domingo, 6 de julho de 2014

"Under the Skin" (Jonathan Glazer, 2013) Um evocativo, melancólico e misterioso conto de fadas!Impecavelmente montado e dirigido, não percam um dos melhores filmes de horror deste - ou de qualquer outro - ano!

2012 assistiu `a concepção do perturbador "As Senhoras de Salem", de Rob Zombie, um filme de horror extravagante e de difícil digestão que dividiu opiniões e foi largamente ignorado pelo grande público. Pessoas buscaram um filme de horror usual, mas se depararam com um suspense psicológico cheio de simbolismos e imagens agressivas. Parte saiu bastante decepcionada. Era impossível assistir ao filme e não reconhecer a bizarra influência de estilos tão distintos – câmeras e uso de trilha sonora remetiam a Stanley Kubrick; ritmo e erotismo, a Ken Russell, o diretor britânico de "Women in Love"; cores e extravagâncias ao Dario Argento dos delirantes anos 70. O arrecadado em bilheteria mal custeou os gastos para produzi-lo, porém "As Senhoras de Salem" veio a ter uma sobrevida exemplar no mercado de DVD. Se Rob Zombie queimou a oportunidade de se firmar como um cineasta comercialmente viável – nenhum grande estúdio lhe dará milhões para rodar o filme de sua escolha, vez que o seu estilo se provou bastante incomum, extravagante demais para a digestão do grande público – simultaneamente, agregou inestimável valor ao que ao verdadeiro artista mais importa. Mais interessante do que ser rotulado como financeiramente viável, Zombie parece preocupar-se mais em ser reconhecido como cineasta de visão. Todos os seus filmes, muito difíceis, denotaram preocupação com estilo e personalidade. Desde o primeiro, vê-se que o seu diretor é um artista metido na busca pelo aprimoramento do próprio olhar, as lentes dirigidas a suas próprias obsessões. De mais formas do que poderia citar, o que todo esse grupo conseguiu – Rob Zombie, Clive Barker, Brian De Palma, David Cronenberg, entre tantos outros – foi imbuir os seus filmes de elegância e senso de estilo. Por mais que não tenham sido inteiramente compreendidos pelo público, lhes deram a identidade que falta a diretores modernos. Com o lançamento do assombroso, ressoante "Under the Skin", os amigos podem adicionar o diretor Jonathan Glazer a esta seleta lista.

Há aproximadamente nove anos, o mesmo diretor rodou um filme cujos pontos fortes seriam aperfeiçoados para esta sua nova ficção científica. "Birth" foi lançado no começo de 2005, no Brasil, já sinalizando os traços da peculiar criatividade do diretor Glazer, que assim como acontece a todos os "autores", parece estar enraizada na influência dos mestres que vieram antes. Em tom, estilo e narrativa, "Under the Skin" difere de tudo o que os amigos já viram. Aqueles que o odiaram não pouparam críticas ao ritmo lento e `a "falta de sentido", quando da soma de suas partes. Ironicamente, ao afirmarem que "nada acontece" durante o tempo de projeção, parecem ter perdido a riqueza dos detalhes sobre os quais toda a atmosfera desse filme foi montada.

O filme não perde tempo, e já inicia visualmente instigante e cheio de mistérios: tudo o que vemos é uma luz na escuridão, na verdade uma estrela entrando em supernova, acompanhada por uma música de batida tétrica. Aos poucos, conseguimos escutar à voz de uma moça (que acaba pertencendo à protagonista). Ela não diz coisa com coisa, apenas fica repetindo letras, vogais e palavras, quase como um robô revisando a programação. Nova cena surrealista exibe algo semelhante `a acoplagem de um globo escuro, supostamente uma nave extraterrestre, a uma estrutura própria de aterrissagem. Vemos então um homem misterioso sobre moto correndo pelas auto estradas, até parar em uma curva deserta, na calada da noite, próximo a uma van, deixada preparada no acostamento. O cenário é bem desolador, abandono completo, a estrada banhada por aquelas luzes muito fracas, amareladas, de postes de rodovia. O motoqueiro salta a guard-rail e entra no mato. Ele reaparece segundos depois com um corpo sobre os ombros, e o guarda dentro da van estacionada.

Em uma cena bastante surreal, vemos que o corpo tirado pelo motoqueiro é o de uma mulher. No que parece o estéril, esbranquiçado interior de uma espaçonave, somos apresentados à protagonista, que no romance que originou o filme, escrito por Michel Faber, chama-se Isserley. Neste filme, A Extraterrestre não recebe nome, permanecendo uma grande incógnita, todavia para efeito de melhor explicação, eu a tratarei como Isserley, a personagem da atriz Scarlett Johansson. Isserley está nua e debruçada sobre o corpo da garota. Estranhamente, as duas são idênticas, e fica evidente que Isserley, a alienígena, pretende tomar a identidade da garota morta. Ela despe o corpo, veste as roupas e, depois de todo aquele demorado ritual, já vestida, põe-se a observar o cadáver. Em um dos primeiros momentos estranhíssimos, algumas lágrimas correm pelos olhos vidrados da garota morta. Isserley se agacha ao enxergar uma formiguinha, e fica encantada examinando-a, enquanto a mesma corre pelo seu dedo, ao sabor da luz muito branca que reina no interior daquele espaço - que novamente, suponho que seja uma nave extraterrestre.

Por um brevíssimo momento, quando o diretor nos "devolve" para "nosso mundo", para uma tomada externa da cidade - sobre a qual paira um céu lúgubre, cinza e fechado - vemos "dançar" (muito discretamente) por dentro das nuvens escuras as luzes de um OVNI, que logo desaparece, sem despertar atenção. Isserley desce as escadas de um hotel barato para apanhar a van deixada na calçada. O motoqueiro também é visto. Ele é o "chefe" de Isserley, e o veremos "nas redondezas", durante todo o filme, preparado para cuidar de imprevistos que possam atrapalhar a "sua missão". Isserley o vê partindo à toda velocidade, e também se põe em movimento. Ela se mistura muito bem a pessoas comuns em um shopping. Não há quem desconfie de sua verdadeira fantástica natureza. Ela compra os itens de que precisa para parecer mais atraente, e então vai "à caça".

Aí começa o mistério. Sublinhada por uma trilha realmente incômoda que eriça os cabelos, Isserley percorre as avenidas muito largas do monolítico centro comercial de Glasgow, Escócia. O diretor de fotografia Daniel Landin aproveita ao máximo o inestimável potencial do elegantíssimo cenário. Conhecida como a "Cidade Europeia da Cultura", o centro traz uma sucessão de lojas, pubs, restaurantes e prédios históricos, cujos design e arquitetura baseiam-se fortemente no estilo vitoriano, espetáculo à parte que dá ao lugar uma estranha sensação atemporal. Coadjuvadas pela trilha surrealista, as cenas rodadas naquelas avenidas e calçadas, cercadas por gigantes monolíticos sob o céu perenemente nublado, impõem ao filme uma bizarra atmosfera de sonho e fantasia. Em um primeiro momento, as interações de Isserley com os transeuntes parecem ordinárias e flertivas. Ela puxa conversa com rapazes que enxerga na calçada. Para o primeiro garoto, diz que está à procura da autoestrada. O solícito rapaz vai passando as direções, mas ela nem parece prestar atenção, só à espera da oportunidade para se aproximar melhor. Depois que termina, Isserley pergunta se o está atrapalhando. Algo na garota parece alertá-lo para a armadilha. Quando lhe pergunta para onde está indo, o rapaz responde "encontrar alguém", e educadamente se despede. Lamentavelmente, os outros homens que Isserley chamará à janela da van para "pedir direções" não vão resistir a seu charme. Esses vão se ferrar "de verde e amarelo".

A tarde vai passando, e começa a escurecer. Se Glasgow já parece uma cidade bonita mas lúgubre e melancólica, imaginem quando começa a anoitecer. A persistência de Isserley começa a mostrar resultados. Ela para num acostamento,  e ensaia a mesma ladainha para um rapaz que prontamente vai à janela do motorista para conversar, "Estou perdida, quero chegar à auto-estrada". Antes que o rapaz comece a passar direções, Isserley pergunta se ele está "à pé", e lhe oferece uma carona. Ele comete o terrível erro de entrar no carro. O rapaz vai logo adiantando que é solteiro, mora sozinho, e a sua casa nem é tão longe dali. Isserley vai dando corda para o cara se enforcar, e ele, todo alegre, achando que tirou a "sorte grande", vai contando sobre o que faz e o que quer da vida. É importante salientar que a direção fenomenal de Glazer, a atuação da atriz principal e a melodia de Mica Levi tornam até mesmo instantes aparentemente banais insustentáveis em tensão. Há "algo de errado" nestas situações, e o pressentimento de que algo de horroroso vai acontecer às pessoas que entraram no carro é esmagador. Os dois seguem o flerte, e o diretor corta para a próxima cena. Anteriormente, vimos que era fim de tarde; agora, noite fechada, e só há Isserley à vista. Novamente, a melodia esquisita de Mica Levi entra com toda a força, e mesmo que não tenhamos visto, podemos deduzir que ela fez algo tenebroso ao rapaz - assim como o fará a todos os outros que caírem na armadilha.

Isserley não deu a noite por encerrada. Um cara chamado Andy, por exemplo, escapa por pouco. Todo encantado, ele passa direções e responde às perguntas da sedutora motorista, quando alguém o chama da esquina. Isserley se assusta, talvez temerosa em ser reconhecida, e acelera. A próxima vítima entra no carro, e pela primeira vez, o filme nos mostra a natureza dos horrores sofridos pelos abduzidos. Isserley leva o garoto a uma casinha estreita de alguma rua dilapidada de Glasgow, obviamente sob pretexto de sexo. É difícil explicar racionalmente uma sequência tão surreal e incomum, mas creio que a casa para onde Isserley os leva seja um "portal" para a nave. Eles entram em um salão absolutamente gelado e escuro, e Isserley começa a tirar a roupa, recuando convidativa. O rapaz também se livra das roupas e avança, sem se dar conta de que parece estar entrando em uma superfície de material gelatinoso, até ser completamente envolvido, enquanto Isserley segue recuando, na superfície, até que a sua vítima esteja completamente envolvida e imobilizada.

O filme não oferece explicações, mas a missão de Isserley é abduzir homens para entregá-los aos outros extraterrestres, que submetem as vítimas a um período de engorda para depois os mutilarem. No planeta de onde as criaturas vêm, carne humana é uma iguaria de luxo, e de tempos e tempos, os extraterrestres retornam à Terra e usam os serviços de Isserley para atrair mais vítimas para engorda e sacrifício. Na versão cinematográfica, somos apresentados ao superior de Isserley, o homem na motocicleta, e muito rapidamente vemos a aeronave alienígena entre nuvens pesadas, mas nada mais nos é revelado sobre a natureza da civilização extraterrestre.

