Um jovem negro caminha solitariamente pelas arborizadas calçadas de um bairro de classe média alta, habitado, em sua maioria, por gente branca. É noite, portanto se nota certa apreensão na voz do rapaz, que pelo diálogo ao celular parece conversar com a namorada. Ele encontra dificuldades para se situar, mas leva a situação na esportiva, e brinca um pouco na tentativa de dissipar a natural apreensão de se ver em um local desconhecido. O rapaz se despede da namorada, e segue na tentativa de se orientar através das placas. Um Porsche branco surge, vindo vagarosamente pela rua deserta no sentido contrário ao de sua caminhada, com as luzes baixas. O rapaz nem chega a prestar atenção, empenhado em achar a avenida principal. O motorista realiza uma meia-volta, e pareia com o jovem, o que definitivamente lhe causa uma má impressão. Receoso, determinado a não se passar de vítima, ele muda o sentido da caminhada e incrementa a marcha, murmurando enraivecido que não se sente no humor para lidar com brigões. Quando se prepara para atravessar a pista e seguir outro caminho, o rapaz nota que o motorista abriu a porta, em uma aparente intenção de descer. Atônito, não vê quando uma segunda pessoa, presente à cena, mas até então escondida atrás das árvores do canteiro, deixa seu esconderijo e o põe para dormir com um pano embebido em clorofórmio. Rendido, o jovem é discretamente abduzido, e desaparece de uma hora para a outra, arrastado para o Porsche. Ninguém mais ouve falar do rapaz, nem a família, nem os amigos.
Meses depois. Chris Washington (Daniel Kaluuya) é um jovem que, não obstante tenha sofrido um evento extremamente traumático do passado, cresceu para se tornar um excelente fotógrafo e uma pessoa feliz, saudável e bem-humorada. Quando o vemos pela primeira vez, ele está cuidando dos últimos preparativos para a viagem. Chris faz a barba diante do espelho, e aguarda a chegada da namorada, Rose Armitage (Allison Williams), que não custa a bater à porta, trazendo croissant e guloseimas para o café da manhã. Chris veste um ar circunspecto enquanto deposita roupas e materiais de higiene pessoal na mala aberta. A namorada percebe o nervosismo, e dá um tempo nas brincadeiras com Sid, cãozinho de Chris, para tranquilizá-lo. Chris é negro, e Rose, branca. Ele teme a reação dos pais da moça quando forem apresentados a sua pessoa. Rose tenta dissuadi-lo de suas preocupações, e insiste que a família não é racista. Dirigindo pela estrada do bosque, Rose mantém os olhos à frente, porém, em uma manifestação de carinho, tem a presença de espírito de atirar o maço de cigarro de Chris pela janela. Os ânimos parecem dos melhores, naquela manhã de sol glorioso. Ele liga para o melhor amigo Rod (LilRel Howery), um simpático servidor aeroportuário a quem Chris incumbiu de cuidar de Sid ao longo do fim de semana. Rod também bate papo com Rose, e brinca ao comentar que, dos dois amigos, ela escolheu o cara errado!












Caminhando sem destino certo, Chris vai parar nas cadeiras servidas à margem da casa do coreto, onde há um senhor maduro (Stephen Root) sentado solitariamente. O estranho inicia a conversa, solidarizando-se com o constrangimento experimentado pelo fotógrafo. Ele tenta contemporizar, "Eles (as pessoas na festa) são ignorantes. Têm boas intenções, mas não sabem lidar com gente real". O homem se apresenta como Jim Hudson, e Chris imediatamente o reconhece pelo nome, pois é dono da conceituada Hudson Galleries. Jim o surpreende ao mencionar a familiaridade com o trabalho de Chris. Embora cego graças a uma doença hereditária, sua assistente costuma descrever obras de arte para o curador, e as fotografias que Chris tira para jornais e revistas sempre tiveram um jeito de encantá-la pela melancolia. Os dois conversam sobre a vida, e Chris, por fim, se sente um pouco mais à vontade. O senhor filosofa sobre como a vida, às vezes, parece destituída de qualquer critério de justiça. Ao retornar à casa, ocorre uma cena curiosa. Há muitos convidados socializando na sala de estar, confraternizando com seus drinques. Chris sobe as escadas enquanto as pessoas se comportam normalmente. Depois que se encontra no segundo piso, os convidados silenciam e tratam de olhar para cima, como se quisessem escutar o próximo movimento do fotógrafo. A partir desta cena, resta patente que existe algum tipo de cilada orquestrada para "pegar" o rapaz mais à frente.

Chris encontra o celular desconectado do carregador, e forma dentro de si a impressão de que a traquinagem foi obra de Georgina, quiçá hostil a sua pessoa pelo fato de ele namorar uma mulher branca. Ele expõe suas impressões à Rose, que sentiu sua falta durante a parte final da festa. Chris desabafa ao ligar para o amigo Rod, e ao tocar na questão da noite anterior, quando foi hipnotizado contra a vontade, recebe uma brutalmente honesta dose de realidade. Rod evita rodeios e vai direto ao ponto, perguntando-lhe como após tamanha manipulação ainda não reúne medo o suficiente para deixar o lugar. Não obstante dito de uma maneira ligeiramente cômica graças ao tom dramático de Rod, o alerta levanta um ponto importante, ao sugerir que aquelas pessoas possam desejá-lo como escravo sexual. Para fazer um ponto, Rod cita o caso de Jeffrey Dahmer, o psicopata responsável pela morte de dezessete homens/garotos. O serial killer costumava convidar homens para aventuras sexuais no apartamento, mas as pessoas seduzidas pelas promessas de Dahmer acabavam sofrendo mortes terríveis demais para se descrever. Chris tem a presença de espírito para explicar como as pessoas negras naquele lugar agem muito diferente, quase infantilizadas. Rod traz de volta ao bate-papo a manipulação da hipnose. Ao desligar, Chris parece desconfiado. Repentinamente, Georgina surge à porta, causando um grande susto. Ela pede desculpas por ter desconectado acidentalmente o celular do carregador. Mesmo ao se expressar para dizer algo tão simples, exibe uma confusão mental entre estranha euforia e palpitante desespero. Enquanto abre um largo sorriso, lágrimas chegam a escorrer de seus olhos. Chris tem pena da moça, contudo sempre se vê intimidado pelo comportamento quase esquizofrênico da criada, e, francamente, respira aliviado depois que ela se vai.
















A discussão em torno de "Corra!" não se resume apenas a seu recente lançamento. O filme vem causando forte impressão muito antes da exibição nos cinemas. A ideia do projeto esteve no centro do furacão que hoje rege as rodas de conversa. Muitos se serviram do argumento do filme para validar (ou enfraquecer) o discurso em torno da questão racial. Surpreendentemente, ao assistir a "Corra!", a contenda sobre racismo parece exaurida já dentro dos primeiros dez minutos. Eu explico: sim, a cor de Chris se pronuncia como um relevante detalhe, afinal se reporta às razões maquiavélicas pelas quais se veria alvo das manipulações da namorada, no começo, e do restante da família, mais tarde, entretanto, depois que a locomotiva narrativa passa a correr sobre os trilhos, a trama parece submergir a uma profundidade muito mais psicológica, eu diria filosófica, sobre a fragilidade da condição humana, e quão poderosamente maldades infligidas sobre nossas mentes, na infância, podem nos curvar, ou ao menos nos deixar conformados a perigosos padrões, dificílimos de serem rompidos. "Corra!" foi beneficiário & vítima da própria celeuma, pois não obstante a polêmica tenha levado multidões às bilheterias, a superficialidade do debate impediu muitos de assistirem ao filme com um pouco mais de atenção e boa vontade. Em que pese o sucesso instantâneo, só o tempo fará justiça a este maravilhoso filme de terror que tem muito a dizer, não apenas a um grupo, mas a um amplo espectro de pessoas que, por uma razão ou outra, jamais se sentiram integradas a um meio, ou pior, conheceram a dor envolvida em transitar desavisadamente para dentro de uma situação onde não se é bem-vindo, e tudo o que precisa fazer resume-se a dar as costas e partir o mais rápido possível. A profundidade psicológica do filme junge-se ao excepcional desempenho do protagonista, e explorarei o tópico no momento oportuno.
Produzido pela Blumhouse, o fenômeno criativo de onde chegam os melhores filmes de terror dos últimos anos, "Corra!" foi realizado por um irrisório custo, cinco milhões de dólares, rendendo cinquenta vezes o valor do orçamento (duzentos e cinquenta milhões só nas bilheterias norte-americanas). O sucesso o consagrou como o título mais rentável e bem-sucedido da produtora até hoje. Dirigido por Jordan Peele, um ator que, sob o manto de cineasta, não tinha um único título no portfólio, "Corra!" soma-se ao panteão de clássicos dirigidos por "marinheiros de primeira viagem", diretores sem nenhuma (ou quase nenhuma) experiência que, não obstante a pressão da estreia, criaram obras as quais, mesmo após décadas, pessoas não se cansam de revisitar, pois sempre descobrem elementos novos escondidos entre suas camadas de complexidade. Em muitas resenhas, cito os exemplos de sempre ao escrever sobre cineastas marcados pela dádiva/maldição de terem criado a perfeição. Brad Anderson & Tom Shankland me vêm automaticamente à mente, este com "w Delta z", aquele com "Session 9", filmes sobre os quais me aprofundei neste blog, e os quais sempre resgato para ilustrar diversos pontos. Mais tarde nas suas carreiras, os dois sofreram criativamente, pois independente das tentativas de descobrirem vozes mais pessoais, usualmente se viram confrontados pela majestade de seus clássicos, régua para tudo o que viria posteriormente. Com "Corra!", Jordan Peele realizou um terror extraordinário, e em que pese viver um grande momento da carreira, tendo o nome vinculado a muitos projetos, provavelmente será assombrado pela primeira magistral criação. Peele negocia a vaga de diretor do cobiçado, aguardado "Akira", adaptação para as telas do mangá homônimo, projeto que se encontra no mínimo há três décadas em fase de pré-produção e finalmente parece às vésperas de se concretizar. A escolha ilustra o inédito cacife do diretor, porém pode feri-lo como tiro no pé. Sabemos que estúdios tendem a contratar prodígios do momento, apenas para os podarem assim que lhes são dadas centenas de milhões para filmarem superproduções. Aconteceu com José Padilha, ao realizar "Robocop", e custou a carreira ocidental de John Woo, poeta chinês da violência trazido a Hollywood após a descoberta de seus clássicos. Woo permaneceu por alguns anos realizando grandes produções na qualidade de "diretor operário", ou, como costumo chamá-los, "diretores de filmes de James Bond", cineastas capazes de administrar um farto orçamento, mas resignados o suficiente para jamais se rebelarem contra a fórmula delegada pelos interesses acima. Woo só reconquistou a paz de espírito ao regressar para a China e voltar a fazer seus filmes menores, mais espetaculares do que qualquer blockbuster americano, pois livres da ingerência de terceiros. Só o tempo dirá se Jordan Peele gozará da impressionante longevidade de James Wan, por exemplo, o único caso de um cineasta relativamente jovem que manteve altíssimo padrão e consistência nas escolhas.
A equipe técnica trouxe uma gama de talentos a bordo, dentre eles Gregory Plotkin. Eu já ouvira falar no nome, e, ao pesquisar onde o vira antes, recordei-me: Plotkin dirigiu "Atividade Paranormal: Dimensão Fantasma", sólida sequência e último exemplar da franquia, quase tão maravilhoso quanto "Atividade Paranormal: Marcados pelo Mal", este sim o título definitivo da série, deliciosa realocação do tema para dentro de uma febril, energética e romântica comunidade latina. Em "Corra!", Plotkin empresta seu entusiasmo & perícia para a precisa edição que elimina a ameaça da redundância e sopra no filme o fôlego para a corrida de eletrizantes 104 minutos. Toby Oliver, o diretor de fotografia, reveste a trama com certa elegância, mas seu rebuscado olhar chama mais a atenção justamente na sequência inicial, a abdução de Dre Hayworth. Sabemos que o filme abre com a cena do jovem caminhando bem-humorado, porém apresentando sinais de apreensão, por um bairro tipicamente afluente e suburbano, à noite. Mesmo na quietude envolvida na suposta casualidade de uma pessoa em busca de direções, o olhar de Toby Oliver constrói um dos momentos mais angustiantes da história, quando algo que nos é comum & primitivo grita em nossos ouvidos que o mal arrebatará aquela criatura assim que ela dobrar na esquina, como, de fato, acontece. Para criar um senso de atmosfera, ele aproveita o potencial de ruas largas, calçadas espaçosas e fachadas de prósperas residências banhadas pela cândida luz dos postes. Por outro lado, Oliver também utiliza o potencial da natural iluminação a máximo efeito quando a trama se transfere à propriedade de campo, onde a copa & ramagens das árvores e a superfície do lago cuidam de polir a já benevolente cortesia de um lânguido sol ao entardecer. Michael Abels, autor da trilha, faz sua estreia em "Corra!", e nos encanta com uma batida energética, como o cântico tribal a preceder as batalhas. Todas estas talentosas mentes uniram forças para facilitar o trabalho do diretor. Graças a um time altamente capacitado, Jordan Peele obteve êxito ao tentar nos oferecer um filme no mínimo tecnicamente impecável.
Escalar o elenco de uma história tão psicologicamente exaustiva parece-me a mais árdua parte na feitura do filme, pois uma vez que se tenha os atores certos para habitarem papéis tão memoráveis, tudo o que passa a preocupar o cineasta são as posições das câmeras. Basta reclinar a cadeira, acomodar-se, gritar "ação" e deixar que seus extraordinários artistas criem magia. Jordan Peele gozou da perspicácia extra que falta a muitos diretores experientes, pois entendeu que sua precisão não girava em torno de rostos famosos, e sim de competência. Talvez pelo background como ator, Peele tenha se guiado pelo feeling natural por diferenças de estilo dramático para pinçar, dentre nomes pouco conhecidos, os protagonistas da aventura, "escalando-os" como "centroavantes" (Daniel Kaluuya & Allison Williams), sem deixar de primar pela fineza, escolhendo character actors veteranos de ilibadas filmografias para fecharem o time como "meio campistas". Os veteranos Bradley Whitford e Catherine Keener aproveitaram a oportunidade para brilhar como os líderes espirituais da família Armitage. Para a atriz, o papel lhe deve ter parecido uma volta para casa. Habilidosa em dramas sombrios e sinistros, ela recicla a sua personagem do aterrorizante "An American Crime", de 2007, onde interpretou uma frustrada, reprimida mãe solteira de meia idade, que encontra uma válvula de escape ao vitimizar uma pobre menina indefesa, sob a sua tutela por algumas semanas, até a morte. O filme, uma dramatização do notório, tétrico caso "Sylvia Likens", encontrou na figura da elegante atriz o equilíbrio perfeito entre ressentimento & redenção, criando uma vilã tão odiosa quanto patética. Aqui, Keener volta a soprar vida noutra mulher malévola, e a força da performance reside na naturalidade com que a personagem coexiste em um meio onde pessoas conviveriam com Missy e pagariam caro seus altos honorários de psiquiatra sem imaginar seu processo de pensamento psicopata. No papel da criada Georgina, Betty Gabriel não precisou de muita exposição para nos deixar curiosos, e suas aparições, poucas, mas contundentes, criaram um retrato trágico da tensão cultural a perfilhar o pano de fundo, emblema perfeito para a filosofia por trás da maldade dos Armitage. Sobre sua personagem, ela teve o seguinte a dizer: "Georgina também simboliza séculos de escravidão. Mesmo hoje, mulheres e crianças negras ou pardas têm sido vendidas a algum tipo de escravidão, escravidão sexual. Então, por exemplo, na cena em que Rod procura a polícia para lhes contar o que tem acontecido e todos riem na sua cara, é todo um novo jeito pelo qual podemos perceber 'Ora, ele está certo!'. Ao passo que não a vemos, ela se encontra presente, em algum nível. Portanto, a depender do prisma, ela (Georgina) pode representar várias perturbadoras realidades".
