Após muitos anos, Louise & Michael Straker, dois irmãos adultos que construíram vidas para si longe dos pais, retornam para a fazenda onde foram criados, no Texas, para apoiar a mãe idosa, cuidadora do pai, acamado por uma doença terminal. Desde os minutos iniciais, o filme estabelece um poderoso sentimento de abandono e melancolia através de tomadas que exibem em ângulos muito abertos a vastidão do cenário natural onde se insere a propriedade, marcada por uma enorme torre de cata-vento. Somos apresentados a momentos nos quais vemos a mulher idosa focada nos desgastantes afazeres envolvidos em se cuidar de tamanho lugar. A esta sensação desoladora, soma-se um aterrorizante elemento, exógeno ao cenário: há um demônio assediando a propriedade. Sua presença se revela em detalhes que, aos irmãos, custarão a ser percebidos; entretanto, para os olhos bem abertos da mãe, o fato é dado como certo. As ovelhas parecem sentir a presença angélica, e a idosa sabe que só pode se tratar de uma visita invisível quando as garrafas de vidro, penduradas como sinos, principiam uma cacofonia sem que vento algum as tenha animado. Ao preparar solitariamente os legumes na cozinha, pressente a coisa às suas costas, mas, quando se vira, não encontra monstro algum. A cadeira, porém, foi virada na sua direção, indicando a ação de alguma força misteriosa sobre os móveis da casa, uma força desejosa de se comunicar.
Charlie (Tom Nowicki), um simpático e prestativo amigo da família, mora num trailer do sítio vizinho, e tem cuidado da idosa durante a ausência dos irmãos. Profundo conhecedor da região, ele pressente a sombra a pairar sobre a propriedade, mas não sabe explicar a natureza de sua má impressão, tampouco conversa a respeito. O rapaz e a moça se dão bem com o bem-humorado velho, cujo braço forte sempre se encontra à disposição dos Straker, especialmente para trabalhos de manutenção que precisam da força de um homem habituado à roça. À mesa de jantar, a idosa se mostra contrariada com a presença dos filhos. Quando o pai adoecera, pedira-lhes para não vir, possivelmente por não querer envolvê-los num embate que nem mesmo ela compreende. Ateus, Louise e Michael terão seus mundos sólidos e racionais estilhaçados após uma série de fenômenos sobrenaturais que acontecerão ao longo de uma semana de assédio e inferno. Para Louise, o demônio não se apresenta com estardalhaço. Pelo contrário, a porta para o alpendre, gentilmente aberta no meio da noite, indica-lhe, de uma maneira incipiente e sutil, a visita de uma força incorpórea, mas por ora é só. Evidentemente, Louise se arrepia ao pôr a vista no vão, mas ao fechá-lo para voltar ao quarto, já tirou da mente seus medos. O trem começa a descarrilar na noite seguinte. Concentrada no corte dos legumes, de um segundo ao outro, a idosa não reluta em passar a afiada faca sobre os dedos, fatiando-os em pedacinhos como se fossem pedaços de cenoura. A mutilação ocorre como se uma tentadora, pérfida sugestão tivesse sido suspirada ao pé do ouvido, e ela tivesse de se estraçalhar para satisfazer o ímpeto. Os irmãos só vão descobrir o fato no dia seguinte, ao encontrarem muito sangue e pedaços de dedos na pia. Sem nenhum sinal da mãe, eles correm desesperados pelo terreno, gritando por ela. No cercado das ovelhas, encontram-na pendurada pelo pescoço. Ela cometeu suicídio por enforcamento.
No meio da semana, o assédio demoníaco assume um tom agressivo perante os irmãos. Eles são apresentados a uma senhorita, a enfermeira do pai acamado. Com os irmãos em estado de choque, a enfermeira procura inteirá-los de observações que haviam chamado sua atenção nas semanas anteriores ao suicídio. Ela frisa ter flagrado a mãe no que parecia ser uma conversa com uma presença invisível, no quarto do marido doente. Quando Michael acidentalmente encontra o diário da idosa, ele o lê, e, passa a desvendar a natureza do medo da mãe. Na maioria dos registros até o dia do suicídio, constavam anotações sobre como ela dava pela proximidade de um demônio faminto pela alma do marido, atuante na fazenda, à espera de sua morte. A idosa afirmava escutar a voz e as gargalhadas do demônio dentro de sua mente. O homem doente jamais interage com os filhos. Ele se encontra invalidado pelo que parece ser uma condição de coma profundo. Mesmo assim, uma manhã, ao terminar o banho e puxar a cortina para deixar o box, Louise encontra o pai, ou melhor, uma visão do mesmo, atrás das cortinas, com os olhos brancos e a cabeça convulsionando para os lados como se fosse um desenho animado. A cena a lança no histerismo. Ela se encolhe, gritando num canto, e Michael chega apavorado. Louise não consegue explicar o ocorrido. Durante o dia, ao vagar pela oficina onde a mãe guardava os vestidos que desenhava e costurava, encontra um lindo vestido de noiva com seu nome escrito numa etiqueta, e fica comovida. Os irmãos visitam o necrotério para a liberação do corpo para sepultamento. O médico-legista lhes entrega um item encontrado num dos bolsos, um crucifixo, sendo que, até onde sabiam, a mãe não frequentava igreja. À noite, o demônio reaparece como visagens, sendo Michael o escolhido para receber a violência. Ele desperta com a luz do quarto, que "teima" em acender, por mais que repetidamente a desligue. Tendo perdido o sono, desce para a cozinha, quando o primeiro, indubitável fenômeno sobrenatural se somatiza diante de seus olhos apavorados: do lado de fora, enxerga a mãe morta, metida na camisola com a qual a vira deitada no necrotério. Sorridente, ela ascende ao céu de braços abertos (a cena, aliás, ilustra um dos pôsteres do filme). O rapaz dá alguns passos para trás, atônito, e ao olhar novamente para a mesma direção, não enxerga a aparição.
Na manhã de sexta-feira, ao se olhar no espelho ao despertar, é a irmã quem tem uma horrível surpresa. Ela se depara com o reflexo de seu rosto ensanguentado (uma ilusão, pois a face, nós vemos, apresenta-se normal, livre de hematomas ou cortes). Ela sofre outra inesperada, enervante visão, envolvendo o pai comatoso, quando vê uma aranha desatar a correr pelo lençol após deixar seus lábios. Na entrada da fazenda, Michael, que está chegando à propriedade na sua camioneta, enxerga um homem de preto, parado tranquilamente sob a suave garoa de fim de tarde, esperando um convite para entrar. O estranho se apresenta como padre da paróquia local, e exibe um crucifixo idêntico ao encontrado no bolso da mãe na ocasião do suicídio. Michael e Louise recebem-no à mesa, na cozinha. O rapaz não consegue mascarar o ressentimento, afinal, tendo lido as anotações, firmou dentro de si a convicção de que fora o homem quem colocara ideias de "demônios" na cabeça da mãe. Embora mais comedida e respeitosa para com o visitante, Louise tampouco crê que a noção tenha brotado espontaneamente da idosa, pois a tinha como uma pessoa pragmática e desprovida de crença religiosa. Paira sobre a mesa a acusação velada de que as mãos do padre estariam "sujas de sangue", pois teriam vindo de sua pessoa as conversas sobre demônios, o que envenenara a mente da senhora. Antes de partir, o padre misterioso lhes fornece um número de telefone, e explica que tomar demônios como elementos de fábula não os ajudará. Seria como se aventurar numa floresta, arriscando-se a encontrar lobos vorazes. Por mais que você não acredite nos lobos, eles não deixarão de devorá-lo apenas porque não reconhece sua presença. Dominado pela fadiga emocional, Michael, homem casado e pai de duas filhas a quem ama fervorosamente, liga para casa e desabafa com a esposa. Paralelamente, no estábulo, junto às ovelhas, Louise lê trechos horripilantes do diário. Eles se encontram do lado de fora, sob um toldo, na noite chuvosa, para recapitularem os últimos eventos e trocarem impressões. Michael fala sobre a visão do outro dia - a mãe de camisola, voando sorridente do lado de fora - e afirma estar morrendo de medo. Naquela noite, a presença maligna retoma a dianteira do assédio. Às três horas da madrugada, despertam com uma visita no alpendre. Ao darem uma espiada, tomam um susto ao verem o padre, que os chama para conversarem ali fora. Michael sai furioso, mas antes de ter a oportunidade de esbravejar, é detido pelo horror ao se dar conta dos olhos brancos e inumanos do visitante. Ele pergunta, em dom de deboche, com um sorriso cínico, se alguém ali precisa de corda para se enforcar, e desaparece. Fica claro aos dois que estiveram diante de uma manifestação demoníaca. O telefone da cozinha chama ininterruptamente, todavia, tão assustados ficaram após a aparição, resolvem tirá-lo de serviço.
Quem tentou desesperadamente contatá-los foi o vizinho, Charlie. Em seu trailer, ele transparece inquietação e pavor, sentado na beira da cama, murmurando súplicas para que atendam ao telefone, pois sabe o que se encontra em jogo. Do lado de fora, o inquietante uivo de lobos prenuncia a proximidade do mal. Repentinamente, o rumor de passos sobre as tábuas soltas da soleira denuncia a entrada de uma pessoa. Ele municia a espingarda e, vacilante, vai investigar. O que se segue é uma das cenas mais visualmente impactantes. Ele se depara com uma versão ligeiramente alterada e bizarra de Louise. Você vê que se trata de uma paródia pois a "Louise de mentira" se conduz com movimentos estranhos e alquebrados, sem continuidade no fluxo dos movimentos, como uma imagem gerada por um projetor antigo que falha aqui e acolá. De seus lábios não sai um único som discernível, por mais que fique a sussurrar acusações estranhas contra o velho. Ele sabe que se encontra perante o demônio, que após ter atacado os irmãos na fazenda na fantasia de um padre, veio amolá-lo como uma paródia de Louise. A visitante exibe uma faca e começa a se desfigurar perante o desesperado Charlie. "Você fez isso", ela o acusa, e estraçalha a própria garganta, encenando suicídio, semeando na intenção do homem o desejo de fazer o mesmo consigo. Finalmente, ele não resiste ao assédio, coloca o cano na boca e aperta o gatilho, explodindo o tampão do crânio.
Na manhã seguinte, os irmãos tentam contatá-lo, sem suspeitarem de que o vizinho se suicidou na madrugada anterior. Eles concordam em trazer um médico para casa. A ideia gira em torno de obter autorização para tirar o pai da propriedade e levá-lo a um centro hospitalar na cidade, longe dos acontecimentos inexplicáveis que estão deixando a vida na zona rural insuportável. Simultaneamente, Louise liga para o número fornecido pelo padre. De fato, quem atende é um senhor com a mesma voz do sacerdote misterioso, mas ele afirma não conhecer a família. Quanto à afirmação de Louise de que estivera na propriedade na tarde anterior, responde incrédulo que nunca viajou para o estado do Texas em toda sua existência. O número de telefone pertence a sua pessoa, correto, mas ele se encontra em Chicago. O padre acrescenta que o fato de ela se chamar Louise soa como brincadeira de mau gosto, pois a filha, que se suicidou anos atrás, recebera de batismo o mesmo nome. Louise não tem mais como fugir da verdade. O inimigo é mesmo uma entidade espiritual, livre de limitações de espaço & tempo, empenhada em levá-los à loucura. Durante a visita do médico, novas más notícias. O estado precário de saúde do idoso rechaça qualquer possibilidade de transporte ao hospital. Se apanharem a rodovia, mesmo numa ambulância, ele morrerá no caminho; logo, médico algum lhes dará aval para a tão desejada remoção.