As pessoas que saíram impressionadas com o clima tétrico do filme parecem mencionar a mesma cena, que se dá em seguida. Isserley se interessa por um rapaz que está mergulhando mais próximo aos rochedos de uma praia. Não muito distante, há uma família - um senhor, sua esposa, uma criancinha e o cachorro - divertindo-se às margens do mar. Na Escócia, as praias são de cascalho, e a corrente pode se tornar perigosíssima para quem não está habituado à força com que as marés arrastam a tudo quando o mar recua. Isserley usa o script de sempre na abordagem - "Sabe se há lugares bons para se surfar por aqui?", "Você não é daqui?De onde é?", "Por que está na Escócia?". Nisso, o homem dá pelos gritos desesperados da mulher. O cachorro está sendo arrastado pela corrente, e ela se jogou ao mar para tentar salvar o animal. É claro que esse terrível acidente engatilhará um efeito dominó tenebroso: a mulher se jogou na água, para salvar o cão; agora, o marido mergulhou para resgatar a mulher. O rapaz que conversava com Isserley - familiarizado com aquela turbulenta praia - assiste a tudo com muita apreensão e resolve agir. Ele deixa Isserley ali, parada, e avança para o mar, para ver o que pode fazer para desarmar a volátil situação.

A força avassaladora da cena reside em quão banal tudo acontece, em como nossas vidas não se diferenciam de um sopro; uma hora estamos aqui e somos imortais, no minuto seguinte, a escuridão. Ali estavam homem, mulher e criança, e em um programa aparentemente inofensivo, agora todos estão sendo puxados para uma morte horrível. Revelando a sua natureza alienígena, Isserley testemunha a tudo com muita frieza, sem mostrar uma única reação que se assemelhe a compaixão ou terror. O diretor Jonathan Glazer captura o momento à distância, seus personagens meros pontinhos de nenhum valor diante da energia com que o mar, depois das rochas, os arrebata implacavelmente para dentro. O mergulhador consegue salvar o homem, mas infelizmente mulher e cachorro se afogam. Os dois chegam às margens exaustos, o marido inconsolável e aos prantos. O mergulhador nem tem como segurá-lo, quando, movido pelo desespero, insiste em retornar para o mar, até inevitavelmente acabar carregado pela corrente que já lhe custou esposa e cachorro. Ali um pouco acima do quebra mar, o bebezinho fica chorando assustado, obviamente sem compreender a extensão dos eventos. Isserley se aproxima do mergulhador, arfando por ar na beirada, e o golpeia com uma pedra, para desacordá-lo. Depois, sem atenção alguma quanto ao destino da criancinha inocente, Isserley apanha a caça pelos pulsos e a arrasta dali para a van, deixando o bebê entregue a um destino incerto, a alguns metros do mar revolto. O choro da criança, ali tão vulnerável, enquanto a alienígena vai embora sem lhe conceder um só olhar, é de partir o coração. Anoitece, e quem aparece pela praia fria e deserta é o superior de Isserley, o estranho sujeito da moto. Você é levado a pensar, ao menos por um breve momento, que a criatura teria compaixão e ao menos levaria a criança para um lugar seguro, mas o estranho limita-se a apanhar o casaco de Isserley - isso mesmo, ele foi apanhar o casaco da colega, nenhuma importância dada `a vida do bebê - e partir.

Nas imediações do aeroporto, Isserley bate os olhos em uma potencial vítima fácil, e o segue pelas calçadas. O rapaz atravessa a rua, mas ela parece hesitar. Isserley está voltando para a van, quando um grupo de garotas praticamente a seguram pelo braço, e a levam consigo para a nightclub onde a sua presa acabou de entrar (dentre as muitas semelhanças entre o cineasta Jonathan Glazer e o homem que o inspirou, Stanley Kubrick, esta cena parece uma homenagem direta ao filme de Kubrick "De Olhos Bem Fechados", quando o protagonista está caminhando altas horas por calçadas muito largas, e um grupo de jovens baderneiros praticamente o jogam para fora ao passar). Isserley nunca esteve dentro de um nightclub, e fica impressionada com a música e o jogo de luzes que torna o interior um labirinto inconstante. Ela reage tensa, mas acaba reencontrando o garoto que vira na calçada. Seduzido, ele não oferece resistência, e é atraído para o mesmo lugar sinistro onde os rapazes anteriores foram imersos. Diferente do que ocorreu anteriormente, desta vez, vemos o processo com impressionante riqueza de detalhes. Isserley tira as botas e as roupas, e segue recuando, de modo que o rapaz nem se dê conta de que está submergindo no meio alienígena à medida que avança.

Dentro do meio, a pessoa tem como respirar, porém permanece em suspensão, em um espaço muito escuro e abstrato, que parece infinito. É apavorante, porque uma vez submersa, a nova vítima vê o homem pego anteriormente - o mergulhador golpeado na praia - submetido ao processo de engorda, há mais tempo. Os dois ficam pairando naquele meio, frente a frente, separados por alguns metros. O mergulhador ainda consegue estender a mão para a nova vítima, como que pedindo socorro. O silêncio é absoluto, o que torna tudo ainda mais inquietante. Subitamente, o mergulhador tem o seu interior "aspirado". Ele literalmente murcha, carne, ossos e músculos drenados em um sopro, restando somente a pele, que então tremula como fantasia ao sabor do vento.

Isserley segue na van em busca de mais vítimas. O tráfego vagaroso a prende um pouco no semáforo, atrás de uma porção de carros. Um rapaz bate à janela da van com uma rosa - um sujeito, na outra mão da avenida, comprou-a para Isserley, encantado pela sua beleza. A extraterrestre recebe a rosa, mas então percebe que há um pouco de sangue nos dedos, provavelmente um ferimento menor durante a abdução da noite anterior. Mais tarde, em algum outro ponto de Glasgow, Isserley escuta no rádio que o corpo de um homem foi encontrado por um turista em uma praia perto de Arbroath, mas a esposa e filho seguem desaparecidos. É revelado que o morto era professor universitário em Edimburgo. A rádio também revela a identidade da esposa. Quando Isserley tropeça na calçada, as pessoas mais próximas imediatamente a ajudam a se levantar. Inesperadamente, um rascunho de consciência começa a brotar de dentro de seu ser, como se estivesse se tornando, aos poucos, mais humana.

Naquela noite, Isserley estaciona a van ao lado de um homem solitário de capuz, a caminho do supermercado Tesco. Ela o encontra em um ponto muito ermo da cidade (pode-se mesmo escutar o rumor vindo dos trilhos próximos), e oferece carona. Meio a contragosto, o homem acaba aceitando. Dentro da van, ele tira o capuz e revela o rosto deformado. O homem é portador de uma doença congênita conhecida como "Neurofibromatose". O seu rosto acabou desfigurado por causa dos tumores subcutâneos hipertrofiados que provocam incomum inchaço. Isserley parece não se assustar com a aparência. O homem explica que só costuma ir a Tesco àquelas horas, vez que dificilmente há outras pessoas por perto, e ele não precisa suportar os olhares cheios de julgamento que lhe são dirigidos. Apesar de sua natureza extraterrestre, Isserley, ao contrário dos humanos, enxerga beleza naquele homem. Ela elogia as suas mãos e diz que são bonitas. Aos poucos, Isserley vai quebrando a sua resistência. Ela diz que sabe que o estranho a acha bonita, e que não há problema algum em admitir. Segurando as suas mãos, as leva para o rosto, para que possa tocá-la melhor.

Isserley o leva para a casa deserta onde abduz as pessoas. Fascinado pelos seus encantos, o estranho começa a ficar nervoso, mas novamente ela consegue contornar toda a resistência. "É um sonho, estamos sonhando", procura tranquilizá-lo, após tirar a roupa. Diferente do que ocorreu das outras vezes, porém, Isserley reluta, e decide salvá-lo. Na manhã seguinte, nós a vemos deixando o lugar, permitindo que o homem escape da morte. Há um breve instante quando Isserley se olha demoradamente no espelho. Ao demonstrar compaixão, está se tornando a sua própria fantasia. Piedade não é um conceito de sua natureza extraterrestre, no entanto ela não quer mais machucar as pessoas. O gesto de Isserley trará consequências graves para si.

Furioso, o seu "chefe" aguarda pela chegada do homem deformado no quintal de casa, e assim que o rapaz consegue voltar, confuso, dá de cara com o motociclista, que o elimina imediatamente. Do outro lado da calçada, uma senhora assiste ao motociclista jogando o corpo no porta-malas do carro e partindo à grande velocidade. Isserley segue na van, pelas autoestradas, até que uma névoa muito espessa a detém. Ela abandona o veículo no acostamento e se enfurna no meio da neblina. Não se pode ver mais de um metro à frente, tamanha a intensidade. Em um take de tirar o fôlego, o cineasta nos mostra, por lentes muito amplas e distantes, os dois mundo e o ponto onde se encontram - de um lado, a autoestrada ainda com boa visibilidade, um pouco adiante, o "limbo" onde a claridade é sufocada pela bruma. O take parece representar simbolicamente o estado mental da vilã. Se anteriormente Isserley cumprira o seu dever com louvor, levando uma porção de sujeitos desavisados e carentes para uma cilada de morte, agora descobriu uma humanidade que jamais fez parte de sua essência, mas que encontrou o jeito de cativá-la.

Isserley começa a perambular por aquela região mais distante e isolada da Escócia, aos pés de serras muito altas. Em uma cafeteria à beira do lago, permite-se experimentar o simples prazer de um pedaço de bolo. Caminhando às margens da estrada daquela cidadezinha, chama a atenção de um cavalheiro local, que a orienta a aguardar o ônibus no ponto. Dentro do ônibus, ele puxa conversa com Isserley. Preocupado, percebe que ela não está bem e se oferece para ajudar. Isserley aceita a mão que lhe é estendida, e o homem a leva para casa. Ela é muito bem recebida. Enquanto lava pratos, o homem liga o rádio e, ao som da música, Isserley é vista batendo os dedos ritmicamente na mesa, como se estivesse apreciando o som. O seu corpo também desperta para a própria sexualidade. O homem a acomoda no quarto de hóspedes e lhe traz chá, deixando-a à vontade. Isserley se despe diante do espelho e examina cuidadosamente as curvas, os seios e a genitália. Ela parece estar mais à vontade com a sua fantasia de humana.

