vizinha pelo telefone, obviamente falando de suas preocupações e o medo de que a mãe atente contra sua vida. Amelia toma o telefone e desculpa-se com a senhora, pedindo que não se preocupe com a fértil imaginação do garoto.

Furiosa, Amelia apanha uma faca de cozinha e corta o fio do telefone. A situação está prestes a sair dos trilhos. O menino apenas finge tomar as pílulas para dormir, porque sabe que a mãe o matará se pegar no sono. Amelia tem visões horrorosas. Ela enxerga o filho com a garganta cortada, o corpinho estirado no sofá. Por um momento, desespera-se ao acreditar que finalmente matou o menino em um momento de loucura, porém percebe se tratar de uma alucinação. Ela sofre outras visões, como por exemplo assiste a uma reportagem na TV sobre o bárbaro homicídio de uma mãe que matou filho e cachorro, e foi morta a tiros quando os policiais atenderam a ocorrência. Durante a reportagem, enquanto enxerga policiais retirando os corpos, há uma mulher sorridente por trás das cortinas, a própria Amelia, com um sorrisinho malicioso. Claro que Amelia desperta da alucinação, mas entende que está perdendo a sensatez.

Atraída ao sótão, ela pensa enxergar o falecido marido, até compreender que se trata do "Babadook", tendo adotado a forma do rapaz para brincar com sua cabeça. Amelia se refugia no quarto, mas nada parece manter o "Babadook" do lado de fora. A criatura toma posse de sua mente, e Amelia mata o cachorrinho. Certo de que a mãe também o matará, Samuel utiliza as armadilhas preparadas para o "Babadook" para incapacitá-la. Ele a atrai ao porão, e Amelia tropeça em uma corda propositalmente deixada nos degraus. Samuel a amarra, e suplica que a mãe resista aos impulsos homicidas provocados por aquela energia ruim. Enquanto estrangula o filho com as próprias mãos, Amelia reganha a humanidade quando o menininho afaga carinhosamente seu rosto. Amelia vomita um líquido negro, a representação do "Babadook" que tomara morada dentro de seu corpo. Em um confronto final, Amelia desafia o espírito e ordena que deixe aquela casa. Ao expulsá-lo de sua vida, o demônio parece retroceder ao porão e se esconder ali dentro. Ao chão, caem pesadamente casaco e cartola, as vestes do "monstro". Samuel e Amelia finalmente foram deixados em paz.

Algum tempo se passa. Amelia voltou a ser uma mulher bem humorada e bonita, interessada no trabalho e no futuro de sua família. Depois de muito tempo, o sorriso finalmente retornou a seu ainda jovem rosto. Samuel conservou a mesma doçura, e parece cheio de ânimo e sonhos. Mãe e filho comemoram o aniversário com a presença da velhinha que mora ao lado e agora se tornou parte da família. Samuel mostra `a mãe um truque novo, fazendo surgir uma pomba branca, e a mãe fica realmente impressionada. Vemos Amelia e Samuel catando minhocas no jardim, e depois a mãe descendo ao porão. Aprendemos que apesar de o "Babadook" ter deixado a família em paz, e tomado morada no porão, A Coisa precisa ser alimentada de vez em quando. Amelia deixa o porão e se reúne ao filho no jardim. Eles estão em paz e mais unidos do que nunca.

Tendo colecionado indicações aos prêmios mais importantes do cinema fantástico de 2014, talvez o maior legado de "The Babadook" não seja nenhum desses merecidos reconhecimentos de crítica, mas as generosas palavras de ninguém menos que William Friedkin, um dos mais importantes cineastas, diretor de "O Exorcista", que sobre "The Babadook" escreveu, em seu twitter: "Jamais vi um filme tão aterrorizante quanto este!". Dirigido por Jennifer Kent, uma diretora praticamente estreante, esse perturbador thriller psicológico pulsa com a energia que aos filmes de suspense de grandes estúdios parece rarear a cada nova tentativa. Neste espaço de um ano, "The Babadook" permanece como um dos filmes mais comentados de 2014/2015, ao lado de um outro, igualmente intrigante, sobre o qual tecerei comentários ao final da resenha, chamado "It Follows". Por ora, fiquemos com "The Babadook".

Em uma Era onde o cinema tem sido mais sobre sustentação visual do que histórias sobre seres humanos, a diretora Jennifer Kent conseguiu realizar um feito realmente monumental: ela contou uma história muito apavorante, mas também sensível, que apesar de não temer nos arrastar a uma jornada muito sombria, não tem vergonha alguma de tratar com muito carinho sua espinha dorsal, o amor de um filho pela mãe e como tentam sobreviver ao assédio de uma presença misteriosa, na verdade uma representação das devastadoras consequências do luto. "The Babadook" conta com a performance de uma carreira por parte da veterana Essie Davis, e revela o talento do maravilhoso Noah Wiseman. As pessoas mais velhas que assistiram a "O Sexto Sentido" nos cinemas em 1999 e saíram encantadas com a performance de Haley Joel Osment não sabem o que lhes é reservado com "The Babadook". Pouquíssimas vezes no cinema de Horror a infância foi retratada com tão agridoce realismo. A devastadora atuação de Noah Wiseman estilhaçará seu coração como uma marretada contra uma vulnerável película de vidro. "The Babadook" levou um banho de indicações a prêmios importantíssimos, desde New York Film Critics Circle ao notório Saturn Awards (o mais respeitado prêmio concedido a obras do gênero Horror), a maioria das indicações revolvendo as poderosas performances de Essie Davis & Noah Wiseman.

Como poucos diretores conseguiram antes, Jennifer Kent fez do tom minimalista de "The Babadook" seu maior trunfo. Com modestos efeitos especiais - e mesmo assim aqueles existentes básicos e elementares - são as escolhas de Kent por takes e música que dão `as suas cenas a sobrevida que o tornará um filme memorável e comentado, anos por vir. Mais do que nunca, a simplicidade da combinação de uma cartola com casaco prova-se muito mais contundente e ressoante que imagens exageradas concebidas por efeitos especiais extravagantes. Como os grandes diretores de Horror certamente atestariam a seu favor, Clive Barker com os cenobitas de "Hellraiser 1&2" & Spielberg com o Tubarão do filme homônimo, Jennifer Kent não poderia ter feito melhor escolha do que empurrar seu monstro para um cantinho do enquadramento, até mesmo mantê-lo imerso em sombras, exibindo o mínimo para mover o enredo. A força das imagens reside no mistério, e nada feriria mais o mistério do que excessos, do que a falta de refinamento e elegância.

Em se tratando de um drama muito sério sobre as consequências do luto, fundamentado sobre imagens & simbolismos, qualquer variação imprópria na percepção da ameaça tornaria o conjunto menos impactante ou até mesmo tolo. Aqui, mais do que nunca, vale a tese de que "Menos é mais". O "Babadook" parece aterrorizante, não em uma riqueza de detalhes esdrúxulos, e sim na sua datada, antiquada e macabra representação teatral. Ele mais se assemelha a um Nosferatu sorridente de cartola, uma aberração circense e atemporal, nada mais do que o somatório de todas as frustrações e tristezas de sua heroína, que calha de se materializar naquela "Coisa" da qual a mãe jamais conseguirá totalmente se dissociar. Por esse viés, poderíamos interpretar o "Babadook" como as lembranças do marido, alimentadas pelo luto de Amelia. Interessante que o casaco e a cartola caídos sobre o assoalho, que ao longo do filme caracterizaram a figura do "Babadook", sejam, em última análise, parte do espólio do falecido marido, roupas deixadas para trás, após sua trágica morte. Lembram-se quando falei sobre o livro infantil "Mister Babadook", deixado na porta de casa?Durante o filme, descobrimos que um dos trabalhos de Amelia, antes da depressão, era o de ilustradora. Ora, foi ela quem escreveu "Mister Babadook", ela quem o deixou na porta de casa!Este filme não deve ser visto de modo literal, exige interpretação.

Creio que o filme se prove uma experiência ainda mais valiosa para as pessoas que se prepararem para enxergá-lo além das aparências. Apesar de aterrorizante, não é pela pretensa existência de um bicho papão onipresente que a história agride, e sim pelo reflexo muito real do fraturado psicológico de uma mulher atravessando um severo colapso nervoso. Poucos filmes de Horror elegeram o luto como plano de fundo para suas tramas. Eu me recordo de "O Segredo do Lago Mungo", porém de nenhum outro que o tenha feito com a mesma propriedade. Talvez por oferecerem muito trabalho para seus diretores, que precisariam dar um jeito para que Horror & Luto se complementassem coordenadamente, obras do tipo aconteçam apenas raramente. Assim como ocorre com "O Segredo do Lago Mungo", "The Babadook" merece elogios pela facilidade com que cria momentos realmente inesquecíveis, e pela dignidade com que trata seus personagens. Por soarem muito honestos e falíveis, por se portarem como gente como a gente, o filme se torna cada vez mais desesperador, porque diferente do que ocorre com tantos outros thrillers, por essa mãe & filho em particular aprendemos a nutrir muito carinho e lhes desejar o bem. Em termos de estrutura, semelhante trama pode ser encontrada nas páginas de "O Iluminado", de Stephen King, que com sua genialidade criou uma história nos mesmos moldes, também sobre doenças mentais, também sobre os devastadores efeitos de uma energia malévola atuando na psique de pessoas vulneráveis, e a tocante história de amor entre pais falíveis & filhos emocionalmente instáveis.