Com o cair da noite, eles são afligidos pela violência do demônio. Em um terreno mais acima da propriedade, próximo à fonte d'água do córrego, quase todas as ovelhas foram mutiladas e mortas com crueldade. É o irmão quem primeiramente nota o ocorrido, pois se surpreende ao avistar uma ovelhinha regressando à fazenda, saltitando sem uma das patas. Ao averiguar, depara-se com o massacre do rebanho. Michael é psicologicamente forte para se concentrar no que pode fazer de concreto para remediar a situação, e consegue salvar alguns filhotes com suas mães. Naquela noite, no estábulo, dando mamadeira a uma ovelhinha, Michael é visitado pelo demônio na forma do cadáver nu e errante da mãe. O espírito tenta desesperá-lo, incitá-lo ao suicídio. O impressionante nível de stress o põe a beira do precipício; por um segundo, ele encosta a lâmina da faca sobre o pulso, como se estivesse cogitando acabar de vez com o impasse; no entanto, Michael resiste e não leva adiante a sugestão. Louise sofre pesadelos apavorantes e desperta aos gritos, ao lado do pai. No pesadelo, enxergou-o no teto, desperto do coma, com a mão estendida, pedindo ajuda. A cena mais memorável vem a seguir. Não se trata da mais visualmente brutal, mérito que cabe ao momento no qual Charlie é visitado por "Louise demônio", mas certamente é a parte mais desesperadora e ressoante, sobre o qual tecerei comentários durante a análise do mérito filosófico da obra. Na cena, vemos Louise atender a batidas na porta, e não há nada a sugerir a presença de um elemento incomum, afinal faz sol, a manhã se encontra em pleno curso, o ambiente se apresenta bem iluminado e arejado. Uma moça de expressão compungida e solidária se apresenta como neta de Charlie e pergunta se ela se recorda de sua pessoa. Da última vez que a vira, era uma criança. A garota lhe conta sobre a morte do avô, mas Louise, atônita, custa a crer. Ela sacode nervosamente a cabeça e, com os olhos marejados, fala que o viu no outro dia. Não é possível que tenha morrido! Confortando-a, com uma expressão pesarosa, a menina explica que Charlie foi encontrado morto dentro do trailer. Louise vai entrando em casa, inconformada, e a convida a juntar-se a ela. A moça para na soleira e esboça uma pergunta compassiva, quando, aos poucos, um sorriso cheio de malícia se desenha na sua face e ela indaga: "Louise, diga-me... Você já consegue sentir o cheiro vindo do seu pai? Eu consigo. Ele está apodrecendo". Ocorre a Louise que ela está sendo visitada pelo espírito, e vai em disparada ao quarto do pai intentando protegê-lo, mas o susto a põe para desmaiar. Ao acordar, chama pelo irmão, mas ele não se encontra à vista. Ao tentar contatá-lo pelo celular, perde as esperanças quando Michael revela se encontrar na estrada, a caminho de casa, da mulher e filhas. Ela chora, inconsolável, perguntando-lhe como fora capaz de partir sem se despedir, principalmente agora, quando a família se resume aos dois. Michael discorda, apontando que a esposa e as filhas, estas sim, são sua família. A enfermeira chega para trabalhar e, sentada ao lado do idoso, escuta à dramática briga. Subitamente, ela passa a impressão de ter entrado em um transe súbito, como se escutasse a um comando. Ainda perturbada, sentada com o telefone em mãos, no chão, Louise escuta um grito de terror vindo do quarto. A enfermeira enfiou uma enorme agulha de costura na maçã do rosto e esbraveja coisas incompreensíveis. Sob a influência demoníaca, a enfermeira investe sobre Louise e, com a força do impacto, desacorda-a com o peso de seu corpo. Fora de si, a enfermeira se rende à influência do espírito, e se mata ao enfiar as agulhas de costura nos dois globos oculares, empurrando-as até cravá-las no cérebro.
Michael chega à sua casa após uma noite de viagem na estrada. Ele está louco para ver as mulheres de sua vida, especialmente após tanta dor; entretanto, o destino lhe reservou um cruel revés. Sobre a mesa da cozinha, as filhas têm os rostos enfiados em tigelas de cereais. Elas foram degoladas e o sangue jorra de suas gargantas estraçalhadas, acumulando poças nas pontas dos pés. No chão, a esposa, suposta autora do duplo homicídio, jaz morta, com os olhos vidrados e uma faca na mão. Michael conseguira afugentar as sugestões diabólicas na fazenda, porém aquilo é demasiado trágico para se resistir ao impulso de dar cabo da vida. Ele passa a lâmina na jugular e abre uma hemorragia irreversível. Enquanto espera a morte, dá conta de que o que vira fora uma alucinação, uma fantasia semeada na parte criativa de sua mente pelo demônio. Na verdade, ao dar o último suspiro, testemunha esposa e filhas entrando alegremente pela porta. Ele jogou a vida fora graças a uma ilusão satânica e passageira, e não há como reparar o grave erro. Longe dali, ao cair da noite, Louise desperta. Por um momento, cogita fugir, mas, no derradeiro momento, resolve permanecer ao lado do pai agonizante. Ela fica com o idoso até o instante da morte, que se dá quando a vela votiva em honra a Maria Santíssima se vai com um sopro, e, uma vez que nada mais lhe resta, uma presença surge para abraçá-la por trás, levando-a consigo.
Desde que fez um nome para si com "Os Estranhos", de 2007, o diretor Bryan Bertino vem trabalhando consistentemente no gênero que o consagrou. Os resultados têm variado, destino muito comum a cineastas que começaram suas carreiras com filmes excepcionais, porém, mais tarde, encontraram dificuldades para evocar o brilhantismo do primogênito. Dentre os filmes realizados por Bryan Bertino após a elogiada estreia, "The Dark and the Wicked" é seu melhor momento, possivelmente superior a "Os Estranhos". Aqui, como cineasta maduro, pôde realizar uma obra tétrica em elegância e discrição, quase sem violência, exibindo habilidades ainda não tão dominadas quando rodou a primeira obra há 13 anos. O filme que o consagrou trazia um trio de mascarados misteriosos - um homem e duas mulheres - aterrorizando um casal que passava a noite numa casa de campo afastada, após uma frustrada tentativa, por parte do rapaz, de propor casamento à namorada. Do clássico cenário de inocentes assediados por monstros, vieram grandes sucessos, influentes até hoje, sendo, talvez, "Halloween: A Noite do Terror" o "vovô" do gênero e seu mais longevo representante. O diretor Bertino reciclou elementos do nicho de stalkers e, ao lhes dar nova roupagem, montou um empolgante suspense, produto de regras que não tinham sido inventadas pela sua pessoa, mas detinham um inédito uso dos ditames clássicos, revisitados sob um olhar atmosférico e estilístico que me lembrava Brian De Palma. De fato, embora "Os Estranhos" possa ser dividido em "antes & depois" (na primeira parte, vemos o jovem casal chegar à casa de campo e se aclimatar ao silente cenário até que coisinhas bizarras e insólitas passam a sugerir, ainda muito prematuramente, a existência de uma ameaça exterior; na segunda, vemos o assédio se transformar em ataque declarado), é no "antes" no qual o cineasta verdadeiramente decola. Do jeito que conta essas pequenas passagens menos extravagantes, parece apreciar a calma anterior à tempestade, razão pela qual, não obstante o desenvolvimento previsível, "Os Estranhos" nos cativa nas cenas onde pouco ocorre, como quando uma conversa emocional entre namorados, à meia luz, na cozinha, durante a madrugada, é interrompida por discretas batidas na porta e se assoma a silhueta de uma moça loira e bonita de penetrante olhar, perguntando-lhes se "Tamara se encontra". Quando a ameaça velada vira assalto explícito, o filme perde um pouco o momentum, porém o tropeço não se deve propriamente a qualquer falta de Bertino. Toda estória restringida a certo espaço & tempo sofre da síndrome do cansaço. A não ser que os eventos se desdobrem muito eficientemente, o filme acaba esfriando. Filmes sobre assédio, sobre assalto, sobre pessoas ordinárias submetidas a fenomenal stress fazem excelente uso de dois, três dias como janela narrativa, como é o caso do melhor deles, a obra-prima de John Boorman, "Deliverance", de 1972. Num espaço de três dias para o decorrer dos eventos, a transformação nas almas dos personagens ganha a nitidez a partir da qual a quietude das melhores cenas, sobre a qual escrevo, faz inteiro sentido. "The Dark and the Wicked" foi o primeiro filme no qual o diretor Bertino manteve magistral controle sobre trama e personagens ao longo da estória inteira. Ao passo que seus três excelentes trabalhos anteriores exibem uma ou outra fraqueza, "The Dark and the Wicked" poderia rivalizar-se com "O Iluminado" em termos de esmagadora opressão psicológica e a imponderável aproximação da tragédia diante da qual não se há nada a fazer. A abordagem contemplativa e madura de temas sobrenaturais o aproxima do melhor de todos os horrores psicológicos, um filme independente de 2002 chamado "Session 9", do diretor Brad Anderson. Antes de se assistir a "The Dark and the Wicked", é fundamental examinar as expectativas que você leva consigo para o cinema. Quem aprecia o desfecho ensolarado de obras mais comerciais dará de cara com o desapontamento, pois, aqui, enquanto pouco se vê de ação, transborda um pessimista, niilista clima próprio a uma visão mais entumecida da vida, muito observado nas recentes obras europeias de horror vindas na esteira da filosofia da "New French Extremity". Deste modo, o lançamento do diretor Bertino parece mais afeito a apreciadores de um terror mais intelectual e profundo, ponto de partida para interessantes discussões filosóficas.
Este filme tem como seu monstro um misterioso vilão, liberto das limitações de espaço e tempo, plenamente atuante na pior das searas, a da mente humana. "The Dark and the Wicked" explora, com uma assertividade quase tão certeira quanto a de Hubert Selby Jr. em seu livro "The Demon", a ação de um demônio sobre um núcleo familiar, sem nos oferecer qualquer explicação para tanto. O demônio simplesmente se faz ativo no lar que atravessa o pesado fardo de ter seu patriarca acamado, e age com o fito de induzir as vítimas à prática do suicídio. Sua ação confere com o ataque do outro espírito ruim do livro de Selby Jr., altamente recomendável pela perfeita descrição de um processo de obsessão, neste caso sobre um homem que teria tudo para se sair bem, não fossem os fetiches que o vão aproximando de situações cada vez mais arriscadas, fetiches sem motivos reportáveis à libido, inteiramente plantados por um demônio que calha de cismar com sua miséria. No caso de "The Dark and the Wicked", a ação diabólica jamais assume a agressividade de um assalto frontal incessante; ou seja, este filme exibe um vigor dramático que dispensa a ação ininterrupta vista em "Os Estranhos", já que a "tática" do inimigo decorre da sutileza com a qual deprecia suas vítimas, impulsionando-as a praticarem por si mesmas o trabalho sujo, qual seja, o ato de dar cabo da própria existência. Antes mesmo de enxergarmos as sugestões mais explícitas da ação demoníaca, o diretor potencializa o sentimento de opressão pela habilidade de, nos elementos mais hodiernos e banais, encontrar o que, nestas coisas, há de bizarro e enervante. Em "Os Estranhos", por exemplo, Bertino sabe o quanto o som de uma campainha acionada na madrugada gera inquietação. Eu me recordo de algo dito por Padre Paulo Ricardo, ao discorrer sobre como, na juventude, nossos sonos são tão restauradores: um adolescente de 14 anos vai à cama tarde da noite e é capaz de despertar ao meio-dia, descansado, revigorado e sorridente. À medida que se passam, entretanto, os anos introduzem no subconsciente a constatação da mortalidade. De uma forma ou outra, as noites que antes eram tão reanimadoras tornam-se mais abreviadas. Qualquer ruído à noite é capaz de nos deixar sobressaltados a ponto de perdermos o sossego. A um nível subliminar, uma parte sua reconhece que o tempo está se esgotando. Ao me recordar de "Os Estranhos", a sutileza que me vem imediatamente à mente é a cena do primeiro encontro do casal com a moça loira, uma das assassinas do trio de mascarados. Não há ação, não há muito diálogo; contudo, aquilo que permanece subentendido pelo processo cognitivo basta para impingir um insuportável clima de antecipação da violência por vir. "The Dark and the Wicked" é um filme erigido inteiramente sobre elementos discretos e arrepiantes, sustentando, durante a estória, o interesse pela tragédia.