No seu primeiro papel de relevância no cinema, Allison Williams quase rouba o filme no papel de Rose. No frigir dos ovos, o drama de Chris assume contornos de tragédia, porque qualquer pessoa vítima de injustiça poderá depor a respeito da amargura que acompanha o sobrevivente, mas testemunhar a única pessoa em quem você depositou confiança assumir um papel importante na farsa, com a chave tilintando nos dedos, deve ser particularmente doloroso. A atriz desempenha com naturalidade e desenvoltura o papel da namorada moderna e compreensiva. Embora se mova e fale com liberalidade, destacando-se como uma pessoa sincronizada com os próprios objetivos de vida, Rose parece reservar um enorme espaço no coração para Chris, de modo que quando a máscara se vai, e a farsa da parceria cai por terra, soa crível a horrenda decepção a tomar conta de seus olhos arregalados. Como namorada e cúmplice, Williams não erra no tom, aproximando-se do perfil de boa companheira, a parceira que com uma única palavra carinhosa consegue fazer a semana do namorado. Quando ela se "transforma", a atriz desempenha a mudança de girl next door para assassina implacável com a preocupante rapidez de um veloz toque no interruptor. De cabelos presos em rabo de cavalo e rifle em mãos, ela me lembrou da eletrizante performance de Carrie Snodgress como a antagonista do herói no violentíssimo "O Vingador", o suspense de 1986 estrelado por Charles Bronson em um de seus últimos papéis de importância. A personagem de Williams ainda exigiu mais perícia no approach da atriz, pois há uma mudança de caráter envolvida no seu arco. Enquanto em "O Vingador" Snodgress mostra a que veio desde a primeira agressiva cena, quando executa um homem com um tiro na boca aberta, Williams exercita o comedimento que a mantém fiel ao arquétipo da namorada preocupada, até a revelação da chave e o clímax, onde deixa a casa com rifle em mãos, um momento no mínimo visualmente inesquecível, reminiscente de um outro, em "O Vingador", quando Joan Freeman, personagem de Snodgress, elimina o ex-parceiro de Bronson com o disparo de uma escopeta, com a indefesa vítima aos seus pés no chão da cabine. O impacto da cena dispensa a captura do produto do tiro, e sagazmente foca-se na energia exigida e na reação da predadora, como o sangue a salpicar seu rosto, os lábios bem apertados em uma expressão de esforço, ou o significativo recuo do cabo, pesado e bruto, mas, ainda assim, amparado por mãos & força feminina. Williams não teve a chance de "sujar as mãos" como a vilã de "O Vingador", todavia, pelo breve espaço de tempo envolvido em seu duelo com Chris na escura estrada do bosque, acessa uma agressividade ímpar, acende uma peculiar centelha de ódio nos olhos, chamas da certeza de seu comprometimento em descer muito além do que o abismo a que o dedo sobre o impessoal inox do gatilho é capaz de levar. Não, ela estaria pronta a chafurdar a carne, voluntariar-se a pôr as mãos no corpo do outro, em quebrar ossos com punhos que acertam com a pontaria & momentum de um cruzado lançado por um pugilista mais experiente, a sequência de três cruzados com que Buster Douglas encerrou a aura de invencibilidade de Tyson, em 1990, pondo-o humilde, ensanguentado e atônito aos seus pés. Nesse sentido, apesar das diferenças, Rose em "Corra!" & Joan em "Murphy's Law" são praticamente o mesmo demônio, bem imortalizado no tiroteio final de "O Vingador", no abandonado Hotel Bradbury, quando, armada de besta & flechas, Joan vai desafiando Bronson a enfrentá-la nas trevas das entranhas do prédio: "Somos só eu e você agora, amigo".
Nenhum colega de elenco, todavia, brilhou mais do que Daniel Kaluuya, a quem este filme verdadeiramente pertence. Eu deixei para escrever sobre sua performance por último, pois de sua sólida atuação brota um manancial de questões menores e instigantes, dignas de discussão. Para um filme tão importante, o diretor poderia ter incorrido na pressão de escalar um nome conhecido para criar seu herói. Felizmente, em vez de tropeçar na armadilha de escolher seu time pela expectativa de terceiros, confia a um competentíssimo ator a missão de criar um protagonista realmente especial em sua adorável humanidade. A maravilhosa surpresa reside no tom escolhido pelo artista para dar forma & substância à criação. Em filmes do gênero, atores menos sensíveis e mais obtusos insistiriam no mesmo equívoco, performar a mais básica, tentadora das emoções, a raiva. Eu me recordo de quando Sylvester Stallone fez "Copland", o drama independente de 1996 pelo qual recebeu as melhores resenhas da carreira. O ator interpretava um xerife envelhecido, acima do peso e surdo de um ouvido, uma alma tímida e generosa que vira a vida passar, contentando-se em assistir ao progresso dos demais, à margem das próprias minúsculas ambições. Quando chegam a suas mãos provas do envolvimento de colegas policiais da cidadezinha com o crime organizado novaiorquino, do outro lado da ponte, esse cara redescobre a própria honra e parte para o embate com a força policial inteira. Para realizar o excelente trabalho, Stallone precisou dar um passo de fé, e repelir a vaidade em nome de uma performance mais sensível e introvertida. Ao desnudar a alma para as câmeras sem medo de ser visto barrigudo, deprimido e reservado, para além das aparências, gerou um herói tão inesquecível quanto o Rocky, finalmente visto como artista dramático, e não estrela de cinema. Muitos homens da ação reconectaram-se ao que há de melhor em seus corações através de papéis nos quais jamais imaginaríamos vê-los um dia. Infelizmente, as pessoas não conseguem afastar o hábito da acomodação, e portanto grandes momentos dramáticos de astros da ação passam largamente desconhecido. Samuel L. Jackson foi catapultado ao estrelato pelos seus personagens energéticos e cheios de artimanhas, mas pouquíssimos tiveram a honra, e eu friso o termo honra, de assistirem a seu emocionante, comovente desempenho em "Freedomland", ainda não resenhado por mim, todavia sobre o qual já teci profundas considerações nos meus trabalhos sobre os filmes "A Garota Morta" e "Big Game". Robin Williams se foi em 2014, deixando para trás muitos filmes onde restaram imortalizados sua maestria sobre o bom humor e o entusiasmo de criança. As pessoas se recordarão das gargalhadas proporcionadas pelo talento de Williams, mas, lamentavelmente, poucos tomarão conhecimento que, do mesmo jeito que sabia fazer rir, Williams poderia acessar recantos de nossas almas e derrubar nossas defesas em um piscar de olhos para nos fazer verter uma represa de lágrimas. Nossos olhos se acenderão sob a menção dos seus clássicos, não? "Jumanji", "Sociedade dos Poetas Mortos", "Patch Adams"... mas e quanto a "Boulevard", "Retratos de uma Obsessão" e "Segredos da Noite"? Embora seja louvável sua destreza para arrancar risadas, foram nos dramas menores que o astro nos franqueou visitas a uma atormentada parte da sua alma, uma atitude que lhe exigiu intrepidez, mas que permanece obscura sob o manto de seu próprio estrelato e as limitações de nossa miopia. Retomando a análise de "Corra!", Daniel Kaluuya tratou o personagem com o mesmo esmero e senso de responsabilidade, não envilecendo o núcleo gentil de sua alma. Como protagonista de um filme de terror, se o ego tivesse subido à cabeça, Kaluuya não teria hesitado em "devorar o cenário". Como "menos é mais", entretanto, assimilou que com seu recato contaria a backstory inteira de Chris sem precisar desperdiçar nosso tempo com linhas e mais linhas de diálogo. Ponderado, humilde, inteligente e moralmente superior, Chris transcende a ameaça da unidimensionalidade e cumpre com louvor o seu arco como uma figura real por quem torcemos a cada curva da imprevisível jornada. Seu passado ganha vida própria e nos fornece informações ausentes do quebra-cabeças através da dor de um olhar ou a resignação por trás de um sorriso. O caráter do personagem não "pede" para ser validado, suas ações falam por si, e a admiração que nutrimos pelo rapaz desdobra-se espontaneamente das virtudes demonstradas pelo fotógrafo durante a aventura. Eu teci estas considerações sobre Chris para justificar por que, ao contrário da maioria, não creio que "Corra!" ancore-se exclusivamente na questão do preconceito racial. Se prestarmos atenção ao material publicitário, verificaremos que membros do elenco e da equipe técnica ilustraram uma porção de observações muito válidas para ratificar o debate. Honestamente, creio que o diretor seja maior do que a simplória compartimentalização, e seu filme precise ser saboreado com mais acuidade, para só assim se ganhar real noção de importância/envergadura dos detalhes. Se a tipificação de preconceito racial reclama um sentimento de antagonismo generalizado subtraído de qualquer exame crítico, o termo, conceitualmente, não cabe aos Armitage, porque o fogo que consome suas almas é ainda mais diabólico e melindroso, vai além da cor da pele. No século XXI, qualquer pessoa que acredite que uma pessoa possa ser definida pela cor jamais será levada a sério, e se dará um tiro no pé, porque se voluntariará ao ostracismo social. Não há espaço para pensamento tão diminuto. Há, entretanto, uma agenda secreta por trás de uma força oculta que fomenta a animosidade entre pessoas de cores diferentes, e um pequeno grupo interessado em se tornar "porta-voz" de comunidades, com interesses mascarados, maliciosamente maquiados como "altruísticos". A mídia comprometida com a agenda globalista estimula com flagrante insistência a tensão com o propósito de criar confronto, jogando "uns contra os outros" para o benefício de poucos, desmoralizando pessoas ou agentes de bem, como policiais, e quando meta capitalistas financiam ONGs e empurram o mundo ao colapso onde "família" se tornará um termo obsoleto ou aplicável a qualquer conjunto, e cristãos sofrerão um tipo de perseguição jamais visto antes, acomodam-se nas poltronas e dão gostosas risadas ao assistirem aos desavisados introjetando valores absurdos e voltando-se contra suas famílias ou origens, enquanto os manipuladores preservam as próprias. A leitura atenta de textos sobre Gramscismo deslindará a cruel psicopatia e a ardilosidade por trás do curso que os eventos históricos têm tomado, no Brasil e no mundo. Desta feita, retomando a discussão após o válido aparte, "Corra!" não merece o rótulo pelo qual incendiou os debates, pois os Armitage não agem a partir do horrendo pecado do racismo. Na verdade, parecem antagonizar o protagonista por um rancor fundado no plano espiritual. Eles não escolheram Chris porque supunham que o rapaz fosse uma criatura inferior, mas justamente por obra de irrestrita inveja. A seu modo, depondo a seu favor, Chris dispunha de uma impressionante gradação de maravilhosas qualidades, que aos Armitage faltava. A abdução do garoto não se cingia à solução imediata para a doença de Jim, à tragédia da perda da visão. Como o próprio homem confessa, em dado momento, "eu quero seus olhos" não deve ser tomado ao pé da letra. Mais do que as córneas, Jim desejava a sensibilidade, a poesia de uma alma capaz de voar mais alto, uma qualidade que não lhe fora naturalmente dada. A mesma observação aplica-se a Missy & Dean. Para se induzir uma pessoa inocente a erro e lhe fazer tamanha crueldade, aproveitando-se da vulnerabilidade, só se concebe semelhante ato pelo viés de um sentimento de ordem diabólica. Missy e Dean tinham motivos para ressenti-lo. Chris os fazia lembrar da juventude há muito perdida, e por ter crescido para se tornar um homem de valor após tão traumático evento na infância, atirava nas caras de ambos a própria feiura. Eles se sentiam no dever de arruiná-lo porque sabiam que assim como jamais teriam como girar os ponteiros para trás, também não o teriam, para frente. A facilidade com que Chris nos ganha para seu lado deve-se à habilidade de Daniel Kaluuya em dar vida a um personagem crível e moralmente irrepreensível e elevado. Eu me impressionei com sua inabalável fé, única possível explicação pela qual passou a maior parte do filme perdoando as pessoas, consistentes no ato de pisar em cima de seus calos. Suas decisões vinham de um lugar dentro de si que queria dar aos semelhantes o benefício da dúvida, enquanto o mesmo não se pode afirmar sobre Rose. Aliás, é de se pensar: seria a garota ao telefone com Dre Hayworth, no começo do filme, a própria Rose?
O teste definitivo de qualidade de qualquer filme é definido por quantas vezes você o procurou para assistir, e se a cada nova exibição, descobriu coisas novas. "Corra!" demanda repetidas exibições até revelar o rosário de mistérios no coração da proposta. Por diversas vezes, puxei da minha mente outra história de horror similar ao drama de Chris, sobre a qual escrevi anteriormente neste blog. Eu me refiro a "Creep", o magistral thriller psicológico dirigido & estrelado por Mark Duplass, junto a seu amigo Patrick Bryce, sobre um cinegrafista amador que atende a uma proposta de emprego no Craiglist. Ele se encontra com o excêntrico empregador numa cabine da montanha, e o homem lhe faz uma proposta, pela qual, em troca de determinada soma de dinheiro, o filmará ao longo do dia inteiro. O bem-humorado, simpático cavalheiro, dado a abraços & amostras constrangedoras de fraterno carinho, explica que, sendo paciente de uma doença terminal, em vias de se tornar pai, deseja deixar ao filho um tributo, um filme pelo qual o menino venha a descobrir quem seu genitor foi. À medida que o dia avança, e o homem vai desrespeitando, primeiro sutilmente, e depois ostensivamente, os limites do cinegrafista, o filme, que começa como comédia, vai adquirindo tonalidades de puro horror. Quando, por fim, o rapaz compreende que seu empregador é um psicopata, e um serial killer responsável pelo desaparecimento de centenas, já é tarde demais para agir, porque o homem se apaixonou por sua pessoa e não o deixará em paz. Quando eu li recomendações sobre este suspense, pouco interesse tive de procurá-lo, porque, francamente, a premissa não deixava o lugar comum. Ao finalmente dar uma chance a "Creep", descobri uma eletrizante lição em exercício psicológico, e no minuto seguinte à primeira exibição, tive de assistir ao filme novamente. Mesmo hoje, ao revisitá-lo, descubro inéditos, importantes pormenores, impossíveis de serem capturados em uma única sessão. Assim como ocorre a "Creep", "Corra!" também investe em detalhes para deixar em aberto o convite do "volte sempre", e, de semelhante forma, bebe da rica fonte da fragilidade da mente humana para instigar o debate que lhe vale um lugar especial entre similares do gênero. Em ambos os filmes, predomina o dilema "Até onde basta?", "Quão longe você se permitirá ser desrespeitado até impor limites?". Em "Creep", a generosidade e gentil alma do cinegrafista, farejada de longe pelo predador, declara sua morte. Sua primeira linha, ao lhe pregar um tremendo susto na janela do carro, gira em torno de "Vamos nos divertir muito hoje... você tem um rosto realmente bondoso e gentil", um substitutivo ao que realmente se passa na sua cabeça doente: "Eu vou testá-lo com joguinhos psicológicos cada vez mais atrevidos até te desrespeitar completamente, e mesmo assim você continuará me dando oportunidades de azucriná-lo seguidamente, porque precisa acreditar na bondade dos outros, nem que seja à custa do próprio bem-estar". Mesmo numa crescente de sinais estranhos dados pelo esquisito patrão, o rapaz parece cair em si só mais tarde, quando se vê obrigado a passar a noite na cabine da montanha, e o homem lhe conta uma horrorosa história sobre seu passado, envolvendo uma esposa com fetiche por bestialismo. Com a confissão, o cinegrafista é sacudido para fora da própria letargia, para fora da carência por aceitação, e entende que precisa deixar o lugar imediatamente. Eu me lembro de ter pensado, "Bom, aí está, amigo: você teve muitas chances de partir, e as foi eliminando, até se ver sentado à mesa em uma cabine deserta com esse cara, para justamente então se dar conta de que está lidando com uma maldade além da própria compreensão. Boa sorte com isso". Em "Corra!", o primeiro forte sinal de que Chris entrou em uma perigosa situação acontece na primeira noite, quando Missy o induz a se aprofundar nas dolorosas recordações sobre a mãe, e o hipnotiza contra a vontade. Neste ponto, eu disse a mim mesmo que, fosse eu na situação, teria partido ao raiar do sol, sem dar nenhum tipo de explicação. Teria simplesmente deixado a propriedade a pé, sem nem mesmo me arriscar a chamar um táxi e precisar aguardar na sala. Chris, entretanto, persiste na dura missão de desculpar as pequenas ofensas, na missão de perseverar até que alguém, qualquer um, possa lhe dar uma genuína prova de bondade. Quase interpretei o erro de julgamento de Chris como desleixo do roteiro, mas aí me recordei de que, no filme, o fotógrafo sequer chegara aos trinta anos. Aos trinta e oito anos de idade, não me cabe projetar minhas observações sobre as escolhas de um jovem de vinte e cinco. Quando somos jovens, sofremos para sustentar um absurdo policiamento sobre o senso crítico que nos é inerente desde o instante que chegamos ao mundo, e nutrimos uma irreal expectativa pelas coisas, sensações e pessoas deste mundo, performando contorcionismos para "fazer caber" a sua realidade a um modelo de perfeição alimentado por fantasias de altruísmo deturpado. Eu me lembro de uma linha do maravilhoso "Romeo is Bleeding", de 1993, a história de um tira corrupto que recebe "por fora" de mafiosos novaiorquinos, e vive uma existência dupla, dentro e fora da lei. Até o dia em que uma psicopata, assassina serial a serviço da máfia, atravessa seu caminho, e embora não tire a sua vida, lhe custa a sanidade. De toda forma, há uma interessante linha proferida pelo tira, após cair na real, que cabe a minha explicação: "Você sabe o que é inferno? Inferno é quando você teve a chance de dar as costas e partir, mas resolveu ficar". Tendo este relevante aspecto em mente, enxerguei que mais do que uma superficial história de horror baseada em preconceito racial, o filme, no frigir dos ovos, tenta nos contar uma parábola sobre empáticos (Chris) e narcisistas (a família Armitage), ou melhor, sobre um certo tipo de fenômeno associado a essa perturbadora realidade, chamado "gangstalking". Chris nega-se a enxergar a realidade descortinada diante dos olhos por causa da decência que o impele a negá-la, mesmo quando o sexto sentido acusa e exclama a um nível subconsciente que não está por "imaginar coisas", que embora jamais obtenha uma honesta confissão daquelas pessoas, elas lhe querem muito mal, sim, por uma gama de razões, a mais palpitante delas, talvez, não a cor da pele, mas o altruísmo, a empatia tão intrínseca ao rapaz, impossível de ser condensada por narcisistas, meros copiadores de nobres sentimentos, sem, de facto, experimentá-los a um nível pessoal. "gangstalking" é um termo recorrente ao tema, e assim como a palavra "Gaslightning", aparece consistentemente na literatura sobre o transtorno, muito embora os entusiastas de teorias de conspiração levem o assunto à vertente de "implante de chips", experimentos macabros perpetrados pela CIA ou seja lá o que for, o que, lamentavelmente, solapa a credibilidade de uma seriíssima questão. Não, "gangstalking" não se amolda à noção fantasiosa dos febris teoristas. Na verdade, é tão real quanto o dia após a noite, embora não pelas razões e instrumentos apregoados pelos malucos que enxergam um ângulo, um esquema para cada faceta da vida. Seus motivos parecem atrelar-se a questões de ordem espiritual, de sorte que jamais nos caberá compreendê-lo inteiramente (por mais que haja ampla documentação online da verossimilhança das alegações das vítimas), e se trata de um assalto recorrente, sobretudo a pessoas que em algum momento da vida tenham sido tocadas por abusos emocionais perpetrados por narcisistas malignos. Cuidadosamente escrito, "Corra!" enverga com sagacidade o passado de Chris sob o peso da dor da traumática perda da mãe, para assim criar a ferida emocional que, em boa parte, atrai o assédio perpetrado tantos anos mais tarde, conduzidos por narcisistas. Ainda sobre esse aspecto, a representação do mergulho da hipnose como imersão em um meio tomado pelo breu e sem fim à vista encapsula com muita sensibilidade a representação do tormento emocional infligido por narcisistas, principalmente quando, como abusados, não temos conhecimento do transtorno ou de como se manifesta, e, por conseguinte, nos metemos na mais absurda confusão ao procurar por lógica dentro de um túnel fantasma, ou de um espaço sideral com uma tela plana flutuando acima de nossas cabeças.