Similarmente ao que ocorre em "The Babadook", King desenrola a história de Horror sobre um hotel construído em território indígena, na remota região das Serras Nevadas, utilizando como espinha dorsal o drama familiar. Jack Torrance ama o filhinho Danny mais do que a própria vida, mas, vulnerabilizado pelo alcoolismo, não demora a ser arrastado a um turbilhão de confusão mental e maldade, graças à energia ruim preponderante no lugar. No filme de Stanley Kubrick, que Stephen King não gosta, o amor entre pai & filho quase passa despercebido, pelo fato de Kubrick ter preterido o tema em favor do exercício de estilos. Stephen King chegou a produzir uma minissérie em 1997 porque desejava que seu romance fosse traduzido mais literalmente para as telas. Na excelente minissérie, o cerne da obra literária de King resta preservado, de modo que o produto final, embora não tão extravagante e estilístico quanto o filme de Kubrick, goza da redenção que ao original de 1980 faltou. A jornada dos dois protagonistas - Amelia em "The Babadook" & Jack Torrance em "O Iluminado" - se dá em meio a um vívido, insano imaginário de demônios & fantasmas, que logo os joga `a beira de um precipício que dá para a insanidade. Uma vez que a barreira é ultrapassada, não há volta, a irretroatividade da tragédia muito bem encapsulada pelo infanticídio, a ameaça a pairar sobre suas cabeças durante todo o filme/romance. Enquanto no livro de Stephen King o "Babadook" de Jack Torrance é a tentação do alcoolismo, no filme de Kent o monstro toma forma na dor da perda e as implicações da ausência do marido na criação do filhinho, uma criança doce de fértil imaginação que infelizmente tem de pagar caro pela tragédia/pecados dos adultos. Os dois heróis são pais falhos, comuns. Muitas vezes, Torrance & Amelia soam estúpidos e agem como irresponsáveis, todavia no instante seguinte desmancham-se em poças de dor ao se debulharem em lágrimas para suplicar perdão aos filhos. Mesmo que os odiemos, o fazemos apenas por um curto espaço de tempo, porque logo nos é lembrado que afinal de contas são humanos passíveis de todas as falibilidades, e amam seus filhos mais do que a si mesmos.

Também em análogo, ambas as histórias se permitem uma espécie de redenção depois de tanta dor. No romance de Stephen King, Torrance conta com um último momento, um instante de lucidez, quando silencia as vozes que o deixavam louco, diz ao filho Danny que sempre vai amá-lo, pede para que o menininho corra, e morre heroicamente ao subir a temperatura da caldeira para mandar o hotel amaldiçoado pelos ares. No filme de Jennifer Kent, os afagos de Samuel conseguem acender dentro de sua cabeça perturbada uma centelha em meio `a loucura, e o amor de mãe finalmente consegue expurgar o demônio "Babadook", na verdade o imponderável sentimento da solidão, pondo termo ao pesadelo de assombrações e imagens tenebrosas. No desfecho escrito especialmente para a minissérie produzida por King, o autor deixa explícito o peso do relacionamento entre pai & filho na fonte original, porque conclui com uma cena alguns anos após os eventos no Hotel, quando aprendemos que Danny está se formando com louvor. Apesar das angústias da infância, cresceu para se tornar um homem estudioso, bem humorado, gentil e de muito valor. Na audiência, assistindo `a entrega do diploma, vemos a mãe Wendy e o velho Hallorann (o único amigo de Danny, quando criança, durante a aventura no Hotel). Danny é chamado para recebê-lo, as pessoas presentes aplaudem, e há um brevíssimo instante quando sente a presença do pai. Danny olha, e de fato enxerga o fantasma do pai Jack, jovem e feliz, livre daquela energia horrorosa do Hotel. Cheio de orgulho e com os olhos marejados, o fantasma do pai diz, "Belo trabalho, doc". Com um momento tão doce e emocionante assim, King sinaliza que apesar de ter se empenhado em nos apavorar durante a jornada, desde o começo seu objetivo foi o de encontrar mesmo em meio ao Horror lugar para compaixão e esperança. O olhar assertivo que King dedica `a inocência da infância ganha semelhante vida em carne e osso pela performance de Noah Wiseman. O grande James Wan, a quem eu costumo nominar de "O Novo Steven Spielberg", porque creio que se consagrará como uma das mais importantes forças criativas de Hollywood na próxima década, soube retratar o mundo sempre mágico e por vezes aterrorizante da infância com "Sobrenatural 1 & 2", mas a figura triste de Samuel é ainda mais impactante do que as crianças de "Sobrenatural", possivelmente porque o filme de Jennifer Kent, menor em escala, fundamente-se em traumas mais dolorosamente humanos e próximos `a nossa realidade, enquanto o de Wan tome a liberdade de sonhar mais além. Ainda sobre "The Babadook", em que pese sua trama depressiva por natureza, Jennifer Kent a fecha com uma bela, realista conclusão. Parece-me que ao indicar que o "Babadook" ainda toma morada naquela casa, em algum lugar escuro do porão, respeitando o acordo de não mexer mais com as vidas de Samuel & Amelia desde que alimentado de vez em quando, Kent está nos mostrando que na verdade foi a depressão de Amelia o "monstro" empurrado para o porão, para o lugar de difícil acesso. Em distintos momentos da vida, todos nós passamos por perdas ou experiências terríveis, e não obstante as marcas deixadas, conseguimos empurrar a amargura para um ponto menos acessível de nossas almas, afastar tais recordações ou frustrações para um canto mais remoto de nossos corações, de modo a nos permitirmos a felicidade e o prazer pelas coisas boas do dia a dia. Torna-se novamente possível planejar o futuro, e seguir em frente com nossos projetos, mesmo levando-se em conta tudo o que passou. O ser humano guarda uma capacidade impressionante para recomeçar e perseverar, e "The Babadook" apenas reitera a resiliência do espírito para a superação. Amelia sofreu, e provavelmente carregará consigo uma pequenina parte daquela amargura, que pode ser rastreada `a noite do acidente automobilístico. Acontece que finalmente foi capaz de empurrar a tristeza para um porão, um lugar mais discreto de seu coração, para finalmente focar-se nas coisas boas da vida. Ela ainda é jovem, despertou o interesse de um rapaz de valor, o colega de trabalho - eis a possibilidade para recomeçar uma nova família e viver inéditas experiências ao lado de um companheiro - e o seu filhinho é uma inocente, doce criança de imaginação fértil e inteligência fora do comum, que certamente construirá um amanhã ainda melhor para si. A dor da perda de Amelia pode ser devastadora, mas os motivos para voltar a sorrir são ainda maiores. 

Acho que se pensarmos em nossas infâncias, nos lembraremos que então o mundo parecia bem maior. Quando crianças, nossos sentidos estão tão aguçados que somos receptores, amplificadores, absorvemos tudo o que nos cerca como esponja, nada escapa `a percepção. A passagem dos anos chega para amortecer a maneira como as ações dos adultos reverberam nos nossos ossos, até porque nos tornamos tão adultos quanto eles. São poucos os filmes que capturaram a infância em toda sua glória, em todos suas pequenas alegrias e incomensuráveis desencantos. A história de "The Babadook" abre um canivete suiço de possibilidades perfeitas para que seus protagonistas explorem o fértil terreno da infância, desde as dores de se crescer sem a referência paterna aos monstros originados pela somatização de tantas angústias. Não obstante o elemento fantástico, esta é uma história com que muitas pessoas poderão vir a se identificar, seja na qualidade de pai, seja na da criança que todos um dia fomos, perdida em um mundo cheio de mistérios, o universo interpretado e rearranjado pela mente infantil. Guillermo del Toro conseguiu trabalhar o tema como tempero para a fórmula, dando a sua história de fantasmas "El Espinazo del Diablo" uma relevância ainda mais pronunciada e trágica do que a teria em diferentes circunstâncias. Ao recontar os eventos acerca do misterioso desaparecimento de um menino e a forma como seu espírito passa a assombrar um orfanato perdido no meio de um escaldante deserto na Espanha, tudo visto através da perspectiva das crianças que habitam aquele mundo, durante a Guerra Civil, del Toro prefere enxergar o elemento sobrenatural filtrado pelo mais gentil, romântico e fantástico prisma infantil, o que torna o resultado muito mais cativante. "The Babadook" acessa semelhante energia, um conto triste e sombrio sobre fantasma, visto sob a perspectiva de uma mãe doente e seu filhinho impressionável, duas pessoas sozinhas em um mundo enorme que nos faz pensar na inconstância e efemeridade da vida.