Tão apaixonado o rapaz se mostra, na manhã seguinte, quando estão passeando pela floresta, coloca-a no colo apenas para que não molhe as botas. Ele a leva a um lindo, enorme castelo, onde a ventania açoita muito intensa. Apesar de temerosa, Isserley suprime os medos e o segue por aquele emaranhado de passagens e torres. Ao final, ele a parabeniza pela sua coragem, "Você conseguiu". À noite, eles fazem amor. Enquanto tudo isso acontece, extraterrestres do mesmo planeta de Isserley estão percorrendo a costa da Escócia, com a missão de trazê-la de volta, custe o que custar.

No dia seguinte, Isserley desperta muito cedo, sem o conhecimento do cavalheiro que a havia levado para casa e parece amá-la, e volta para a floresta onde, lamentavelmente, vem a se perder. Ela encontra o trabalhador de uma madeireira, que a aconselha a não entrar muito pela trilha, pois corre o risco de se perder. Isserley vai parar em uma cabana reservada a visitantes que precisem se albergar da chuva ou contar com suas facilidades, em caso de emergência. Ela acaba cochilando, mas é acordada pelo mesmo operário, que a havia rastreado. O seu intento é estuprá-la. Isserley corre, mas infelizmente é apanhada mais à frente. Durante a luta, o homem a corta nas costas, revelando parte de sua verdadeira natureza alienígena, escondida sob a pele. Horrorizado, o agressor foge. Isserley vai se despindo muito lentamente da fantasia. Em sua forma natural, ela tem traços muito suaves e femininos, e mais se assemelha a uma graciosa sombra. Por um tempo, fica ajoelhada, contemplando a forma humana que vestiu, com um olhar triste. O estuprador retorna, e joga gasolina nas suas costas. Isserley se levanta e começa a cambalear, mas o homem ateia fogo em seu corpo, antes que possa escapar, pondo fim a sua existência. No final, as suas cinzas ascendem junto à neblina, subindo pelos pinheiros e desaparecendo no meio do nada, como se a extraterrestre jamais tivesse existido.

Filme triste, difícil e sombrio, sem dúvida um resgate de todos os elementos que fizeram dos anos 60-70 a grande época da ficção científica. Se há muitos anos o gênero tem se perdido em efeitos especiais, "Under the Skin" redime o mágico prazer de se sair para a sacada à noite para contemplar estrelas. A obra de Jonathan Glazer veste e transpira elegância, a começar pelo seu belíssimo poster retrô. Rodado na Escócia, "Under the Skin" sobressai-se dentre os demais filmes de arte por mesmo em meio a tanta dor e pessimismo, comuns ao estilo, conseguir sintetizar em alguns instantes muito passageiros uma "amarga doçura", que beira datado, ingênuo e adorável romantismo. Tão sombrio quanto o céu cor de chumbo ou as noites muito escuras que pairam sobre os personagens durante todo o tempo de projeção, são em momentos discretos como quando Isserley elogia as mãos do homem deformado ou o cavalheiro a põe no colo apenas para que ela não molhe os pés em que o filme realmente decola. Apesar de não temer desagradar, o diretor também não receia injetar alguma humanidade, que para os esnobes pareceria piegas.

E esse, a meu ver, é o único ponto que deixa a desejar. Glazer poderia ter utilizado o segmento final - quando Isserley se vê na cidadezinha aos pés das serras e conhece um gentil cavalheiro local - para nos brindar com aquilo pelo que muitas pessoas procuram filmes. Sabemos que o cinema nos permite o final feliz, os instantes de pura magia que a vida na maioria das vezes nos nega, e essa é parte da atração que o torna uma experiência transcendental. Filmes de arte fogem à regra ao evitar a saída mais formulaica do final feliz - que comercialmente rende - todavia assim como acontece a fórmulas fáceis, devemos lembrar que também o pessimismo exacerbado parece atrapalhar o resultado. Com todo o respeito ao que o talentoso diretor fez com seu excelente filme, humildemente creio que se ele tivesse ousado sonhar, a doçura teria funcionado a favor da obra. O excesso - sacarose, isso sim - prejudica, simplifica, elimina a profundidade do trabalho; ao mesmo tempo, apesar de sacarose fazer mal, doçura jamais o fez. Filmes aclamados como "Cinema Paradiso" são atemporais em sua propriedade de arrancar lágrimas, no entanto jamais deixaram de tratar as reviravoltas de suas histórias com um tipo de discreta doçura que apenas os tornou mais saudosos e queridos. Assim sendo, sinto que o diretor Glazer procurou o desfecho rápido justamente quando o filme chegava a seu segmento mais promissor, com a história de amor de Isserley com o morador local que, salvo engano, sequer recebe nome. Aí, havia muito potencial, lamentavelmente inexplorado, e vez que não há nada de vergonhoso em doçura, "Under the Skin" desperdiça a oportunidade de se aprofundar na questão sobre o que nos torna humanos - o amor, principalmente - quando o roteiro cria a ocasião perfeita para tanto. Muito embora não ache que o diretor devesse ter preterido o final a favor de uma feliz conclusão, estou convicto de que um melhor desenvolvimento no "meio de campo" teria tornado esta empolgante, diferente ficção científica um clássico absoluto, em todos os sentidos.

Esteticamente, "Under the Skin" talvez seja o mais deslumbrante filme que veremos todo o ano. A maioria de suas imagens parece saída das telas de um caprichoso pintor, porém incrivelmente, com o espetacular cenário que tinha a sua disposição, tudo o que a equipe precisou foi de um diretor de fotografia com senso de estilo. Quando assisti ao filme e pensei sobre a sua maravilhosa atmosfera, automaticamente me recordei de "w Delta z", outra máquina de suspense cujo pilar é a sustentação da atmosfera. Ao pesquisar sobre locação, compreendi por quê parecem tanto, em termos de fotografia. Ambos os filmes foram rodados nas ruas de Glasgow, sendo que no caso de "w Delta z", o cineasta Tom Shankland a usou "anonimamente", vez que seu suspense se desenrola nos Estados Unidos. O céu lúgubre e as autoestradas largas cheias de mistério não deixam dúvida, porém, que estamos falando do mesmo lugar.

Conforme já colocado parágrafos acima, o suspense deve muito à melodia triste e assombrosa que Mica Levi compôs para os mais importantes momentos. Essencialmente abstrata, a trilha serve como luva ao estranho mundo surreal onde a história é ambientada, encapsulando a proposta de alienação que a vilã - e nós também, por tabela - experimentamos pelas calçadas e ruas que, embora aparentemente comuns, parecem saídas de um sonho. Ao escolher entregar a carta na manga aproximadamente após meia hora de projeção, o diretor confia às cenas aparentemente banais o desafio de criar momentos de eriçar os cabelos. O poder da sugestão, subestimado por tantos que creem precisar de efeitos especiais e sanguinolência para criar horror, não exige mais que a melodia triste de Levi, por exemplo, ou a performance de Scarlett Johansson. Como vilã, vê-se toda a letalidade através da fachada, do mesmo jeito que venezianas deixam passar, aqui e acolá, alguma réstia de luz. São em seus gestos mais ordinários, sorrisos entre flertes, olhares mais prolongados, quando somos lembrados que Isserley é a predadora, e os homens, sua presa. Ao mesmo tempo, agrada-me o fato de Isserley "redimir-se": apesar de pessoas ingênuas terem sido arrastadas para mortes horríveis, ela desenvolve a consciência que primeiro lhe incitou a salvar o homem desfigurado e, mais tarde, a apaixonar-se por um cidadão de uma cidadezinha interiorana. É essa contradição que para uma excelente atriz representa prato cheio, o tipo de desenvolvimento de personagem que me agrada: a vilã sem compaixão acaba por transformar-se pela força do amor, e quando se vai, deixa saudades. A cena final até nos traz algumas lágrimas - o seu destino é muito trágico - todavia, jamais lamentaríamos por Isserley se não tivéssemos nos interessado o suficiente. Quanto a isso, só há duas pessoas a agradecer, quais sejam a talentosa atriz e o roteirista que soube destrinchá-la.

Assim como "As Senhoras de Salem" anteriormente, esteticamente, o filme evoca o estilo do diretor Stanley Kubrick. Não é a primeira vez que Jonathan Glazer sugere sua admiração pelo cineasta. "Birth", de 2004, era recheado de takes muito iluminados e truques de câmera realmente impressionantes em sua capacidade de reproduzir os elementos que haviam tornado os filmes de Stanley Kubrick trabalhos realmente impactantes. Mesmo a abordagem estéril e abstrata de elementos mais fantástico nos faz lembrar de "2001 Uma Odisseia no Espaço". Simultaneamente, o elemento mais ordinário e comum é tratado com o olhar distanciado e frio que imprime a cenas como as em que Isserley está dirigindo pelas ruas de Glasgow estranha sensação de dissociação ao sabor da luz do dia. Os amigos que apreciam a ficção científica nos moldes com que é produzida hoje devem entrar em "Under the Skin" certos de que o filme de Jonathan Glazer mais convida à reflexão do que ao entretenimento. Com ritmo muito parecido ao de "Solaris", de Andrei Tarkovski, "Under the Skin" não tem a pretensão de divertir, mas exige contemplação e entrega total, bem como uma belíssima pintura o faria.

O elenco se sai muito bem, a atriz Scarlett Johansson dando sua melhor performance em anos, tendo como aliado um diretor que praticamente lhe confiou as rédeas do filme. Tamanha a crença de Glazer em sua  capacidade dramática, pode-se contar nos dedos as cenas de diálogo. Ao contrário, ela precisa apenas de olhares e expressões para acessar o universo de emoções pelas quais a sua personagem passa. Somente uma artista talentosa poderia dar vida a personagens tão diferentes. Se os amigos se acostumaram a vê-la como a garota doce e de bom coração que se apaixona por um viúvo, de "Compramos um Zoológico", se surpreenderão com a facilidade com que precisa de pouquíssimo para assustar. Assim como Selma Blair em "w Delta z", o extraordinário do desempenho reside nos detalhes. Ali, dentro da van, com sorrisos e flertes inofensivos, Scarlett Johansson é de arrepiar os cabelos da nuca.