Assim como vimos em tantos outros filmes, como "Os Estranhos" & "O Dia Seguinte", "Corra!" esbanja um invejável habilidade em build up que, contraditoriamente, me faz pensar no seu único ponto fraco: com 104 minutos, se o diretor o tivesse esticado por mais 16, teríamos sólidas duas horas que teriam beneficiado o resultado final. Nós vemos o carro se afastar na estrada do bosque, com Chris dentro, a salvo, e os créditos sobem, entretanto teria sido prudente acompanhá-lo na sua "volta ao mundo", após tão traumático evento, pois guardaríamos uma noção de como o rapaz assimilou o acontecido, e retomou a vida. Vez que o filme, primordialmente, nos conta o drama de um homem objeto de gangstalking perpetrado por narcisistas, a profundidade psicológica da tragédia oferece um leque de situações que, de uma forma ou de outra, teria alicercado interessantes desdobramentos e explorações. Claro, o clímax, com direito à "realocação" de consciência e troca de corpos, beira as raias do horror fantástico, mas tudo o que vem antes pode - e deve - acontecer na nossa realidade, sem que nem mesmo tomemos conta da manipulação. Ainda no tocante ao produto final, há algumas cenas vistas no trailer, ausentes do filme, que podem nos ajudar a compreender as ações dos personagens. A primeira cena vista no trailer e ausente no lançamento nos mostra o protagonista na escuridão, usando um isqueiro para se orientar, quando, repentinamente, um esqueleto revelado pela precária luz salta do breu. Na versão derradeira, o diretor faz questão de nos mostrar a cabeça do veado, exposta como troféu de caça no gabinete onde Chris é mantido em cativeiro. A cabeça será usada mais tarde, quando Chris recorrer à mesma para, com os chifres, empalar o neurocirurgião. Pois bem, o esqueleto que salta sobre o rapaz, na cena cortada, compõe um pesadelo do fotógrafo, e pertence, obviamente, ao veado morto cuja cabeça exposta o deixou tão impressionado. A segunda cena, vista em TV Spots à época do lançamento nos cinemas, reporta-se à abdução de Dre Hayworth, e exibe, claramente, uma misteriosa figura vestida como cavaleiro medieval, atacando o rapaz. A aparição sugere o papel mais ativo de Dean na abdução, pois, na casa dos Armitage, vemos uma armadura idêntica exposta na sala de estar. Existe uma terceira cena, jamais vista no cinema ou no trailer, que põe em xeque o caráter final de Rose. No filme, ela é claramente uma vilã. porém o diálogo, caso tivesse permanecido, teria levantado a importante questão de que até ponto livre arbítrio estava em jogo, no tocante a suas macabras ações. A cena se dá quando Chris procura a namorada na manhã seguinte à hipnose para lhe contar que Missy o induziu ao transe, contra a vontade. O momento excluído revolve o comentário da moça. Ela fala algo nas linhas de que a mãe fizera o mesmo a sua pessoa, quando criança, por causa de seu pavor em se apresentar nas peças escolares, e que, embora se recorde de ter sofrido de pesadelos horrendos por um tempo, de fato, a hipnose a livrou do medo de atuar nas peças. Se Missy foi capaz de submeter a filha à hipnose, por que não deixar um gatilho através do qual a manipulasse a fazer suas vontades, como tomar parte no sórdido segredo da família? O filme deixará perguntas, e talvez por não as ter respondido, o diretor esteja criando o mistério que deixará as pessoas falando a respeito de "Corra!" por muitos anos.
Um dos mais sensacionais filmes independentes fantásticos de 2016, "The Void" é o primeiro lançamento em um bom tempo a render uma elegante, merecida homenagem a H.P. Lovecraft, o maestro do horror cósmico, inspiração para os maiores escritores & cineastas do século XX. Dirigido & escrito por Jeremy Gillespie & Steven Kostanski, também autores do argumento, "The Void" ganha febril vida na forma de um caleidoscópio de puro gore e terror espacial que revisita os mais palpitantes temas da obra literária de Lovecraft, cujas adaptações para cinema usualmente transitam sobre a corda bamba da inconstância, gerando ou maravilhosos resultados, ou produtos aquém do esperado. Curiosamente, "The Void" não adapta nenhuma obra específica do autor. Trata-se de um trabalho original dos diretores, todavia jamais existiria se não tivesse pegado emprestado o núcleo das terríveis, assombrosas ideias de Lovecraft, nos moldes do que Koji Shiraishi fez em 2008, ao procurar inspiração para filmar "Okarutu", outro trabalho pessoal fortemente assentado sobre filosofia lovecraftiana. James (Evan Stern), um jovem problemático e dependente de drogas, se atira para fora de uma cabine, em cuja porta resta pintado um misterioso símbolo em forma de triângulo, e corre em direção ao denso, escuro e assustador bosque, visivelmente apavorado. Em seguida, uma moça deixa a cabine. Ela não goza da mesma sorte do colega, pois é derrubada com um certeiro tiro nas costas. Seu corpo se torna uma bola flamejante depois que Vincent (Daniel Fathers) e seu filho Simon (Mik Byskov) lançam gasolina e um fósforo aceso sobre a garota. Vincent observa o bosque, desgostoso, e decreta que James não conseguirá chegar muito longe. A todo instante, o filho veste um olhar dolorido e preocupado, a expressão de alguém que não se acostumou a cenas tão brutais. À primeira vista, assumimos que pai & filho são homicidas impiedosos, pelo cometimento de tão terrível ato, porém as reviravoltas à frente nos apontarão que não ocorre consoante as primeiras impressões. Enquanto James foge desesperadamente, ao longe, testemunhamos bizarras figuras metidas em capuzes, com pinceladas pretas na parte do rosto a lhes emprestarem uma simetria triangular idêntica ao símbolo na porta, assistindo à ação, sem se intrometer.










Allison preocupa-se com Maggie, porque a menina está em vias de parir, e o parto deverá ocorrer a qualquer momento daquela madrugada. Vincent exclama que consegue ouvir os berrantes mesmo a milhas do hospital. Os membros do culto ou já se posicionaram ao redor do hospital deserto ou estão a caminho para reforçar a vigília. Os sobreviventes atiram os restos da criatura sobre um carrinho e o empurram, em chamas, através do lobby, até a coisa cair no estacionamento. Reunidos em uma sala, eles se esforçam para chegar a um acordo. Allison aponta ao marido que os rapazes devem recuperar o carro, enquanto ela precisa visitar o depósito para reunir os itens necessários para realizar a cesariana. Daniel pede que ela aguarde sua volta para ir ao depósito. Vincent e Simon têm um rifle, mas nenhuma munição. O policial explica que se eles o ajudarem a vasculhar o carro, lhes fornecerá balas para o rifle. Os três partem em direção ao escuro estacionamento, intencionando alcançar o carro. Dentro do hospital Allison, Kim e o Sr. Ben ajudam Maggie a se deitar, e a cobrem com lençóis, por causa do frio.




Daniel carrega o rifle e se prepara para entrar até as vísceras do hospital para resgatar Allison. Antes de partir, entrega um revólver para a assustada Kim, e pede à moça para defender as vidas de Maggie e do Sr. Ben enquanto estiver ausente. Vincent e Simon passam a vista pelas macabras fotos polaroide, e lhes ocorre a ideia de arrancar a verdade, mesmo que à força, do viciado James, metido até o pescoço na sujeira (o rapaz aparece nas nauseantes fotos de bacanal). Sob a ameaça de surra, inclusive de ter um dos dedos da mão quebrado a marteladas, James revela o que sabe, e insiste na responsabilidade de Powell. Quando Daniel explica que mesmo após ter sido golpeado no pescoço o médico se encontra perambulando pelas entranhas do prédio, o viciado se desespera. Ele relembra as circunstâncias de como o conheceu. James era basicamente um andarilho vagabundeando pelas estradas do interior, movido pela loucura de consumir drogas, quando uma moça o abordou e o convidou a ir a essa boca de fumo onde encontrariam cristal a baixo custo. Ao chegar à boca de fumo, na verdade o sítio visto no começo do filme, James descobriu tarde demais que o lugar, chamado por Dr. Powell de "igreja", albergava orgias, e jovens consumiam drogas ininterruptamente sob a direção do médico, o "sacerdote", que ordenava sacrifícios e matanças para "enriquecer" os eventos. As pessoas se vestiam com robes brancos cujas faces, cobertas por capuz, exibiam o esquisito triângulo, a imagem tão recorrente ao longo do filme. James afirma, categórico: "Eu não acredito no inferno, mas essa parada é muito pior! Eu vi pessoas se transformarem. Eu vi!". Daniel o livra das algemas, e decreta que o rapaz os acompanhará na descida, para seu desgosto. Ele implora para que apenas tratem de fugir do hospital, mas o furioso Vincent o obriga a olhar através das janelas do lobby: o número de estranhos aumentou, eles agora tomam conta do perímetro completo do hospital.
Sabemos que o prédio sofreu um incêndio, meses antes, então o aspecto do porão causa grande opressão claustrofóbica. O quarteto precisa cruzar um emaranhado de corredores muito estreitos e empoeirados para atingir o necrotério. Eles desembocam em novas passagens que originalmente não compunham a planta do hospital. O local fora preparado clandestinamente para práticas satânicas. Allison desperta em uma maca do necrotério. Ela foi drogada de modo a não conseguir se mover, todavia escuta a voz distante de Dr. Powell, esterilizando instrumentos cirúrgicos na cuba. Mesmo no torpor, Allison pergunta como o médico pode estar ali, se ele foi morto. Powell expõe sua agenda secreta, basicamente uma missão movida pela depravação sem limites de conseguir, através do oculto, trazer a filha de volta ao mundo dos vivos. Allison servirá como conduto para o regresso, o "portal" entre o mundo dos vivos e dos mortos. Na sala onde Kim toma conta do Sr. Ben e da jovem grávida, a situação se deteriorou. Ela se vê a um sopro de entrar em processo de parto. Também nas vísceras do hospital, a turma se depara com uma porta marcada pelo triângulo ícone do culto luciferiano. Ao empurrarem a porta, os rapazes visitam um espaço semelhante a um açougue. O fedor é medonho. No necrotério, Powell segue se aprofundando nas suas teses para uma atônita Allison: "Você sabe para onde vai, depois que morre? Eu sei. Você segue a viagem, renasce em outra coisa, como o lagarto ao se tornar mariposa. Até agora, eu só fui capaz de rastrear a mariposa dentro do casulo. O corpo precisa se ajustar, claro. Ele se adapta. Não fomos feitos para esse tipo de coisa. Eu admito, no começo, realizei erros. Alguns destes erros ainda se encontram nas entranhas do hospital, conosco. Para falar a verdade, meus 'erros' causaram o incêndio que quase destruiu o hospital. Você sabe... eles querem morrer, mas eu não vou deixar. Não chore, Allison, eu a ajudarei. Esse é o fim do ciclo de vida & morte. Você deseja este mundo, realmente? Este mundo que tirou teu filho de ti? Sabe o que aconteceu na noite em que você pariu? Cordão umbilical ficou preso, embolado ao redor do pescoço do bebê, em um nó cada vez mais apertado, até que ele não tivesse mais forças para lutar. Irônico, não? Que algo tão emblemático da ligação de vida entre mãe & filho tenha atuado como a forca que lhe custou a vida. A aleatoriedade do destino".
No salão explorado pelo quarteto, as imagens são de puro vandalismo, irrestrita profanação. Pedaços de corpos presos por ganchos, depravação por todos os cantos. Há um número absurdo de gente morta espalhada por todas as direções. Repentinamente, os corpos sinalizam vida. Há um zumbi tentando inutilmente se matar, enfiando a cara em um cano, sem conseguir desligar. Mortos-vivos marcados pela deformidade deixam a escuridão e avançam contra os quatro aventureiros. Daniel e Simon se veem forçados a recuar, e retardam o avanço dos zumbis com fogo cerrado. James é pego e arrastado por uma coisa que se parece com uma tarântula, pois se movimenta de quatro, sobre pés & mãos. Dominado psicologicamente, Vincent caminha direto para uma fenda, uma passagem para outra dimensão, aparentemente. Enquanto isso, no lobby do hospital, Kim se vê forçada a realizar a cesariana, quando Maggie entra em trabalho de parto. Sr. Ben segura a residente pelos braços e grita para colocar um pouco de senso na sua cabeça, pedindo coragem, lembrando-a de que se não ir adiante com a cirurgia, a neta morrerá. Repentinamente, Sr. Ben tem a garganta retalhada por um golpe de bisturi, e, na cena mais memorável do filme, vai ao chão, revelando a neta Maggie às suas costas, com um sorriso histérico, quase como se tivesse atingido o nirvana. Diante de uma estupefata Kim, Maggie expõe a verdade: Dr. Powell é o pai da criatura em seu ventre, concebida em uma das bacanais do culto. As luzes do gerador se vão, e o chamado do berrante chama a atenção de Kim para os encapuzados, agora no interior do hospital.

A antessala do necrotério virou um ambiente estéril e escuro, como o interior de uma nave extraterrestre, ou o meio pelo qual a Isserley de "Under the Skin" abduzia suas vítimas. Na parede, da folga entre a moldura do portal e a estrutura triangular, emana uma luminescência esbranquiçada que nos faz pensar na natureza do além. A voz onipresente de Powell apregoa seu desafio a Deus: "Passei a vida resistindo à morte, mas agora entendo. Eu devo abraçá-la. Terei minha bela filha Sarah de volta. Só preciso cuidar de um último detalhe". Daniel não tem como evitar a facada desferida por Maggie, que o acerta nas costas. Ela rasteja até o altar onde Dr. Powell ressurge, como um sacerdote pervertido, cuja aparência evoca a dos cenobitas fetichistas de "Hellraiser". O policial vai ao chão e assiste aos desdobramentos da sinistra cerimônia. Powell convida a moça a se juntar a ele no altar, e Maggie se ajoelha aos seus pés. Ele abre as mãos em direção à passagem e exclama "Observe o abismo se abrir diante de mim". Entoando dizeres de encantamento em uma língua estranha, Powell move a passagem e exibe o grande "vazio" do outro lado, uma enormidade de luz branca que ofusca a vista. Ele deposita a mão na cabeça de Maggie e a moça entra em definitivo trabalho de parto. Powell decreta que sua filha Sarah viverá pelo ventre de Maggie.