Amigos, gostaria de concluir a resenha mencionando um filme que certamente os interessará. Trata-se de "It Follows", a ser lançado no Brasil como "Corrente do Mal". Este pequeno thriller independente vem ganhando prêmios pelos festivais de cinema por onde tem passado, talvez o mais importante o grande prêmio dos críticos para seu diretor David Robert Mitchell, no festival de Cannes do ano passado. Elogiado pelo seu estilo retrô, desde trilha sonora com sintetizadores `a atmosfera, o filme tem sido descrito como uma homenagem aos climáticos, saudosos suspenses dos anos 70/80. Não por menos, "It Follows" venha merecendo insistentes comparações com o primeiro "Halloween", de John Carpenter. "It Follows" traz uma premissa muito intrigante, assim como "The Babadook" tratando seu monstro com o abstracionismo que o torna aberto a um leque de inteligentes e interessantes discussões. O filme fala sobre uma garota que após sua primeira noite de amor, herda uma "maldição", uma entidade que se materializa como uma pessoa na multidão, por exemplo, e te segue ameaçadoramente. A garota reúne seus amigos com o intento de desvendar o segredo da maldição e escapar de seu destino. Bastante aclamado, as pessoas têm discutido bastante sobre o simbolismo envolvido, que parece uma metáfora sobre doenças venéreas, ou até mesmo algo maior. Enquanto a tese de doença venérea soa aplicável ao quebra-cabeça, graças `a ligação entre sexo desprotegido e AIDS, você também poderia interpretar a "Coisa" por um viés mais amplo, como a soma das coisas que você fez, e na época pareceram inconsequentes, e que encontraram um jeito de voltar para te morder. Por esse enfoque de causa/consequência, a interpretação obedeceria as linhas do que Stephen King escreveu no seu romance "Pet Sematary", quando o personagem de Jud Crandall, o velho conhecedor da magia reinante naquela terra indígena e quem primeiro orienta o médico Louis Creed a enterrar o gato Church no "Cemitério Maldito", para trazê-lo de volta, diz "Um homem planta o que pode, e colhe aquilo que planta… E tudo o que é seu encontra um jeito de voltar para você". 

sábado, 28 de fevereiro de 2015

O Exorcista ("The Exorcist", 1973, William Friedkin) Encolha-se novamente de medo com um dos filmes mais aterrorizantes e queridos de nossa época, 40 anos após sua estreia!Como o tempo voa, não?!

E lá se vão pouco mais de 40 anos desde que William Friedkin abriu como mestre de cerimônias a mais prolífica, produtiva Era do Cinema Moderno, uma década onde blockbusters ainda tinham alma e eram dirigidos por cineastas com visão, um tempo que refletiu o turbilhão político & social de seu meio - e do de muitos outros países, mundo afora - com thrillers corajosos produzidos por estúdios ainda engajados com uma mensagem, e não necessariamente com a perspectiva de receitas financeiras. O sucesso de tais filmes nas bilheterias está para ser rivalizado, todavia, naquela época, dinheiro jamais ficou `a frente da criatividade e da expressão artística. Em todas as alçadas, o cinema fantástico se viu em franca ascensão. Os filmes rodados no regime dos grandes estúdios permitiam a seus diretores ampla liberdade criativa sobre o produto final, e o cinema alternativo independente, onde a contracultura encontrava substrato para sobreviver e até mesmo florescer, recebia o mesmo tratamento, tendo seus títulos ao lado dos de blockbusters na mesma marquise. Quando imaginaríamos filmes de baixo orçamento exibidos no mesmo teatro onde coisas grandiosas como "Star Wars" também atraiam multidões?Nos anos 70, a harmonia da diversidade deu o tom certo a mais saudosa década do cinema, quando as câmeras capturaram as contradições de um mundo e sociedade em plena, rápida transformação.

Friedkin "passou a tesoura na faixa", inaugurando os anos 70 com o primeiro legítimo arrasa quarteirões de Ação, "Operação França", o filme de 1971 que lhe valeu o Oscar de Melhor Diretor e deu autoridade para que rodasse o que quisesse em Hollywood. Brian De Palma surgiu logo após, para iniciar uma prolongada disputa com o italiano Dario Argento pelo lugar de mestre do suspense deixado vago por Hitchcock. No Canadá, David Cronenberg capturava suas peculiares obsessões, gerando um tipo de Horror mais visceral & psicodélico, completamente destoante dos clássicos poeirentos da Hammer, que viria a dominar com maestria mais tarde, ao exercitar a elegância e a contenção vindas naturalmente junto `a experiência. O britânico John Boorman adaptou o romance de James Dickey, dando-nos um dos filmes mais importantes de todos os tempos, "Deliverance", a epítome do Horror Homem vs. Natureza que consagrou Jon Voight como um dos atores mais importantes de sua geração, e transformou o então desconhecido Burt Reynolds em astro e campeão de Bilheteria daquele período, década de 70. Steven Spielberg & George Lucas surgiram como "sangue novo" de uma indústria que se reinventava de fora para dentro, adaptando-se aos moldes de uma entusiasmada sociedade que consumiria os arrasa quarteirões e transformaria os agentes de mudança em força criativa.

Quatro décadas mais tarde, evidências de semelhante renascimento artístico são observadas com a chegada desse novo pessoal que veio para tomar conta - James Wan o "Steven Spielberg" da nova geração de 2010 - porém com todas as proezas que hoje lotam as salas de multiplex, improvável que em nosso tempo voltemos a observar um fenômeno tão fantástico quanto aquele observado nos anos 70. E para compreendermos como funciona a mente desses novos talentosíssimos cineastas, precisamos revisitar os filmes responsáveis pela sua formação. Ao entrarmos no túnel no tempo para passear um pouco pelas alamedas da recordação, poderíamos nos perder tamanha a variedade de fantásticas fantasias que os mestres dos passados nos deixaram, mas se todas as estradas levam a Roma, então todos os túneis nos carregarão de volta a Junho de 1973, quando "O Exorcista" estreava nas salas do cinema para apavorar plateias e trazer dividendos na ordem de 441 milhões de dólares.

Norte do Iraque. Durante os trabalhos de escavação nas ruínas de um sítio histórico na fronteira com a Síria, Padre Lankaster Merrin (Max von Sidow) descobre, entre artefatos de pouco interesse, uma pequena carranca referente a um dos demônios expulsos por Deus do paraíso. Merrin é um incansável arqueologista que coloca a vida em risco pelas causas da Igreja, e vemos que a insalubridade do trabalho sob o Sol escaldante do deserto começa a pesar sobre sua saúde. Sentado em uma feira local, assistimos quando a um passo do infarto precisa tomar pílulas para o coração doente. De posse da carranca, ele se despede do responsável pela coordenação dos trabalhos. Habilidoso na arte de sugerir sem precisar mostrar, o diretor William Friedkin nos dá várias deixas de que logo o confronto do Bem contra o Mal começará: o idoso quase é atropelado por uma carroça quando os cavalos se descontrolam, e ao visitar o deserto por uma última vez para observar a estátua do demônio, chamado Pazuzu, cães se mordem em uma feroz briga de morte, como incitados por uma força maléfica invisível. Merrin sabe em seu íntimo que logo mais será chamado para a mais importante batalha de sua vida. A cena, um primor de montagem, consiste em um take apenas, que captura a figura do heroico idoso, fisicamente vulnerável mas com o espírito cheio de fé, ali sobre uma rocha, e na outra rocha, no oposto das escavações, a estátua do assustador demônio alado, enquanto ao fundo escutamos os grunhidos dos cães se matando, e vemos o Sol se pôr.

O filme corta para Georgetown, Washington. Chris McNeil (Ellen Burstyn) é uma atriz muito requisitada, passando uma temporada na cidade para rodar um drama estudantil filmado no campus da universidade. Consigo, Chris trouxe a filha Regan (Linda Blair), e as duas estão habitando uma linda casa vitoriana nas vizinhanças do campus. Chris é uma mulher que se desdobra para honrar com as demandas da carreira e manter-se uma mãe presente. Nem tudo é perfeito, contudo, há uma ruptura na família, a atriz e o marido passam por um processo de separação. Na medida do possível, a solitária adolescente Regan tem suas necessidades emocionais supridas pela mãe e pela secretária pessoal Sharon (Kitty Winn). Chris está repassando as falas para as filmagens no dia seguinte, quando barulhos no sótão lhe chamam a atenção. Ela vai verificar a filha, que está dormindo, e encontra as cortinas se batendo por causa do vento. Chris fecha as janelas e durante o café da manhã instrui o secretário Karl a preparar armadilhas, vez que roedores parecem a provável causa dos ruídos.

Burke Dennings (Jack McGowran) é o diretor do filme, e vemos sua equipe trabalhando em uma cena rodada no meio dos universitários, Chris fazendo um discurso para os estudantes, com o megafone. Quem está casualmente por ali para assistir `as filmagens é o Padre Karras (Jason Miller), um jovem sacerdote que, aprenderemos, será o grande herói dessa história. Ao final do dia, Chris dispensa o motorista e prefere caminhar para casa. É Outono, folhas amareladas caindo, arrancadas pela ventania forte. Pela primeira vez, escutamos a melodia para sempre vinculada a "O Exorcista", "tubular bells", acompanhando a atriz em sua caminhada pelas calçadas. Há uma cena muito significativa, quando Chris passa na frente da paróquia, e `a distância, pela primeira vez, enxerga o Padre Karras. Algo no sacerdote lhe chama a atenção, e mesmo `a distância, pelo pouco que escuta da conversa de Karras com um outro padre, a atriz percebe que ele parece um homem atormentado.

Na cena seguinte, quando Chris chega a casa, Friedkin nos introduz `a dinâmica do lar. Sharon, a secretária pessoal da atriz, faz as vezes de melhor amiga para a garota. A interação entre atriz e filha nos prova que Chris é uma mãe preocupada com seu bem estar, e Regan, uma jovem absolutamente saudável e feliz, espevitada como toda garota de sua idade. Regan está decidida a convencer a mãe a comprar um pônei, e Chris promete pensar a respeito quando voltarem para casa, após as filmagens. A garota rouba um biscoito de chocolate da jarra, e sai correndo, a mãe no encalço, as duas dando gargalhadas e brincando com muita descontração. Chris a apanha e as duas caem no chão, mãe tentando recuperar o biscoito da filha antes que o coma, ambas `as gargalhadas. A cena, é claro, terá ressonância mais tarde, pois voltaremos a vê-las lutando, não em brincadeira e descontração, mas em absoluto desespero, quando o trem sair dos trilhos.