Conforme escrevi, Bryan Bertino sabe que aspectos aparentemente ordinários do dia a dia são capazes de infligir inquietação e incômodo a depender de quão demoradamente sejam observados na escuridão e, antes que se sedimente a convicção da presença demoníaca, instila terror a partir dos elementos mais banais ao redor da matriarca. Acontece no começo, ao fechar a oficina de costura. Algo na substância de manequins lhes confere a tétrica capacidade de, mesmo em sua indiferença sem vida, parecerem estranhos vasos para espíritos ou coisas ruins invisíveis aos olhos, especialmente quando tocados pelas sombras. Do tilintar das garrafas ao sabor do vento, ou melhor, da presença demoníaca, Bertino também soube tirar proveito, havendo similaridades entre as garrafinhas e a cena da campainha de "Os Estranhos". O diretor goza de um convincente senso de espaço e filma, em grande escala, a desolação de uma enorme propriedade rural no meio do nada, para onde não existe a onde fugir. Partindo do exterior para o interior, suas câmeras capturam com familiaridade o mal à espreita na escuridão de corredores ou por trás de cortinas. Em dado momento, o filme levanta o ponto de por que os irmãos não se retiraram já no início do assédio. Bertino foi inteligente ao estabelecer, através da visita do médico, a impossibilidade da manobra, afinal, ao cingir o destino do idoso acamado à propriedade, colocou seus filhos contra a parede e determinou que, a partir daquele ponto, o dilema deixasse de girar em torno de uma discussão em torno da lógica, e se tornasse um teste de fé para gente que jamais dera crédito ao mundo espiritual, mas agora se via em guerra declarada contra um demônio. Deste modo, além de executar perfeitamente o filme em termos de técnica e acuidade visual, o diretor, também autor do argumento, soube para onde desejava ir com a estória, e cumpriu magistralmente o itinerário. "The Dark and the Wicked" acompanha o processo de ruína da couraça racional até restar a fé - ou mesmo sua ausência.
À medida que a estória se desdobra, o tom vai deixando a agressividade das visões aterrorizantes em favor de uma charmosa, decadente melancolia, como nas conversas entre irmãos sentados no alpendre ao sabor da luz do candeeiro, ambos tentando fazer sentido dos estranhos fenômenos. Também se destaca a serena tristeza da cena na qual, tendo visitado a oficina de costura da mãe após o suicídio da mesma, Louise encontra um caprichoso vestido de casamento feito para sua pessoa, e lágrimas de arrependimento rolam pelas maçãs do rosto. Com olhos tão grandes e expressivos quanto os da atriz Natascha McElhone, Marin Ireland não precisa de muitos artifícios para exprimir dor. A serenidade do remorso comunica muito bem a tristeza de uma personagem que deixou os antigos, melhores sonhos escoarem pelo ralo, e cujas pontas dos dedos, muito embora devessem sentir a maciez da seda do vestido, experimentam-no tão áspero e hostil quanto as consequências das escolhas feitas no passado. À época, na juventude, parece crível que votos de casamento lhe tenham soado como coisa de gente ultrapassada e ingênua, principalmente para uma menina, quando a vida se resume ao que ainda de sensacional e eletrizante se encontra por vir; no entanto, ao encontrarmo-la na oficina, as circunstâncias são outras, e Louise se dá conta de que o mundo, de uma forma muito cruel, pregou-lhe uma peça, tendo a encorajado a se assoberbar apenas para enganá-la mais adiante da estrada ao continuar a girar sem esperar pelo seu despertar. Agora solitária e perdida, amigos se foram e até mesmo o irmão subiu no carro na calada da noite para voltar para esposa & filhas. Ela está desnorteada, mais desamparada do que jamais pensara ficar. O encontro do vestido de noiva que a mãe tão docemente preparara para a única filha escancara aos olhos de Louise a dura realidade: era a idosa quem enxergara mais claramente a natureza da vida, lá atrás, e não as fantasias criadas na sua mente pelos impulsos pueris encorajados por um mundo que gira e ri de ti depois que você comprou suas próprias desculpas mentirosas.
No papel da enfermeira, a atriz Lynn Andrews soube que teria uma grande oportunidade ao interpretar uma memorável cena. Refiro-me ao diálogo da enfermeira com Michael, quando as coisas, tendo fugido ao controle de suas capacidades físicas, chegam ao ponto de eles reconhecerem uma conotação espiritual na dramática situação. Na conversa, pela primeira vez, ela se abre com o rapaz, e confessa que também se encontra no seu ponto mais vulnerável. Ela lhe fala sobre os fatos da vida com uma assertividade que permanecerá com Michael, dizendo-lhe o seguinte: "Michael, eu consigo ver o medo em vocês. Eu posso senti-lo nesta casa. Eu sei que não acreditam em Deus, e está tudo bem... mas eu acredito. E eu creio que há coisas neste mundo, coisas horríveis, maliciosas... e elas vêm para pegar seja lá quem for com quem cismaram. Mas também há amor no mundo. E uma alma necessita de amor para se manter a salvo". Michael Abbottt Jr. dá um ótimo desempenho como o cético rapaz, e a cena na qual desabafa com a enfermeira abre uma discreta brecha pela qual acata a aproximação do mundo invisível, bem mais definitivo que o material. Só após a conversa com a enfermeira é que reúne coragem para revelar à irmã a visão da mãe morta. Ireland, como disse, carrega o filme nas costas e esbanja competência, interpretando o papel sob um prisma concentrado, introvertido, sofrido e engrandecedor. Por mais que hesite diante dos obstáculos, Louise age com coragem e altruísmo, e a experiência reacende no seu ser os votos de fidelidade para com o que há de mais sagrado, a família.
A mais memorável performance vem numa brevíssima cena desempenhada por Ella Ballentine (foto), uma atriz com quem o cineasta Bryan Bertino trabalhara em "Um Monstro no Caminho", e que aqui faz uma participação especial de bastante impacto. Dentre tantas performances valorosas, destaco a aparição da garota pelo significado da personagem e o sóbrio jeito com o qual o cineasta representa fisicamente o satânico. Ella Ballentine desempenha o papel da neta de Charlie, a solícita adolescente parada diante do alpendre, que se apresenta para contar à Louise a morte do avô. Sabemos, evidentemente, que a "menina" não é a neta do vizinho, e sim uma aparição demoníaca, assomando-se para incrementar a pressão psicológica sobre as vítimas. O discretíssimo embate foi um pequeno momento que se destacou. Semanas depois da exibição, era essa a cena que minha mente revisitava. A quietude a teria deixado passar despercebida, uma cena como outra qualquer, não fosse pelo fato de sabermos o que de fato acontece no alpendre. Em um piscar de olhos, você testemunha a face do demônio na transformação de expressões, que vai da ligeira apreensão da suposta neta "preocupada" com o bem de Louise até ao esboço do sorriso de canto, quando, aos poucos, indaga se Louise "já consegue sentir o cheiro do pai", que apodrece. Este momento acontece depois de outro similar, neste caso na forma do padre. A visita do espírito apresentando-se como a menina dá um baile na do padre pois, diferente da do padre, Bertino não se serve de artifícios para pintar o demônio com afetação. Para o padre, por qualquer motivo, achou interessante dar aos olhos a cor branca como indicativo do sobrenatural, ao passo que, para a menina, confiou na capacidade da atriz em comunicar com o canto dos lábios a sua verdadeira natureza. Como produção cinematográfica, era de se esperar um filme capaz de entreter e assustar, elementos que você espera de uma boa estória de horror; entretanto, quiçá sem se ater ao que fazia, o cineasta imprimiu tanta veracidade à forma de retratar um anjo decaído que, guardadas as devidas proporções, tomo "The Dark and the Wicked" como uma das mais intrigantes expressões da natureza dos demônios e a sua maneira de introduzir desastre nas vidas das pessoas. Ao longo do tempo de projeção, o cineasta soube manter-se humilde e comedido nos momentos de criar os assaltos do anjo ruim, porém a fantástica cena consagra a atriz Ella Ballentine como a senhora da performance excepcional dentre seus colegas. Com pouquíssimo tempo, foi quem melhor emprestou uma representação física a um conceito tão filosófico e abstrato, necessitando, para isso, apenas do controle sobre as nuances entre o fingimento e a malícia irrepetente. Se você sair da cena com um mau gosto na boca, é porque uma parte de si reconhece a presença metafísica da maldade no sorriso, um gesto raptado como veículo para a manifestação diabólica perante os sentidos. Demanda sensibilidade para se começar a ver - não meramente enxergar, falo de verdadeiramente ver - os indicativos somente capturáveis por uma parte que trazemos conosco desde o momento no qual viemos ao mundo. Certos acontecimentos inesperados e pontualmente traumáticos podem estimular a propensão para se enxergar. Até mesmo o passar dos anos nos socorre, pois nele há o contexto para que o amontoado de coincidências aponte no sentido correto. O "demônio" não pode ser visto como uma representação única; na verdade, trata-se de uma colagem, uma colcha de retalhos costurada com pedaços de distintos e aparentemente aleatórios eventos da vida, da infância ao seu último dia. Não habita o inferno, e mora nas sutilezas quase imperceptíveis, mas indeclinavelmente reais, especialmente ao se unirem as peças do quebra-cabeça, visual & individualmente diversificadas. Cada existência detém suas circunstâncias, e leva tempo até que o caos visual adquira uma coesão auto evidente. Às vezes, pela simplicidade de um clique, o contexto adquire nitidez e nos perguntamos como não vimos antes. No meu caso, o "demônio" toma a aparência da colcha que, posta a uma distância adequada da vista, revela um cenário autoexplicativo montado pelas peças coladas por uma besta chamado "transtorno de personalidade narcisista". O clique que iluminou a tela foi uma foto - ou melhor, fotos e desenhos - de algo a que se costuma chamar, em inglês, de "The narcissistic smirk", um jeito muito especial que pessoas do tipo olham e se relacionam com a sua pessoa. O clique me fez estudar o fenômeno, desconhecido até pela maioria dos psicanalistas, e a partir daí minha compreensão veio muito rapidamente. A partir da infância, passando pela adolescência e acompanhando-me à vida adulta, "coincidentemente", pessoas detentoras da condição entram e saem do meu caminho; muito embora sejam indivíduos que jamais se conheceram, no frigir dos ovos, são a mesma coisa. Malícia demoníaca não acontece como nos filmes de mentira, e não se ater a isto significa não se dar conta da proximidade entre uma outra história que ocorre em paralelo a esta nossa história miserável em curso na "cidade dos homens", em oposição à história na "cidade de Deus", conforme escreve Santo Agostinho. E se você procurou saber como se parece o "narcissistic smirk" e lhe ocorreu que alguém já te sorriu assim, passe a aceitar o duro fato de que essa mesma pessoa esteve seguramente planejando sua morte todas as vezes em que se encontraram.