Possivelmente, demore algum tempo até que algum outro filme igualmente desafiador assalte as salas de cinema, mas isso não nos impede de torcer, pois ainda teremos muito suspense até o final do ano!Agora em julho, chega aos cinemas "Uma Noite de Crime 2", que parece potencializar o horror do primeiro ao levar o suspense para as ruas, quando o carro de um casal dá o prego bem no feriado do "expurgo anual", e os dois precisam lutar com ferocidade para sobreviver à noite do ano em que todo tipo de crime é permitido. Falando em "Uma Noite de Crime", lembro-me de Lena Headey, a atriz principal do filme original. Acho que os amigos ficarão felizes de saber que Lena Headey foi contratada para atuar no filme "Jacqueline Ess", baseado no conto do mestre Clive Barker. Creio que já discorri bastante sobre o quanto o admiro. "Jacqueline Ess" foi um de seus contos mais marcantes, a história de uma mulher aos quarenta e poucos que sofre de depressão e se vê atolada em um casamento sem amor com um homem que a trai, e que ao sobreviver a uma tentativa de suicídio, descobre propriedades telecinéticas sobre a matéria. Ela arrebenta o marido com o poder da mente, e se aproxima de um advogado chamado Oliver, velho colega do falecido, que vem a perdidamente se apaixonar pela protagonista. Ele a ama tanto, aceita perdê-la quando Jacqueline se vai. Interessada em aprender sobre poder e como exercitá-lo, ela deixa o advogado e se envolve com um homem de negócios bilionário chamados Titus Petiffer. O secretário mais próximo de Petiffer começa a investigar, e descobre o passado macabro de Jacqueline, mais especificamente o misterioso e brutal assassinato do marido. Jacqueline abandona Titus que, temeroso de seus poderes, envia seus mercenários para rastreá-la. Jacqueline derrota a todos e desaparece. Oliver, que jamais a esqueceu, não desiste de encontrá-la, até finalmente rastreá-la até Amsterdã, onde Jacqueline assumiu nova identidade e vive como uma notória prostituta cujas habilidades são de amplo conhecimento na noite do submundo europeu. A história de Barker, extremamente cinematográfica, dá de mãos beijadas todo um potencial fora de série que poderá ser traduzido em um suspense atmosférico inesquecível. Resta-nos esperar e torcer!

Enquanto todos esses filmes de horror promissores não veem, fiquem com "Under the Skin", a ficção científica lenta e difícil que ao final acredita no romantismo, e nos apanha de surpresa ao nos convidar a derramar algumas lágrimas pelo fim de sua aterrorizante, mas finalmente humana vilã. Conforme o seu poster vintage sugere, e o filme apenas confirma mais tarde, depois de "Under the Skin", quando forem à sacada para buscar o céu à noite, enxergarão as estrelas com renovado romantismo e mistério, uma nova espécie de olhar que somente algo tão profundo e evocativo como a imagem melancólica e glacial de Isserley pode provocar.

Todos os direitos autorais reservados a Film4. O uso do trailer é para efeito meramente ilustrativo da resenha.

sexta-feira, 9 de maio de 2014

"The Sacrament" (Ti West, 2013) Do diretor de "House of the Devil", chega um imaginativo e inteligente filme de horror baseado em um macabro caso ocorrido na Guiana, nos anos 70. Esse aqui é de dar medo!

Sam (AJ Bowen), Patrick (Kentucker Audley) e Jake (Joe Swanberg) são amigos e trabalham para a Revista Vice, comprometida com um estilo diferente de Jornalismo, abordando tópicos que merecem pouca ou quase nenhuma atenção dos demais e maiores veículos midiáticos. Sam e Jake ficam intrigados quando Patrick, fotógrafo freelancer, inesperadamente recebe uma carta da irmã Caroline (Amy Seimetz), que não vê há anos. Caroline lutava contra a dependência química, sem sucesso, e deixou Nova York sem dar muitas explicações à família. Quando Caroline escreve para Patrick, explica que melhorou bastante desde que passou a frequentar o culto de um determinado pastor (Gene Jones) no Sul dos Estados Unidos. Para Caroline, a religião conseguiu fazer um bem pela sua vida que nem mesmo os melhores psiquiatras teriam conseguido. Na carta, deixa um número de telefone para contato, o que leva o irmão a conversar com um homem que lhe explica que a igreja frequentada por Caroline localizava-se no Mississípi, e que assim como os demais fiéis, ela partiu para uma comunidade sustentável administrada pelo Pastor em um determinado país na América Central. Intrigados com a estranha história, os amigo de Patrick o encorajam a morder a isca e seguir adiante, convencendo-o a o acompanharem com o fito de documentar a experiência. 

A viagem começa envolta em mistério. O trio toma um avião até ao referido país da América Central, todavia o acesso à comunidade só é possível através de helicóptero. Eles recebem as coordenadas do contato e as repassam ao piloto. Deixados em uma clareira do que parece ser uma floresta tropical, são avisados pelo piloto que ele voltará à clareira na manhã seguinte, às 08:00, e os esperará por uma hora. Se não estiverem no lugar indicado, os deixará entregues à própria sorte. O trio encontra um caminhão às margens da pista de terra batida, dois homens armados à espera. A dupla parece inconformada quando Patrick lhes apresenta os colegas da Revista Vice, a tiracolo para documentar a viagem, porém após o contato via rádio com a comunidade, recebem carta branca para levá-los sem problemas. O trio viaja na carroceria por um percurso de aproximadamente dois quilômetros até a vila, por uma estrada muito estreita cercada por mata fechada. Não se vê absolutamente nada, há árvores muito altas e mata fechada por todas as direções. Surpreendentemente, a comunidade conseguiu erguer uma próspera e subsistente vila bem no meio daquela floresta hostil e assustadora.


No portão principal, o trio enxerga outros colonos fortemente armados. A problemática gira em torno de o fotógrafo não ter cumprido a promessa de vir sozinho. Eles precisam aguardar, até que Caroline surge e diz aos rapazes que O Pai não opõe restrições aos visitantes, pois são os seus convidados. Patrick não se lembra de ver Caroline tão bem há muito tempo, e a garota parece particularmente contente ao rever o irmão amado, após todos aqueles anos. Conduzidos pela moça, o trio conhece a comunidade "Eden Parish": há um sistema de alto-falante que permite que O Pai, o líder espiritual da comunidade, passe as instruções, dia e noite, bem como uma torre de observação munida de canhões de luz. As casinhas de madeira são modestas, mas confortáveis, e muito bem distribuídas ao longo daquele generoso espaço cuja terra também é aproveitada para o plantio de itens utilizados na subsistência de sua gente. Caroline e Patrick vêm de uma família de posses, todavia ela vivia insatisfeita com a realidade anterior. Para Caroline, foi somente naquela comunidade afastada onde todos são iguais onde finalmente pôde começar a viver. Ela comenta que na época do levantamento da vila, ideia nascida diretamente de uma visão do Pai, os fiéis mal contavam com mais de três horas de descanso por noite no curso dos seis meses necessários para construir aquela utopia. Uma voz calorosa entra pelo sistema de som, e vemos que se trata do Pai, orientando os filhos a tratarem bem os convidados. Sam pergunta à moça se seria possível conversar com O Pai, e ela responde sim, mas não por ora. O Pai evita dar entrevistas pois teme as consequências da superexposição. A sua gente vive sob o escrutínio do governo local e mesmo de familiares preocupados. Apesar de suas reservas, O Pai falará com os visitantes na ocasião apropriada.

Sam e Jake são acomodados em uma das casinhas vagas, e fica acertado que Patrick dormirá na casa principal. A decoração é espartana, camas de beliche e poucos móveis, no entanto, o ambiente parece arejado e não faltam as comodidades básicas. Louca para matar saudade do irmão, Caroline o leva a um passeio para recuperar o tempo perdido, deixando Sam e Jake a sós para processar a chegada a Eden Parish. Eles ainda estão cismados com o encontro inicial com o pessoal da guarda da comunidade.


Sam e Jake comportam-se céticos, racionais e cautelosos. Às 14:30, os dois amigos deixam a casinha para socializar. Sam apresenta-se a uma senhora idosa que encontra colhendo verduras. Ela se chama Lorraine Davis e tem 75 anos de idade. Os demais a conhecem como Senhora D. Lorraine revela parte da história de como foi parar em Eden Parish. Começou como fiel da Igreja, e desde a primeira vez em que pisou na Paróquia, soube que estava fisgada pelas ideias revolucionárias do pastor. Foi O Pai quem a convidou a fazer parte daquela utopia, e a senhora deixou a vida pretérita para acompanhar a nova família na empreitada. A jovem australiana Sarah White, a seu turno, vem de uma outra escalada de vida, mas também compõe a variedade de Eden Parish. Ela estende roupas no varal, quando Sam e Jake aproximam-se para entrevistá-la. Aos vinte e três, explica que sobrevivia como artista em Nova York, quando conheceu as ideias de amor e igualdade propagadas pelo culto. Mesmo hoje, a sua família em Melbourne não sabe por onde a filha anda. "Esta é a minha família agora", Sarah justifica, sem pensar duas vezes. "O Pai me deu mais do que eu sempre sonhei". Aos 41 anos, Wendy Johnson faz uso de sua formação em Medicina para cuidar dos cidadãos locais. Em sua pequena clínica, também utilizada como creche, Wendy já fez o parto de sete bebês. Sam confidencia que a mulher está grávida do primeiro filho, e Wendy o parabeniza, avisando-o de que com o primeiro filho a experiência promete mais emoções. Seus recursos são limitados, mas Wendy se sente `a altura de atender qualquer tipo de emergência. A sustentabilidade da comunidade foi custeada pelos próprios membros. As pessoas venderam tudo o que tinham, e doaram o dinheiro para a Paróquia. O Pai aplicou os recursos que tornaram aquele sonho possível. Aos vinte e poucos, os irmãos Andre & Robert estão jogando basquete, e dão um tempo para falar sobre as origens para a câmera. Eles vieram de uma vizinhança barra pesada. Moravam em cinco (os dois irmãos, a mãe e duas irmãs) em um apartamento humilde de dois quartos no gueto, até conhecerem O Pai. Esclarecidos e inteligentes, hoje os irmãos acreditam que jamais regressarão aos Estados Unidos, pois não vale à pena. Eles compreendem que muitos os achem loucos, todavia para os irmãos, loucura é viver da forma que conheciam antes, "Deus cuida da gente, e nós cuidamos uns dos outros", um deles explica. Jake pergunta se pode se juntar ao jogo, e os visitantes interagem com a rapaziada em um amistoso clima de descontração.