Nova York. De passagem visitando a mãe, Padre Karras apanha o metrô para voltar para casa, e um mendigo de aparência misteriosa o interpela, perguntando se não teria uma moeda para um ex-coroinha. Karras visita sua adorável mãe, uma velhinha viúva que mora em um simplório apartamento no Brooklyn. Por fotos em porta-retratos, aprendemos um pouco sobre o passado de Karras; por exemplo, ele foi pugilista na juventude, e também guardou recordações de uma namorada que marcou sua vida antes que optasse pela vida de sacerdócio. Karras encontra a velhinha dormindo na cadeira de balanço da sala, diante do aparelho de rádio, e quando ela o vê, o cobre de carinho, tratando-o como se fosse um menino. A velhinha sofre de dores nas pernas, mas o pior se deve mesmo `a solidão. Karras não se sente bem por deixá-la ali, sempre solitária. Gostaria de levá-la para um asilo, um lugar onde pudesse receber cuidados de enfermeiras e médicos, mas a velhinha não aceita deixar o apartamento, o único lugar onde se sente segura. Quando Karras parte, já é tarde. A velhinha dorme na cadeira de balanço. Karras deixa um dinheiro sob o rádio e a beija na cabeça. Apesar de se esforçar para ser um bom filho, compreendemos a natureza da culpa que o consome. Ele deixa Nova York e volta para Georgetown.

No salão de jogos da casa de Chris, mãe e filha conversam descontraídas, e Regan lhe mostra uma figura feita de massa de modelar, criada pela própria. De alguma maneira, algo no boneco nos faz pensar nas formas da estátua do demônio Pazuzu, encontrada pelo Padre Merrin no Norte do Iraque. Chris descobre uma tábua Ouija, e pergunta onde a filha encontrou o brinquedo. Regan responde que achou a tábua assim como a todas as outras coisas do salão, por acaso. E não apenas isso, vem utilizando a tábua para conversar com seu mais novo "amigo", a quem chama "Capitão Howdy". Ela resolve mostrar `a mãe como funciona o diálogo com o "Capitão Howdy", e segurando o ponteiro sobre a tábua, pergunta se "Capitão Howdy" acha a mãe bonita. O ponteiro não se move. Regan explica que "Capitão Howdy" é tímido e não quer brincar com a mãe por perto. Nenhuma das duas imagina o horroroso perigo envolvido na "brincadeira" e as intenções de "Capitão Howdy", na verdade um demônio perigosíssimo que não demorará a mostrar suas intenções.

Há um doce momento entre Chris e Regan, quando a mãe põe a filha para dormir, e a menina vocaliza os temores de que ela se case com Burke. A mãe ri de tudo aquilo e garante que não passa de tolice, pois gosta de Burke, mas apenas como amigo. Chris revela que ainda ama o pai de Regan, porém, como sabemos, há muitos problemas pendentes entre os dois. Nesta cena, a vulnerabilidade da garota, porta perfeita para a entrada do demônio, fica patente: ela se sente culpada pela cisão no casamento.

Em um bar local, Karras desabafa com o veterano Padre Tom. Ele fala sobre a culpa que sente em relação `a condição da mãe. Karras sugere a possibilidade de transferência para Nova York, onde poderia cuidar melhor da velhinha, pois não haveria mais o distanciamento, todavia Padre Tom insiste que mesmo em meio a uma crise de fé, Karras deve permanecer em Georgetown, pois é o melhor dos jovens padres. De volta `a casa dos McNeil, Chris está furiosa, ao telefone. Ela tenta uma ligação com o ex-marido, que está na Europa, mas a telefonista não consegue completar a chamada. Chris não acredita que ele foi capaz de se esquecer do aniversário de Regan. A atriz xinga a telefonista, enquanto, do corredor, Regan escuta a tudo, obviamente chateada pelo esquecimento. Durante a madrugada, Chris é despertada pelo telefonema de alguém da produção. A presença de Chris é requisitada para a filmagem de uma determinada cena do roteiro. Meio a contragosto, avisa que estará a caminho, e ao se virar na cama para levantar, vê que a filha dorme ao lado.

Aqui, surgem os primeiros indícios de que algo de errado acontece com a adolescente e a casa. Regan se queixa de que não consegue dormir na própria cama, pois "fica fazendo barulhos estranhos". Novamente, a atriz escuta ruídos vindo do sótão, e sobe para investigar, certa de que se tratam de ratos. Chris acende uma vela para enxergar melhor no breu. Nada particularmente sobrenatural acontece, porém a cena definitivamente eriça os cabelos da nuca. Há alguns bustos de manequins, e a imagem daquelas figuras em um lugar tomado pela escuridão parece enervante. Subitamente, a vela quase se torna uma tocha quando o fogo aviva sem motivo aparente. A cena foi homenageada pelo grande James Wan, em "Sobrenatural", onde recriou um momento muito parecido para a personagem de Rose Byrne. Os ruídos não se devem a ratos. As ratoeiras não foram sequer tocadas. Chris não faz ideia do que está acontecendo.

Friedkin sugere a presença de uma força demoníaca em Georgetown, pois naquela manhã, ao levar flores para o altar da paróquia, um sacerdote encontra a imagem de Maria terrivelmente vandalizada, com chifres saindo pelo peito, uma cauda pelo ventre. Friedkin não elabora quanto `as circunstâncias, e o filme não tocará novamente na  vandalização da imagem de Maria, mas sou tentado a acreditar que o deboche a tão sagrada representação seja obra da mesma força macabra agora ativa na vida da menina. Chris é ateísta, e logicamente procura a ajuda de médicos para os ainda discretos problemas da filha. No consultório, a menina é submetida a uma bateria de exames mais simples, como o exame de sangue, e o eletrocardiograma. Enquanto os aparelhos realizam a leitura da frequência de ondas cerebrais, Regan parece pensativa, contemplativa. Enxergaremos a primeira aparição do demônio Pazuzu, representado por um rosto muito branco com dentes afiados e expressão de puro ódio, pronunciado em meio `a mais pura escuridão. A aparição não dura mais do que um segundo, todavia a partir deste momento não duvidaremos de que os problemas da garota estão fora da alçada médica. Durante a bateria de testes, Regan se comporta de forma esquisita e até mesmo xinga o médico. Dr. Klein afirma a Chris que os problemas de Regan devem-se aos nervos, ou seja, aparentemente não há nada de anormal no corpo. A mente, no entanto, não vai bem. Chris pergunta se o stress causado pela separação pode somatizar no precário estado psíquico da menina, e Klein responde que provavelmente sim. Por ora, recomenda o uso de antidepressivos.

As coisas também não vão bem para Padre Karras. Ele é chamado `as pressas quando a mãe sofre uma piora. Quando vai procurá-la, descobre que foi internada na ala psiquiátrica de um hospital público. Preparando-se para entrar para vê-la, seu tio, sem intenção, faz um comentário que inflama ainda mais a culpa de Karras, algo nas linhas de que se tivesse optado pela Psiquiatria, e não pela vida do sacerdócio, seria hoje um médico muito rico proporcionando um fim de vida mais digno para a mãe. Para cada canto onde olha procurando algo que lhe devolva a fé, Karras somente encontra culpa e remorso. Naquele lugar triste, outras pacientes se aproximam com seus delírios, julgando-o um parente perdido. Com jeito, ele se desvencilha daquelas pessoas perdidas e doentes. O reencontro com a mãe o afunda ainda mais na depressão. A velhinha chora e pergunta como o filho foi capaz de metê-la em um hospital psiquiátrico. Karras tenta se explicar, os olhos cheios de lágrimas, mas a mãe não quer escutá-lo, e pede para que a deixe em paz. Karras procura a academia de boxe. Com murros no saco de pancadas, descarrega a fúria que sente por si mesmo, pela impotência em cuidar da própria mãe.

É noite de festa na casa em Georgetown. A atriz organizou um encontro para a equipe de filmagem, políticos e personalidades. Somos apresentados a um outro importante personagem, o jovem Padre Dyer. Ele é o melhor amigo de Karras, e com seu bom humor e irreverência, aparece em momentos cruciais para aconselhá-lo. Padre Dyer compreende Karras como poucos, portanto quando Chris tem a oportunidade de se sentar com Dyer para drinques, pergunta-lhe sobre Karras. Como sabemos, Chris só o viu uma única vez, o suficiente para deixar uma forte impressão. Dyer diz `a atriz que Karras é psiquiatra da paróquia, e que sua vida não anda nada bem. Dyer conta que a mãe de Karras morreu na noite anterior. Chris escuta a tudo pensativa, e parece genuinamente aborrecida ao saber sobre a perda de Karras.