Para quem cresceu nos anos 80, na época das "locadoras de bairro", esta grata, bem-vinda surpresa "abrirá o portal" para aqueles dias tão afastados no passado, devolvendo-nos às noites de filmes de terror, quando fitas de vídeo empoeiradas ainda preservavam mistério, e das mínimas coisinhas tirávamos alegria. Há muito não se vê algo como "The Void", temática & estilisticamente. O único cineasta ainda na ativa cuja obra confunde-se tão significativamente com o trabalho literária de H. P. Lovecraft, Stuart Gordon, lançou seu último longa inspirado no mestre há mais de quinze anos, com a excelente coprodução espanhola "Dagon", vista por poucos, basicamente de exclusivo conhecimento de um nicho mais sofisticado. Desde 1985, todavia, o diretor tem tentado transpor para as telas as ocasionalmente infilmáveis ideias do mestre. Sua atração pela fantasia lovecraftiana começou em 1985, com "Re-Animator", e prosseguiu, nos anos seguintes, com uma variedade de produções de baixo orçamento recebidas com opiniões acirradas dos críticos, como "Do Além" (1986) & "Castle Freak" (1995). Mesmo depois de se aventurar no cinema com a adaptação das obras de Lovecraft, Gordon ainda tentou traduzir o peculiar horror do romancista, não para o cinema, mas para a TV, com "Dreams in the Witch House", curta-metragem rodada para a série da Starz Media, "Mestres do Horror". Outros cineastas especializados também toparam a dificílima empreitada de recriar em imagens & sons os tão abstratos delírios lovecraftianos, com destaque para Dan O'Bannon, o diretor do maravilhoso "The Ressurected", de 1991, estrelando John Terry, Chris Sarandon e Jane Sibbett, adaptação do conto "The Case of Charles Dexter Ward". Curiosamente, se analisarmos individualmente estas obras, observaremos que nenhum diretor arriscou uma adequação literal das tramas lovecraftianas. No caso de Gordon, em suas incursões, ele tomou emprestado "pedaços & partes" de distintas ideias originárias de dois ou três contos e, através da adição de ingredientes e da experimentação com os resultados, todos derivados da vasta, febril mente de Lovecraft, temperou construções cinematográficas que mais ou menos traduziam uma parte de suas obsessões. Bem-intencionado e talentoso, Gordon pecou, a meu ver, pelo exagero que imprimiu aos filmes ao exacerbar o gore, deixando de lado a elegância, pilar da prosa do escritor. Pelas transposições do trabalho de Lovecraft para as telas, aprendemos duas importantes lições. Primeira lição, como a adaptação literal dos conceitos beira as raias do impossível, se analisarmos as versões cinematográficas, anotaremos que os diretores sempre aproveitaram outros conceitos do mestre, e, munidos de liberdade criativa, suavizaram-nos, tornando as tramas passíveis de captura pela lente. Lovecraft não foi o único autor cujas obras, quando filmadas, foram submetidas a um processo de "recriação", de preparação para outro tipo de mídia, mais avesso a propostas tão inflamatórias: o mesmo fenômeno acontece a Edgar Allan Poe, outro nome sagrado da literatura, cujos trabalhos continuam a inspirar os românticos, os melancólicos e os entusiastas do horror gótico. O escritor, um homem atormentado de cuja mente brotavam as mais tenebrosas ideias, mas contraditoriamente possuía a sensibilidade e bondade para amar os animais, mais especificamente adotando gatos de rua com que abarrotava a capacidade de seu humilde apartamento, morreu a 7 de outubro de 1849, crê-se, vejam só, de raiva virótica, e deixou um conjunto de obras que, ao longo dos séculos, infundiu de paixão um riquíssimo portfólio, desde séries brasileiras como "Contos do Edgar", a filmes dirigidos por luminares do gênero, como Dario Argento & George Romero ("Dois Olhos Satânicos") e o próprio Stuart Gordon ("O Poço & O Pêndulo"). Em "Dois Olhos Satânicos", por exemplo, Romero e Argento adaptaram para o mundo contemporâneo o universo dos contos "The Facts in the Case of Mr. Valdemar" e "The Black Cat", e, no último caso, Argento agregou à trama elementos de outros contos, "Berenice" e "The Fall of the House of Usher". No que importa a estes dois grandes escritores, portanto, qualquer versão cinematográfica representará visões particulares filtradas da argamassa, da superestrutura dos trabalhos reduzidos a termo e sacramentados nos cânones da dramaturgia dos séculos XIX e XX. Lição n°2, surpreendentemente, o melhor caminho para honrar o legado destes dois grandes nomes consiste no expediente da "reimaginação", ou melhor, no ato se desapegar dos textos e dar asas à imaginação, utilizando-os como ponto de partida, mas se afastando da literalidade das folhas de papel. Os cineastas devem se voluntariar a retomar os delirantes sonhos de onde foram deixados pelos pensadores originais, para aí sim rodarem os filmes que bem entenderem. Neste sentido, não filmariam página por página, entretanto, não haveria melhor presente aos mestres do que lhes apresentar novas visões decorrentes de seus pesadelos pessoais. Os cineastas e artistas mais interessantes de nossa época, como David Cronenberg e Clive Barker, beberam da fonte, e trabalharam em cima da centelha deixada por Poe & Lovecraft. Foi assim que os cineastas Steven Kostanski & Jeremy Gillespie criaram "The Void", uma joia rara e um dos melhores filmes de horror dos últimos cinco anos, que embora gerada da mente de seus diretores, traz em si encrustada a mitologia lovecraftiana.

Escaldados na célebre, proporcionalmente inversa regra da "qualidade de perfumes & tamanho de frascos", Kostanski & Gillespie procederam com muita cautela nos vários departamentos envolvidos na produção do filme, e, felizmente, escolheram o caminho mais difícil, ou seja, reduziram manipulação digital a um mínimo, voltando-se aos efeitos especiais perpetrados "na raça". "The Void" rompe com o expediente dos efeitos especiais via CGI, calcanhar de Aquiles da maioria das produções no cinema atual, e Stefano Beninati, o supervisor, cria mágica às custas de suas maravilhosas armaduras, reminiscentes dos monstros de "O Labirinto do Fauno", apenas um pouco mais grotescas, vez que, no filme de del Toro, as criaturas exibiam um certo nível de requinte e senso moral, e no de Kostanski & Gillespie, a "poesia da carne", incongruente e desbalanceada, basta para depor a favor da fortuidade do universo, do desprezo com que o mesmo lança os dados da sorte. Tendo dispensado efeitos em CGI, os diretores de "The Void" criaram uma obra na veia dos horrores lovecraftianos mais datados de Stuart Gordon, tipo "Re-Animator" e "Dagon". A execução, a "impressão" do fantástico no celuloide me lembram a proficiência do time técnico por trás de "Hellbound: Hellraiser 2", responsável por imagens verdadeiramente perturbadoras executadas com a maestria dos velhos mágicos, absolvidas da artificialidade dos computadores. "The Void" não nos poupa de cenas ensandecedoras de absoluta escatologia, onde monstruosidades com gânglios e trombas movem-se com o auxílio de tentáculos, e enquanto procuramos compreender a natureza, a espinha dorsal da origem da coisa, perguntando-nos se mais se assemelham a monstros do abismo do mar ou algo mais ostensivamente satânico, daquela massa disforme de caos chegam os gritos que mais se parecem ao berreiro de criança pequena, uma contradição que realça o absurdo da coisa, ou, como preferiria H.P. Lovecraft, a total irracionalidade sobre a qual fundamos nossas vidas sob a vã expectativa de segurança e longevidade. Tão importante quanto aquilo mostrado explicitamente é a mitologia que sustenta o mise-en-scène. Lovecraft criou uma das mitologias mais intrigantes e duradouras da literatura, e o testemunho da longevidade da mesma se observa no merchandising que se faz hoje em dia em torno de figuras como a de Cthulhu, estampado em camisas, poster, bonés, e bonecos, entre outros. Quando escreveu "The Hellbound Heart", dirigiu "Hellraiser" e produziu "Hellbound: Hellraiser II", Clive Barker também bolou uma mitologia para os cenobitas na forma do labirinto (fotos), evocando uma sensacional intimidade que, uma vez vendidos os direitos autorais para produtores americanos, custou à franquia a identidade. Costumo afirmar que só há dois "Hellraiser de Clive Barker", o primeiro e o segundo, onde palpitam os fetiches, o masoquismo, e o drama da paixão não-correspondida, tão ou talvez até mais singular `a alma do projeto do que meramente as figuras dos cenobitas. Sob a benção de Barker, Peter Atkins, o roteirista de "Hellraiser 2", estendeu o escopo do filme anterior, e descortinou um labirinto a perder de vista, sobre o qual paira o monólito em forma de gigantesco diamante, a girar indiferentemente. Trata-se de Leviatã, o "Deus da Carne, Fome & Desejo", na definição dada por Julia, às portas do abismo do inferno. Também autores do roteiro de "The Void", Kostanski & Gillespie foram responsáveis por um feito monumental, porque, se levarmos em consideração que no caso de "Hellbound: Hellraiser II" Peter Atkins foi poupado de criar um background, tarefa já levada a efeito com louvor no primeiro filme de Barker, para se voltar apenas à concepção de uma mitologia, anotaremos que os dois diretores realizaram duas grandes conquistas, em simultâneo, pois imaginaram um background ao mesmo tempo em que nos abriram uma pequena janela para que flertássemos com a mitologia, não escancarada, mas sempre presente. Em ambos os filmes, encontraremos homens cultos obcecados com outra dimensão. Em "Hellbound: Hellraiser II", Doutor Channard, vivido competentemente pelo veterano Kenneth Cranham, esconde, por trás da fachada de requinte e elegância, a perseguição por assuntos sobrenaturais, tendo priorizado seus interesses a um nível quase religioso. Por mais que a lógica se encontre impressa nos alfarrábios a abarrotarem a escrivaninha e as paredes do gabinete (chamado, por Atkins e o diretor Tony Randel, de "obsession room"), o britânico fleumático anseia por dar um passo em direção ao abismo ("I have to see, I have to know", Channard diz docemente à Julia, afagando-a no rosto com candura). Dr. Powell esconde fotografias em polaroide de orgias satânicas; Dr. Channard, recortes de jornais ou artigos científicos, onde se lê coisas como "Is death the fourth dimension?" & "Children of the vortex". A primeira cena de Channard, quando comanda uma cirurgia cerebral ao mesmo tempo em que faz uma preleção aos estudantes de Medicina - "Nós podemos trazê-los (pacientes psiquiátricos) de volta, mais frequente do que a ortodoxia científica possa levar a crer, senhoras e senhores. E o bisturi, longe de ser o inimigo da análise, é usualmente seu melhor aliado em resolver o quebra-cabeças da psicose. Análise isola e massageia. Cirurgia pontua e corrige. Agora, neste caso. Uma psicose enrustida, severa o suficiente para produzir aterrorizantes e frequentes ataques de histeria. 'Incurável', diriam alguns. Nada disso. Análise isola. Bisturi expõe. Medicamento controla. E então, senhoras e senhores, nós reconstruímos. Com todo o cuidado e conhecimento que nossos anos de treinamento nos deram... nós os trazemos de volta!" - repercute em "The Void" através da voz gutural de Dr. Powell, enquanto a câmera segue executando uma movimentação em trilhos, uma perfeita técnica de travelling, invadindo vagarosamente as entranhas do hospital deserto, ao tempo que Powell vai vocalizando sua real agenda ao protagonista Daniel através de uma ligação telefônica. Coincidem, também, as escolhas para ambientação das tramas em hospitais onde pressupõe-se a predominância da lógica do homem congruente, todavia em cujas galerias segredos vis e diabólicos só esperam para emergir, e nada poderá detê-los quando o caldo transbordar. Dr. Channard escondia os pacientes mais atormentados dos olhares curiosos estocando-os no subterrâneo, mais tarde as pobres almas seriam utilizadas pelo médico como sacrifício para Julia; Dr. Powell conduzia missas satânicas no porão do hospital, e entre seus bens pessoais, a maleta escondia as fotografias em polaroides reveladores de sua vida dupla. Os dois homens da ciência exploravam e destruíam almas vulneráveis. Channard mandou para a morte dezenas de pacientes incapazes de se defender, e Powell se valeu do desespero de jovens problemáticos para se aproximar de seu intento. Os dois cirurgiões reservam aos hospitais o papel de templo, de escada para o alcance da vida eterna, não uma vida eterna galgada pelo mérito das virtudes, e sim uma outra, barganhada pela intercessão do profano, com seus macabros atalhos. Neste diapasão, para Clive Barker, mais lhe interessava a jornada, o destino vinha em segundo plano. Em "Hellraiser I&II", a manipulação da configuração do lamento fazia mais do que "convidar" os cenobitas. O quebra-cabeças não representava apenas o mapa para se chegar aos cenobitas, a configuração era a própria estrada, o atalho, para se alcançar o destino desejado. Em "The Void", especificamos a mesma personalidade obcecada pelas minúcias do oculto na figura de Dr. Powell, cujo portal para a outra dimensão é precedido pelo mesmo tratamento, pelo incansável estudo e intensa paixão semelhantes aos reservados por Channard à caixa, em "Hellraiser 2". Ambos os filmes, por conseguinte, esbanjam um macabro cientificismo subvertido por uma confusa adequação ao profano, e criam riquíssimas mitologias particulares, onde não há parâmetros pré-estabelecidos. Acerca desta característica, trago à baila o exemplo do segmento "Parallel Monsters", de "V/H/S Viral", uma curta-metragem espanhol de cujos poros exala pura, absoluta maldade, sobre um cientista brilhante construtor de um portal para outra dimensão. Ao abrir uma cisma para um universo paralelo e conhecer uma versão de si mesmo, ele convence seu "outro eu" a trocar de lugares, de universos, apenas por uns quinze minutos. O desavisado cientista descobre que o universo paralelo reproduz quase inteiramente sua realidade, com uma importante diferença: ali, reina o luciferianismo e a promiscuidade, homens têm pênis semelhantes a trombas com bocas cheias de dentes, as vaginas das mulheres abrem-se até os umbigos como plantas carnívoras, e, quando sexualmente excitada, daquela estranha gente emana uma fulgurante luminescência dos olhos & bocas. Ele se depara com uma cena macabra na sala de estar da casa do seu "outro eu", onde topa com uma prática de swing com atributos de adoração satânica envolvendo dois estranhos e a "sua esposa", Marta, na verdade uma "outra Marta". Angustiante e devastador, o segmento de Nacho Vigalondo experimenta com tópicos típicos a Lovecraft, igualmente presentes em "The Void" (cientificismo v. luciferianismo). Em termos de imagens mais abertas, por outro lado, a cosmovisão de Lovecraft jamais foi tão bem destrinchada quanto no labirinto de "Hellraiser 2" & na paisagem deserta de "The Void", dois filmes estigmatizados pelo legado do autor, ironicamente desvinculados de sua caneta. Pela razão acima exposta, considerando todas as adaptações da obra literária do romancista, ainda creio que o caminho mais rápido a seu coração comece pela reinterpretação, não pelo apego à forma.