Jake e Sam retornam para o dormitório, e recapitulam as entrevistas realizadas ao longo da tarde. Sam enaltece o local, que oferece um pouco de tudo para os cidadãos: creche, atendimento médico, escola e orientação espiritual. "Nem consigo imaginar o desespero que levou toda essa gente a deixar tudo para vir para cá, mas se estão felizes, quem sou eu para julgar?", Sam simplifica. Jake, o operador de câmera, pensa de uma forma um pouco diferente. Desconfiando, lembra que a maioria daquele pessoal é formada por ex-alcoólatras e dependentes químicos, e que não compreende como foram capazes de se desfazerem de todas as posses para custear tão arriscada aventura. "Levanta uma bandeira vermelha para mim", ele admite. Sam apanha um bloquinho de notas para escrever as perguntas a fazer ao Pai, durante a entrevista de logo mais. A dupla dá por uma garotinha parada defronte à porta do dormitório. Atenciosos, aproximam-se para perguntar o que deseja, mas a mãe da menininha surge e diz que ela não fala. A mulher pergunta se os visitantes são repórteres, e Sam explica que sim, trabalham para a Revista Vice. A mulher reage de forma nervosa, e quando indagada sobre se gostaria de responder a algumas perguntas, conta que O Pai os proíbe de falar com "invasores".

A tarde vai embora rapidamente. Sam e Jake encontram Caroline e Patrick no pavilhão de cerimônias, onde ela dá as boas novas: O Pai concordou em dar uma entrevista para a Revista Vice. Ademais, os moradores oferecerão uma festa com direito a música e comida. Eles ficam de se reunir no pavilhão para a entrevista e a festa, e Caroline entrega aos jornalistas uma carta, em nome dos membros da comunidade. A sós, os três podem trocar impressões mais livremente. Sam pergunta se a irmã de Patrick pretende permanecer, e ele responde que sim. Os amigos abrem a carta, basicamente uma declaração de interesses de Eden Parish, onde o culto critica a direção que a Humanidade vem trilhando, e explica que apesar de não pretender se isolar do mundo externo, busca se distanciar da violência, do imperialismo, do capitalismo, da pobreza e do racismo, características muito próprias da sociedade moderna. Sam procura ligar para casa, mas ali não há sinal para celular. Jake tira sarro e aconselha o amigo a se tranquilizar, pois amanhã estarão de volta aos Estados Unidos, quando poderá matar a saudade.

A noite chega, e as câmeras estão sendo ajustadas pela equipe no pavilhão, para documentar a entrevista com O Pai. Os colonos comparecem em peso, prontos para festejar. Quando O Pai surge, é ovacionado. Ele é um homem de seus sessenta e poucos, grandalhão, bem humorado e com sotaque sulista. Simpático e caloroso, cumprimenta os fiéis sob entusiasmados aplausos, e se senta para a conversa com a equipe da Vice. Seu verdadeiro nome, O Pai explica, é Charles Anderson Reed, e quando perguntado de onde vem, responde "Já estive por todos os lugares". Charles andou pregando por muitas cidades do interior, e por onde andou, encontrou apenas pobreza, violência, ganância e racismo, "fundações de uma sociedade cancerosa". Foi por força da obstinação em estender a mão para os necessitados que ganhou a alcunha de O Pai. Ele explica que sabe como sua gente se sente: como párias, rejeitados por uma sociedade que preferiu lhes dar as costas. O Pai promete jamais lhes dar as costas. "Eu lhes dou emprego, lhes dou comida, lhes dou cama". Garante que tudo o que quer é que vivam suas vidas em paz. A congregação levou anos para se consolidar, Charles conta. Iam praticamente de cidade a cidade, colhendo uma ou duas pessoas desamparadas que se juntavam à família no caminho, até chegar a aquele número absurdo de gente. Indagado sobre a necessidade de buscar o isolamento do mundo exterior, O Pai responde que diferente do que possa parecer, não é um comunista, todavia a experiência lhe ensinou que todos os grandes líderes que procuraram realizar mudança foram mortos. Ele cita Martin Luther King e os Malcolm X. Ao invés de brigar contra o sistema, Charles preferiu deixar o meio para criar uma sociedade alternativa, livre dos sintomas da doença que assola o meio de onde veio.

A entrevista começa a ficar mais tensa quando Sam aponta as contradições no discurso do Pai quando contrastada com a realidade observada. Menciona os homens armados em vigília nas cercanias da cidade, e diz que a presença de metralhadoras destoa do discurso pacifista. Charles diz que não compreende por que ao invés de Sam falar sobre as coisas bonitas que viu ao chegar sente a necessidade de procurar por um ângulo negativo, discutir sobre as armas utilizadas para garantir a segurança de seus cidadãos. O Pai revela que entende os motivos da pergunta, e se justifica com a desculpa de que sua gente vive às voltas com o assédio de algumas agências governamentais norte-americanas que não os querem ver prosperando. Outro instante delicado é quando Sam menciona o custo para erguer um projeto daquela envergadura. Ele pergunta se foi com as doações dos fiéis que Eden Parish foi erguida. O Pai não se conforma. "Nós não adoramos o capitalismo, nem o materialismo, viemos para cá para tirar o sustento da terra", insiste. "Vejo que você usa um anel do dedo, é um homem casado?", O Pai pergunta. "Você ama a sua esposa, o filho que está para nascer?". Sam fica pasmo, mas daí se lembra da conversa com a médica local, e deduz que Wendy contou para O Pai sobre a gravidez da esposa. O Pai revela que ama aquela gente do mesmo jeito que o jornalista ama esposa e filho. "Essa gente é a minha família, meus filhos. E quando escrever sobre eles, lembre-se que está lidando com as suas vidas". A entrevista é concluída e Sam promete que o interesse resume-se a reportar a realidade, e não distorcer os fatos. O Pai assinala que confia no jornalista, e a entrevista dá lugar à cerimônia, à comemoração.

Sam e Jake se afastam para conversar sobre a entrevista. Ao fundo da filmagem, vê-se o pavilhão onde se sucede a festa. Sam conta que os modos de Charles o enervam, e que quando mencionou a esposa grávida, não acreditou na sua ousadia, tampouco soube como reagir. Eles estão ansiosos para conversar com Patrick, mas no meio da festa não conseguem pontuá-lo em meio a tantos rostos. No palco, uma senhora da comunidade está entoando uma canção de ritmo alegre. Há um breve momento durante a festa em que Jake filma acidentalmente o fotógrafo. Patrick aparece assediado por duas meninas bonitas, uma delas a australiana Sarah, com quem os amigos conversaram ao chegar a Eden Parish. Mais tarde, a garotinha Savannah aparece para lhes entregar um bilhete. Inicialmente, Sam não entende o gesto da menina, que simplesmente passa a folha de papel e os deixa, mas então exibe o bilhete para o operador de câmera, que reage assustado. O recado diz "Por favor, ajude-nos". Imediatamente, o clima de descontração da dupla vai por água abaixo. Muito nervosos, tentam encontrar a garotinha no pavilhão, mas só conseguirão efetivamente conversar com a mãe da menina longe dali. A todo instante, Caroline os observa de longe, desconfiada.

Os rapazes entram na casa utilizada para serviços administrativos. O operador de câmera percebe o cofre semiaberto, e ao examinarem o conteúdo, encontram uma porção de passaportes, pertencentes aos membros da comunidade, que os tiveram confiscados para não fugir. De cara, Sam sabe que não é uma boa ideia permanecer no escritório, e quando estão deixando a caserna, dão de cara com Caroline. Eles perguntam por Patrick, e Caroline conta que havia falado tanto sobre o irmão com Sarah e uma outra amiga que as duas "o tinham levado" para conhecê-lo melhor, dando a entender que Patrick estaria se divertindo com as moças em algum lugar reservado. Sam percebe a estratégia de manipulação que Caroline pôs em movimento. Ela procura ganhar o irmão para mantê-lo ali. Filhos de pais muito ricos, sabe que se Patrick se interessar pela comunidade, terão dinheiro para levar adiante uma série de projetos que O Pai tem em mente para Eden Parish. Caroline parece excessivamente alegre e "descontraída", ou seja, apesar de terem previamente acreditado que a moça superara a dependência química, parece óbvio que continua a usar drogas. Ao longe, de dentro da casa principal, O Pai aparece à porta, pedindo pela ajuda da moça. A forma como ela o cumprimenta e depois entra na casa dá a entender que são amantes. Um diálogo muito tenso é travado entre O Pai e Sam. "Vocês tem certeza que sabem para onde estão indo?Parecem perdidos, podem acabar vendo o que não é para ver", O Pai provoca. "O que está querendo dizer?", Sam desafia. "Se você põe a mão na tigela do cachorro, não tem direito de reclamar se for mordido", O Pai sutilmente ameaça, antes de se recolher.

Incertos, Jake e Sam começam a preparar as coisas para partir. Eles não se apercebem quando Savannah aparece nos degraus da casinha. Ao seguirem a garotinha, dão com a mãe no varal, mais um grupo de pessoas que também quer deixar a comunidade. "Leve-nos com você, não sabe o que realmente acontece por aqui!", a mulher suplica. "Eles machucam as pessoas que não cumprem as regras, estão te manipulando, a verdade é que O Pai não permite que ninguém parta, sofreram lavagem cerebral e sequer sabem!". A mulher revela que a irmã de Patrick é uma dessas pessoas obcecadas pelo Pai, e que em nome da comunidade tem feito coisas horríveis. É Caroline quem dispensa castigo para os "rebeldes", a responsável pelas surras que deixaram a filha traumatizada a ponto de ter deixado de falar. Sam conta que o trio deixará Eden Parish às 08:00 da manhã seguinte, e sugere que os dissidentes aproveitem a carona no helicóptero. O temor de Jake é que o mesmo não comporte tanta gente. A mãe de Savannah implora para que os jornalistas ao menos levem a filha. Nisso, a turma escuta quando um dos membros do esquadrão se aproxima. Os adultos se escondem atrás dos lençóis. O guarda lhes dá um olhar desconfiado e raivoso, e toma a menina pela mão, afirmando que a levará para casa. Naquela mesma noite, a voz do Pai entra pelo sistema de som. Ele ordena que os fiéis voltem para suas casas, mas pede que Wendy, a médica, e os membros da turma da faxina compareçam ao pavilhão dentro de 15 minutos, para uma reunião de emergência. Os jornalistas os observam a uma distância, em uma movimentação cuja natureza não conseguem distinguir muito bem.


São 05:00 da manhã, o dia está para nascer. Jake não conseguiu pregar os olhos, Sam passou a noite olhando fotos da esposa no celular, morrendo de saudade, ambos loucos para dar o fora. O dia amanhece, e no decorrer da manhã o que começou esquisito se torna mais perigoso. Jake abre a cortina do dormitório, e enxerga uma certa comoção no pavilhão. Os jornalistas se aproximam, preparados com as mochilas para deixar a comunidade, e veem que há uma dúzia de cidadãos dispostos a abandonar Eden Parish com os rapazes da Revista Vice. Caroline e os asseclas mais fiéis esforçam-se para convencê-los a permanecer, mas os dissidentes parecem resolutos. Eles sabem que não haverá outra oportunidade para fugir da selva. Jake e Sam reencontram Patrick, que conta que a irmã parece inconformada, bastante ressentida com os companheiros que vocalizaram o desejo de partir. A moça diz aos rapazes que sua vinda só deixou os companheiros estressados, e que para evitar novos transtornos, o trio deve partir imediatamente.