Em outro lugar da festa, Burke Dennings está amolando a paciência do empregado Karl, chamando-o de nazista safado. Ele só se dá por satisfeito ao fazê-lo perder a cabeça. Chris e Sharon separam os dois, e põem Burke dentro de um táxi, pois o diretor bebeu além da conta e fará melhor descansando. Chris acredita que Regan dorme no andar superior, alheia `a festa. Os convidados se reúnem em volta do piano, enquanto o boa praça Padre Dyer o toca fabulosamente. Quando Regan subitamente aparece na porta, Chris e seus convidados se surpreendem. Como que hipnotizada, avisa a um astronauta presente "Você vai morrer lá em cima", e então urina nas calças. Chris se desculpa pela desagradável cena, e leva a filha para cima. Depois que a festa termina, Chris dá um banho em Regan e diz que tudo acabará bem. Ela a põe para dormir, mas a filha é assaltada por uma força invisível que sacode a cama. Chris a abraça, apavorada, a cama saltando do chão como se dotada de vontade própria.

Padre Dyer visita Karras no dormitório, trazendo consigo uma garrafa de whisky. Ele sabe o quanto o amigo se sente arrasado pela morte da velhinha, e está ali para lhe dar uma força e embebedá-lo um pouquinho, qualquer coisa para fazê-lo suportar a dor da primeira noite sem a mãe. Karras chora, queixando-se de que deveria ter sido um filho melhor, mas Dyer, com seu jeito brincalhão e positivo, imediatamente o silencia, "Cala a boca, não havia nada a ser feito, cale-se e vá dormir". Mesmo em sua pequena participação, Padre Dyer é uma figura muito querida. Sua irreverência o aproxima da linguagem dos mais jovens, o tipo do cara que consegue pregar a mensagem de Cristo  com o bom humor que torna seu alcance muito amplo, principalmente entre a juventude. Assistindo ao filme, gostei tanto de sua participação que me perguntei se Friedkin não poderia tê-lo usado melhor na segunda metade da história. Todas as suas intervenções, por mais breves que pareçam, oferecem ainda mais peso, dimensão e significado aos personagens centrais.


Aqui, a meu ver, vem uma das cenas mais queridas e memoráveis. A maioria das pessoas se recorda de "O Exorcista" por seus momentos mais inquietantes, todavia por mais estranho que pareça, a sutileza desta cena que descreverei permaneceu comigo ao longo dos anos. O diretor William Friedkin nos mostra Padre Karras pegando no sono, escorregando para uma noite de sonhos ruins e esquisitos. Nós vemos uma medalhinha - um dos apetrechos descobertos por Merrin no Norte do Iraque - caindo, e então um pesadelo onde, do outro lado de uma movimentada rua no Brooklyn, Karras assiste `a mãe ascendendo pelas escadas do metrô `a calçada, em uma movimentada manhã qualquer. Ele parece surpreso ao vê-la viva e acena desesperadamente para que o espere porque quer conversar. A velhinha o vê, mas parece se lamentar. Pela boca, vemos que ela está dizendo "Dimmy" (o primeiro nome de Karras é Damien, e em vida a mãe o chamava carinhosamente de "Dimmy"). Ela dá as costas e volta pelas mesmas escadas de onde surgiu,enquanto Karras fica berrando do outro lado, tentando atravessar a rua antes que a mãe desapareça no metrô. Há algo de memorável na sequência, talvez o seu silêncio (a cena se dá nas calçadas do Brooklyn, mas Friedkin subtrai o áudio) apenas realce a dor da perda de Karras. Eu tenho uma avó por quem sou louco, e ela é quase uma cópia da velhinha mãe do Karras. Não há um sábado que eu deixe de vê-la, sempre pela manhã, apenas para dizer que a amo, e mesmo hoje, tantos anos após assistir ao filme pela primeira vez, quando estou com minha avó, penso nessa sequência do Karras correndo desesperado pela rua enquanto a velhinha desaparece nas escadas do metrô. A vida segue indiferente, carros passando, gente caminhando normalmente, enquanto o padre acena como desesperado, suplicando para que o espere. Imagino que sua força se deva `a fidelidade com que retrata a dor da perda. Justamente no sono, por causa de um pesadelo, a ficha finalmente cai, e Karras se toca de que nunca mais a verá.

Enquanto Karras conduz a missa pela memória da mãe, Chris lida com o drama da filha. Dr. Klein crê que talvez Regan esteja com um tumor no lóbulo frontal, o que explicaria o comportamento esquisito e a cama saltitante. Novos exames são realizados, e nenhum tumor é acusado. O comportamento de Regan em casa piora violentamente. Quando Dr. Klein e seu colega aparecem para uma visita, encontram-na sofrendo convulsões. Não parece logicamente razoável que uma adolescente magrinha tenha força suficiente para se debater daquele modo. Dr. Klein se aproxima e é duramente golpeado. A menina começa a exclamar toda sorte de obscenidades. São precisos dois homens fortes para segurá-la de modo que Dr. Klein consiga administrar o calmante. Depois que os ânimos se acalmam, médicos e mãe conversam atônitos sobre o ocorrido. Chris pensa que talvez a filha esteja sofrendo de múltiplas personalidades, mas os médicos ainda querem realizar uma bateria de testes para excluir outras possibilidades físicas. Os resultados novamente não apontam problemas de saúde, e naquela noite ao voltar para casa, Chris resolve seguir a orientação do Dr. Klein. Chegou a hora de procurar um psiquiatra. No caminho para casa, aos pés das escadarias, Chris enxerga uma comoção, policiais e ambulâncias ali perto. Ela não dá muita atenção, só quer ficar perto da filha.

Chris entra pela cozinha, com o telefone chamando insistentemente. Ao atender, a ligação cai. A luz oscila, ora acendendo, ora apagando, e William Friedkin cria um momento muito impressionante. Se os amigos prestarem atenção, verão, em um desses "vai-e-vem" da energia, a imagem do demônio sorridente ao fundo. Chris, claro, não enxerga o espírito macabro, mas sente a sua presença. A atmosfera de tensão é incomparável. Chris fica irritada por não encontrar Sharon em casa. Para piorar, dá pelas janelas do quarto de Regan abertas. Quando Sharon retorna, Chris a cobre de desaforos. A secretária disse que havia ido `a farmácia, e deixara Regan sob os cuidados de Burke Dennings, que aparecera por ali e topara ficar com a adolescente. Chris conta desanimada sobre os exames, quando alguém bate na campainha. O motorista aparece com péssimas notícias. Burke está morto. Caiu das escadarias e quebrou o pescoço. A situação, anteriormente explosiva, parece mais grave do que se pensava. Teria a adolescente participação na morte do diretor?Em estado de completo choque, Chris testemunha quando a filha desce as escadas de quatro e de costas.

Em uma sessão conduzida no quarto da menina e assistida por Chris e Dr. Klein, o psiquiatra procura encontrar explicações através da hipnose. Regan responde que sim, há uma pessoa dentro dela, a quem se refere como "Capitão Howdy". O demônio não é um segmento de sua imaginação, mas uma entidade em separado. Regan exala cheiros horrorosos pela boca, e suas feições de adolescente bonita subitamente tornam-se carrancas demoníacas. Nem mesmo o psiquiatra sabe como ajudar a garota, vez que a manifestação não se enquadra no quadro clássico de múltiplas personalidades.

Através de um belo take realizado `a distância, acompanhamos o Padre Karras correndo pela pista de atletismo do campus, observado pelo Tenente Kinderman (Lee J. Cobb). O tenente pergunta a Karras se sabe de algo sobre a morte de Burke Dennings. Karras conhece apenas o que leu no jornal, e Kinderman tem fortes motivos para suspeitar de que alguém de dentro da casa de Chris tenha cometido o homicídio. Ele não crê em acidentes. A forma como a cabeça de Burke foi encontrada virada sugere que o homem estava morto antes de ser lançado. Como psiquiatra da paróquia, Karras diz que não conhece ninguém que considere suspeito. O bonachão Kinderman ama cinema, e determinado a conquistar a confiança e amizade de Karras, convida-o para um filme. Karras promete que se se recordar de alguém que julgue capaz de ter cometido o assassinato, o procurará.

Uma junta médica se reúne, e a única solução encontrada parece ser a realização de um exorcismo. Como homem de ciência, o doutor não acredita em possessão demoníaca, mas crê que a sugestão do ritual libertará a mente da menina de seja lá o que for que a esteja possuindo. Kinderman aparece para prestar uma visita, depois de encontrar, na base das escadarias, uma figura feita de massa de modelar. No comentário gravado especialmente para o lançamento em DVD, William Friedkin refere-se `a cena a seguir - a visita de Kinderman - como sua predileta. Kinderman & Chris conversam `a mesa, entre goles de chá. Kinderman não diz tudo o que pensa, mas é óbvio que não acredita na hipótese de acidente. Em seu íntimo, Chris questiona se a filha teria forças para arremessá-lo pela janela, e obviamente não deseja mostrar fraqueza ao tenente, vez que não quer atrair atenção desnecessária. Durante a conversa, Chris acaba revelando que a filha se encontra doente, mas não toca na natureza do impasse. Na cozinha, Kinderman encontra mais bonecos de massa de modelar, e a convicção de que a menina esteja envolvida na morte de Dennings ganha forma. O tenente se despede, e a paz não dura muito. Regan manifesta a possessão, usando poderes telecinéticos para arremessar um armário contra a parede. Com o sotaque britânico de Burke, ela pergunta para Chris, em uma cadência alcoolizada, se a atriz imagina "o que a vadia da filha fez".