Kostanski & Gillespie (foto) mencionam o nome de Lovecraft em muitas das entrevistas concedidas para promover o trabalho. No frigir dos ovos, de três fontes lovecraftianas os cineastas beberam, "The Call of Cthulhu", "The Dunwich Horror" & "The Shadow Over Innsmouth", três contos sobre seitas e sacrifícios humanos em honra de deuses antigos alienígenas. Perguntado sobre a influência do autor, Kostanski afirma: "Foi mais o tom geral que queríamos capturar, pois eu amo coisas que se fazem sentir lovecraftianas sem serem exclusivamente adaptações de suas histórias. Eu também não creio que suas histórias se traduzam ao cinema muito bem, pois parecem enraizadas em origens literárias baseadas em cartas e coisas antigas, e o modo como são escritas realmente as deixam intraduzíveis para a mídia visual. Assim, qualquer coisa que invoque um senso de pavor cósmico traz o tipo de tom buscado pela gente com nosso filme, e também extraímos muita influencia de outros filmes e até videogames". Reparem no termo usado pelos cineastas, "intraduzíveis". Qualquer filme inspirado em Lovecraft trará imagens bombásticas e grandiosas numa galante tentativa de sublimar a impossibilidade da literalidade. Guillermo del Toro falou sobre a capacidade ímpar do autor para descrever e dirigir emoções e sensações, como se estivéssemos naquele pequeno escaler, perdidos no Oceano Pacífico, no começo do século XX, em "Dagon", ou como se nosso próprio pedaço de terra, a que chamamos de lar, encontrasse-se a mercê da volição de uma coisa indescritível, além da compreensão humana, vinda de outro universo, trazida por um meteoro, como em "A Cor que veio do espaço". Graças ao olhar do diretor de fotografia Samy Inayeh, desenvolto em produções do gênero, Kostanski & Gillespie rechearam "The Void" com visuais extasiantes, à altura da loucura cósmica mesclada à nossa desprotegida, falsa noção de realidade. Em "The Void", as intromissões das referidas cenas dão à jornada um ar místico, cuja escala ultrapassa a cronologia das vidas daquelas pessoas, e sugere um estado de espírito típico das obras de Lovecraft, afeto a escrever sobre um período muito anterior ao da formação das rochas e primeiros organismos, ou quiçá do próprio tempo. Quando filmou "Okaruto", uma trama que, na superfície, revolve o maior ataque terrorista da história do Japão, Koji Shiraishi também cortejou com um sobrenatural oriundo da criação do próprio cosmos através de imagens ímpares, abstratas demais para serem categorizadas e guardadas pela estrutura normal do pensamento, e, talvez por isso, emblemáticas de um período anterior ao próprio tempo. O aspecto lovecraftiano da trama, claro, perfilha cada minuto de um filme que, inicialmente, parece documentar a tragédia da patética vida de uma alma solitária e errante, um típico Net cafe refugee de Tóquio, mas que logo descamba para o caos quando do mesmo homem vem o planejamento de um maciço ataque terrorista em pleno cruzamento da estação de Shibuya, ato que que muda o curso da história do Japão, e nos faz pensar em questões envolvendo fatalismo e predestinação. Somos ainda levados a pensar em "Stargate", de 1994, pelo fato de o portal deter uma importância tão determinante nas vidas dos personagens. Pela escolha visual da equipe de "The Void", o triângulo reúne o arcabouço de crenças do culto, mas talvez principalmente emblematize o portal interstelar que faz as vezes de túnel entre galáxias, como acontece, com tintas menos aterrorizantes e mais aventureiras, em "Stargate", ou mais apavorante e discretamente na forma da configuração do lamento de "Hellraiser".
As performances uniformemente excelentes são dadas com o entusiasmo de profissionais sabedores da chance única de participarem de tão relevante projeto. Aaron Poole soma ao currículo mais um genial filme de horror, dando seguimento ao vencedor momentum que começou com o papel principal no empolgante "The Conspiracy", em 2011, e continuou, no ano seguinte, com o intrigante "The Last Will and Testament of Rosalind Leigh" (recomendado, inclusive, por Clive Barker). No papel da esposa, Kathleen Munroe ganha pontos pela veracidade com que representa uma jovem ainda marcada pela morte do bebê no parto, e pelo carinho reservado ao ex-marido. Uma bela mulher dotada do biotipo canadense, ela me lembra uma jovem Caroline Dhavernas. Grace Munro torna sua breve participação um motivo de celebração, em uma das cenas pivôs. A forma como surge sorridente às costas do avô após degolá-lo com um bisturi impacta pela surpresa da premeditada traição, justificável somente pelo fervor com que a jovem se entregara ao culto. Kenneth Welsh, veterano canadense de tantos filmes, possui até mesmo o primeiro nome que o artista por trás do similar Dr. Channard, Kenneth Cranham! E, assim como Cranham, Welsh também construiu para si a respeitabilidade de um ator eclético à vontade em qualquer gênero. Quis o destino que, nos dois casos, do horror viessem os personagens pelos quais seriam para sempre lembrados. No papel da residente de Medicina Kim, Ellen Wong tempera a seriedade com uma salutar dose de humor e jovem rebeldia, uma personagem muito bem-vinda a filmes do gênero, por lhes prestar o incomensurável serviço de mitigar o enorme peso de temas tão sérios.
A trilha sonora, assinada pelo grupo Blitz/Berlin, fia-se em sintetizadores reminiscentes dos filmes oitentistas de John Carpenter, uma tendência retomada há alguns anos por outros compositores, como disasterpiece, autor da melodia do chocante "Corrente do Mal", já resenhado no blog. Pulsante, a música de Blitz/Berlin ensaia as batidas de um coração eletrônico pesado e indiferente, nos moldes da suíte introdutória de Howard Shore para o macabro "Estranhos Prazeres", de David Cronenberg. A trilha sonora de "The Void" resgata tão perfeitamente a atmosfera dos filmes de John Carpenter que a primeira coisa a vir à mente durante a fuga da estudante Kim através dos corredores iluminados por um neon vermelho alienígena, durante a invasão dos membros do culto, são as cenas de clássicos como "Assault at Precinct 13" e, mais contundentemente, o primeiro "Halloween", de 1978. Falando de reminiscências, a escolha da paleta de cores no segmento da invasão ao hospital de "The Void" parodia os mais importantes trabalhos de Dario Argento, como o extravagante "Suspiria", em suas gloriosas, agressivas cores, com realce rubro. O imaginário de Argento sempre encontra um jeito de emanar do subconsciente desses novos wunderkinds do horror, basta conferirem "Demônio de Neon", de Nicolas Winding Refn, um trabalho praticamente levantado sobre o esqueleto estrutural de "Suspiria".
Os efeitos especiais datados nos remetem aos saudosos anos 80, quando terror era mais difícil de ser filmado, e exigia a execução diante das câmeras, para funcionar. Nem por isso, "The Void" é menos eficiente do que os ricos e modernos similares. Na verdade, Kostanski & Gillespie vestiram a camisa do horror vintage e pintaram a tela com uma carnificina que parece real, e ainda há de ser rivalizada pelos concorrentes. O uso de CGI tende a virar um tiro no pé, pois encoraja diretores a descambarem para um festival de nonsense e tolices. No commentary track gravado para a edição especial em DVD de "Hellbound: Hellraiser 2", de 2001, Tony Randel levantava uma questão importante sobre seu filme ao afirmar que uma das forças residia nos excelentes efeitos realizados sem CGI e a aplicação da técnica de stop-motion. Ao tecer comentários sobre sua aversão a CGI, Randel citava "Stuart Little", e reclamava que, no referido filme, os efeitos especiais simplesmente não pareciam críveis. No caso do seu filme, as passagens mais fantásticas foram executadas longe da manipulação do CGI, e visões inesquecíveis como o labirinto sobre o qual gira o gigantesco monólito em forma de diamante, o Leviatã, criadas a partir de um conjunto de técnicas aplicadas em conjunto, como a matte painting de Cliff Culley, e os efeitos com a manipulação do diamante, em menor escala, girando sobre um eixo. Depois que as composições foram enriquecidas pela trilha sonora de Christopher Young, o produto final, a descida ao inferno de "Hellbound: Hellraiser 2", sagra-se como um dos momentos mais genuinamente perturbadores da história do horror moderno. O restante do esquisito magnetismo repousa na elegância das performances, com ênfase a Clare Higgins, e na contundência de sensibilíssimos detalhes, como a mitologia dos cenobitas, estranhos e amorais sadomasoquistas diferentes de qualquer coisa vista antes no cinema, ou a perversidade em sequências eletrizantes embriagadas por malévolo erotismo, como a do ressurgimento de Julia como uma monstruosidade sem pele através do colchão, uma passagem especialmente prolongada e violenta envolvendo a batalha do "monstro" com um doente mental após o mesmo ter se despedaçado com uma navalha, movido pela esquizofrenia a levá-lo a enxergar larvas pelo corpo. Ele agora luta desesperadamente pela própria vida enquanto Julia se adere às costas da vítima como um parasita, para drená-lo até a morte e recuperar a força e a velha forma de mulher. Mesmo hoje, três décadas após tê-lo visto pela primeira vez, quando criança, a sequência constrange pela ferocidade envolvida nos desdobramentos da confusão em cima do colchão. Embora não haja nada de belo na duríssima imagem da "coisa" e do homem ferido rolando agarrados pelo chão, não temos como não pensar que, em termos de ficção, trata-se de uma "mulher" montada sobre a patética vítima, e Clive Barker, graças à duração exagerada do encontro e à obsessão por detalhes, como o modo como filma o trapézio e os músculos das coxas e braços de Julia, durante um exaustivo embate de dois corpos nus, consegue conceber uma cena marcada pela macabra libidinagem sadomasoquista frequente na sua bibliografia. E nada cabe melhor a uma cena tão psicologicamente embaralhada quanto uma frase dita sobre a condição humana por Lovecraft: "O mundo é deveras cômico, mas a piada está na raça humana". Voltando a "The Void", o mesmo foi produzido quase trinta anos mais tarde que "Hellraiser 2", mas o charme dos efeitos permanece inalterado. Há algo próprio ao feito à mão e demandante de sacrifícios que escapa aos olhos de quem pensa que a ilimitada ilusão criada pelo CGI pode crescer nos corações de quem verdadeiramente aprecia terror.
"The Void" precisa ser descoberto. Como um dos filmes de terror mais relevantes dos últimos anos, faz parte da seleta lista da nata do gênero, que inclui obras-primas como "Kill List", "Session 9", "Hellraiser 1 & 2", e "w Delta z", dentre (poucos) outros. Seu alcance suplanta a mise-en-scène de conceitos inaugurados pelos mestres do passado, e transcende o lugar comum do medo físico em favor do niilismo cósmico catalisador da abertura de portais estelares e adoração a deuses mitológicos. Suas delirantes fantasias devassam profundezas de febril imaginário, e se prestam como ponto de partida para a pesquisa de um horror mais metafísico. Daí, a necessidade de conhecer a obra de Lovecraft antes de assistir a "The Void". Hoje, com o advento da internet, encontrar materiais para aprofundamento nos estudos encontra-se a um clique de distância. Contraditoriamente, o drama não consiste em coletar informações, afinal são muitas as fontes, e sim fortalecer a disciplina para separar e categorizar esse material: de tão vasto, conhecê-lo exige foco. Há um canal chamado "Impensável", pelo qual seu criador bolou uma série chamada "Inenarrável". Com muita disposição e talento, esse cavalheiro apanhou os principais contos de H.P. Lovecraft e prestou um valorosíssimo serviço ao traduzi-los para o Português e lê-los sob efeitos de áudio, criando experiências imersivas impossíveis de serem experimentadas antes do advento da grande rede. Dentre suas excepcionais performances, recomendo com especial entusiasmo o conto "A Cor que veio do espaço", um dos mais intrigantes trabalhos de Lovecraft que, na voz do narrador, adquire contornos épicos, e serve como perfeita introdução para cinéfilos que não conhecem ainda a febril imaginação de um dos pilares do horror fantástico moderno.
Todos os direitos autorais reservados a Screen Media Films. O uso do trailer & imagens é para efeito meramente ilustrativo da resenha.
Baseado em fatos reais. Roman Melnyck (Arnold Schwarzenegger, no melhor desempenho de sua carreira) é um trabalhador honrado & homem de família que mal pode esperar para rever a mulher e a filha grávida logo mais à noite, no horário programado para a chegada do voo. Profissional do ramo da construção, Melnyck leva seu ofício com muita seriedade, e nem mesmo a aguardada volta da família o demove do canteiro de obras, onde lida com os problemas rotineiros da construção com experiência, habilidade e muito bom humor. Seu chefe Matt se surpreende com a eficiência da coordenação dos trabalhos sob o manto de Roman. O 6° andar ficou pronto, e o 7° andar não levará mais de três horas para ser concluído também. A construtora está adiantada no cronograma, graças ao talento do homem. Embora Roman resista um pouco, Matt consegue convencê-lo a adiantar-se e ir para casa, para evitar imprevistos como tráfego congestionado. Ele tampouco quer ver o amigo no canteiro de obras na manhã seguinte: Roman tem o direito de curtir a família, e celebrar uma nova fase da vida, agora como avô.

Roman mora em um típico bairro de trabalhadores "blue collar", e foi pelo suor do rosto que comprou a casa, conquistou seus bens e criou dignamente a família. No rádio, só se fala sobre a proximidade do Natal, e músicas natalinas dão o tom correto à festiva época. No interior do lar, vê-se o esmero com que Roman preparou as faixas de boas-vindas para mulher e filha. Ele também mobiliou o quarto para a chegada do netinho. Preso ao espelho, podemos observar o ultrassom do bebê, destacado pelo orgulhoso vovô, uma forma de amenizar a ansiedade da espera. Cheio de expectativa, Roman toma banho e se veste para aguardar a chegada do voo no aeroporto, para onde parte com certa antecedência, intencionando fugir de congestionamentos imprevistos, conforme Matt o orientara. Roman aproveita a folga de tempo para adquirir um lindo buquê de flores. Quando o horário da chegada chega e se vai sem novidade no painel eletrônico, ele resolve procurar o guichê da companhia aérea. Seu humor é dos melhores, não há nenhuma linha de angústia no seu rosto. Ao se aproximar do guichê, dá um "encontrão" em um passageiro qualquer, que leva a situação no bom humor. Ao se despedir do estranho, Roman ainda brinca "Você é um bom dançarino". Ele fornece ao cavalheiro do guichê o número do voo, AX 1-12, originário de Kiev, com escalas em Frankfurt e Nova York. Uma senhorita da empresa escuta a conversa, e o aborda com muita delicadeza, convidando-o a segui-la à sala de operações. O mundo de Roman está prestes a desabar, e ele parece não desconfiar da gravidade da situação.

Roman segue a senhorita por corredores do andar operacional da companhia, e há um interessante momento onde, ao seu lado, vindo no sentido oposto, um senhor de mesma idade acaba de deixar o escritório, com a face transtornada pela dor. O choque do homem não passa desapercebido aos olhos de Roman, que já começa a pressentir a ocorrência de algum sinistro. Inquieto, ele pergunta à moça, com urgência na voz, se houve algum imprevisto no voo, se há uma nova previsão de aterrissagem. Quem finalmente presta esclarecimentos é uma jovem agente aeroportuária chamada Eva Sanders. Ela desempenha a pesarosa, duríssima incumbência de se sentar à mesa diante do pobre Roman para lhe dar a horrorosa notícia: o avião sofreu um terrível acidente, e embora àquela altura não haja informações sólidas sobre a tragédia, é seguro afirmar que não há sobreviventes. Roman mal consegue esboçar uma resposta. "Ela estava grávida", murmura, em choque, e sofre o princípio de um ataque cardíaco, desabando inconsciente no chão. Atendido na enfermaria, ele consegue descansar, e a agente Sanders lhe fornece todos os contatos de que precisa nesse momento de grande dificuldade. Roman não consegue voltar para casa. A madrugada se põe em curso, e o vemos dentro do carro, no estacionamento deserto, digerindo a horrenda surpresa que não pode ser expressa em palavras.
O filme, então, nos apresenta ao segundo protagonista desta história, o Sr. Jacob Bonaos (Scoot McNairy, de "Monsters"), cujo acidental papel na cadeia de eventos foi determinante para a ocorrência da terrível tragédia no ar. Nós o conhecemos na noite em que acontece a colisão aérea. Controlador de voo, Jacob vivia uma existência comum & feliz ao lado da esposa Christina (Maggie Grace, de "Busca Explosiva") e do filho Samuel (Judah Nelson), e sua primeira cena nos dá uma amostra da harmônica existência dos Bonaos, quando o vemos fazendo amor com a mulher, e eles precisam tomar cuidado para não despertar o menino, no outro quarto. Jacob se apresenta na torre, sua intimidade com as rotinas do controle patente pela desenvoltura com que se conduz. Quis o destino que, naquela noite, fosse realizada uma manutenção nas linhas, que não custaria mais de seis minutos, mas transformaria as vidas de centenas de pessoas para sempre. Bonaos estava instruindo a tripulação do voo AX 1-12, durante a aproximação, porém então, sobre seu colo, recaiu a responsabilidade para, em simultâneo, orientar um outro voo, a ser deslocado para o aeroporto de Pittsburgh. Enquanto tenta contatar via telefone o pessoal da torre de Pittsburg, Bonaos "se desliga" um pouco do rádio, e deixa de prestar assistência ao voo DH 6-1-6, cujos pilotos tomam a desavisada decisão de descer, o que o colocará no corredor aéreo do outro voo. O fato é que quando fica ciente de que os voos AX 1-12 & DG 6-1-6 encontram-se em rota de colisão, é tarde demais para tomar providências em tempo hábil para remeter. Desesperado, Bonaos ainda tenta conversar com a tripulação de um dos voos para que deixe o corredor, porém os sinais subitamente desaparecem do radar. Os aviões colidiram no céu. Diante da horripilante constatação, Bonaos custa a processar a chocante verdade. Seu remorso, tremendo, lança-o no puro desespero.