Bryan Bertino não achou necessário estabelecer um background para a família. Jamais saberemos se foi algo feito pelo homem enfermo no passado que convidou o demônio. Talvez a sugestão ofereça certo refrigério, pois, por este viés, eles estariam colhendo o produto da semeadura; entretanto, o pensamento cartesiano e racional de causa vs. consequência não se aplica a uma transformação tão radical na rota de vida das pessoas. Os demônios vêm para aqueles a quem devem vir, e não será a lógica a justificativa da eleição. Evidentemente, não se deve facilitar e brincar com uma situação tão volátil. O famigerado "jogo da tábua" é uma loucura. Essa coisa é colocada à venda como uma singela brincadeira; as pessoas acreditam que invocar demônios funciona como invocar "pokémon". O jogo não abre portas para o além, claro, pois isso não existe; a poderosa sugestão abre, isto sim, portas na sua própria mente, o domínio dessas coisas, onde elas tentam falar, onde tentam interagir contigo, estabelecer uma amizade interesseira, aconselhá-lo a matar e se matar. O perigo é potencializado quando a pessoa que mexe com a tábua traz consigo um histórico de vida pavoroso. Sobreviventes de abusos sexuais ocorridos no passado, na infância, são os preferidos de demônios, pois demônios, assim como narcisistas, estão sempre atrás de gente vulnerável, isolada ou sem pontes ou conexões relevantes com outras pessoas que as amem e estejam preocupadas com seu bem-estar. Narcisistas não tocam em pessoas com estruturas familiares sólidas. Um sobrevivente de abuso sexual que procura estabelecer amizade com seja lá o que for que exista para depois da superfície da tábua está, na verdade, deixando uma tigela com sangue na porta da frente de casa, acreditando tolamente que não haverá problemas, quando atrairá toda sorte de bichos perigosos e peçonhentos. Excetuando-se a possibilidade de se convidar o problema estupidamente para si, casos de obsessão não podem ser explicados. Somente a fé na providência daria resposta não somente a esta questão, como às demais, mas fé na providência tem seu custo e só vem no momento seguinte à hora certa, a qual chamo de o lugar mágico, o fundo do poço, para o qual todos deveriam se preparar, reservando um espaço no próprio coração para depositar suas agruras de modo a vivenciá-lo, o fundo do poço, com dignidade, convicto de que será a partir dali, tendo se perdido todos seus aliados e álibis para as próprias mentiras e desculpas, que se começará a encontrar resposta para as perguntas mais fundamentais do universo. É importante ressaltar que o sangue derramado durante o filme jamais é vertido pessoalmente pelo demônio. Não obstante sua impropriedade em "tocar" o mundo físico, faz de suas intenções uma força cogente através do poder da sugestão e do convencimento. O anjo mau não segura a faca para arrancar os dedos da mulher, mas soa muito convincente ao pé do ouvido, a ponto de, por um segundo, ao achar o absurdo uma ótima ideia, a idosa não hesitar em fatiar os dedos junto aos legumes na tábua de cortes. O demônio não manipula as agulhas de costura, porém a tristeza incutida no estado de espírito da enfermeira faz com que prefira enfiá-las nos olhos a encarar os fatos da vida que, também por um breve segundo e por força da ação diabólica, pareçam-lhe desesperadores e intransponíveis. As particularidades das pessoas determinam a ferida afetiva a ser atiçada. Para Michael, atormentado pela culpa de ter se distanciado porque intencionara construir um caminho para si, o demônio aparece como a mãe subindo ao céu. Para Louise, vem de muitas formas, a mais tocante delas o remorso que toma conta de sua psique ao encontrar o vestido de noiva. Pondo-nos no lugar dos membros da família, a situação nos parece o pior cenário possível; entretanto, por mais dolorosa que seja a jornada dos Straker, as aparições e fenômenos trazem o alívio de lhes conceder uma certa ideia de fisicalidade e antecipação. Os irmãos veem a aproximação do monstro, e encontram conforto na chance de se prepararem para o impacto. É na vida real e individual, todavia, onde a ação se dá em seu mais ardiloso modus operandi, albergada pelas aparências `as quais as pessoas delegam a bússola de suas vidas durante a existência material. O escritor Hubert Selby Jr. escreveu a estória definitiva sobre obsessão demoníaca, a mais realista descrição de semelhante drama. Para um livro chamado "The Demon", o "protagonista" permanece oculto por um tempo absurdo - não se fala em "demônio" antes de se ter passado dois terços da trama - até não se poder mais negar a presença de uma força externa ao rapaz, invisível ao mundo, empurrando o protagonista no sentido da autodestruição. O livro conta a estória de um homem chamado Harry White, um sujeito comum, bom filho, e promissor executivo que se encontra em plena escalada para uma carreira bem-sucedida e a construção de uma família ao lado de uma mulher honrada. De uma forma imprecisa, ou melhor, distantemente percebível (a coisa entrou na sua vida na primeira infância), esse camarada desenvolve o apetite por mulheres casadas, levando-as à cama e as deixando em seguida. Ele mente para si, e crê que, de um jeito estranho, ajudou-as, pois a culpa as tornaria esposas melhores para os companheiros. Aos poucos, o sexo fica mais extravagante e o desejo carnal deixa de ser seu elemento justificador; agora, o sexo parece brotar de uma necessidade de machucar e ser machucado. O fetiche faz transbordar a perversidade encenada entre quatro paredes na sua vida profissional & pessoal, de sorte que seus amigos começam a notar uma ou outra coisinha intrigante, e aquilo que aos outros parecia um exótico cacoete ou gosto de Harry se revela um abismo escuro sem fim. Ele começa a chegar atrasado, sua ascensão funcional detém-se no caminho. Na vida privada, a companheira, uma mulher amável e honesta, prefere voltar para a casa dos pais a ter de lidar com o errático comportamento do homem. As pessoas à sua volta não conseguem explicar o processo em curso na sua vida. O psicanalista devassa a infância do moço em busca de algo capaz de oferecer uma pista racional; simplesmente, não se trata de nada dele, e sim de algo que atua de fora para dentro, e concentra a ação na mente. Fortemente ancorado no catolicismo, o autor cria oportunidades nas quais Harry, caso tivesse confiado a Deus sua salvação ao admitir a impotência diante da "coisa", poderia ter sido redimido. Lamentavelmente, como acontece à maioria, o homem não resiste à tentação da soberba ao arrogar para si o protagonismo de agente da própria redenção, falhando miseravelmente. Ele sucumbe à loucura, no tresloucado ato de homicídio à arma branca. A obra do escritor Selby Jr. e o filme de Bryan Bertino coincidem na finalidade com que a ação se conduz: parece um exame, um teste da fé, cujo resultado ou pode ser absolutamente trágico (suicídio) ou curativo & redentor. No que se refere à manifestação mais explícita do demônio, como quando Michael vê coisas como a mãe morta de camisola levitando, manifestações só se dão explicitamente a um número pequeno de indivíduos, provavelmente escolhidos para suportarem o massivo ataque em nome de um bem maior, como a salvação de almas. Aconteceu na vida de São Vianney. Padre Pio também "enxergava demônios" desde a infância, durante a qual um anjo decaído o procurava na forma de um cão preto enorme que se materializava para conversar. Na biografia de São João Bosco, há registros da presença insistente de semelhante anjo no decorrer de sua jornada, um cachorro cinza a que chamavam "Grigio". Apresentava-se para oferecer resguardo físico em momentos espraiados ao longo de décadas, nos quais o padre quase fora assaltado ou morto. Grigio aparecia para pôr assaltantes para correr, de maneira a preservá-lo de qualquer violência. Pessoas notavam o absurdo da situação, pois o cachorro jamais era visto comendo, como o faria um vira-latas perambulante, e, à medida que décadas vinham e iam embora, o animal continuava a surgir e desaparecer da vida do padre com a mesma idade que tivera ao aparecer do nada na sua frente pela primeira vez, a ponto de não fazer sentido vê-lo ali junto a Dom Bosco, quando qualquer outro animal já teria morrido há muitos, muitos anos. Há uma foto do cachorro, batida por um cavalheiro, um motorista que conheceu Dom Bosco. Trata-se de uma foto antiquíssima, meio borrada, onde se vê o cão, quietinho, descansando do lado de fora da paróquia, e há um elemento de arrepiante no registro, como se, ali, uma minúscula abertura tivesse rompido o véu entre as duas cidades de Agostinho. Seria o cachorro um anjo cuja missão fora a de protegê-lo tão devotamente? Seria um demônio, a quem fora permitido caminhar ao seu lado para, no final das contas, aperfeiçoá-lo pelo assédio, tornando-o mais sólido na sua obstinação no serviço a Deus? A última pergunta, faço-a na esteira da tese de que até os demônios são agentes da vontade de Deus, não é verdade? De um modo estranho, acabam sendo atores da providência. É certo que não o fazem voluntariamente, como os anjos bons que amam a Deus e trabalham conosco de acordo com Sua vontade. Demônios odeiam a Deus e se mantêm obstinados em sua oposição. Diferente do que ocorre conosco, para quem o aprendizado é um processo linear e construtivo, com idas e vindas, demônios detêm a verdade e o conhecimento infusos desde o princípio, de forma que não há de se falar na possibilidade de se "arrependerem". É diferente, por conseguinte, de como ocorre conosco; pelos erros, vamos sendo trabalhados pela graça; pelos contratempos, trabalhados pela humildade; e seguimos nos aproximando do amor a Deus à medida que deixamos o culto a si para amar nossos companheiros de miséria neste vale de lágrimas, o mundo decaído, amaldiçoado, o mundo após a queda. Os demônios sabiam as implicações de sua recusa. Para eles, o destino foi selado, diferente do que acontece a nós: neste momento, qualquer ser humano pode mudar o desfecho de sua história, se o desejar fervorosamente. Ao agirem contra o homem, portanto, demônios nos prestam um inestimável favor, pois assédios ou obsessões demoníacas escondem um presente, a chance perfeita de se resistir até ao fim às opressões ou ilusões passageiras em nome da confiança no enorme mistério da fé e, por obra da provação, torná-lo ainda mais palpitante. Para usar uma linguagem cinematográfica, já que estou escrevendo sobre filmes e apenas indiretamente discorrendo sobre a fé para explanar aspectos filosóficos da trama objeto de estudo, servir-me-ei de um outro para criar a alegoria da ideia. Quando escrevo sobre o assunto, minha mente sempre volta ao primeiro "Rocky", o original. Foi o melhor filme "não religioso" a retratar o mistério da fé tão sublimemente. Durante suas duas horas de projeção, o nome "Jesus" não é vocalizado uma única vez; entretanto, a presença se encontra subentendida. A arte, em suas diferentes acepções, serve-se do arquétipo definitivo e, por mais que adquira distintas cores e reviravoltas, perdura fidedigna à história real, à história inserida em nosso espaço & tempo, estabelecida há milênios, a fonte da qual todas as formas de expressão artística se serviram para encontrar substância & voz. Tentarei explanar melhor. A esta altura, todos já o viram, sendo que as continuações devem ter permanecido mais vívidas na memória. Se você começar a vê-lo, contudo, sob um prisma mais amadurecido, em particular o primeiro, ficará mais nítido. Você se recorda da primeira imagem assim que o título termina de correr da direita para a esquerda e a estória é introduzida? Pois eu me lembro. O