Será a partir daí que Padre Karras entrará na vida de Chris. A atriz marca um encontro com Karras, e a forma como inspira confiança a estimula a se abrir. Chris prefere levá-lo para casa, para que veja com os próprios olhos o que está se sucedendo com a filha. Apesar da chocante aparência visual, Padre Karras ainda crê que deva haver uma explicação psiquiátrica para o problema. Regan está com os pulsos amarrados e a aparência desfigurada. Malicioso, o demônio faz joguinhos psicológicos com Karras, imitando, por exemplo, o mendigo do começo do filme.  Regan vomita em jato no rosto do padre.

Chris lava e passa a camisa de Karras. Os dois têm a oportunidade de conversar melhor sobre a questão. Apesar do entusiasmo de Chris pela ideia do exorcismo, Karras trata de mantê-la com os pés no chão, lembrando-lhe as dificuldades envolvidas em conseguir autorização do Vaticano para o ritual. Para Karras, o melhor para Regan seria uma estadia de seis meses no melhor hospital psiquiátrico da América do Norte. Em seu âmago, Chris sabe que "aquela coisa lá em cima não é sua filha". O sofrimento de mãe acaba por mexer com a cabeça de Karras. Apesar de reticente, topa acompanhar o caso.

Karras se vê intrigado pelo fenômeno, e passa a noite no laboratório de áudio/imagem do campus, onde escuta a gravações da voz de Regan, datadas de tempos mais felizes, quando declarava amor ao pai. Ele não compreende como uma adolescente tão comum se transformou no monstro malicioso que encontrou amarrado `a cama. O estudo da voz de Regan após a possessão revela que, quando rodada ao contrário, o demônio clama algo nas linhas de "Dê-nos tempo!Merrin!". Pazuzu está convocando, portanto, o Padre Merrin para o confronto final. Quando Karras volta para vê-la, Regan fala perfeito latim, o que deveria ser impossível. Ela também move gavetas com o poder da mente. Da noite para o dia, seu abdômen surge grafado com o pedido "Ajudem-me". As evidências de possessão são riquíssimas, e Karras não custa a procurar seus superiores para obter autorização para o ritual. O nome do Padre Merrin logo é cogitado, e quando o descanso do sacerdote é interrompido, ao o vermos interpelado durante a caminhada matinal para receber um telegrama, sabemos que a hora da verdade chegou.

Em uma noite fria, o Padre chega à casa em Georgetown, para o confronto definitivo. Antes de começar, isola-se na sala, ao lado da lareira, para fazer uma prece a Maria. Ele faz uma preleção a Karras, antes de entrarem no quarto, e trata de alertá-lo a não dar ouvidos ao demônio. Merrin já enfrentou Pazuzu anteriormente, um caso na África que durou meses e quase lhe custou a vida. O demônio é ardiloso, e sabe misturar verdade com mentira para mexer com o psicológico dos sacerdotes. Em um emocionante instante, antes de entrarem, Chris olha para os dois, cheia de angústia e expectativa, do corredor. Merrin lhe dá um pequeno, confiante sorriso, certo de que tudo acabará bem.

Regan os recebe com os insultos de costume, escarrando a gosma cor de abacate no rosto de Merrin. O frio ali dentro é tremendo. Diante do poder da oração, o demônio se enfurece e começa a insultar a mãe de Karras, serpenteando a língua muito fina em vai e vem. A pesada cama levita bem diante dos olhos dos padres. A influência do demônio vai além do quarto. Mesmo no banheiro, Merrin é atormentado por portas de armário batendo insistentemente. A cabeça da menina gira em um ângulo impossível de 360 graus, e o demônio novamente lança sua metralhadora verbal sobre Karras, afirmando que sua falha em cuidar da mãe efetivamente causou sua morte. A batalha entre Bem & Mal segue indefinida, ora com os padres em vantagem, ora o demônio fazendo uso de poderes telecinéticos para arremessar coisas sobre os dois. Karras e Merrin descansam nos degraus da escada, preparando-se para a segunda rodada do confronto. O coração do idoso está para falhar, mas ele engole suas pílulas a tempo. Quando Karras volta ao quarto sozinho, ao invés de enxergá-la, vê a velhinha. Atado à cama, o demônio fala com a voz da idosa, e pede para que a desamarre. Karras perde as estribeiras e berra que o demônio não é sua mãe. Merrin ordena que deixe o quarto para se recompor emocionalmente.

Quando Karras retorna para o quarto, determinado a acabar com o impasse, encontra Padre Merrin morto. Seu coração não suportou o confronto. Ao enxergar o desalento no rosto de Karras, o demônio dá risadinhas de felicidade. O jovem padre avança como um expresso contra o demônio, e os dois saem rolando pelo chão. Karras desafia Pazuzu a possui-lo e, com isso, o demônio deixa o corpo da menina para tentar tomar conta do padre. Escutamos o choro e os pedidos de Regan pela mãe, com sua voz de adolescente. As feições de Karras se contorcem, o demônio definitivamente fazendo do rapaz sua nova morada. Reunindo toda a fé, mais intensa do que nunca após as adversidades, Karras consegue ser mais forte que Pazuzu, investindo contra a janela e arremessando-se das alturas, levando consigo o espírito maligno. Em seu heroico sacrifício, Karras arranca o demônio daquela casa, mas sofre uma terrível queda, indo parar aos pés da escadaria. Chris e Kinderman entram afoitos no quarto. Apesar de encontrarem Regan aos prantos, a menina finalmente está bem. Kinderman assiste à comovente reunião entre mãe e filha, abraçadas no chão, absolvidas do pesadelo. Uma multidão se forma aos pés da escadaria, e escutamos as sirenes das ambulâncias. Padre Dyer chega a tempo de conversar com seu amigo agonizante. Cheio de dor, ele se ajoelha ao lado de Karras, apertando-lhe as mãos e o absolvendo de todos os pecados terrenos. Redimido de seus erros e tendo realizado um feito verdadeiramente valoroso, Karras morre em paz como herói.

É um novo dia. Regan não se recorda de muito, e Chris é grata por isso. Mãe e filha estão arrumando as malas para deixar a casa em Georgetown. Sharon despede-se de Chris, as duas abraçando-se emocionadas, ambas marcadas pelos eventos. Apesar de algumas cicatrizes de cortes, Regan voltou a ser a linda menina que conhecemos no início do filme, antes da possessão. Padre Dyer aparece por ali para se despedir. William Friedkin fala com muito carinho sobre a próxima cena: apesar de não se recordar do que aconteceu, ao enxergar o detalhe da clesma - a gola branca sobre o fundo preto - Regan associa a figura do Padre a algo positivo e inspirador, e mesmo sem conhecê-lo, dá-lhe um abraço muito, muito apertado, e um beijo, antes de entrar no carro. No comentário gravado para o lançamento em DVD, Friedkin discorre sobre o quanto aprecia o discreto, significativo instante, como se o subconsciente de Regan tivesse preservado a lembrança do heroísmo de Karras e do sacrifício para livrá-las da influência nefasta do demônio. Padre Dyer vai se afastando, assim como o automóvel que leva mãe & filha. Quem o encontra nas imediações é tenente Kinderman. Após tanta tristeza & dor, o filme termina em uma nota bem humorada, Kinderman oferecendo a Padre Dyer um ingresso extra para um filme em cartaz.

Baseado no romance homônimo de William Peter Blatty, a seu turno inspirado em uma história real (pesquisem o caso "Robbie Mannheim"), "O Exorcista" ocupa a posição n. 03 dos 100 Filmes Mais Apavorantes de Todos os Tempos do Bravo Channel ("Audition" também participa desta lista, porém mais abaixo), e primeiro lugar como o mais aterrorizante, na opinião da Entertainment Weekly. Indicado a 10 Oscar, inclusive Melhor Filme (o primeiro filme de Horror a merecer a honra), "O Exorcista" pode ser considerado simultaneamente bênção e maldição para os artistas envolvidos. Em que pese as pessoas apenas sonharem em ter seus nomes associados a algo tão grandioso, legado da Era de Ouro de Hollywood, nenhum dos atores ou membros da equipe conseguiu deixar a sombra projetada pelo seu estrondoso sucesso. William Friedkin, que apenas dois anos antes ganhara o Oscar de Melhor Diretor por "Operação França", jamais voltou a produzir algo de semelhante importância, embora tenha revisitado ocasionalmente o gênero e feito o maravilhoso "A Árvore da Maldição", que mesmo muito inferior a "O Exorcista", foi um dos melhores suspenses da década de 90. Se os amigos não viram "A Árvore da Maldição", de William Friedkin, procurem assistir.

Antes de "O Exorcista", Max von Sidow, o veterano que dá vida a Padre Merrin, construíra sua carreira em conceituados filmes do celebrado Ingmar Bergman. Ao longo das décadas, von Sidow tem se mantido um ator muito cobiçado, presença em filmes importantes e premiados. A durabilidade de von Sidow me faz pensar na carreira de outro veterano, Christopher Plummer. Tanto von Sidow como Plummer são sobreviventes, e atuam tanto em obras primas, quanto em coisas menores e irrelevantes. No esquema maior, todavia, ambos sacramentaram seus rostos no riquíssimo imaginário do cinema mundial. Em grande filmes, dão performances merecedoras de aclamação e Oscar, e em filmes simplórios e sofríveis de ação, como vilões, tratam o material com a mesma seriedade e dedicação reservadas `as obras primas. Plummer & von Sidow são autênticos profissionais!