Jake pede para o amigo Sam não se envolver, porém é tarde demais. O rapaz exige que os guardas deixem Savannah e a mãe em paz. O helicóptero pode ser pequeno, todavia há lugar para levar a menina logo na primeira viagem. Eles também podem acionar novos voos para apanhar o restante do pessoal. O trio sabe que o piloto já deve estar esperando pela chegada dos jornalistas na clareira. Sam ordena que Jake pegue uma carona no caminhão de Eden Parish, para ir avisando ao piloto que não apenas levarão uma passageira extra (Savannah), como também outros helicópteros precisarão ser acionados para atender a súbita e inesperada demanda de gente. Jake parte na carroceria, deixando Patrick e Sam para trás.

Até então calma, Caroline fica furiosa. Pela carroceria, vemos a garota ficando cada vez menor, à medida que o caminhão vai subindo a trilha. Ela grita com o irmão, e lamenta que O Pai a tinha avisado a não trazer intrusos para a comunidade. A seu ver, o que o trio realmente queria era destruí-los por dentro, desagregá-los. Ela os deixa no pavilhão, com vingança em mente, e vai repassar ao Pai as informações de que uma porção de companheiros se manifestou favorável a deixar a comunidade. São 07:50 da manhã, e o caminhão estaciona nas cercanias da clareira. O piloto o aguarda do lado de fora da cabine. Esbaforido, Jake se aproxima e repassa ao rapaz as mudanças de última hora. O piloto não acredita que o aparelho seja capaz de decolar com o sobrepeso, de modo que precisarão acionar outros helicópteros. Apesar da eletricidade da situação, tudo vai bem, quando o zunido indica que alguém está disparando na direção do aparelho. O piloto é alvejado no braço, mas Jake consegue correr para dentro da mata, as balas passando rentes ao corpo. Para despistar os atiradores, encontra um galho e posiciona a câmera por entre os mesmos, e segue correndo. Os dois guardas da comunidade encontram a câmera, mas nenhum sinal de Jake. Prova da confusão dos dois, rapidamente desistem de continuar no encalço do fugitivo, e voltam para a comunidade. Depois que se convence de que os homens não voltarão, Jake retorna para recuperar a câmera, e fica feliz ao encontrar o piloto com vida. O homem diz que se sente em condições de pilotar, e ordena que Jake o ajude a voltar ao assento. Ele o manda voltar a Eden Parish para chamar os demais o quanto antes, para que deem o fora daquele ninho de vespas.

Em Eden Parish, a situação no pavilhão rapidamente foge ao controle mesmo dos mais ponderados. Sam e Patrick são dominados e levados dali. A sirene anuncia a reunião de emergência, e todas as famílias são convidadas a se sentar para uma preleção do Pai. Simultaneamente, ali ao lado do refeitório, enormes barris contendo litros e mais litros de Ki-Suco são trazidos e "batizados" pela Doutora Wendy. Ela está misturando cianeto de sódio ao Ki-Suco, e os ajudantes enchendo os copos descartáveis para servi-los aos fiéis. O Pai conta aos filhos que não há mais esperança, não agora que jornalistas de Nova York estão de posse de imagens comprometedoras que só trarão maiores problemas à comunidade. Charles declara que o fim chegou, mas que não há motivo para pânico, afinal de contas haviam conversado a respeito. Os idosos parecem mais resignados quanto a ideia de suicídio coletivo, porém os mais jovens demonstram relutância, como se naquele último momento tivessem dado conta da histeria por trás da macabra ideia, "viver como um, morrer como um". Enquanto O Pai volta à carga com a ladainha sobre "encontrarem-se do outro lado", os membros mais fanáticos trazem os copos cheios de Ki-Suco batizado, e dão início `a primeira rodada. Charles promete que não haverá dores ou convulsões, apenas um sabor amargo inicial, e então a paz eterna. Famílias inteiras são varridas da face da Terra em questão de minutos e alguns goles. Chegada a hora da verdade, um dos garotos entrevistados no começo do filme, na quadra de basquete, revela-se a única voz dissidente. Ele exclama que não faz sentido algum cometerem suicídio, não depois de toda a luta para erguer a comunidade, mas Charles não parece inclinado a concessões. O Pai decreta que logo mais os inimigos chegarão a seus portões com armas e bombas, e que ao invés de morrerem em agonia, eis a oportunidade perfeita para abrirem mão da vida de uma forma pacífica. Imediatamente, outras vozes fazem coro ao Pai, e o rapaz se sente praticamente coagido a se calar e tomar o Ki-Suco batizado. "Mais rápido, mais rápido", O Pai os orienta, não lhes dando tempo para pensar no significado da loucura, "Mães, ajudem os seus filhos primeiro, digam que ficará tudo bem". As crianças menores são as primeiras a morrer. Contrário ao que O Pai prometeu, o processo de morte prova-se lento e doloroso. As pessoas agonizam por minutos, espumando pela boca, sofrendo convulsões terríveis, contorcendo-se de dor nas entranhas. Não há morte silenciosa, e logo o pavilhão é tomado por lamentos, choros de crianças inocentes e gemidos de dor.

O pior ainda está por vir. Face a face com a morte, mesmo alguns dos mais dedicados membros hesitam, e para os rebeldes, há os tiros de metralhadora do esquadrão da morte, ali presente para garantir que não sobre ninguém para contar a história. Uma das cenas mais horrorosas envolve o fratricídio levado a cabo por Caroline. Descobrimos que Patrick foi rendido e amarrado a uma cadeira no escritório. Caroline chega à sala com um copo de Ki-Suco e implora que o irmão consuma logo a bebida, pois será melhor. Patrick vira violentamente o rosto e se recusa. Ele pede para que o desamarre para que possam fugir. Patrick não percebe a gravidade da lavagem cerebral sofrida pela irmã. Agindo com muita rapidez, convicta de que não há outra solução, Caroline saca uma seringa do bolso e injeta o veneno muito rapidamente no pescoço do irmão. Ela é tão ágil que mesmo depois que o fura, ainda se vê a incompreensão no rosto apavorado de Patrick, que nem se deu conta de que foi fatalmente envenenado. Uma vez que percebe o ocorrido, começa a chutar a mesa, protestar, xingar, gritar e chorar. Caroline o abraça de frente e com toda força. Tendo o amarrado, consegue segurá-lo sem que o rapaz possa oferecer muita resistência. Ela procura consolá-lo, jurando que logo toda a confusão passará. O inconformado irmão pergunta como foi capaz de traí-lo tão terrivelmente, principalmente sabendo o quanto a ama. Ele não demora a perder a força e escorregar para a inconsciência e a morte. A todo instante, a irmã o mantém nos braços e fica insistindo que logo a confusão deixará de existir, que sente muito, mas não encontrou outra maneira. A ação é capturada em um único take e parece durar mais do que efetivamente custa. Quando ela chega oferecendo o suco para o irmão apenas para ser rejeitada, já nos enchemos de antecipação, pois imaginamos o que está por vir, todavia não há como olhar para outro lado. Quando Caroline o espeta com o veneno e o segura, parece que está nos segurando também, nos forçando a testemunhar tão imperdoável assassinato. Não há cortes ou edições: o fratricídio é exibido sem desculpas ou atenuantes.

No meio do pavilhão da morte, quem "não foi por bem, está indo por mal". Há corpos de idosos, adultos, crianças e bebês empilhados por todos os lados. Doutora Wendy contempla a extensão do massacre, e pela primeira vez parece se aperceber do caos desmotivado por trás do fanatismo. Calmamente, quase como em transe, retorna para a clínica, em estado de choque. Jake refaz o percurso de dois quilômetros de volta a Eden Parish, e alcança a comunidade apenas às 08:25 para testemunhar a desoladora cena de corpos espalhados dentro e no entorno do pavilhão maior. Ele ainda encontra o jovem Andre agonizante, espumando pela boca, arrependido de ter tomado o Ki-Suco batizado. Repentinamente, o zunido de disparos o desperta para o fato de que há um novo atirador por perto. Ele se refugia em uma das casas, e encontra Savannah nos braços da mãe, ambas encurraladas em um canto. A senhora diz que prefere acabar com a vida da filha a deixá-la cair nas mãos daqueles fanáticos, e contra os protestos de Jake, degola a menina com uma faca de cozinha. O atirador põe a porta abaixo com um chute, mas não enxerga Jake, albergado sob a cama. Ele atira na senhora, deixando os corpos de mãe e filha dentro de uma poça de sangue. Depois que o atirador parte para dar cabo de outros sobreviventes, Jake faz o caminho para a clínica. Encontra Doutora Wendy deitada de bruços, os olhos vidrados, o rosto sobre um travesseiro molhado de vômito. Logo no chão, uma nota onde rabiscou um pedido de desculpas.

Jake reencontra Caroline no escritório. Ele vê Patrick morto na cadeira, mas não tem ideia de que foi a moça quem o matou. Pede para que desista daquela loucura e o ajude a encontrar Sam, para que tratem de correr para a clareira para apanhar o helicóptero. Caroline está desolada e não lhe dá ouvidos. Ela joga gasolina contra as paredes e sobre si, e depois se imola, ignorando os apelos do operador de câmera, que ainda a filma virando uma tocha humana. Há uma última casa a explorar, a residência do Pai. Sam foi amarrado por Charles. O discurso do velho não faz mais sentido. O Pai perdeu a noção do Real, e prova de sua insanidade é a forma como cheira carreiras de cocaína como se não fossem nada. Ele puxa um revólver .38 e o aponta para a própria boca, apertando o gatilho e mandando os próprios miolos janela afora. Jake desamarra o amigo Sam, e quando os dois acham que o pior passou, tornam-se alvos móveis para os tiros de um dos asseclas do Pai. Os dois vão ao chão, e escondem-se sob corpos, o que de nada vale pois o algoz os vê claramente. Ele os teria executado sem dó, não fosse por um segundo atirador, o homem mais sensato do esquadrão, que compreende a perversidade do Pai, e tem uma impressionante guinada de comportamento no derradeiro momento, quando aponta para o colega atirador e o fuzila antes que faça mal aos jornalistas da Vice. O rapaz ordena que se mandem imediatamente, pois o lugar não custará a queimar. Os dois amigos voltam pela estradinha que os devolve à clareira, e felizmente encontram o piloto ainda à espera. Ele faz um voo rasante por sobre Eden Parish, onde a visão dos corpos é apavorante. A comunidade está ardendo, engolida pelas chamas. O filme conclui com as seguintes linhas "107 pessoas morreram no massacre de Eden Parish. Foi um dos maiores suicídios em massa da História. Os cineastas Sam Turner e Jake Williams são os únicos sobreviventes conhecidos. Este documentário é o único relato em primeira mão dos eventos em Eden Parish".