filme abre com uma imagem do Cristo, e então a câmera desce, estabelecendo a trama ao mostrar um clube empobrecido e decadente, onde, em 1975, dois pugilistas estão trocando socos por trocados, fazendo espetáculo para uma dúzia de bêbados que não dão a menor importância ao que ocorre dentro do ringue. Um dos pugilistas é um homem pobre, burro e praticamente analfabeto, uma pessoa de bom coração a quem ninguém respeita, mas de quem todos tiram vantagem, o personagem-título. Para sintetizar, o filme estabelece sua jornada quando, por obra do acaso, o campeão mundial de boxe decide dar a um desconhecido a oportunidade de entrar no ringue com a sua pessoa e, pelo menos por alguns minutos, gozar de fama, uma estória de "Cinderela" onde, mais por uma questão de publicidade do que de bondade, o maioral da estória cairia nas graças da mídia ao "abençoar" um mortal com a oportunidade de se encontrar dentro de um ringue na sua presença. Ao ter seu nome pinçado de uma lista, a jornada de redenção do protagonista se inicia. À época, já tinha mais de trinta anos e as oportunidades pareciam ter ficado para trás, mas é aí que a verdadeira jornada começa. Cito o filme para ilustrar meu ponto de vista sobre a mensagem do arquétipo, a da precisão do adverso, da tensão das dificuldades como ponte para se transpor o abismo da miséria rumo `a compreensão do mistério da fé, sendo os obstáculos aparentemente invencíveis perante o protagonista as únicas ferramentas das quais realmente precisa para moldar-se a aquilo que corresponde a seu chamado. Até aquele ponto no arco do personagem, Rocky é a definição do fracasso, assim como também o foi o Cristo, o arquétipo, que na morte deu literalidade à palavra derrota na sua figura debochadamente pendurada como carne cuspida, toscamente pregada a marteladas num pedaço vagabundo de madeira. É o que ocorre posteriormente, todavia, que rasga o véu para a exposição da verdade salvífica por trás da momentânea aparência do fracasso, pois, no arquétipo, na história real, mesmo tendo sido obsediado de todas as maneiras pelo demônio para desistir de se deixar massacrar por amor ao homem, ele se mantém firme aos planos do Pai e vence a morte em definitivo; pari passu, no filme, o estúpido ignorante de bom coração sobe ao ringue para servir de objeto de olhares curiosos e chacota do mundo que está de olho na luta, tendo como mestre de cerimônias o campeão mundial. Apollo recebe o adversário com o bom humor de um homem convicto de que vai conceder dois, três rounds ao desconhecido, deixará que ele conecte alguns golpes, mas terminará o espetáculo com um nocaute rápido para que todos possam voltar felizes para casa. Por sua generosidade, as pessoas lhe serão gratas e terão se entretido com o show, e o pugilista de clube poderá retornar ao ostracismo sabendo que teve seu momento ao sol. A luta começa e, quando menos se espera, um drama começa a se descortinar diante de nossos olhos. Dois, três rounds vêm e vão sem que a luta se defina conforme Apollo prometera, e o que era brincadeira muda de figura. Apollo desperta para o fato e trata de levar a situação muito a sério: de um minuto a outro, seu show de boa vontade precisa se transformar numa luta feroz. A montagem surge e evanesce e surge novamente em cenas que documentam a progressão dos rounds, todos bem semelhantes, onde a superioridade técnica do campeão lhe vale folgada vantagem, mas é contrabalanceada pela determinação ferrenha e cega do adversário. À medida que o tempo passa e o pobre pugilista amador prova deter uma incomum capacidade de absorver um inacreditável volume de castigo, Apollo começa a viver a luta de outra forma, pois do mesmo jeito que está dando uma surra, está tomando outra. Enquanto Rocky se encontra no fim recebedor da pior parte do castigo, porém segue avançando e batendo, Apollo não consegue acreditar que seu adversário se recusa a cair ou aceitar que, a esta altura, é virtualmente impossível que vença. Chega o décimo quarto round, o penúltimo de uma luta programada para quinze, e Rocky mal consegue erguer os braços para se defender. Ele está perdido. "O que o mantém de pé, eu não sei!", exclama o narrador. Apollo abre espaço com um cruzado e segue com o soco do nocaute ao conectar um gancho que o derruba de um modo fenomenal e aparentemente definitivo. Ele ergue os braços em vitória, provavelmente pensando: "Finalmente", e se afasta, indo em direção ao corner. "No chão, no chão, fica no chão!", Mickey implora. Na lona, Rocky se vê sozinho - ninguém acredita mais nele, todos desistiram de Rocky a não ser Rocky - e dele se espera a resignação com o inevitável desfecho, afinal, para alguém com sua história, o chão não seria um lugar tão mau. Rocky sobreviveu até ao décimo quarto assalto, e chocou o campeão mundial, fez seu melhor, seria o suficiente para se orgulhar. Agora, todos podem voltar para casa, não? Mas então, Rocky dá o passo de fé. Ele rasteja para as cordas e as segura com dificuldade e agonia para realizar o impossível e se levantar a tempo. Ele sabe que precisa ir até ao fim. Existe alguém que, na vida real, tenha experimentado semelhante solidão? Alguém que ao se ver no mesmo predicamento - o de se pôr na posição do pária - tenha tido os olhos abertos para a glória que é enxergar o mundo sob o ponto de vista de uma carta fora do baralho? A recapitulação do arquétipo responde a indagação: Cristo, na cruz, quando é abandonado por todos, e os apóstolos acovardados saem correndo, contempla a perfeita consumação de sua paixão. Agora, ele sabe que o melhor está por vir. O demônio fizera seu melhor para demovê-lo da rota; entretanto, ao confiar na missão, ele compreende, na solidão da madeira, que tudo concorrera para a perfeição do plano original. A cruz não fora um evento triste e furtuito da jornada, Cristo não fora apenas um "cara legal" que entoara sermões sobre "justiça social" e que, por força da perseguição dos poderosos da época, tivera os planos rechaçados ao ser sentenciado à morte, a cruz como um "acidente de percurso". Ao contrário, ele sabia que nascera para a cruz, cada dia um passo na direção dos pregos e martelo, pois a experiência da morte lhe escancaria a janela para triunfar sobre a mesma, o que aconteceria dali a três dias, para horror dos demônios. Não era Jesus, tampouco os cristãos, que temiam a cruz. Os demônios, sim, passariam a temê-la. Ali, pela primeira vez desde a queda do homem, ser-lhes-ia impingida uma amarga derrota nas mãos do único homem a quem não tinham conseguido dobrar. Deixemos momentaneamente o arquétipo, retomemos o filme. Rocky se segura às cordas e faz dos cacos estilhaçados um todo muito coerente de sua vida, uma vida que, antes de pulverizada pelo gancho de Apollo, já fora duramente golpeada pelas circunstâncias invisíveis, a terrível má sorte que o acompanhara até aquele ponto. Ele se levanta, num ato contrário ao bom senso, contrário à orientação de Mickey, contrário `as expectativas do mundo, e o árbitro segura suas luvas, como quem perguntasse se realmente deseja prosseguir. Assim como Cristo deve ter visto sincronia e perfeição na soma das incontáveis agruras durante o percurso à madeira, Rocky enxerga idêntica perfeição sincrônica na suposta "má sorte" que o seguira durante a vida até aquelas cordas com as cores da bandeira norte-americana. Não fora má sorte; na verdade, fora a benção que o guiara até aquele exato lindíssimo instante, quando Apollo se vira e, com olhos cheios de horror, vê que o adversário se levantou. "Não acabou ainda, venha, dê-me seu melhor", Rocky sinaliza com as mãos, chamando-o para dentro, e a cara de Apollo vai ao chão: a cabeça cai, seus olhos incrédulos procuram a staff no corner, atônito. O ator Carl Weathers interpreta Apollo, e como excelente artista dramático que o é, comunica uma pletora de emoções para além da expressão em palavras. Aos olhos de qualquer pessoa uma visão do tipo seria eletrizante, aos olhos de Apollo, torna-se transformadora. Tristeza, frustração, esgotamento, medo, todas as emoções correm pela sua cara. A noite começara como uma brincadeira; agora, Apollo se meteu numa desesperadora situação que pode lhe custar as coisas que lhe são mais caras. Nos minutos finais, qualquer coisa pode acontecer, não se sabe como aquilo vai terminar, e é apavorante para o campeão, o homem que tem tudo a perder vs. o homem que nada tem. Após a convocação do árbitro para a retomada da luta, depois que Rocky se levanta, você vê o talento do ator ao interpretar o modo como Apollo se aproxima: cauteloso, temeroso. É como se estivesse morrendo: Apollo jamais se sentira assim, nunca se imaginara tão inseguro. Claro, como já sabemos, Rocky golpeia duramente Apollo nas costelas e, no último assalto, lança seu arsenal num campeão quase inconsciente, que toma os socos encurralado nas cordas e é salvo por muito, muito pouco, ao toque do sino. Apollo ganha por uma exígua diferença de pontos, porém ninguém parece se importar. As pessoas não se recordarão da luta por uma debatível decisão de pontos, elas se lembrarão pela tenacidade cega e canina com a qual o João ninguém chega ao último segundo sem retroceder. Assistir ao filme após tantos anos sempre revela novas descobertas: é interessante como até Apollo termina como um homem melhor, mais humilde, mais "mortal", ele desceu alguns degraus do pedestal o qual tomava como exclusividade sua. "Não vai haver revanche, não vai haver revanche", contemporiza ao toque do sino, abraçado a Rocky, ambos exauridos. "Eu também não quero", Rocky responde. De uma maneira intrigante, eram duas peças que precisavam se juntar, pois se cabiam perfeitamente e, unidas, compunham o quadro que dava sentido a suas tristezas e inseguranças. Pobre Rocky: sua ingenuidade e boa natureza o impediam de ver malícia enquanto havia tempo de não deixar que lhe tirassem vantagem, sua estupidez e ignorância lhe custavam o bom senso pelo qual teria entendido que, às vezes, é melhor ficar no chão do que arriscar a própria vida ao tomar as piores surras. Pobre Apollo: sem seu inegável talento, jamais teria conquistado o cinturão dos pesos-pesados, nada lhe acontecera de graça; seu bom humor e personalidade faziam dele uma figura maior do que a vida; entretanto, por mais envaidecido que a aclamação o tivesse deixado, precisou perder a fantasia e encarar a mortalidade ao se ver diante de um estúpido cabeça dura que se recusaria a se render, consoante o próprio treinador lhe diz, na parte 2, ao tentar convencer Apollo a esquecê-lo: "Não precisamos desse cara, Apollo. Eu vi você bater nesse cara como eu nunca vi ser humano nenhum apanhar... E o cara continuava vindo para cima de você!". "Rocky" é um filme essencialmente fundado sobre os alicerces do arquétipo. Não importa que a estória tenha tomado rumos que levaram a série para longe da inocência do primeiro; sua essência sempre restará imortalizada, preservada em âmbar, na cena na qual ele se levanta e acena para continuar. Sob a música de Bill Conti, - que eleva espiritualmente o clímax, mas cabe às demais lutas neste mundo imperfeito, do homem pobre que, na terceira idade, rabisca num caderno de caligrafia seu nome, empenhado a aprender a ler & escrever, ao jovem batalhando por uma vaga no mais disputado concurso público; da menina que anseia por encontrar uma voz própria com a perspectiva da vida adulta e, com ela, o refrescante, delicioso sabor da expectativa e da antecipação, até à viúva idosa que mora na periferia e toma vários ônibus para chegar ao hospital onde faz solitariamente sua quimioterapia, sobrevivendo dia após dia ao prognóstico do câncer, "Going the