Assim como ocorreu a Roman quando lhe foi informado sobre o desastre, Bonaos também se move como zumbi, como se estivesse vivendo um pesadelo. Robert (William Donovan), seu diretor, o recebe no auditório e lhe conta que telefonemas reportam destroços e fuselagens não muito distante dali. Os aviões definitivamente colidiram. O diretor traz lágrimas nos olhos, visivelmente preocupado com o pobre Bonaos, um homem que há algumas horas vivia uma existência comum, e agora precisava suportar sobre os ombros o esmagador peso de centenas de vidas perdidas na altura. Na manhã seguinte, ainda lívido, Jacob encontra o diretor e os companheiros da torre para repassar as lembranças da fatídica noite. Antes de apanhar o carro para casa, ele escuta os conselhos de um colega, que pede para o rapaz não atender a telefonemas e permanecer na segurança do lar. Ao retornar para casa, ele encontra a chorosa Christina assistindo à cobertura televisiva da tragédia. Eles se abraçam, em desalento.

Roman também acompanha as últimas informações do caso pela televisão, e recebe um telefonema da agente Sander. Ela deseja que o viúvo procure o centro de atendimento a familiares das vítimas, porém lhe ocorre uma ideia melhor. Roman apanha o carro e dirige para o bosque onde os destroços dos aviões se concentraram. Ao chegar à cena, ele se depara com vans de equipes jornalísticas, ambulâncias, bombeiros, um verdadeiro aparato de operação militar, organizado para a varredura da região. Roman se apresenta como voluntário, e os soldados acabam aceitando sua oferta de solidariedade, assim como a de dezenas de outras pessoas tocadas pela tragédia. Não obstante falemos do choque de dois Boeings em pleno voo, surpreendentemente, há pedaços da aeronave que preservaram a forma original, como porções da cabine de passageiros, com cadáveres, alguns intactos, ainda presos aos assentos pelos cintos. Roman recebe um traje Hazmat e segue recolhendo pertences de passageiros mortos e os pondo em sacos, para posterior reconhecimento. Ele encontra o colar da esposa, e pouco mais à frente se depara com o cadáver da filha, estatelado sobre uma árvore. Às lágrimas, ele a devolve ao chão, e a abraça, inconsolável. Posteriormente, o corpo da esposa também é identificado. Roman se senta entre os sacos da mulher e da filha, em um hangar reservado aos cadáveres achados no bosque. Ele se afoga na depressão, e ao visitar o túmulo da amada família, acaba dormindo ao pé da lápide. Um funcionário do cemitério precisa abordá-lo com muita sensibilidade para convencê-lo a ir para casa.
Kostanski & Gillespie (foto) mencionam o nome de Lovecraft em muitas das entrevistas concedidas para promover o trabalho. No frigir dos ovos, de três fontes lovecraftianas os cineastas beberam, "The Call of Cthulhu", "The Dunwich Horror" & "The Shadow Over Innsmouth", três contos sobre seitas e sacrifícios humanos em honra de deuses antigos alienígenas. Perguntado sobre a influência do autor, Kostanski afirma: "Foi mais o tom geral que queríamos capturar, pois eu amo coisas que se fazem sentir lovecraftianas sem serem exclusivamente adaptações de suas histórias. Eu também não creio que suas histórias se traduzam ao cinema muito bem, pois parecem enraizadas em origens literárias baseadas em cartas e coisas antigas, e o modo como são escritas realmente as deixam intraduzíveis para a mídia visual. Assim, qualquer coisa que invoque um senso de pavor cósmico traz o tipo de tom buscado pela gente com nosso filme, e também extraímos muita influencia de outros filmes e até videogames". Reparem no termo usado pelos cineastas, "intraduzíveis". Qualquer filme inspirado em Lovecraft trará imagens bombásticas e grandiosas numa galante tentativa de sublimar a impossibilidade da literalidade. Guillermo del Toro falou sobre a capacidade ímpar do autor para descrever e dirigir emoções e sensações, como se estivéssemos naquele pequeno escaler, perdidos no Oceano Pacífico, no começo do século XX, em "Dagon", ou como se nosso próprio pedaço de terra, a que chamamos de lar, encontrasse-se a mercê da volição de uma coisa indescritível, além da compreensão humana, vinda de outro universo, trazida por um meteoro, como em "A Cor que veio do espaço". Graças ao olhar do diretor de fotografia Samy Inayeh, desenvolto em produções do gênero, Kostanski & Gillespie rechearam "The Void" com visuais extasiantes, à altura da loucura cósmica mesclada à nossa desprotegida, falsa noção de realidade. Em "The Void", as intromissões das referidas cenas dão à jornada um ar místico, cuja escala ultrapassa a cronologia das vidas daquelas pessoas, e sugere um estado de espírito típico das obras de Lovecraft, afeto a escrever sobre um período muito anterior ao da formação das rochas e primeiros organismos, ou quiçá do próprio tempo. Quando filmou "Okaruto", uma trama que, na superfície, revolve o maior ataque terrorista da história do Japão, Koji Shiraishi também cortejou com um sobrenatural oriundo da criação do próprio cosmos através de imagens ímpares, abstratas demais para serem categorizadas e guardadas pela estrutura normal do pensamento, e, talvez por isso, emblemáticas de um período anterior ao próprio tempo. O aspecto lovecraftiano da trama, claro, perfilha cada minuto de um filme que, inicialmente, parece documentar a tragédia da patética vida de uma alma solitária e errante, um típico Net cafe refugee de Tóquio, mas que logo descamba para o caos quando do mesmo homem vem o planejamento de um maciço ataque terrorista em pleno cruzamento da estação de Shibuya, ato que que muda o curso da história do Japão, e nos faz pensar em questões envolvendo fatalismo e predestinação. Somos ainda levados a pensar em "Stargate", de 1994, pelo fato de o portal deter uma importância tão determinante nas vidas dos personagens. Pela escolha visual da equipe de "The Void", o triângulo reúne o arcabouço de crenças do culto, mas talvez principalmente emblematize o portal interstelar que faz as vezes de túnel entre galáxias, como acontece, com tintas menos aterrorizantes e mais aventureiras, em "Stargate", ou mais apavorante e discretamente na forma da configuração do lamento de "Hellraiser".
As performances uniformemente excelentes são dadas com o entusiasmo de profissionais sabedores da chance única de participarem de tão relevante projeto. Aaron Poole soma ao currículo mais um genial filme de horror, dando seguimento ao vencedor momentum que começou com o papel principal no empolgante "The Conspiracy", em 2011, e continuou, no ano seguinte, com o intrigante "The Last Will and Testament of Rosalind Leigh" (recomendado, inclusive, por Clive Barker). No papel da esposa, Kathleen Munroe ganha pontos pela veracidade com que representa uma jovem ainda marcada pela morte do bebê no parto, e pelo carinho reservado ao ex-marido. Uma bela mulher dotada do biotipo canadense, ela me lembra uma jovem Caroline Dhavernas. Grace Munro torna sua breve participação um motivo de celebração, em uma das cenas pivôs. A forma como surge sorridente às costas do avô após degolá-lo com um bisturi impacta pela surpresa da premeditada traição, justificável somente pelo fervor com que a jovem se entregara ao culto. Kenneth Welsh, veterano canadense de tantos filmes, possui até mesmo o primeiro nome que o artista por trás do similar Dr. Channard, Kenneth Cranham! E, assim como Cranham, Welsh também construiu para si a respeitabilidade de um ator eclético à vontade em qualquer gênero. Quis o destino que, nos dois casos, do horror viessem os personagens pelos quais seriam para sempre lembrados. No papel da residente de Medicina Kim, Ellen Wong tempera a seriedade com uma salutar dose de humor e jovem rebeldia, uma personagem muito bem-vinda a filmes do gênero, por lhes prestar o incomensurável serviço de mitigar o enorme peso de temas tão sérios.
A trilha sonora, assinada pelo grupo Blitz/Berlin, fia-se em sintetizadores reminiscentes dos filmes oitentistas de John Carpenter, uma tendência retomada há alguns anos por outros compositores, como disasterpiece, autor da melodia do chocante "Corrente do Mal", já resenhado no blog. Pulsante, a música de Blitz/Berlin ensaia as batidas de um coração eletrônico pesado e indiferente, nos moldes da suíte introdutória de Howard Shore para o macabro "Estranhos Prazeres", de David Cronenberg. A trilha sonora de "The Void" resgata tão perfeitamente a atmosfera dos filmes de John Carpenter que a primeira coisa a vir à mente durante a fuga da estudante Kim através dos corredores iluminados por um neon vermelho alienígena, durante a invasão dos membros do culto, são as cenas de clássicos como "Assault at Precinct 13" e, mais contundentemente, o primeiro "Halloween", de 1978. Falando de reminiscências, a escolha da paleta de cores no segmento da invasão ao hospital de "The Void" parodia os mais importantes trabalhos de Dario Argento, como o extravagante "Suspiria", em suas gloriosas, agressivas cores, com realce rubro. O imaginário de Argento sempre encontra um jeito de emanar do subconsciente desses novos wunderkinds do horror, basta conferirem "Demônio de Neon", de Nicolas Winding Refn, um trabalho praticamente levantado sobre o esqueleto estrutural de "Suspiria".
Os efeitos especiais datados nos remetem aos saudosos anos 80, quando terror era mais difícil de ser filmado, e exigia a execução diante das câmeras, para funcionar. Nem por isso, "The Void" é menos eficiente do que os ricos e modernos similares. Na verdade, Kostanski & Gillespie vestiram a camisa do horror vintage e pintaram a tela com uma carnificina que parece real, e ainda há de ser rivalizada pelos concorrentes. O uso de CGI tende a virar um tiro no pé, pois encoraja diretores a descambarem para um festival de nonsense e tolices. No commentary track gravado para a edição especial em DVD de "Hellbound: Hellraiser 2", de 2001, Tony Randel levantava uma questão importante sobre seu filme ao afirmar que uma das forças residia nos excelentes efeitos realizados sem CGI e a aplicação da técnica de stop-motion. Ao tecer comentários sobre sua aversão a CGI, Randel citava "Stuart Little", e reclamava que, no referido filme, os efeitos especiais simplesmente não pareciam críveis. No caso do seu filme, as passagens mais fantásticas foram executadas longe da manipulação do CGI, e visões inesquecíveis como o labirinto sobre o qual gira o gigantesco monólito em forma de diamante, o Leviatã, criadas a partir de um conjunto de técnicas aplicadas em conjunto, como a matte painting de Cliff Culley, e os efeitos com a manipulação do diamante, em menor escala, girando sobre um eixo. Depois que as composições foram enriquecidas pela trilha sonora de Christopher Young, o produto final, a descida ao inferno de "Hellbound: Hellraiser 2", sagra-se como um dos momentos mais genuinamente perturbadores da história do horror moderno. O restante do esquisito magnetismo repousa na elegância das performances, com ênfase a Clare Higgins, e na contundência de sensibilíssimos detalhes, como a mitologia dos cenobitas, estranhos e amorais sadomasoquistas diferentes de qualquer coisa vista antes no cinema, ou a perversidade em sequências eletrizantes embriagadas por malévolo erotismo, como a do ressurgimento de Julia como uma monstruosidade sem pele através do colchão, uma passagem especialmente prolongada e violenta envolvendo a batalha do "monstro" com um doente mental após o mesmo ter se despedaçado com uma navalha, movido pela esquizofrenia a levá-lo a enxergar larvas pelo corpo. Ele agora luta desesperadamente pela própria vida enquanto Julia se adere às costas da vítima como um parasita, para drená-lo até a morte e recuperar a força e a velha forma de mulher. Mesmo hoje, três décadas após tê-lo visto pela primeira vez, quando criança, a sequência constrange pela ferocidade envolvida nos desdobramentos da confusão em cima do colchão. Embora não haja nada de belo na duríssima imagem da "coisa" e do homem ferido rolando agarrados pelo chão, não temos como não pensar que, em termos de ficção, trata-se de uma "mulher" montada sobre a patética vítima, e Clive Barker, graças à duração exagerada do encontro e à obsessão por detalhes, como o modo como filma o trapézio e os músculos das coxas e braços de Julia, durante um exaustivo embate de dois corpos nus, consegue conceber uma cena marcada pela macabra libidinagem sadomasoquista frequente na sua bibliografia. E nada cabe melhor a uma cena tão psicologicamente embaralhada quanto uma frase dita sobre a condição humana por Lovecraft: "O mundo é deveras cômico, mas a piada está na raça humana". Voltando a "The Void", o mesmo foi produzido quase trinta anos mais tarde que "Hellraiser 2", mas o charme dos efeitos permanece inalterado. Há algo próprio ao feito à mão e demandante de sacrifícios que escapa aos olhos de quem pensa que a ilimitada ilusão criada pelo CGI pode crescer nos corações de quem verdadeiramente aprecia terror.
"The Void" precisa ser descoberto. Como um dos filmes de terror mais relevantes dos últimos anos, faz parte da seleta lista da nata do gênero, que inclui obras-primas como "Kill List", "Session 9", "Hellraiser 1 & 2", e "w Delta z", dentre (poucos) outros. Seu alcance suplanta a mise-en-scène de conceitos inaugurados pelos mestres do passado, e transcende o lugar comum do medo físico em favor do niilismo cósmico catalisador da abertura de portais estelares e adoração a deuses mitológicos. Suas delirantes fantasias devassam profundezas de febril imaginário, e se prestam como ponto de partida para a pesquisa de um horror mais metafísico. Daí, a necessidade de conhecer a obra de Lovecraft antes de assistir a "The Void". Hoje, com o advento da internet, encontrar materiais para aprofundamento nos estudos encontra-se a um clique de distância. Contraditoriamente, o drama não consiste em coletar informações, afinal são muitas as fontes, e sim fortalecer a disciplina para separar e categorizar esse material: de tão vasto, conhecê-lo exige foco. Há um canal chamado "Impensável", pelo qual seu criador bolou uma série chamada "Inenarrável". Com muita disposição e talento, esse cavalheiro apanhou os principais contos de H.P. Lovecraft e prestou um valorosíssimo serviço ao traduzi-los para o Português e lê-los sob efeitos de áudio, criando experiências imersivas impossíveis de serem experimentadas antes do advento da grande rede. Dentre suas excepcionais performances, recomendo com especial entusiasmo o conto "A Cor que veio do espaço", um dos mais intrigantes trabalhos de Lovecraft que, na voz do narrador, adquire contornos épicos, e serve como perfeita introdução para cinéfilos que não conhecem ainda a febril imaginação de um dos pilares do horror fantástico moderno.
Baseado em fatos reais. Roman Melnyck (Arnold Schwarzenegger, no melhor desempenho de sua carreira) é um trabalhador honrado & homem de família que mal pode esperar para rever a mulher e a filha grávida logo mais à noite, no horário programado para a chegada do voo. Profissional do ramo da construção, Melnyck leva seu ofício com muita seriedade, e nem mesmo a aguardada volta da família o demove do canteiro de obras, onde lida com os problemas rotineiros da construção com experiência, habilidade e muito bom humor. Seu chefe Matt se surpreende com a eficiência da coordenação dos trabalhos sob o manto de Roman. O 6° andar ficou pronto, e o 7° andar não levará mais de três horas para ser concluído também. A construtora está adiantada no cronograma, graças ao talento do homem. Embora Roman resista um pouco, Matt consegue convencê-lo a adiantar-se e ir para casa, para evitar imprevistos como tráfego congestionado. Ele tampouco quer ver o amigo no canteiro de obras na manhã seguinte: Roman tem o direito de curtir a família, e celebrar uma nova fase da vida, agora como avô.


























Baseado em fatos verídicos, a colisão de um avião da Bashkerian Airlines com outro da DHL, em julho de 2002, no céu da cidadezinha alemã de Uberlingen, "Aftermath" adapta o fatídico encontro de dois personagens inexoravelmente ligados pelas consequências da tragédia, um cavalheiro chamado Vitaly Kaloyev, arquiteto russo que perdeu esposa e duas filhas no acidente e, no filme, é reimaginado como Roman Melnyck, e outro senhor chamado Peter Nielsen, o controlador de voo de plantão na torre de Zurique, Suíça, na data do sinistro, vivido, em "Aftermath", pelo ator Scoot McNary no papel de "Jacob Bonaos". Kaloyev jamais superou a perda, e sustentou Nielsen como responsável pela sua desgraça pessoal. Ele rastreou o paradeiro de Nielsen, e lhe prestou uma visita na cidade de Kloten, próximo a Zurique, em 24 de fevereiro de 2004. Assim como visto no filme, Kaloyev exibiu a foto da família e demandou um pedido de desculpas por parte de Nielsen. Um desentendimento fez com que o viúvo se enfurecesse, sacando uma faca e ferindo o outro homem de morte. Kaloyev não ofereceu resistência quando policiais o prenderam em um quarto de motel perto da cena do crime, e três anos após o início do cumprimento da sentença, magistrados levaram em conta seu estado emocional à época do crime, ajustando . Ele foi solto em novembro de 2007, e recebido como herói na sua cidade natal em Ossétia do Norte.