Talvez mais lembrado pelo papel de Padre Karras, os olhos tristes de Jason Miller deixaram uma marca duradoura, compondo com perfeição o turbilhão interno e a culpa que corroem a alma de seu personagem. Mais atuante como dramaturgo, Miller ganhou um Pulitzer pela sua peça "That Championship Season", e dedicou a vida ao teatro. Miller nos deixou prematuramente em 2001, aos 62 anos, vítima de um infarto. Os desdobramentos da escolha de Friedkin por Miller, para o papel de Karras, muito nos revelam sobre a turbulenta relação do diretor com um outro ator muito querido que também já partiu, Roy Scheider. Vocês se lembrarão de Scheider pelo seu mais famoso papel, o do Xerife Brody, herói de "Tubarão", de Steven Spielberg, o filme que o lançou ao estrelato em 1975. Pois bem, os caminhos de Scheider & Friedkin se cruzaram pela primeira vez em 1971, quando o ator trabalhou ao lado de Gene Hackman em "Operação França", sob a batuta de Friedkin. O diretor se recorda do profissionalismo e dedicação de Scheider `as duríssimas filmagens. Os dois criaram o tipo de confiança profissional que se vê apenas raramente em uma indústria tão volátil. Dois anos mais tarde, quando Friedkin iniciava o processo de casting para a adaptação do romance de Blatty, "O Exorcista", Scheider pediu ao diretor a chance de interpretar Padre Karras, um papel que a maioria dos atores daria mesmo o braço pela oportunidade. Por razões que interessam apenas a Friedkin, Miller & Scheider, o diretor acabou escolhendo Jason Miller. Sentindo-se traído, Scheider nunca mais o perdoou. Alguns anos se passaram, e com o sucesso inimaginável de "Tubarão", em 1975, Scheider se tornou um dos ícones do quintessencial blockbuster americano. Friedkin & Scheider se encontrariam novamente em 1977, quando Friedkin o contratou para viver o protagonista de "Sorcerer", um ambicioso filme rodado nas selvas da República Dominicana, sobre quatro prisioneiros que resolvem transportar um caminhão com a carga cheia de nitroglicerina, através de uma selva hostil, em troca do perdão de suas penas. Quando Friedkin & Scheider se reencontraram para rodar o filme, em 1977, Roy se tornara um astro de estatura, e não tendo esquecido que Friedkin o preterira para "O Exorcista", ambos transformaram as filmagens em um verdadeiro inferno. Inimigos atrás das câmeras, o fato de o filme ter sido terminado é um milagre. Independente de quem tenha razão, "Sorcerer", conhecido no Brasil como "Comboio do Medo", foi aclamado pela crítica como a última grande obra-prima dos anos 70, e permanece o trabalho preferido do cineasta, aquele do qual mais se orgulha. Scheider e Friedkin se tornaram inimigos velados e deixaram de se falar, contudo três décadas mais tarde, quando Scheider nos deixou, levado por câncer de pele, Friedkin escreveu uma bonita homenagem para o amigo/rival, finalmente em paz com as águas passadas, grande o suficiente para enaltecer as características que tornaram Scheider um astro tão duradouro, e não deixando que suas diferenças fossem mais importantes do que os bons momentos que haviam tido juntos ao rodarem "Operação França".

A carreira de Linda Blair reflete a de um outro ator profundamente marcado pelo seu mais famoso papel, Ralph Macchio por "Karatê Kid". Apesar de indicada ao prêmio da Academia pelo seu poderoso desempenho, Linda Blair jamais teve a oportunidade de encarar a diversidade de papéis que teria provado seu incontestável valor e oxigenado a carreira com merecida longevidade. Ao mesmo tempo, Macchio criou uma performance tão icônica em "Karatê Kid", como o garoto franzino vítima de bullying que encontra seu lugar no mundo graças aos ensinamentos de um sábio mestre oriental, que não permitiu que diretores o vissem fazendo algo diferente. Por um tempo, a fórmula funcionou, mas então depois de três filmes, a franquia não teve mais para onde correr. Se ícones queridos como Blair, Macchio, Christopher Reeve & Patrick Swayze precisaram batalhar duramente para deixar a sombra projetada pelos papéis maravilhosos e imortais que os tornaram notórios, outros artistas tiveram a sorte de explorar a diversidade, mantendo-se em ativa na Indústria. Se Sylvester Stallone deve praticamente toda a carreira ao Rocky, conseguiu interpretar uma variedade de personagens queridos que o mantiveram em evidência por outras coisas que não apenas o Rocky. Não obstante os fãs da talentosa Linda Blair falarem sempre sobre a carreira ainda maior que poderia ter dito, acho que devemos ser gratos por ter feito parte de um dos melhores, se não o melhor, filme de Horror de todos os tempos. Linda Blair já conquistou seu merecido lugar ao Sol nesta importante história sobre o mistério da fé, e na vida são poucas as pessoas que realmente têm chance de realizar os sonhos.

Ellen Burstyn interpreta a mãe de Regan, Chris McNeil, mas sua performance cativante a torna mãe de todos nós. Seu amor emana tão sinceramente que o dilema que se segue à influência do demônio se torna ainda mais tocante. Somente uma atriz tão capaz quanto Burstyn poderia construir uma personagem tão rica em camadas que se explicitam a cada passagem. Em um papel anteriormente oferecido a Jane Fonda, Shirley MacLaine e Anne Bancroft, é praticamente impossível hoje imaginar outra artista que não Ellen Burstyn como a Chris McNeil. Seu trabalho em "O Exorcista" é um testamento às mães capazes de se meterem de pé diante de um trem expresso em nome do amor aos filhos. Ellen ainda contou com todo um arco para trabalhar sua personagem, com maestria vivendo a transformação de uma mulher durona que não acredita em Cristo para a mãe batalhadora que passa por uma significante transformação espiritual. Quase trinta anos mais tarde, Burstyn seria indicada ao Oscar por semelhante papel, em "Réquiem para um Sonho". Em "Réquiem", já velhinha, ela mais lembrava a mãe do Padre Karras em "O Exorcista", e sua personagem partiu meu coração. Em "Réquiem para um Sonho", Burstyn vivia uma senhora viúva e solitária cuja razão de viver girava em torno do filho, interpretado por Jared Leto. Ele era dependente de drogas, e ganhava a vida no tráfico. Quando não tinha dinheiro para heroína e crack, furtava a televisão da mãe para empenhá-la. Apesar de todos os horrores a que o rapaz a submetia, jamais deixara de crer que se tornaria um homem de valor. No filme, a Jennifer Connelly interpretava a namorada do rapaz, e a Ellen Burstyn dizia aos dois que sua maior felicidade seria vê-los se casando e prosperando e vivendo uma existência saudável e comum, juntos. Para quem conhece "Réquiem para um Sonho", a inocência dessa mamãe interpretada pela Ellen Burstyn e a forma como a vida arruína os doces e ingênuos sonhos que alimenta equivalem a uma facada no peito. Um dos filmes mais tristes concebíveis, eis mais um exemplo do brilhantismo dessa veterana, e o começo da carreira de sucesso de Jennifer Connelly, que apenas um ano após "Réquiem para um Sonho" seria lançada ao estrelato absoluto por "Uma Mente Brilhante".

A direção de Friedkin caiu como uma luva a essa história. Grandes cineastas tiveram seus nomes cotados para ocupar a cadeira de diretor, entre eles Peter Bogdanovich & John Boorman (que recusou a oferta, mas veio a dirigir "O Exorcista 2 O Herege", 4 anos mais tarde). Blatty disse que Friedkin foi o homem certo para o trabalho, pois ao assistir a "Operação França", soube que precisava da mesma energia cinética na adaptação para as telas do romance. Após o trabalho em "O Exorcista", Friedkin tentou recapturar a glória do passado com uma porção de projetos que não foram bem recebidos. Não obstante os triunfos e fracassos, examinando-se a filmografia de Friedkin, ninguém jamais poderá acusá-lo de jogar seguro. Friedkin sempre atacou os temas explosivos que outros cineastas de envergadura sequer ousaram cogitar sob temor de terem suas carreiras arruinadas. O corpo de sua obra assemelha-se ao de outro arrojado cineasta, Brian De Palma. Ambos surgiram na mesma época, começo dos anos 70, e consagraram-se como os melhores no gênero Suspense/Horror. O que minou suas longevidades foi exatamente o mesmo "problema", o destemor com que atacavam a polêmica e rodavam filmes consoante seus instintos, nenhuma importância dada aos problemas que poderiam causar. Evidentemente, houve momentos quando suas aspirações refletiram o que se espera de um blockbuster, tanto que ambos contam com sucessos comerciais absolutos de bilheteria (Friedkin com "O Exorcista", De Palma com o primeiro "Missão: Impossível"). No grande esquema, porém, nenhum dos dois preteriu a expressão artística de seus anseios e fobias em favor do status de "diretor padrão" de produções caríssimas de grandes estúdios. Eu costumo chamar "diretores padrão" de "diretores de filme de James Bond". Eles são capazes, talentosos, porém não causam dores de cabeça ou turbulência aos grandes estúdios. Há um script, uma fórmula pronta, o "diretor padrão" se enquadra, chega ao set, posiciona as câmeras, e vai assistir às filmagens sob um toldo tomando xícaras de chá, consultando o relógio de pulso para ver se está perto da hora de ir para casa. Eles são polidos, cooperativos e morrem de medo de expressar o que realmente há dentro de seus corações. Ao contrário, tanto De Palma quanto Friedkin são cães selvagens, poetas malditos, meteoros se desintegrando em plena atmosfera, consumidos pelo próprio talento e a necessidade de atear fogo às telas. Caras como De Palma, Cronenberg, Clive Barker, Friedkin, Argento... Eles não consultam relógios para ver se chegou a hora de ir para casa. Cada passo que esses caras dão guarda um propósito, um significado, seus motivos regidos pela paixão, pela emoção, às favas com a lógica ou o que o estúdio espera. Todos encararam o custo da independência artística, e pagaram preços caríssimos pela autonomia, que não devia parecer algo raro, mas sim natural a todo artista, seja qual for seu viés de expressão.