Distance" é o hino de autoafirmação perante a vida - é um momento sublime do qual nada mais feito posteriormente chegou próximo. Todo o arcabouço da trilha assinada por Bill Conti para a saga, aliás, é um patrimônio da humanidade. Ainda dentro da linguagem cinematográfica, outra obra que retratou o despertar espiritual de um protagonista submetido a monumental stress foi o filme de horror de David Fincher, "The Game", lançado em 1997. Era a estória de um magnata estagnado numa modorrenta existência sem novidades até ter suas crenças viradas ao avesso quando o irmão lhe recomenda os serviços de uma empresa que tornaria sua vida mais interessante. Após atender ao encontro inicial e se submeter a testes de aptidão física e mental, é surpreendido com a recusa da empresa em fornecer o serviço, sob a desculpa de que ele não detém o perfil adequado. O homem retoma os afazeres; porém, não custa a ser assolado por pequenos aborrecimentos que, a princípio, não sugerem nada que não uma passageira má sorte. Minúsculas chateações vão se avolumando numa escalada do horror. Uma noite, encontra, deixado no caminho do cul-de-sac de casa, o boneco de um palhaço. Na mesma noite, enquanto se distrai solitariamente com o telejornal, não acredita quando o jornalista da bancada se dirige pessoalmente à sua pessoa e trava uma conversação. O que começara como traquinagens infantis vira um pesadelo sem previsão de acabar. O patrimônio é perdido, seus bens são leiloados e liquidados em questão de semanas, imagens horrendas de pornografia infantil são plantadas em sua pasta pessoal e disco rígido. Ele vira um fugitivo da lei. Ao procurar explicações no local onde visitara a empresa de recreação pela primeira vez, descobre que o andar inteiro fora uma fachada, um espaço alugado. Legalmente, a empresa não existe. O irmão o procura, desesperado, dizendo que aquela gente estranha também está no seu encalço e que não há soma de dinheiro no mundo capaz de pará-los. À medida que a estória avança, pronuncia-se a mudança na personalidade do protagonista. Ele começara sua jornada como alguém certo de si: no mundo, nada restava para surpreendê-lo, assim imaginava. Agora, sob ataque de uma oposição massiva e anônima, via o benefício espiritual que, bizarramente, seus inimigos lhe haviam incutido, pois as adversidades lhe construíram um novo centro moral. Antes da perseguição, seus olhos encontravam-se vendados; só depois do processo de descrédito - moral e material, afinal sua fortuna é liquidada - ele passa a executar as manobras mais certeiras para se pôr à frente dos vilões. Ele revisita pessoas que havia passado para trás ou magoado, redime-se, e consegue chegar aos misteriosos inimigos. O processo vivido pelo personagem chama-se "gang stalking", uma operação de assédio cuja execução exige um grande número de pessoas trabalhando conjuntamente. Depois de ler sobre o fenômeno, parece óbvia a conotação espiritual do "gang stalking"; por mais que salte aos olhos a camada mais superficial do assédio, ou seja, as investidas mais agressivas e escandalosas, é provável que até aos perpetradores escape o verdadeiro agente por trás de suas ações. Conforme demonstrado, a linguagem cinematográfica deve suas manifestações a estruturas que se repetem e caracterizam a jornada humana, arquétipos dos quais não podemos fugir, e nos quais a criatividade bebe como fonte para se inspirar e escrever ou filmar a arte. Mais importante que as obras artísticas, contudo, são os testemunhos oferecidos pela experiência veraz e solitária, que atesta o antagonismo da força dispersiva como arma de redenção. Em nossas vidas, movemo-nos consistentemente em direção à unidade, um termo que deve ser lido no seu sentido mais lato, por envolver diferentes searas. Seja profissionalmente, seja familiarmente, a experiência nos arma com habilidades sem as quais jamais nos avizinharíamos da unidade. Com a maturidade, "negociamos" com adversidades e obstáculos que agem aplicando força no sentido contrário ao de nosso perpétuo movimento. Neste sentido, a vida é uma tensão constante entre duas forças, a associativa vs. dispersiva. Ao passo que a dispersiva leva a pecha de "vilã", acaba sendo dela de onde extraímos o material do qual precisamos para chegar à unidade, que é, nas palavras do Professor Olavo de Carvalho, os sonhos da juventude performados no outono da vida. A história do psiquiatra austríaco Viktor Frankl ilustra a assertiva. Nascido na Áustria, o estudioso Frankl morava com os pais e a mulher grávida em Viena quando os carniceiros do nacional-socialismo invadiram o país para anexá-lo à Alemanha. Àquela altura, Frankl havia sido convidado a estudar nos Estados Unidos, porém, dividido entre os estudos e o sentimento de dever para com os pais velhinhos, não soube o que fazer, pelo menos até o dia em que, ao passar casualmente por uma sinagoga bombardeada, viu o pedaço de uma rocha de onde se sobressaía o mandamento "Honrarás pai e mãe". Ele tomou aquilo como sinal e, ao se comprometer a permanecer com os pais na Áustria, foi mandado a Auschwitz com os idosos e a mulher grávida. O caso tem todos os desdobramentos funestos que fariam um observador externo olhar para esse homem e interpretar sua vida como um fracasso trágico, a história de uma pessoa honrada, filho devoto & bom marido, que teve seus bonitos sonhos esmagados pelo peso da força dispersante das circunstâncias, vindas para fulminar sua sede pela unidade. O que acabou ocorrendo, todavia, foi o contrário, pois ao ser atirado no campo de concentração com pais e mulher (que morreriam ali dentro), seria da experiência apavorante de Auschwitz que tiraria o substrato para o magistral estudo ao qual se dedicaria até ao fim da vida: a felicidade. Seu ponto de partida girava em torno de por que algumas pessoas resistiam tão bem à experiência e saiam fortalecidas, enquanto outras eram completamente obliteradas. Ao se ver dentro daquele lugar miserável de morte, Frankl entendeu que as pessoas fortalecidas eram aquelas que haviam tomado para si um objetivo poderosíssimo o suficiente para corroborar a tese de que, no predicamento onde se encontravam, deixava-se de ser uma questão de "como", e passava-se a ser uma outra, a do "por quê". A resposta ao "por que" não se encontrava dentro do assalto perpetrado pela força dispersante, neste caso a do partido nacional-socialista, mas sim fora do núcleo do assédio. Aquelas pessoas precisavam sair dali sãs, pois, para além das muralhas encimadas por arames elétricos, mesmo em meio às trevas, começavam a fazer sentido de um novo mundo a surgir diante de seus olhos, e, juntamente ao novo mundo, um sentido inédito para o sofrimento momentâneo. Elas conseguiam ser felizes no instante em que desistiam de encontrar ativamente a felicidade e simplesmente abraçavam com fervor o ônus dos dissabores, do sacrifício, da jornada a ser empreendida a qualquer custo. Como o destino só liga as extremidades do círculo quando fora do círculo e para além da jornada, é a jornada, por conseguinte, que é tudo, e não o destino em si.
O processo descrito na obra literária "The Demon" e o filme "The Dark and the Wicked" retrata a obsessão a um nível pessoal. Se observada imparcialmente de cima, entretanto, de um ponto de vista a partir do qual deixa de fazer sentido separar passado, presente e futuro, também a História humana, a "história para os lados da cidade dos homens", - se me permitem o uso da expressão de Santo Agostinho, - revela movimentações de onde se pinça a ação diabólica como peça de um complicadíssimo maquinário num quase inabarcável contexto a que estudiosos chamam de "Nova Ordem Mundial". In casu, o elemento demoníaco teria se infiltrado nas convenções da vida globalizada e se enraizado através de filosofias perniciosas no "espírito do mundo", zeitgeist cujo pessimismo é diretamente proporcional ao que a sociedade amealhou tecnologicamente num ínfimo espaço de tempo, um estado de espírito cujo combustível, o ressentimento, comprova o dito de que é mais fácil enganar uma pessoa a convencê-la depois que ela caiu num ardil. Ao passo que o mundo diminuiu a ponto de caber na tela do smartphone, as pessoas jamais estiveram tão perdidas e desesperadas, com crianças no divã de terapeutas que lhes prescrevem ansiolíticos e antidepressivos, e famílias alternativas onde não há qualquer resquício de identidade. Como nas empresas, seus membros se submetem à constante possibilidade de substituição ao sabor das circunstâncias, e pessoas são demissíveis ad nutum. Parceiros decidem se casar consoante o calor de uma momentânea, enganosa emoção, pois a sociedade empresarial pode ser facilmente rescindida no cartório mais próximo. Assim que a emoção se for, parceiros dissolverão o acerto ao riscado da caneta: uma única visita ao serviço notarial deverá pôr fim ao impasse. Idosos devem ser encaminhados a asilos e, no tempo devido, eliminados discretamente pela eutanásia. Neste diapasão, a velocidade da informação no seio da aldeia global trouxe consigo a banalização, o macaquear de sentimentos humanos. Declama-se facilmente amor, mas se sequestrou a palavra para fazê-la caber à nova semântica pela qual você usa as pessoas, e posteriormente as descarta. Agora, famílias são tão "famílias" quanto os lobos da alcateia de lobos ou as abelhas da colônia. Se você forçar o termo, poderá chamá-las de família, porém ali não há família. A maioria perdura de pé enquanto refugos varridos pela tragédia do divórcio ou de separações após uniões de araque, dependentes de um Estado assistencialista que gradualmente avança na ambição de tomar crianças para si e cooptá-las no momento de suas existências quando a personalidade maleável pode ser cunhada por cinzéis, ao gosto dos intelectuais de esquerda. Seus agentes são movidos pelos mesmos propósitos satânicos com os quais os porcos raptaram os filhotes da cadela, no livro de George Orwell, a reprogramação contínua de suas mentes e o estabelecimento de uma mentalidade revolucionária alimentada por ressentimento e inveja, de forma que, uma vez eliminada a família, o Estado se torne o centro de tudo. As pessoas mais idosas parecem deter ciência desta verdade, muito embora nem sempre consigam exprimir o quê exatamente ocorreu. Criaram seus filhos num seio familiar que, por mais problemático que tenha sido, forneceu-lhes a primeira experiência de unidade; todavia, repentinamente, algo deu errado em suas vidas adultas ao deixarem o ninho. Juntaram-se, "desjuntaram-se", juntaram-se novamente, filhos preciosíssimos de relacionamentos distintos e brevíssimos vieram ao mundo e foram deixados de lado ao sabor da mudança dos ventos, seguiram se afastando da casa onde conheceram, pela primeira vez, o senso de unidade, a unidade foi se esvaindo, ilusões do mundo romperam uma barragem de sentimentos não vocalizados no tempo certo, e a torrente os carregou para longe de modo que, da vocação humana gregária, só restaram fotos apagadas num álbum mofado esquecido no criado-mudo, um álbum que ninguém mais quer ver. Existe, portanto, indícios claros da ação angelical decaída na direção a que o mundo tenta arrastar as pessoas, bombardeando-as por muitos flancos, - entretenimento, moda, tendências, propaganda, padrões, - com ideologias que divergem completamente da estrutura da realidade, filosofias esquisitas e estimulações macabras baseadas no "Faze o que tu queres, há de ser o todo da lei", de Aleister Crowley. Como estamos a falar de ideologias, elas não precisam de nenhum ponto de contato com a verdade; a ideologia só precisa se pôr à disposição das inflexões de seus intelectuais. Do doloroso