Os fãs de filmes de horror que apreciaram o segmento "Safe Haven" de "V/H/S 2" têm motivos para comemorar. Produzido pelo mesmo time criativo por trás de "V/H/S 1&2", "Monsters", "Europa Report", "You're Next" e outros recentes e maravilhosos filmes de horror independentes, "The Sacrament", novo filme do diretor Ti West, traz para as telas uma história sobre fanatismo religiosos e lavagem cerebral baseada nos eventos de Jonestown, observados na Guiana no final dos anos 70. Assim como feito anteriormente por Gareth Evans com "Safe Haven", o diretor Ti West nos toma pelas mãos e nos leva a uma jornada de terror cheia de "build up" e atmosfera, onde ao invés do demônio alado e dos elementos sobrenaturais presentes no segmento de Evans, são a capacidade individual para o Mal e a suscetibilidade dos fracos e vulneráveis a discursos de gurus espirituais os principais ingredientes para um estudo honesto e brutal sobre a fragilidade da mente humana e a facilidade com que toda lógica pode ser rompida, nesta que é a versão mais próxima ao massacre do reverendo Jim Jones de 1978.

Cinéfilos familiarizados com os filmes anteriores de West sabem o que esperar de "The Sacrament", e garanto que não se desapontarão. O tipo de diretor que ou se ama ou odeia, sabe-se que como poucos West prioriza desenvolvimento de personagens, story telling e build up. Se os seus filmes anteriores foram acusados pelos detratores de "chatos", é porque de uma maneira muito particular, prefere lapidar detalhes que por si não comandam atenção, todavia somados agregam um valor inestimável à obra. Seus filmes famosos são "House of the Devil" e "The Innkeepers", rodados em estilo que nos remete claramente aos poeirentos, antigos filmes de fantasmas dos anos 70 & 80. Mesmo a fotografia e o visual de suas duas obras muito recentes ("House of the Devil" foi rodado em 2009, "The Innkeepers", em 2011) reproduzem as imagens despojadas, granuladas e gastas dos velhos clássicos de Tobe Hooper e David Cronenberg, evocando de forma maravilhosa um saboroso sentimento de saudade e nostalgia, quando o horror se apoiava principalmente em performances e story telling, e não em efeitos especiais, para fazer o que propunha, dar muito medo. Apesar de seus dois elegantes longas, a síntese do estilo pôde ser vislumbrada na pequena contribuição para o primeiro "V/H/S" com o segmento "Second Honeymoon". Quando escrevo que é um diretor de detalhes, não estou brincando. Para os amigos que não viram "Second Honeymoon", trata-se da aventura de um casal viajando pelo Arizona, assediado por uma garota misteriosa que primeiro bate à porta do motel onde se hospedaram para pedir carona, e depois passa a invadir o quarto para realizar imagens dos dois na cama. O rapaz acaba barbaramente assassinado, esfaqueado na garganta, porém é a verdadeira identidade da garota a grande surpresa. Não é que a esposa estava todo aquele tempo combinada com a estranha que, afinal de contas, era a sua namoradinha da época da faculdade?! Isso mesmo, desde o começo, as duas estavam tramando acabar com a vida do marido desatento, em algum momento durante a viagem. O título "Segunda Lua de Mel" parece referir-se às duas moças, que provavelmente haviam tido um romance na época da faculdade e posteriormente se afastado, apenas para se reencontrarem muitos anos mais tarde. Prova da atenção de West a detalhes, da habilidade em construir suspense e nos deixar aflitos, pode ser pontuada em uma cena em particular, quando o casal visita Flagstaff, cidadezinha reproduzida nas linhas daquelas vilas da Era dos faroestes. A esposa consulta um boneco vidente, e lê o bilhete fornecido pela máquina, algo nas linhas de "você é o tipo de pessoa que confia excessivamente nos demais, e portanto tiram vantagem de sua natureza altruísta. Tome muito cuidado. Uma série de novos eventos o devolverá aos braços de uma pessoa amada de seu passado". Aqui, parece haver uma espécie de presságio macabro para ambas as partes. O aviso quanto a natureza altruísta parece caber ao marido, que a todo tempo está sendo traído e manipulado pela esposa maquiavélica, já o trecho sobre reencontros e voltar aos braços da amada serve como uma luva à mulher, que de fato está louca para reatar com a ex-namorada e se livrar do marido pamonha. Simultaneamente, enquanto a esposa lê o bilhete fornecido pelo boneco vidente, foi somente muito recentemente, ao assistir o segmento outra vez, que percebi a presença de uma moça muito alta, que a tudo vê, a uma distância segura, da porta do saloon. Ela então dá as costas e vai saindo discretamente. Percebi que a moça curiosa se trata, na verdade, da amante, ou seja, da mesma figura que no começo do segmento bate à porta para pedir carona e mais tarde invade o quarto do motel para realizar imagens dos dois dormindo. A descrição acima somente corrobora que o diretor Ti West utiliza bem os detalhes - elemento amplamente desprezado em grandes produções cuja sustentabilidade se dá única e exclusivamente sobre impressionantes efeitos visuais ou explosões - a favor de story telling. Ele é um mestre absoluto do "build up", ou seja, em criar o sentimento de tensão e a expectativa de tragédia iminente de uma forma muito sutil e delicada, permitindo que mais interessante e memorável do que o destino final, a jornada se torne o mais importante. Tenho observado que muitos amigos que assistiram a "V/H/S" tomaram o segmento dirigido por West como o mais fraco, todavia devo discordar. Em "Second Honeymoon", o horror reside na expectativa do assassinato por vir, e West não precisa de efeitos impressionantes ou entidades sobrenaturais para criar uma trama altamente angustiante que te fará roer as unhas até o impressionante final.

Falei sobre os pequenos, maravilhosos instantes de expectativa de "Second Honeymoon" para ilustrar o talento do diretor, mas me permitam discorrer sobre momentos semelhantes em "The Sacrament", o filme em comento. A maioria das pessoas o procurará essencialmente por causa de seus quinze minutos finais, quando os barris de Ki-Suco são trazidos para o pavilhão e o mais puro horror se instala entre os membros da comunidade, porém uma vez que vocês assistirem ao filme, perceberão que mesmo antes do clímax, é possível roer as unhas com as miscelâneas aparentemente inofensivas, porém reveladoras da real instabilidade do lugar, sustentadas pela trilha sonora misteriosa e claustrofóbica de Tyler Bates, a fotografia objetiva e elegante de Eric Robbins (amarelada para as tardes quentes da escaldante selva, azulada para as noites e madrugadas gélidas) e performances uniformemente inspiradas, com destaque para Amy Seimetz no papel de Caroline. Eu consegui imaginar Jennifer Connelly no papel da Caroline, porque os seus olhos guardam a tristeza que não se pode ler ou compreender a partir de intelecto, talvez somente do coração. Eu sempre imaginei que se sairia fantástica em um papel de vilã; como a Julia em um remake de "Hellraiser", por exemplo, ou mesmo a Caroline de "The Sacrament". A mulher mais linda que já vi contraditoriamente sempre me pareceu também a de olhos mais tristes, e mesmo hoje, tantos anos após "Rocketeer", de 1991, parece-me paradoxal que de tanta tristeza emane a beleza que nenhuma outra tem. Jennifer é uma artista passional, mas também uma mulher honrada, esposa devota e mãe dedicada, admirável em todas as contingências da vida. Afirmar que ficaria excelente neste papel é um desserviço a seu incrível talento, afinal de contas se sairia extraordinária em qualquer tipo de filme, todavia sempre acreditei que mostraria seu absoluto melhor em materiais mais sombrios e pesados, em filmes que ousassem colocá-la como a vilã, por exemplo. Sobre o elenco, a maioria do pessoal já trabalhou junto nos filmes uns dos outros. Joe Swanberg, o Jake de "The Sacrament", por exemplo, viveu o marido desavisado e inocente, esfaqueado na garganta pela amante da mulher, vivida por Kate Lyn Sheil (a australiana Sarah deste filme), no segmento "Second Honeymoon" de "V/H/S"; Amy Seimetz e AJ Bowen (o Sam de "The Sacrament") interpretaram irmãos caçados por assassinos profissionais em "You're Next". Gene Jones é o ator veterano que torna O Pai um memorável vilão. A forma com que constrói O Pai em muito me faz pensar na performance de Burt Reynolds como Jack Horner em Boogie Nights Prazer sem Limites. No filme de Paul Thomas Anderson, Reynolds era o diretor de filmes pornôs que sonhava elevar seu trabalho ao patamar de arte, e servia como figura paterna e centro moral para os atores e membros da trupe. Havia Mark Wahlberg ocupando a figura do filho, a moça de patins que poderia ser vista como a irmã, e a atriz pornô amante de Jack, figura materna para os demais. A diferença, claro, é que apesar do contexto de sexo corrompido e drogas pesadas, o personagem de Burt Reynolds cuidava da família, e a mantinha unida através dos bons e maus momentos. No filme de Ti West, "The Sacrament", muito pelo contrário, apesar de O Pai parecer inicialmente tão bem humorado, bonachão e conhecedor quanto o personagem de Reynolds em Boogie Nights, acaba arrastando a família para a morte certa. Não existe nota desafinada no maravilhoso elenco escalado por West, e foi graças ao talento e trabalho de equipe que a grande habilidade do cineasta, nominalmente a exploração de detalhes, pôde ser traduzida para a tela de maneira tão singular. Para nominar algumas dessas joias de detalhes, devo mencionar a festa no pavilhão quando Sam e Jake se afastam para trocar impressões, a garotinha aproxima-se para entregar o bilhete, e então com o rosto retesado, Sam abre a folha e revela o teor do recado "Por favor, ajude-nos a sair daqui". A natureza viciada das relações entre os membros da comunidade é muito bem representada quando Caroline, visivelmente drogada, conta aos visitantes, com imprópria naturalidade, que planejara tudo para que o irmão "festejasse" com as duas amigas, o instante em que sua tendência manipuladora salta aos olhos. A cumplicidade com que entra na casa principal depois que é chamada pelo Pai entrega a intimidade própria a amantes, e novamente graças à atuação do afinado elenco, West diz muito no curso de um único take. A batida eletrônica de Tyler Bates imprime às pequenas descobertas um ritmo crescente de oscilações cardíacas a um passo de entrarem em colapso.