Sinalizando o compromisso com o novo momento, aqui, Schwarzenegger divide generosamente o escrutínio dos holofotes com seus colegas de elenco, igualmente brilhantes e merecedores de autonomia para encontrarem a própria voz. Scoot McNary, o segundo protagonista, chamara minha atenção no excepcional "Monsters", de 2011, a ficção-científica romântica dirigida por Gareth Edwards que deu fôlego aos filmes de monstro e lhe garantiu a cadeira de diretor de "Godzilla", de 2014. Em um típico filme de Schwarzenegger, o roteiro jamais concederia espaço ou tempo além do estritamente necessário para personagens que não o do herói, todavia, evidenciando o entusiasmo do astro pela incursão na fase character actor, o diretor Elliot Lester gozou de liberdade criativa para reservar ao controlador de voo o mesmo tratamento dedicado ao colega mais famoso. McNary teve tempo de sobra para criar nuances para a figura do atormentado "antagonista". Neste diapasão, ao assim proceder, Lester exercita a compaixão necessária para afastar da história a armadilha da banalização do drama de Roman, e enriquece a discussão ao nos lembrar da humanidade do controlador de voo, também chefe de família, do preço pago, tão caro quanto aquele depositado sobre as costas de Roman. As cenas de paz no seio da próspera vida familiar interpretadas por McNaary, Maggie Grace e o menino Judah Nelson nos brindam com um natural frescor que em vez de ilustrá-los como "família de comercial de margarina", mostra-os como um núcleo cúmplice e feliz, com direito a seus triunfos e dramas. A narrativa jamais abandona essas duas highways paralelas - o drama de Roman & e o conflito de Bonaos - e se alterna entre vias, rabiscando um quadro amplo & justo sobre as consequências do estranho senso de humor do destino.
Poucas produções abordaram com sensibilidade dramas sobre desastres aéreos, pois a maioria foca-se no acidente em si, e, quando menos se espera, tudo gira em torno do momento do impacto, e não do drama reverberado pela catástrofe. Ironicamente, apesar de "Aftermath" nos contar a história cuja premissa começa com a colisão de dois Boeings, não vemos um único avião no curso da trama, a não ser como pontinhos luminosos no monitor. Gratamente, o diretor preferiu relegar o cenário do desastre ao fundo, elegendo como prioridade as consequências do evento sobre aquelas pessoas, e não o evento per si. Ao assim proceder, "Aftermath" recupera a empolgação de produções mais antigas capazes de fazer os cabelos da nuca se eriçarem à romantizada visão de aeroportos, como foi o caso de "Fearless", de 1993, do diretor Peter Weir. No drama de Weir, um engenheiro sobrevivia à queda de um avião, levado abaixo em um milharal por problemas hidráulicos, e, no momento seguinte, salvava os demais passageiros, conduzindo-os através da cabine até à segurança do milharal, longe das chamas. Aclamado como herói, ele se aliena dos entes queridos graças à sensação de invencibilidade gerada pela vitória sobre a morte, e enquanto um terapeuta tenta ajudá-lo a se reconectar com a esposa e o filho, ele se apaixona por outra sobrevivente, uma jovem mãe devorada pela culpa por não ter abraçado o filho, um bebezinho, com força suficiente, no instante da queda, o que lhe custou a vida. Sempre conservei "Fearless" no coração, desde que o vi quando menino, em fita de vídeo, em 1994, e até mesmo encontrei inspiração na abertura, quando escrevi uma história chamada "Nosebleed", introduzida praticamente pelo mesmo expediente, um homem humilde e comum, neste caso um agente aeroportuário, metendo-se voluntariamente no aterrorizante cenário da queda de um Boeing na cabeceira da pista, salvando vidas e virando, de uma hora à outra, uma espécie de herói local, o que lhe rende a indesejável atenção de pessoas do passado, que ele teria feito de tudo para afastar. Eu me servi de três distintas fontes para conceber o roteiro, a cena introdutória do filme de Weir e as graphic novels "A History of Violence", de John Wagner (pelo viés do passado obscuro emergindo para assombrar o herói), e "Daredevil: Born Again", de Frank Miller (pela vertente da vilã pondo em movimento uma maciça campanha secreta de desmoralização da reputação do protagonista, e a luta de boxe entre os dois no ringue, no clímax, quando ele é massacrado, perde e diz algo nas linhas de "eu não capitulo, mesmo sob a perspectiva da morte", referência óbvia ao duelo entre o Demolidor e o Rei). De toda sorte, voltando a "Aftermath", assim como Weir realizou anteriormente, ele se policia para que o acidente em si não se transforme na coisa mais importante da trama, surpreendentemente intimista, e mesmo o aproveitando como o substrato sobre o qual brotaram as vertentes dramáticas, a coluna vertebral da tragédia não eclipsa os conflitos gerados pelo evento. Um acontecimento tão transformador quanto um desastre aéreo abre qualquer filme com a força de um dínamo, mas por não supervalorizá-lo, o diretor areja a história com espaço para que a força das performances e a assertividade do script se encarreguem de torná-lo um bom filme, e não somente um espetáculo do macabro.
"Aftermath" utiliza muito bem o conceito do correr do tempo em benefício do arco dos personagens. Ao desprezar a tragédia aérea e preferir explorar o lado humano, o diretor precisava estudar os desdobramentos nas vidas individuais após o acidente, e como acontece à pintura, só se produz um quadro completo se ao artista forem dados espaço & tempo para carregar as tintas na poesia. Assim, o diretor Lester lança mão do recurso da passagem dos anos para "prestar visitas periódicas" aos atormentados protagonistas em distintos momentos: nos dias seguintes à confusão, um ano após a queda, e então dez anos após o acerto de contas entre Roman e Bonaos. A liberdade narrativa estimula um afiado desenvolvimento psicológico, porque em um período relativamente longo, captura o espírito, a disposição e as mudanças interiores daquela gente, elementos impossíveis de serem individualizados dentro de um espaço usualmente reservado a jornadas mais imediatas por parte dos protagonistas de filmes do gênero. Neste sentido, "Aftermath" esbanja a profundidade que o lança à frente de histórias com o mesmo ponto de partida, e, a sua maneira, faz-me pensar no aterrorizante "The Poughkeepsie Tapes", sobre o qual já escrevi no blog. "The Poughkeepsie Tapes", um dos melhores exemplares do subgênero "mockumentary" (filmes rodados como autênticos documentários, mas "de mentirinha"), exibia o drama das famílias de vítimas deixadas no encalço de um serial killer chamado "O Açougueiro de Water Street" através de filmagens de época e, principalmente, da saga de uma moça chamada Cheryl Dempsey, uma garota absolutamente normal até ter sido abduzida da casa dos pais em 1998, e mantida por quase dez anos em cativeiro, onde foi transformada em escrava sexual e cúmplice de homicídio. Quando a polícia estoura o claustro e a liberta, a infantilizada mulher insiste em "ser devolvida para casa", referindo-se ao calabouço de perversões sexuais do homem a quem, antes de tirar a própria vida, deixa uma carta por meio da qual jura amor eterno. Vez que o diretor John Erick Dowdle espraiou o conceito do "Açougueiro de Water Street" ao longo de uma década, ele acabou cavando certa profundidade psicológica ao filme, que pode ser considerado um dos mais perturbadores do tipo, justamente pela sensibilidade humana submetida ao escrutínio do microscópio do "documentário" (ou "mockumentary", como preferir), e as reverberações acusadas pelo contraste da passagem do tempo versus as diferenças de tom entre os distintos atos. No caso de "Aftermath", não fosse pela perspectiva do avanço dos anos, o dilema determinante nesta trama, o poder do perdão, jamais teria funcionado, pois lhe faltaria a legitimidade da verossimilhança. Por outro lado, porque conhecemos Samuel menininho, e depois o reencontramos como jovem homem, o amadurecimento e desenlace da questão soa justo e legítimo. A cronologia de uma década nos confere uma percepção mais honesta dos arcos individuais das pessoas envolvidas na tragédia, desde a confusão e raiva à reconciliação final.
Tecnicamente, percebe-se o cuidado da produção em desglamourizar a fotografia com o intuito de criar uma experiência a mais próxima possível da realidade. O diretor de fotografia Pieter Vermeer opta por um filtro acinzentado, quase averso a cores, conferindo à trama uma tristeza surrada e desesperançosa. A arte de Vermeer me faz pensar no visual de Rodrigo Pietro para o angustiante drama existencial de Alejandro González Iñárritu, "21 Gramas", ambos distintos em execução, mas, em seus respectivos fins, idênticos: "21 Gramas" prima por cores saturadas para sustentar uma sufocante atmosfera de luto, "Aftermath" escolhe a parcimônia da paleta para retratar um mundo de desalento e perda através da cor cinza; dos dois jeitos, os dois filmes primorosamente enfocam o peso da inesperada ruptura familiar, e, da mesma forma que "21 Gramas" oferece certa poesia em determinadas cenas de beleza em meio a dor, "Aftermath" flerta com o surrealismo, mais exatamente no recorrente pesadelo a atormentar Roman, onde vemos a queda pela perspectiva de quem devia se encontrar do lado da janelinha com a visão para a asa, no instante do mergulho final. O filme também traz uma tétrica cena de arrepiar os cabelos, quando Roman se junta à equipe de resgate. Embora não vejamos os corpos diretamente, o diretor mostra só o suficiente para sabermos que estão lá, e, por algum motivo, o fato de permanecerem íntegros, alguns ainda nas cadeiras, dá ao momento uma macabra atmosfera digna de filme de terror. Em termos de estratégia de direção, Elliot Lester demonstra humildade e sabedoria ao preferir manter o ego sob controle para deixar que seu maravilhoso elenco conte a história. O cineasta Mark Romanek agiu semelhante há quinze anos, quando executou o impecável "Retratos de uma Obsessão", um sensível, profundo character study, prejudicado por uma equivocada campanha de marketing, iludida ao vendê-lo como o típico suspense sobre stalkers, quando, na verdade, fiava-se na performance vencedora de Robin Williams para contar a história de um sobrevivente de estupro na infância que sublimava a dor do trauma através da incondicional e secreta devoção a uma família a que julgava perfeita, e desejava como sua. Há uma cena onde o personagem de Robin Williams aparece no jogo da liga infantil para assistir à partida do menino, o filho do casal. Após o jogo, Williams caminha lado a lado com o garoto, e em uma breve conversa, fala sobre a própria dolorosa infância. Romanek limita-se a pôr as câmeras a uma certa distância, sem movimentos, sem estardalhaços. Ele sustenta a lente nos dois atores, e voilá, a magia toma frente, pela força do talento e, claro, do lindo, melancólico pano de fundo, folhas amareladas desprendendo-se das copas das árvores ao toque da ventania de outono. Em "Aftermath", fiel ao compromisso do comedimento, Lester não tenta "aparecer mais" do que seus astros, e felizmente não se põe no caminho de uma história que já reúne elementos suficientes para gerar um excelente filme. Ele prepara as câmeras nos lugares certos, acerta com o diretor de fotografia a captura das cenas em tomadas e luzes encantadoras, mas não procura imprimir uma marca em particular, estando submetido e a completo serviço do bem maior.
"Aftermath" o fará pensar na vida através de uma ótica mais cuidadosa e reflexiva, porque ao tempo que tramas do tipo lancem o escrutínio sobre a inconstante vastidão do coração humano, pouco produzem, em termos de análise, por uma mera questão de "amostragem". Um filme nos apresenta personagens em momentos de crise, e não obstante dificuldades nos ensinem muito sobre alguém, sequer arranham a complexidade do caráter. Essa história em particular analisa escolhas dentro de um período relevante de vida. Tendo assistido a muitos filmes, somente uma porcentagem mínima consegue permanecer conosco anos após a primeira exibição. Seguindo a tradição desta pequena parcela, "Aftermath" rondará seus pensamentos, e também o convidará a lançar um olhar sobre sua própria vida. No caso de Roman, um personagem pelo qual torci, a tragédia se deveu `a incapacidade de reagir propriamente ao predicamento a que sua vida fora jogada de supetão. Na mesma oportunidade, questiono: que tragédia não envolve exatamente o mesmo impasse? Um longo processo de perplexidade ante o sofrimento? Dia desses, ao passear por uma loja de departamento, deparei-me, na seção de brinquedos, com o "Jogo da Vida". As pessoas maduras o suficiente saberão que o "Jogo da Vida" circula há no mínimo trinta anos, pois eu me recordo das partidas com os colegas, na infância. Faz muito tempo desde que o vi pela última vez, mas guardo noções sobre como o negócio funciona. Você começava como um pino dentro de um carrinho onde existia espaço para outros pinos, leia-se a família que você formaria ao longo do caminho, e diante de si existia um tabuleiro atravessado por uma longa estrada, a começar por um específico ponto de partida, que terminava uma vez que o jogador chegasse ao destino. No curso da jornada, a depender da sorte envolvida na força aplicada sobre o giro da roleta, sua vida era mais ou menos guiada consoante uma série de variáveis. Hoje, as novas edições do jogo prometem inéditas situações, e não restam dúvidas de que as circunstâncias previstas nos lances da roleta mudaram muito desde minha última vez, no começo dos anos 90. Foi algo no contexto das doces, pueris ilustrações da caixa, entretanto, que me puseram a refletir sobre a singeleza a partir da qual alguém tenta realocar para um colorido tabuleiro toda a riqueza de distintas situações, próprias ao drama humano. Em gentil traçado, o desenhista condensa na superfície da caixa muitas divertidas situações como o universitário sorridente exibindo o canudo do diploma, o jovem casal deixando a igreja, a moça nos braços do homem, a garotinha com um buquê de flores correndo em direção aos contentes pais, e o bebê recebido neste mundo pela mãe, os avós presentes para acolhê-lo logo ao lado. Existe um quê de promessa nas imagens que dá ao contexto um irremissível fatalismo, um sabor agridoce. Sim, a vida pode nos reservar lindos momentos, dignos dos lápis coloridos do talentoso desenhista, para estampar a caixa de uma brincadeira chamada "Jogo da Vida", mas eu me flagrei me perguntando por que passar a vista sobre as gravuras me causava tão forte impressão, até mesmo me estimulava a pensar no filme sobre o qual eu escreveria uma resenha - o protagonista consumido pela perda e incapaz de "voltar para a casa", para o seu "velho eu". Eventualmente, compreendi o mistério. Reparem, o termo é importante, eu disse mistério. E a compreensão do mistério está na vanguarda da história do filme, transcendendo a imagem no ecrã, mesmo que invisível aos olhos, e só perceptível indiretamente, desde que se preste muita atenção. E o advérbio também leva ênfase, porque poderá, um dia, salvar sua vida também.