O legado de "O Exorcista" perdura nos filmes que hoje lotam as salas de cinema. M. Night Shyamalan aprendeu muito com a sensibilidade com que Friedkin tratou os personagens, e ao filmar "O Sexto Sentido", o sucesso que o projetou no cenário cinematográfico, procurou delinear seus personagens com um pouco do mesmo esmero, no caso a mãe sofredora do garotinho que vê gente morta, vivida por Toni Colette. A cisão familiar, tão sutilmente sugerida em "O Exorcista", também integra a dinâmica entre mãe e filho em "O Sexto Sentido". Parece que por trás de histórias tétricas sobre demônios e fantasmas há outras tantas sobre sentimentos mal resolvidos. A tábua Ouija como o canal de comunicação entre o mundo dos vivos & o dos mortos mereceu um filme só seu, com o recente, ótimo "Ouija O Jogo dos Espíritos". A influência de uma força satânica sobre as cabeças dos fracos e vulneráveis serviu de espinha dorsal para "Session 9", de Brad Anderson, o melhor filme da década de 2000, o mais próximo que qualquer cineasta esteve da perfeição alcançada por "O Exorcista". Parece-me que os melhores filmes conservaram consigo um pouco da fórmula `a toda prova bolada por Friedkin.

Assistindo novamente a "O Exorcista", agora mais velho, não pude deixar de concluir que após todos esses anos o filme tenha se tornado menos sobre o Horror, e mais sobre a poderosa mensagem. Apesar de inquietante, o Horror não consegue suplantar a homenagem que rende ao mistério da fé. Eu fui criado como católico, e se os amigos me perguntassem sobre crença, eu diria que apesar de não mais me considerar católico, eu definitivamente acredito em Deus e sou um defensor da Igreja. Mesmo com todas as justas ressalvas, a Igreja permanece o último bastião de defesa dos valores cristãos que vêm se perdendo. Pouquíssimas vezes antes se viu sob tamanho ataque como acontece nos dias de hoje, quase como uma propaganda velada para arruiná-la, insidiosa ao se dar na surdina, mas definitivamente presente. Prova da inteligência maquiavélica com que esse processo de eliminação se sucede, poucas pessoas sabem, mas recentemente, por exemplo, em Santa Mônica, Califórnia, foi aprovada uma lei que proíbe a exibição de presépios em espaços públicos, durante o Natal. No Brasil, escuta-se sobre a eliminação de qualquer referência ao termo "Deus" das cédulas. Há um movimento muito real de aniquilação da Fé, varrida da vida pública, um esforço para empurrá-la cada vez mais para o âmbito privado, onde seria mais simples exterminá-la, junto com a religião. Raríssimos são filmes que falam sobre todo o Bem que a Igreja fez. Lembro-me de uma entrevista de um cineasta independente, que rodou um filme sobre um herói alemão beatificado pela Igreja, Padre Rupert Mayer, conhecido como O Apóstolo de Munique. Durante a ascensão do nazismo na Alemanha, Rupert Mayer pregou ativamente contra as atrocidades cometidas por Hitler, e consequentemente foi vítima de toda sorte de perseguição. Rupert Mayer denunciou os inomináveis crimes que o regime cometia contra judeus, homossexuais,ciganos e estrangeiros, e sua coragem foi tamanha que os próprios nazistas não tiveram escolha a não ser libertá-lo, pois temiam que sua morte o tornasse um mártir. O diretor do filme se perguntava por que não foi outro cineasta, alguém mais capacitado e com maior orçamento, que contou antes tão importante história, e por que as pessoas vêm se esquecendo anestesiadas de todo o Bem, vindo da Igreja. Filmes como "O Exorcista" resgatam a fé na instituição, e quando disse que com a maturidade passei a vê-lo mais pela mensagem do que a "embalagem" de filme de Horror, foi porque à medida que envelhecemos e camadas de superficialidade vão ficando pelo caminho, passamos a enxergar o sacrifício que nossos pais fazem por nós, e portanto também o sacrifício de Karras pela mãe, inquebrantáveis atos de coragem e de fé. Maturidade muda bastante o jeito como enxergamos e nos recordamos das coisas. Foi Mike Tyson, recentemente, hoje praticamente esquecido, quem disse algo sobre a época em que estava no topo e demolia os adversários no ringue com malícia e nenhuma atenção dada aos danos que podia causar. Genuinamente arrependido, Tyson falava algo nas linhas de que naquele tempo não se importava em machucar as pessoas, "Mas naquela época, eu ainda não era Pai, então eu não tinha respeito algum pelo próximo". Quando eu o vi falando tão assertivamente, eu pensei, "Rapaz, a Vida tem batido muito nesse cara". Você só enxerga a vida tão claramente assim quando criança, e mais tarde, quando adulto, depois de apanhar muito. Quem assistiu ao filme com a faixa de comentários de William Friedkin se recordará de que o diretor afirma, ao final, que a maioria das pessoas que vê "O Exorcista" tira do filme a mesma mensagem. Se você crê que o mundo não passa de uma grande rocha estéril onde nada pode ser mais importante do que se dar bem `as custas dos outros, provavelmente o prognóstico de sua vida parecerá tão sombrio quanto a ideia; se você acredita que há uma regência de causa e consequência comandando nossas existências, que ainda vale à pena manter-se decente, e que só se pode compreender Deus por pedacinhos, cada um de nós uma determinada peça do quebra cabeça, então mesmo que o destino lance surpresas desagradáveis na sua cara, será possível contornar a tormenta, e aqui me recordo daquela cena em "Um Violinista no Telhado", de Norma Jewinson, quando o herói conversa com Deus, "Você pode tornar o caminho difícil, Deus, mas não o torne impossível". "O Exorcista" completa quarenta anos mais pertinente do que nunca, e saibam que ao alcançar os 100, quando não estivermos mais presentes, as pessoas ainda conseguirão enxergam além do Horror para compreendê-lo como um testamento `a capacidade do ser humano para o Bem, encapsulada na cena em que Karras consegue dobrar o demônio e derrotá-lo com seu sacrifício pessoal. Para mim, a referida cena - Karras se lançando pela janela para salvar a garota e se redimir da culpa, as sirenes e as pessoas aos pés da escadaria após a queda, Padre Dyer apertando a mão do amigo para absolvê-lo dos pecados e libertar sua alma - equivale, em termos simbólicos, a outros instantes do cinema que viverão para sempre, Billy Casper sublimando os horrores da infância ao treinar seu pequeno falcão em "Kes", de Ken Loach, ou o décimo quarto round de "Rocky Um Lutador", quando Rocky, que jamais tivera mesmo a chance de ganhar, consegue levar o Campeão Mundial ao décimo quarto round em uma luta disputadíssima, superando todas as expectativas, até que o Apollo o derruba com o gancho. Ele se afasta, braços erguidos em vitória, satisfeito porque está tudo acabado. Mickey, o treinador, grita para Rocky "Deitado, deitado, fique deitado!". Rocky rasteja agonizante até `as cordas para se apoiar e conseguir levantar a tempo de vencer a contagem. Apollo Creed se vira e quando assiste a tudo aquilo, Rocky se erguendo para continuar, abaixa os braços, surpreso, incrédulo que o adversário não se dê por vencido. Rocky acena para Apollo, como que dizendo "Venha me pegar", e Apollo sacode a cabeça, seu olhar abismado exprimindo "Esse filho da puta não vai se render!" e também uma porção de outras coisas, como frustração, medo, respeito, admiração, tudo simultaneamente. Significativamente, a imagem que abre "Rocky Um Lutador" é uma de Cristo com os braços abertos, no pequeno clube onde Rocky aparece lutando nos tempos de pobreza. A imagem não está ali por acaso. O processo pelo qual os personagens passam, assim como os de "O Exorcista", é por um de redenção, desde Rocky - o pugilista medíocre que todos julgavam um zero `a esquerda, mas que naqueles 15 rounds contra o Campeão Mundial mostra algo que ninguém conhecia sobre seu caráter final - a Mickey - o treinador que antes só pensava em reviver a glória do passado através da chance de Rocky quando Apollo o escolhe aleatoriamente para uma luta de exibição, mas que naquele instante do "Deitado, deitado, fique deitado!" também encontra a redenção, ao transcender a necessidade de fama e reconhecimento, rejeitando a chance de glória e escolhendo o bem-estar de Rocky, a quem Mickey vem a amar como filho, suplicando que desista para não se machucar ainda mais. Esses 3 filmes, "Rocky Um Lutador", "Kes" & "O Exorcista" não poderiam parecer mais diferentes, mas acreditem, no final, são a mesma coisa - Karras se jogando pela janela para derrotar Pazuzu, Rocky se levantando e chamando Apollo para continuar, Billy Casper com seu falcãozinho. No comentário, por inúmeras vezes, William Friedkin repete "Esse meu filme é sobre o mistério da fé". E ele estava coberto de razão.