Os mais jovens não se recordarão dos eventos que inspiraram o diretor West a rodar "The Sacrament", mas a envergadura de Jonestown, em 1978, foi tão devastadora que levou vinte e dois anos para que uma nova, horrorosa tragédia viesse a bater o espantoso número de 918 norte-americanos mortos. Refiro-me, é claro, ao 11 de Setembro, o atentado terrorista que projetou uma sombra sobre as recordações de outras terríveis histórias, relegando o impacto de Jonestown às margens, quase ao esquecimento. Ainda assim, o ocorrido na Guiana é um poderoso, incontestável testamento à capacidade satânica de alguns indivíduos donos de incomum oratória e poder persuasivo para literalmente arrastar gerações e mais gerações consigo em direção ao mais profundo abismo. Semelhante ao que ocorreu na Alemanha nazista (recordo-me de ter visto algo em um filme, sobre uma coisa que Hitler disse quando um servidor mais próximo teceu comentários quanto ao sofrimento do povo alemão face ao avanço implacável dos brutais soviéticos, notórios pelas execuções e estupros em massa que promoviam de vila a vila durante a arrancada final rumo a Berlim - Hitler disse algo nas linhas de "Não podem reclamar, foram eles, o povo, que nos deram o mandato, agora que suportem as consequências"), os fiéis que acompanharam Jim Jones em sua aventura na Guiana eram, na verdade, pessoas apanhadas no momento de maior vulnerabilidade e fragilidade da vida. A grande massa, formada por pessoas paupérrimas ou vítimas de toda sorte de preconceito e perseguição, encontrou em Jim Jones a figura do Salvador, e ao mito se apegou de modo a mesmo até o último minuto, preferir se agarrar à crença de que aquele homem em quem havia depositado a confiança não poderia ser o Judas que os arrastaria direto à maior cilada de todas, recusando-se a enxergar a horrorosa realidade que estava ao alcance dos olhos o tempo inteiro. Costuma-se dizer que o que aconteceu em Jonestown não foi um suicídio coletivo, mas um suicídio (Jones) e 917 assassinatos. Nos moldes do que ocorre em "The Sacrament", existia um esquadrão da morte presente no pavilhão, de modo que não houve escolhas. Ou se tomava Ki-Suco batizado, ou se tomava bala. Curiosamente, Jones preferiu dar cabo da própria vida com um tiro na cabeça a beber o veneno "indolor", prova de sua hipocrisia e covardia. Quem leu a respeito de Jonestown, reconhecerá menções muito discretas que o cineasta faz à figura de Jim Jones. Em "The Sacrament", há uma cena, por exemplo, em que Caroline menciona a momentânea indisposição do Pai (desarranjo intestinal), e quando a equipe o entrevista no pavilhão, a saúde novamente merece menção. Sabe-se que na história real, no derradeiro ano na selva, Jones viveu atormentado por doenças oportunistas, em sua maior parte micoses que não deveriam causar maiores problemas a adultos saudáveis. Apesar de a AIDS surgir como síndrome apenas no começo dos anos 80, os primeiros doentes a manifestar a imunidade arruinada dataram de alguns anos antes de o fenômeno ter chamado atenção, e Jones notoriamente transitou por aquele meio de San Francisco em uma época em que ainda se podia falar de grupos de risco. Curiosamente, antes que a sua condição pudesse receber um nome, ou ao menos ser notada pelos cientistas, o que viria a ocorrer apenas na primeira metade da década de 80, as circunstâncias de sua morte tornaram a natureza do diagnóstico um mistério que permanecerá largamente desconhecido. A breve linha de diálogo em "The Sacrament", quando a saúde do Pai é arguida, parece-me uma referência direta à sugestão de que Jones teria mesmo sido uma das primeiras vítimas da AIDS. Outra reconstituição que o diretor realiza em seu filme é a preleção final antes da distribuição do suco envenenado. Hoje, é possível escutar as gravações da última hora da gente de Jonestown, e do mesmo jeito que no filme de Ti West um garoto se levanta contra o estado das coisas e contesta veementemente a instrução de suicídio do guru, uma mulher chamada Christine Miller realmente pode ser escutada nos tapes de Jonestown debatendo com Jim Jones uma alternativa que não o suicídio. "Olho para todas essas crianças e acho que merecem viver", diz, em determinado ponto. Ela ainda levanta a possibilidade de serem todos levados de avião para a Rússia, para escapar do escrutínio das forças dos Estados Unidos, porém sua voz rebelde é rapidamente silenciada pelos colegas mais impressionáveis. Sobre o link entre o Peoples Temple (a seita de Jim Jones) e a ex União Soviética, o vínculo revela outro surpreendente segredo: apesar de ter revestido o discurso com os ensinamentos de Jesus Cristo, sabe-se hoje que Jones era ateu. A pregação não passava de fachada, vez que seus motivos deviam-se única e exclusivamente à obsessão doentia com o Movimento Comunista e seus mais notórios líderes. Jones era um dedicado estudioso dos ensinamentos de Mao Tse-Tung, Stalin e Castro, e procurava aplicar aquela tolice marxista na comunidade da Guiana, ainda que às custas de técnicas de lavagem cerebral e controle de mente. Os membros da Igreja mais próximos a Jones chegaram a deixar notas redigidas no último minuto, antes de tomar veneno, declinando o desejo de que todo dinheiro que houvesse em suas contas fosse destinado aos cofres da União Soviética. Ironicamente, apesar de apregoar igualdade e liberdade de expressão, quando alguns dos fiéis começaram a aventar a possibilidade de deserdar, foi o suficiente para que ficasse maluco e pusesse em movimento a manobra do suicídio coletivo, a única forma de se assegurar que aquelas pessoas jamais se libertariam de seu jugo. Ele não suportava a ideia de perder o fascínio psicológico exercido sobre aquela gente impressionável e fragilizada. West merece parabéns pela habilidade com que imprime tensão aos momentos finais, todavia não chega perto de emular a eletricidade que se deu em Jonestown, quando os sobreviventes do verdadeiro drama tiveram de contar com astúcia e inteligência para escapar do massacre que ocorria ao redor e ao lado. No livro "A Thousand Lives", a versão definitiva do ocorrido, a autora Julia Scheeres fala sobre como Stanley Clayton, então aos vinte e poucos de idade, conseguiu fiar-se na perspicácia e malandragem de anos de rua para driblar o cinturão do esquadrão da morte e fugir para a selva. Quando Clayton viu que a parada era pra valer, os amigos morrendo depois de tomar o Ki-Suco envenenado, manteve a cabeça suficientemente fria para caminhar vagarosamente para longe do pavilhão, até ser detido pela turma da Guarda, homens munidos de besta (arco e flecha). Desconfiados, perguntaram para onde Clayton pensava que ia, e ele se saiu com a desculpa de que apanharia o estetoscópio, para que o Dr. Schacht (no filme de West, temos uma mulher chamada Doutora Wendy, mas em Jonestown, era um cara chamado Larry Schacht quem fazia as vezes de médico, e foi o mesmo quem "batizou" os barris de Ki-Suco na hora do massacre; Schacht era ex dependente de heroína e creditava a Jim Jones a recuperação) certificasse-se de que o veneno estava funcionado. Depois que Clayton ultrapassou o cordão, fez um atalho para a selva fechada, e por ali permaneceu, escondido por muito tempo. O rapaz esperou até a noite para retornar a Jonestown, pois precisava recuperar o passaporte, recolhido junto aos dos demais. Clayton deixava os quartéis de Jonestown com o documento, à meia luz, quando escutou tiros vindos de algum prédio próximo. Era Maria Katsaris, uma das últimas a se suicidar, amante de Jim Jones. Ela vasculhava as casas à procura de sobreviventes, e aqueles encontrados ainda com vida eram sumariamente executados. Foi por pouco que Clayton não cruzou com Katsaris. O fato é que ele foi uma das poucas pessoas a escapar com vida de Jonestown. Em "The Sacrament", a atriz Amy Seimetz parece interpretar uma versão de Katsaris, afinal de contas é a sua Caroline o braço direito do Pai, sua amante e melhor amiga. De muitas formas, o diretor Ti West encontrou muitas oportunidades para aproveitar e incorporar elementos de Jonestown à trama.

Fortemente inspirado em eventos reais, compreende-se por que o diretor Ti West não pôde se permitir o mesmo brainstorm de ideias sinistras e bizarras do colega Gareth Evans com "Safe Haven". Apesar de tematicamente semelhantes, o segmento de Evans, "Safe Haven", faz se sentir mais filme de horror, diferente de "The Sacrament", que apesar de muito assustador, mais parece cinema verite, sobre uma comunidade isolada no meio da selva e o guru que a leva ao abismo. Se no segmento dirigido por Evans o diretor esbanja um canivete suíço que vai de zumbis a demônio alado com aparência de touro, o diretor Ti West precisou sintetizar o horror da capacidade humana para o Mal, bem mascarada por trás das banalidades do dia a dia, das contingências da vida comunal, em uma floresta onde, no frigir dos ovos, Lei e Moral não têm importância. Aqui, não há zumbis de olhos vidrados ou touros demoníacos enormes e falantes, mas mesmo imagens tão esquisitas como as mencionadas não conseguiriam bater a cena do ordinário e muito verossímil, da garota aplicando a injeção de veneno no irmão, e depois o segurando enquanto ele grita, protesta, esperneia e finalmente sucumbe.


Lançado pela Magnet Releasing, de onde têm partido os melhores e mais recentes filmes artísticos de horror, "The Sacrament" dá seguimento ao renascimento do gênero, e fortalece o núcleo formado pelos cineastas e artistas de "V/H/S" e "You're Next" como voz importante do circuito alternativo. Ao lado de "Under the Skin", atende as expectativas de quem espera algo sofisticado, e oferece um throwback a um estilo mais eficiente de se fazer filmes de horror, respeitando a inteligência do espectador, oferecendo pouco em efeitos especiais e sanguinolência, e o máximo em eletricidade, expectativa e tensão. Para quem aprecia filmes psicologicamente densos e desafiadores, há muito para se ver em 2014. Ainda estamos no primeiro semestre, e "Under the Skin" (os amigos tiveram a oportunidade de conferir o seu elegantíssimo poster?O seu design "vintage", estilo filmes de horror italianos dos anos 70?Uma obra de arte!) e "The Purge: Anarchy" nem chegaram ao Brasil ainda!Vamos esperar e torcer, e até lá!


Todos os direitos autorais reservados a Magnet Releasing. O uso do trailer é para efeito meramente ilustrativo da resenha.