Eu compreendo a fundo a questão do transtorno da personalidade narcisista pois pela maioria da vida eu estive no fim recebedor desse tipo de abuso emocional. Embora tenha sofrido essa espécie de violência psicológica há muito tempo, só recentemente vim a me atentar que essa "coisa" tem um nome. Depois que li de maneira en passant materiais sobre a condição, enxerguei características de pessoas naquele quadro e me aprofundei no assunto. Com o tempo, a verdade foi trazida à luz. O transtorno da personalidade narcisista deve ter sido introduzido na minha vida aos seis anos, eu diria, quando fui apresentado à primeira narcisista, um assédio de puro ódio que deve ter começado em 1985, eu imagino, embora não me lembre claramente. Esticou-se por mais alguns anos, por mais que, mesmo depois de minha absolvição de qualquer convívio, a mesma figura tenha acompanhado minha vida à distância com fervorosa dedicação. A primeira manifestação de maldade por parte dessa pessoa permaneceu fresca na memória, mesmo embaralhada pela névoa das recordações mais afastadas, ela aparecendo na beira da cama, a uma hora avançada da noite, de modo que outras pessoas estivessem dormindo, fazendo questão de recomendar que eu não abrisse a boca, e me beliscando como se quisesse arrancar a pele, pelo simples prazer da agressão. Ela agia conforme a cartilha de sempre, beliscar e tartamudear ameaças para sustentar um clima de eterna intimidação, era uma brutalidade contida, claro, para que na manhã seguinte não houvesse hematomas roxos nos braços. Ali naquele ato perpetrado por uma mulher que à época devia ter seus trinta & poucos anos contra uma criança de seis, na calada da noite, a vida me apresentou a um esquisito tipo de maldade que eu só compreenderia décadas mais tarde. Em distintas formas & pessoas, o narcisismo me revisitaria até que eu tivesse maturidade suficiente para compreendê-lo. Ao escrever esta resenha, ocorreu-me a ferocidade com que o filme de Cronenberg, "Estranhos Prazeres", ancorou-se a minha mente, e me dei conta do quanto elementos da figura da primeira narcisista apareciam na personagem da atriz Deborah Unger. Mesmo fisicamente, as duas se assemelhavam, ambas loiras, o mesmo tipo de frieza robótica. Com o atropelo dos anos, a crueldade dessa promíscua sifilítica deve ter se encarregado de secá-la, mas, quando ela me fez a primeira de muitas ameaças que viriam pelos próximos anos, era como se o fizesse a própria "Catherine Ballard" daquele pesadelo de filme, com toda a efervescência de alguém com completo controle sobre uma criança de seis anos. Trago na minha memória seu olhar muito oblíquo quando me acuava para me hostilizar sem descanso, e penso que deve ter sido o mesmo com que Nero dedilhou cordas de harpa enquanto Roma ardia em chamas, naquela que seria a primeira parte de seu plano para jogar a culpa nos cristãos e depois atirá-los ao coliseu, onde seriam despedaçados por leões. Mais tarde, livre da proximidade desse demônio, gente nova com semelhantes traços entrou e saiu de minha vida, regularmente, com menor ou maior ascendência, a variar conforme o conhecimento de mundo que eu havia adquirido para me desvencilhar mais prontamente. Deus age de forma misteriosa, pois só mais tarde, cerca de um ano após a morte de minha avó, uma pessoa que me amou incondicionalmente e quis meu bem, comecei a "deixar a neblina", uma penumbra difícil de se dissipar da vida das pessoas que tiveram de aturar narcisistas e seus jogos desde a infância. Eu credito minha descoberta a sua intercessão, pois em menos de um ano desde abril de 2016, sob a impressão de casualidade, cheguei a materiais que me despertaram para a existência do problema, e serviram como ponto de partida para a investigação. Também foi aproximadamente nessa época que, em uma manhã de domingo, procurei voluntariamente a antiga igreja próxima ao colégio militar, onde ela, minha avó, tanto costumara me levar quando criança. Cheguei ao lugar com o intento de prestar uma breve visita para me recordar de um tempo há muito perdido, porém fiquei até o fim, e desde então, nunca mais deixei os bancos aos domingos. Com o tempo, atentei-me que a missa era frequentada por crianças trazidas pelos pais, a chamada "missa das crianças", e pensei comigo mesmo sobre a forma como Deus trabalha, e espera o momento certo. Eu havia deixado aquela casa há décadas, quando criança, e ao regressar, totalmente às cegas, quis o destino que eu entrasse pela nave da igreja junto a pais da minha idade com suas crianças pequenas, como se estivesse retomando algo de onde havíamos parado. Por causa de minhas leituras, e da retomada de uma fé que já existia em mim por causa de meus avós, uma fé que até há pouco tempo, antes de meu retorno voluntário, me parecia uma questão longínqua da infância, uma coisa superada, pude enxergar melhor as razões da recorrência desse mal na minha vida, e encontrar conforto na verdade pela qual vi que não, as experiências ruins não haviam sido provocadas por mim, tampouco eram coisas da imaginação fértil de uma criança. Minhas experiências com diferentes narcisistas em distintos períodos são, isso sim, testemunho pessoal da existência deste transtorno comportamental, tido na história da Psiquiatria como uma das manifestações mais corrosivas de que se tem notícia. Não são poucas as pessoas que, submetidas a semelhante tratamento, desenvolvem dissonância cognitiva, doenças arrítmicas ou cânceres, ou mesmo põem termo à própria vida, dado o grau de inconstância, opressão e incerteza que essa gente deliberadamente cria. Suas trágicas vítimas morrem sugadas sem sequer saber que há um nome para a diabólica condição, e que existem formas de anular a perversão, até mesmo afastá-la. Minhas experiências me abençoaram ao calibrar meus olhos para discernirem os sinais dessa "coisa", desse "monstro", dessa "besta" que, ocasionalmente, manifesta-se ao tomar morada em novos personagens. Quem atravessou o drama deve ficar certo de que só no tempo encontra-se a desejada redenção, porque a partir do momento que se regressa espontaneamente à cruz, mesmo quando você chegar aos 90 anos e tiver apenas mais um dia nesse mundo, ou se sua longevidade não gozar de tamanho alcance e se vir incapacitado por uma doença terminal, por exemplo, ainda assim, você se dá conta de que a vida está apenas começando, e o melhor ainda está por vir. À medida que o narcisista envelhece, ao contrário, e sua influência escoa pelo ralo junto com o poder de barganha para encontrar trouxas úteis para ajudá-lo a drenar as vidas de suas vítimas preferenciais, eles se dão conta de que não lhes foi concedida nenhuma garantia, pois a morte está aí, e basta estarmos vivos para morrermos. À proporção que a vida neste mundo se tornar cada vez mais difícil, e estamos caminhando a passos largos para isso, basta olhar com atenção para o que acontece no Brasil e se encontra em curso na Europa, com a destruição da instituição familiar e dos próprios valores cristãos através de imigração em massa, o drama existencial dessa gente só se agravará. O narcisista vai se descobrindo cada vez mais excluído, dadas as pontes implodidas ao longo da vida, até não lhe restar mais nada a não ser a autofagia de um indecifrável buraco negro interior e a maldade de outros narcisistas mais jovens e muitos piores. Afinal de contas, como as considerações acima se relacionam com o "Jogo da Vida", ou como o "Jogo da Vida" se reporta ao filme objeto da resenha?
Há um cavalheiro cujos vídeos venho acompanhando ao longo do último ano, o Rvmo. Padre Paulo Ricardo, cuja generosidade o moveu a dispor online seu vastíssimo conhecimento através do qual muitos têm sido tocados e inspirados a "voltar para casa", mesmo quando a fé cristã se tornara "algo acontecido muitos anos atrás". Em um de seus vídeos, pelo qual prestava aconselhamentos a um jovem católico atormentado por um drama de ordem pessoal, discutia o conceito que se tem da palavra "felicidade", e discorria sobre o quanto a procura por uma felicidade absoluta aqui nesta existência levava ao mais irrestrito desespero justamente porque felicidade não se encontra neste plano, ao menos não plenamente, vez que o ser humano foi criado para transcender. Em busca da pretensa felicidade, dizia Pe. Paulo Ricardo, o adúltero arruína a própria família, a prostituta se destrói, as pessoas mais carentes passam suas vidas mendigando migalhas de afeto, e o alcoólatra se mata aos poucos... ele ilustrou um amplo espectro de tragédias humanas introduzidas através de um "canto de sereia" que, para dinamitar as vidas das pessoas, usa apenas uma linha ilusória de significado vazado: "Seja feliz". O jovem em questão queixava-se do sofrimento de âmbito íntimo, afinal, por conta das convicções religiosas, precisara abdicar de uma determinada conduta particular, tida pela Igreja Católica como pecaminosa, e admitia a revolta contra a própria fé ao crer que perdia uma parte da vida, porque a renúncia não o fazia feliz. Em síntese, Pe. Paulo Ricardo oferecia sua orientação com uma brilhante resposta, que para o jovem em particular certamente deve ter servido para lhe abrir os olhos. Para mim, cujo drama difere da cruz do jovem em questão, porém é igualmente pesada, as palavras me serviram como uma lufada de ar fresco. Aqui, como jamais conseguiria em meus termos reproduzir o impacto de sua exposição, parafraseio suas destemidas palavras: "Para ajudar você, nós devemos fazer uma reflexão sobre a felicidade, e o que eu vou falar para você vale para qualquer fiel católico. Eu queria que você entendesse que o drama que você vive é semelhante ao drama de todos os outros. Todos os seres humanos marcados pelo pecado original têm sempre um canto de sereia, trata-se de uma tentação, uma tentação perversa, demoníaca, que diz assim 'seja feliz, procure a felicidade aqui na Terra'. É buscando essa felicidade que o alcoólatra se embriaga, que o drogado se entorpece, que a prostituta se destrói, que o adúltero acaba com sua família, é buscando essa felicidade que vivemos uma vida de tantas desventuras nessa Terra. No entanto, Nosso Senhor não prometeu felicidade para ninguém aqui, Ele prometeu, sim, felicidade no céu. Ele disse 'Eu vou preparar-vos um lugar, na casa de meu Pai há muitas moradas'. Na casa do Pai existem muitas moradas porque diversas são as cruzes que cada um tem que carregar. Haverá uma morada para você também. Existe um lugar no céu com teu nome escrito, e eu gostaria que esse lugar não ficasse vazio. Eu gostaria que você chegasse lá. Por isso, vamos nos ajudar mutuamente: você reza por mim, e eu rezo por você. Eu vou caindo por aqui, você cai por aí. Quedas diferentes, é verdade, mas é através do cair & levantar-se que nós um dia chegaremos ao céu. A diferença do bom católico para o pecador não é que o católico nunca peca, mas é que o católico odeia o seu pecado. E eu vejo pelo seu e-mail que você tem um coração profundamente católico, que você odeia seu pecado. Mas se você odeia o pecado, então odeie também a mentira que te leva ao pecado, ou seja, a ilusão. É necessário que você combata essa palavra ilusória do demônio que te promete a felicidade com o realismo da cruz, a cruz crava os nossos pés no chão. Veja, não olhe para o mundo como se fosse um mundo onde todos vivem o paraíso, e só você, pobre você, desventurado, não consegue o paraíso aqui na Terra. Em que mundo você anda? Eu não vejo esse paraíso para ninguém. A felicidade é no céu. Essa Terra, esse mundo em que vivemos é um tira-gosto. Sim, tira-gosto é coisa boa, Deus fez esse mundo para a gente vivê-lo, e vivê-lo com alegria, mas essa é somente uma vida, que no Evangelho de São João Jesus chama de 'bios', é a vida biológica. Mas o que Ele nos promete é uma outra vida, é a vida com 'v' maiúsculo, 'zoe', uma outra palavra em grego, para dizer, a vida verdadeira vem lá. Aqui é o tira-gosto, o banquete é lá no céu. Se nós nos aproximamos de uma mesa de tira-gosto com uma pretensão de banquete, sabe qual é o resultado final? Frustração. Sim, porque tira-gosto é coisa gostosa na boca, mas pesada no estômago. Você está querendo encher o seu estômago com um tira-gosto muito pesado. Você precisa, ao contrário, entender que essa vida não vai preencher o seu estômago, ou seja, o seu coração. Não vai te dar essa felicidade toda que você quer. A vida é boa, bela, bonita, vale à pena ser vivida, mas ela é marcada pela cruz. Jesus não prometeu paraíso para ninguém aqui na Terra, o que ele disse foi 'Renuncie a si mesmo, tome a sua cruz e me siga'. Você vai encontrar uma palavra concreta e real da Igreja, que diz a você que através do carregar a cruz no dia a dia, e de amizades desinteressadas, você pode sim alcançar aquilo que todo cristão quer, a santificação. Lute, é possível. Se você cair, levante-se, levante-se, pare de ouvir o canto da sereia, pare de ouvir uma palavra mentirosa e a substitua pelo ouvir a palavra de Deus, mas é necessário que seja uma palavra de Deus com os pés cravados no chão. Ou seja, não caia também nesses outros tantos cantos de sereia de igrejas que prometem o paraíso aqui na Terra, 'pare de sofrer', 'Deus vai resolver todos os seus problemas', 'você vai fazer o paraíso aqui', isso não existe, não há paraíso aqui, não há terra sem males nesse mundo, o que existe nesse mundo é a graça de Deus que nos ajuda a ter força moral no dia a dia para combater o Mal dentro e fora de nós até o último dia. Então, eu concluo contando para você a história de um monge muito sábio. Um dia, perguntaram para esse monge 'Escuta, o que vocês fazem lá no mosteiro?'. O monge então coçou a barba e disse assim 'Lá dentro? Lá, a gente cai, levanta, cai, levanta, cai, levanta, até o dia em que Nosso Senhor voltar. E quando Ele voltar, Ele vai ver que nós caímos e estamos acabando de levantar. E vai nos levantar definitivamente'. Eu tenho certeza que se você perseverar, as quedas diminuirão. Seja paciente consigo mesmo, mas é necessária uma vida de ascese, de carregar a cruz do dia a dia. Se você rejeitar a cruz, você vai cair no canto da sereia, mas se você abraçar a cruz e enxergar que a cruz é de todos, que você não é um pobre coitado, a única criatura na Terra que Deus se vingou e jogou a cruz nas suas costas, nada disso, você não vai cair. A cruz é um mistério, e Deus veio carregar a cruz conosco. Nós não estamos sozinhos, você não está sozinho, Jesus carrega a cruz com você. E se com Ele morremos, com Ele viveremos no céu. Tem um lugar para você no céu. Persevere, meu filho, continue. Deus te abençoe".
Depois que assisti à bela mensagem, entendi a natureza do que existe de invisível naquela caixa de "Jogo da Vida", e por que a sua presença jamais permitirá que se perca a emoção do momento. Ao escrever sobre o arco do protagonista deste filme, o Roman, enxerguei melhor a forma como os pontos se conectam e até mesmo me remetem de volta a minha própria vida, ou ou o fariam a qualquer outra pessoa. Ali, sobre a caixa, sobre a simplicidade de desenhos representantes de belas vinhetas para possibilidades da vida, pesa a sombra daquilo que a todos é comum, a cruz que cada um carrega sobre os ombros. Pe. Paulo Ricardo frisa "a vida é boa, bela, vale à pena ser vivida", conforme as ilustrações de "O Jogo da Vida" nos fazem lembrar, todavia é sob a força daquilo que não precisa ser impresso que o tempo, o senhor da razão, chega para complementar o que ao Padre já é familiar, "... mas é marcada pela cruz". No filme objeto da análise, temos a tragédia clássica de dois homens desesperados, Roman & Bonaos, impotentes em enxergar a natureza das diferentes cruzes sobre seus ombros, Roman tendo perdido a família, Bonaos a paz de espírito pelo sentimento de culpa, ambos recorrendo a extremos em busca de uma felicidade, uma satisfação que, neste contexto, jamais virá nesta vida, e só os afundará mais irremediavelmente no abismo. E mesmo que naquela noite o sinistro não tivesse ocorrido, Roman tivesse abraçado mulher e filha, e Bonaos seguido a vida perfeita, por mais que os anos vindouros lhes tivessem reservado momentos cheios de alegria - como as ilustrações na caixa de um jogo - qualquer felicidade, neste plano, sempre variará muito a depender das circunstâncias. A única conduta que lhes teria salvo seria a fé necessária para carregar a cruz, porque a consciência da transitoriedade dessa existência torna as ilustrações na caixa do "Jogo da Vida" ainda mais relativas. Para a minha vida pessoal, ao assistir a este filme e depois à fala de Pe. Paulo Ricardo, vim a compreender porque o transtorno da personalidade narcisista, esta "fera", este "monstro", tão recorrente desde a infância no meu caminho, jamais foi embora totalmente, e ainda hoje, tendo tomado morada em pessoas novas, ocasionalmente, estica o pescoço para me checar. Trata-se de um teste, uma cruz a ser carregada com dignidade e alegria, algo que jamais será explicado, pelo simples fato de que a cruz é justamente isso: um mistério. É pelo realismo da cruz, entretanto, que resistimos à poderosa ilusão criada pela mentira, e ao pontuarmos que, afinal de contas, nada é mais próprio ao narcisismo do que a criação de fantasias, constataremos que a arma que te fere, a cruz, acaba sendo a mesma que te salva. Recordo-me frequentemente de minha avó, e em meu coração firmei a convicção de que foi obra de seu amor o fato de eu ter regressado à igreja, e encontrado nome e explicação para um mal que tomou minha vida de assalto, quando pequeno, e vem perdurando até hoje. Ela sabia que haveria o tempo certo para que as peças se encaixassem em um conjunto claro e coeso. Eu sei que ela devia pressentir a natureza das pessoas completamente loucas e extremamente perigosas na minha vida, mas só lhe cabia orar, primeiro, para que não me fizessem mal, afinal narcisistas são instáveis, explosivos, imprevisíveis e de uma ferocidade demoníaca, e, segundo, que eu chegasse a uma resposta por mim mesmo, porque há constatações que ninguém mais pode fazer pela gente, a não ser nós mesmos. Como diz a música, "As coisas fundamentais se aplicam, à medida que o tempo se vai". Muitos anos se passaram desde que eu fui apresentado a um tipo de cruz que assume muitas faces, de sorte que hoje não me assusto mais, porém, de lá para cá, dentre tantos rostos distintos, ainda me impressiono com a única constante: é o mesmo olhar.