despertar para a situação parece não se ganhar nenhum benefício imediato, pois não nos torna imunes ou livres do mal; simultaneamente, o que teria sido ganho, espiritualmente falando, seria um olhar mais aprimorado e grato a recantos que, mesmo num mundo decaído, conservam a refrescância promissora com a qual foram originalmente criados, revelando muita beleza e sentimentos reconfortantes. Por si, a gratidão basta para nos encorajar a "continuarmos aqui". Quando Deus te dá a graça de ver as coisas pelo que realmente o são, também te abençoa com o contraste perfeito, pois após a descida a um vale horroroso, a visão que se tem depois, do lindo horizonte, torna-se amplificada e reverberante. Só percebemos o belo após a experiência do feio, ou o "fundo do poço", o canto mágico onde os mistérios da vida são respondidos. Sempre chamou-me a atenção o bom humor santificado e a paciência com os quais as pessoas mais velhas escutam os jovens. Face à ridicularização com a qual são tomados por relíquias de uma época há muito esquecida, idosos detêm algo de apaixonante e belo em seus olhares. Mesmo em face da ridicularização, vê-se que jamais perdem de vista o que resiste de potencialmente puro e bom nos corações dos mais novos; um pai ou mãe jamais desistirá de seu filho. O envelhecimento parece um fechamento do círculo, o reencontro com a primeira infância. Quando começamos a nos situar espacialmente no mundo, na infância, temos nossas cabeças abertas para a essência das coisas. Os olhos permanecem bem atentos, fascinados com a estrutura da realidade, sendo todo o resto desinteressante. Não deixamos o ego ficar à frente do aprendizado empírico. Evidentemente, a mente infantil adiciona fantasias à estrutura, fantasias somatizadas por feridas afetivas; contudo, a espinha dorsal da realidade resta claríssima para qualquer criança, pelo menos durante um breve período. Permito-me o parêntese para acrescentar que me recordo de algo dito por um personagem num filme de horror muito antigo, de 1999, a que assisti no cinema, "Arlington Road", a estória de um professor profundamente traumatizado pela morte da mulher, que ao se ver como a única referência adulta de casa, fazia o melhor para cuidar amorosamente do filho pequeno. O filme mostrava suas batalhas contra os demônios internos no dia a dia, pois o fato de lecionar um curso sobre terrorismo doméstico o mantinha sempre psicologicamente conectado à falecida mulher, uma agente do FBI morta numa ação contra uma milícia extremista. O filho também sinaliza ressentir-se da atual namorada do pai, julgando-a usurpadora do lugar da falecida mãe, adicionando um stress extra à situação. Ao acidentalmente encontrar um menino da vizinhança perambulando após um acidente doméstico com fogo, o professor salva a vida da criança ao levá-la a tempo à emergência do hospital. Ao assim proceder, acaba atraindo a atenção dos pais da criança, um simpático casal recém-chegado à rua. Para resumir uma intrincada trama, os vizinhos não custam a envolvê-lo emocionalmente, pois a oferta de amizade do casal lhe parece uma tábua de salvação atirada ao náufrago; ocorre que, gradualmente, o misterioso casal vai tomando nota de sua vida para usá-lo como executor involuntário de um devastador atentado terrorista a um dos pilares do governo federal. Causa uma sensação esquisita, o fato de este filme ter sido rodado apenas dois anos antes do ataque às torres gêmeas. O fato é que os olhos do professor vão se abrindo aos poucos à natureza diabólica daquela gente. A cena sobre a qual gostaria de tecer comentários ocorre na primeira metade, quando seu convencimento, ainda em formação, não lhe permite saber se está sendo apenas paranoico. O professor encontra o solidário vizinho exercitando seus movimentos com um taco de baseball no campo telado do parquinho. Eles começam a bater papo, até que, por alguma razão, a conversa se volta ao filho, e o vizinho comenta qualquer coisa sobre o fato de o garoto vir sofrendo silenciosamente o enlutamento pela morte da mãe. O professor se surpreende: o menino jamais conversara sobre coisas tão profundas e sombrias com o pai; no entanto, tinha diálogos do tipo com o adulto da casa ao lado. Ele percebe que subestimara a profundidade psicológica da criança. O homem olha para o professor e elucida: "Especialistas chamam-na de 'sabedoria de criança', e estão certos, sabe, Michael? Nunca mais na vida enxergaremos as coisas tão claramente quanto quando o fizemos como crianças". É uma cena horripilante, porque já ali há uma centelha da malevolência por trás dos olhos do homem, que está a preparar a ruína do professor, a se dar dali a algumas semanas, quando será usado como "boi de piranha" para ser sacrificado e, na ação, levar a responsabilidade num atentado sem precedentes que custará a vida de milhares. Seu destino fora selado no instante no qual, com a guarda baixa, vocalizara a tristeza e a saudade da falecida esposa. Assim como agem os narcisistas, seus vizinhos demoníacos sentem o gosto de sangue, veem que ele não tem pontes ou conexões, e o elegem para o assédio. Retomando minha explanação sobre enxergar-se claramente, uma vez finda a infância a estrutura da realidade desfoca-se e a vida adulta nos toma emprestados para uma longa, ilusória existência melindrosa onde a verdade será subjugada em nome da aceitação dos pares. Prof. Olavo de Carvalho escreveu algo nas linhas de que a vontade de aceitação faz da juventude o período no qual você "ama aqueles que te desprezam e odeia os que te amam". Nós só recuperamos a inocência do primeiro olhar no terceiro e último ato. Ao chegarmos a este ponto, compreendemos por que infância e velhice parecem faces da mesma moeda, prólogo & epílogo, coexistentes. Suas extremidades se encontram, sua união ata o círculo. Talvez daí venha o senso aguçado de verdade por parte dos velhos, agora que não temem perder o respeito do mundo, afinal, de um jeito ou de outro, a falsa bajulação se escoou junto à juventude. Como experiências aparentemente individuais, viver acaba significando a exata mesma coisa que perder, afinal o que o tempo mais faz é retirar camadas e mais camadas de artificialidades, superficialidades, até restar o absolutamente essencial: a necessidade inerente ao homem da verdade. Contemplar a estrutura da realidade cobra o caríssimo preço de trazer para si o desrespeito e o descrédito de um sistema mundial erigido sobre mentiras, e suportar o ostracismo advindo da escolha, sem perder de vista que, paralelamente, a escolha retribui tamanho amor pela verdade com o maior dos presentes, que se adapta muito bem `as poéticas palavras do Prêmio Nobel de Literatura Orhan Pamuk, o escritor turco nascido às margens do Bósforo, o estreito entre dois continentes, considerando-se que, emblematicamente, ao vivermos neste mundo, também mantemos um dos pés nas margens do outro, e a vida, com suas contradições, é um inconstante caminhar entre as duas margens, que, titubeante que o seja, não deixa de ser muito lindo e de valer à pena até durante os escorregões. Sr. Pamuk afirmou: "Morar próximo da água, vendo a outra margem à frente, o outro continente, me fazia lembrar o tempo todo do meu lugar no mundo, e isso era muito bom. E um dia foi construída uma ponte que ligava os dois lados do Bósforo. Quando subi na ponte e olhei a paisagem, compreendi que era ainda melhor, ainda mais belo ver as duas margens ao mesmo tempo. Entendi que o melhor era ser uma ponte entre duas margens. Dirigir-se às duas margens, sem pertencer totalmente nem a uma nem à outra, revelava a mais bela das paisagens". Seria um equívoco de minha parte chegar ao fim da resenha sem fazer um minúsculo reparo nas minhas observações sobre as estações de nossas vidas e a temporada na qual detemos, ainda que fugidiamente, a verdade ao alcance. Cito a infância e a terceira idade como seus ápices; entretanto, como poderia não mencionar a exceção na pessoa do bem-aventurado Carlo Acutis? Você não o conhece? Ele fugia à regra. Tendo morrido adolescente, aos quinze anos, não era exatamente uma criança; ademais, estava a anos-luz da terceira idade, detinha uma vida inteira por vir. Ainda assim, manteve a verdade consigo ao atravessar a ponte da infância para a maturidade; não a perdeu por um único segundo. Para mim, Carlo Acutis é a pessoa em cuja honra faço serviços aos gatos de rua; para os outros, acima de tudo, foi um jovem que fez da vida um serviço ao semelhante. Desde a idade mais tenra, exibiu seu inegociável amor a Deus naturalmente, afinal, até àquela altura, seus pais não eram católicos praticantes. A mãe sofreu uma profunda conversão por conta do filho, acompanhando-o, inicialmente "arrastada", e mais tarde voluntariamente, todos os dias, à missa, onde eles comungavam. Até o nascimento de Carlo, em 3 de maio de 1991, Antônia Salzano só estivera dentro de uma igreja três vezes - para a primeira comunhão, a crisma e o casamento, - mas o exemplo estabelecido pela criança operaria profundas transformações no seu ser, e no do pai, Sr. Andrea Acutis. "Viver ao lado de uma pessoa como o Carlo significava que você jamais poderia se manter neutro diante de tanta fé", ela explicou sua conversão ao catolicismo. Sua vida foi abreviada após o diagnóstico de uma leucemia fulminante, e morreu a 12 de outubro de 2006. Embora sua morte esteja imbuída de inabalável convicção e fé - até o último segundo, ofereceu suas dores à igreja e ao Papa Bento XVI, - os quinze anos anteriores também foram igualmente riquíssimos, se não mais, nos exemplos e passagens que lhe valeriam a santidade. Como se em alguma parte de sua mente pressentisse o escoamento do tempo, deu sentido à vida ao encapsular a antítese do hedonismo e do narcisismo. "A tristeza é um olhar voltado para si, a felicidade é o olhar voltado para o céu", Carlo ensinou, lançando-se ao perene agir voltado ao bem do semelhante. Aliava-se a coleguinhas atazanados por bullies e os defendia, ensinava os companheiros com dificuldade nas lições, pacientemente resgatava e recuperava aqueles que haviam enveredado pela pornografia ou experimentavam com drogas, e quando um amigo viveu o horror da desintegração do lar na esteira do divórcio dos pais, trouxe-o ao seio do lar dos Acutis. Sua vibrante caridade o impelia a organizar ações no sentido de organizar e distribuir bebidas quentes e alimentação a moradores de rua, enquanto consumia a mesada comprando sacos de dormir e roupas apropriadas para o frio. Atrelado às obras sociais, não perdia de vista o amor ardente ao Cristo, e sua profissão de fé representava seu melhor serviço à caridade. Desde os 11 anos, ensinava o catecismo para inspirar os jovens a se empenharem para alcançar a santidade, e lhes fornecia uma lista de nove passos como "kit" para uma vida digna: amar a Deus com todo o coração, tentar ir à missa todos os dias, receber a comunhão, rezar o Rosário, ler ao menos uma passagem das Escrituras, visitar o Cristo no Tabernáculo, submeter-se à confissão semanalmente, empenhar-se em ajudar o próximo o máximo possível e estabelecer uma relação de confiança e amizade com seu anjo da guarda. A Eucaristia, segundo Carlo, consistia no caminho desimpedido para o céu, e lhe fascinava tanto que aventurava-se ao visitar lugares do mundo para documentar milagres ligados ao corpo do Cristo, para ou partilhá-los online ou em exibições, como o fez por cinco continentes, em 2002. Após sua morte, a mãe compilou o material que ele também fazia de suas visitas a lugares onde haviam acontecido aparições marianas, o que nos leva ao grande amor de sua vida. "Maria Santíssima foi a única mulher na minha vida", costumava dizer, e sua forte ligação com Maria o tornava curiosamente perceptivo à existência e à ação dos anjos decaídos. Embora não fosse o eixo de sua vida, Carlo os percebia, o que se denota, mesmo indiretamente, de muitas afirmações atribuídas a sua pessoa. "Cada minuto que se passa é um minuto a menos que você tem para agradar a Deus. O que importa se você é capaz de vencer milhares de batalhas se você não foi capaz de vencer as suas próprias paixões corruptas? A verdadeira batalha ocorre dentro da gente", Carlo disse, e não obstante não haja menção à palavra "demônio", é justamente disso que está falando. Quando eu decidi, anos atrás, dedicar qualquer bem feito aos animais de rua a Carlo Acutis, eu fi-lo porque, tendo conhecimento da admiração de Carlo por São Francisco de Assis, vi na homenagem a oportunidade para honrá-lo. Como se sabe, São Francisco, considerado protetor dos animais e padroeiro da ecologia, tratava-os como se pessoas o fossem. No início de sua vida, eram os pássaros que pousavam nas árvores mais próximas para ouvi-lo pregar, quando ninguém mais o fazia. Em 2022, dezesseis anos após sua morte, Carlo teria aproximadamente 31 anos de idade, a faixa etária dos antigos amigos de sala de aula que, mesmo hoje, recordam-se de sua figura como uma lembrança acalorada e alegre, tendo perdurado em suas memórias o bem que lhes fez: as ajudas com deveres de casa, a defesa dos mais vulneráveis, os conselhos, o modo como consolava coleguinhas que passavam pelo drama do divórcio. O curto período de tempo ao longo do qual esteve no mundo detém um quê de tragédia, sempre é lastimável quando alguém se vai sem que sua existência adulta tenha começado; entretanto, é provável que o próprio Carlo não pense assim a respeito do destino. Diante desta frase sua, - "Nossa meta deve ser o infinito, não finito. O infinito é a nossa pátria. Desde sempre o Céu nos espera" - sua passagem não foi breve, tampouco longa; apenas esteve a serviço do infinito por vir, e isso Carlo fez, e fez tão bem. Foram muitas as graças atribuídas à sua intercessão, inclusive no Brasil. Pessoalmente, posso atestar uma valiosa graça à minha vida, pois até conhecê-lo, encontrava problemas com a entrega completa e irrestrita ao amor a Maria Santíssima. Para mim, era complicado conseguir amar tanto alguém cuja face eu não conhecia; evidentemente, imagens de Maria oferecem uma ideia, mas sua presença permanece envolta em mistério. Quando li que, a partir da infância até sua morte, Padre Pio via Maria Santíssima e demônios, ative-me à conclusão de que, se eu tivesse direito a fazer uma única pergunta a ele, indagaria: "O que você viu?". Os demônios, eu já os conseguia "ver", essas coisas imateriais que tomam fisicalidade na discrição do sorriso narcísico capturado numa fração de segundo. Eu os via perfeitamente bem. De Carlo, consegui a graça de, em seu lindo rosto, passar a enxergar o de Maria, o que deu fisicalidade, tangibilidade, tornando meu amor à mãe de Deus mais urgente. Ele forneceu o mapa para uma vida digna, lembrando que, ao passo que as pessoas nascem originais, as distrações do mundo acabam tornando-as, chegado o momento da morte, meras fotocópias. Ou seja, são tantos os vetores nos convidando a ser como esta ou aquela pessoa que qualquer vestígio de originalidade se dissipa com o tempo. O exemplo de Carlo leva-nos a crer que, por mais excludente que seja, é imperativa a experiência da solidão. Sem se estar preparado para ela, se a temermos a ponto de preferirmos perder a originalidade a deixar de pertencer a um grupo, então até mesmo as pessoas a quem nos pomos a serviço se perderão junto `a manada. A seu próprio modo, Carlo foi uma pessoa à parte, e embora a escolha deva ter lhe valido alguns momentos difíceis, - a morte pela leucemia galopante o mais dramático, - teria sido horroroso se seus companheiros e colegas e amigos não o tivessem conhecido em sua plenamente colorida, peculiar personalidade. Sobre a precisão de se voluntariar a perder o mundo para indiretamente recuperá-lo, em toda a sua glória, penso num doce filme italiano dos anos 70 dirigido por Dino Risi, hoje praticamente esquecido, estrelando o grande Vittorio Gassman, "Profumo di Donna", sobre um capitão aposentado cego que, sob os cuidados de um garoto, cadete da escola militar, empreende uma jornada de Turim a Nápoles. O propósito aparente da viagem, entretenimento & diversão, mascara as intenções do homem, pois uma vez que tenha chegado a Nápoles, pretende dar cabo da própria vida. Ao longo do caminho a Nápoles, faz amizade com o garoto, o clássico enredo de dois estranhos que começam não se gostando, mas acabam se amando, quando chega a hora de se dizerem adeus na conclusão. Gosto do filme por várias razões, principalmente por me fazer pensar no meu pai. É cheio de diálogos que permanecem contigo depois que acaba, e a conversa final entre o menino e o velho ilustra minhas observações sobre o Carlo, ao abordarem o motivo por trás do plano original de terminar a vida, que, felizmente, não é levado adiante. Há esse grande amor à espera do coronel, porém ele não consegue aceitar a ideia de ela vê-lo cego. Na despedida, o velho dá um tenro tapinha camarada no rosto do garoto e lhe diz, reforçando que estão se dizendo adeus e agora tomarão caminhos separados: "Não foi uma jornada inútil, foi? Você viu tantas coisas. Te mostrei o quê é ser um homem. Você sabe o que eu sou, meu filho? Um onze de espadas". O garoto retruca: "Um onze de espadas não existe". O homem retoma: "Exatamente. Uma carta fora do baralho. Que não serve para jogar. Tchau, meu velho". "11 de Espadas": existe melhor palavra para aqueles que conseguem enxergar de fora? Meu pai era uma carta assim, como o Vittorio Gassman de "Profumo di Donna". Quando conheceu minha mãe e se casou com ela, trazia sobre si o peso do mundo na forma do passado do qual tentava fugir, tendo o deixado na Europa. Fora ali onde perdera o amor de sua vida. Antes do Brasil, havia sido um homem prosperamente casado, até a manhã na qual a mulher saiu para o trabalho e não voltou mais. Morreu num acidente de trânsito, num cruzamento a algumas dezenas de metros de casa. Ele se encontrava em casa quando soube do ocorrido pela comoção ali perto. Correu em direção ao carro da mulher e chegaram a conversar, antes que um helicóptero a levasse ao hospital de onde não sairia viva. Soa tolo pensar nisso agora, entretanto, quando sua vida sofreu tamanho revés, os dois haviam tido uma típica briga de casal que estabelecera um afastamento silencioso de um dia, de sorte que, quando ela morreu, ainda estavam emocionalmente intrigados. Parece bobagem, pois todos os casais brigam, porém o detalhe foi poderoso a ponto de ditar o restante da vida desse homem. Até o dia de sua própria morte, é provável que seu último pensamento tenha girado em torno do remorso. Emblematicamente, seu caminho foi o mesmo performado por Vittorio Gassman na comédia dramática de Dino Risi, com a substituição de Europa até ao Brasil, em vez de Turim até a Nápoles. Minha mãe foi uma boa esposa e é uma viúva digna. Soube retribuir sua presença e o fato de tê-la assumido, dando-lhe um nome, e jamais ousou usurpar o lugar da primeira mulher. Manteve-se no seu devido lugar, mesmo ao casualmente descobrir que, atrás de uma foto dos dois, conservara, secretamente, a foto do amor de sua vida. Jamais teve coragem de abordar a questão. Avizinhando-se a morte por causa da enfermidade, por qualquer razão, enquanto ela cuidava dele, ao abrir a carteira para procurar a foto que escondera atrás da de ambos, não encontrou nada. Nunca soube o quê ele fez com a foto; contudo, seria a última coisa da qual ele precisaria, agora reunido ao amor de sua vida. Costuma-se dizer que ninguém pertence a ninguém, mas isto não é, de todo, verdade. Eu pertenço ao meu pai. Sempre pertenci. Muitos, muitos anos antes de nos cruzarmos pela primeira vez, quando um espaço infinito nos separava geograficamente, parecíamos um com o outro nas particularidades lançadas pelo destino; eu aos 15 anos, caminhando pelas calçadas muito largas acima das dunas, onde ia, solitariamente, contemplar a Praia do Futuro, ao lado de gatos de rua a quem contei meus segredos; ele vagando solitariamente, trôpego, por vielas e ruazinhas de uma ilha grega qualquer, após atentar afogar na sangria de alguma taverna local o remorso. Era 1995, não nos conhecíamos, não nos conheceríamos por muitos, muitos anos, porém ao me recordar de quando eu me punha de pé sobre a calçada ao gentil cair da tarde enquanto a Praia do Futuro se estendia ao horizonte, e imaginá-lo se colocando de pé sobre a parte mais alta da ilha, diante do Mediterrâneo, passo a acreditar de que há um propósito maior por trás dos infortúnios. Ir & vir, isso não significa nada.
"The Dark and the Wicked" propõe intrigantes questões para debates entre amigos, mas também pode simplesmente perfazer o modesto objetivo o qual seus criadores tinham em mente ao filmá-lo: entreter. Aprofundei-me nos aspectos mais psicologicamente relevantes por não me recordar de nenhum outro filme de horror recente tão fértil quanto a temas espirituais relevantes, considerando-se o momento corrente do mundo. Quem deseja ser apresentado a uma novidade capaz de remetê-los de volta a uma época mais refinada de terror, quando tínhamos clássicos como "O Exorcista", não terá de procurar em outro lugar, pois esta produção assinada por Bryan Bertino foi feita na medida para os nostálgicos por um estilo de terror que, a todo instante, dá a impressão de ter sido filmado há quarenta anos. Quem se interessa pela premissa e os pontos em comum entre a estória fictícia e a insuspeita, muito real vida do dia a dia, apreciará as intrigantes possibilidades levantadas pelo misterioso "vilão" em seu suposto "papel" no arco narrativo dos personagens, por mais que "The Dark and the Wicked". De qualquer forma, ao nos inserirmos na mesma barca assaltada pela tormenta, é sempre atual guardar em mente a verdade asseguradora de que, após tantos dramas típicos da jornada humana nesta terra, são eles, os demônios, que precisam temer a cruz, e não os seres humanos, para quem a voluntariedade com a qual nos lançamos à mesma é justamente o atendimento ao chamado da redenção. Se qualquer dia desses você resolver fazer como Carlo e abraçar a dor do mundo em vez de o mundo falso sem dor, por trazer dentro de si a impressão de que, neste jogo da vida, desde o começo, sempre foi o "11 de Espadas", a carta fora do baralho, regozije-se. Se passar a ser perseguido por alimentar moradores de rua ou gatos indefesos sem eira nem beira, se demônios confabularem para criar ciladas onde armarão com sagacidade a tempestade perfeita para que você mesmo, inocentemente, humilhe-se ou mine suas já precárias chances materiais, enxergue nisso a bênção por trás da eleição. No final, para depois da jornada, o que constará do seu livro de vida serão as pessoas a quem amou incondicionalmente, não as de quem não recebeu amor. Constará, ali, que você as amou todas, consoante esperado pela providência que te colocou aqui, por mais que dentre todas aquelas, aliás a maioria, tenham existido demônios que trabalharam ativamente para destruí-lo. Essa informação - a de que viveram como vassalos de anjos perversos - constará do livro de vida delas, não do seu. Para essa gente será absurdo crer nos próprios olhos quando a jornada chegar ao fim, mas dentre tantos, o único que sairá carregando tudo o que sempre desejou nos braços, e ainda muito mais, será justamente aquele que jamais imaginaram ser capaz de sair carregando qualquer coisa: você.