O romance "Pet Sematary" ainda se destaca como o ápice da carreira do escritor norte-americano Stephen King, um fato revelador da pura força bruta da estória: lançada em 1983, quase quarenta anos separam aquele momento de hoje; entretanto, mesmo levando-se em conta a extensa bibliografia do autor, impressiona-nos o fato de ele nunca ter conseguido repetir o impacto daquele trabalho. Curiosamente, quando se fala em arte, seja filmada ou escrita, o fenômeno se observa em muitos outros casos, inclusive cinema. O diretor canadense David Cronenberg, por exemplo, viveu os momentos mais frutíferos da carreira no passado, durante a década de 70, e por mais que tenha filmado obras interessantes nas décadas seguintes, anos 80 & 90, para todos os efeitos, já no início dos anos 2000 ele nada mais tinha a dizer. O aclamado cineasta italiano Dario Argento estabeleceu as bases de um estilo delirante e atmosférico de terror europeu com um número de clássicos como "Suspiria" & "Phenomena", realizados ao longo dos anos 70 & 80, mas os anos 90 não lhe foram generosos e os projetos minguaram. O caso de "Pet Sematary" chama a atenção, pois não foi somente o ponto alto da vida do homem de cuja mente nasceu a trama: a cineasta responsável pela primeira adaptação cinematográfica, Mary Lambert, também não conseguiu chegar perto de rodar algo tão excelente quanto sua versão para o romance. O mesmo pode ser dito quanto aos atores principais, Dale Midkiff & Denise Crosby, o Louis & Rachel Creed originais. Eu me recordo que ao tecer considerações sobre o primeiro filme, afirmei que esses dois pareciam pertencer ao mesmo frame, à mesma página. Embora tenham me cativado desde aquele dia há tantos anos quando vi o filme em vídeo, ainda criança, nenhum dos dois cumpriu o destino que lhes parecia reservado após o grande momento. Pelo modo como comandavam atenção só pelas suas meras presenças, o primeiro filme parecia o ponto de partida para duas estrelas de cinema em ascensão. Lamentavelmente, não aconteceu assim, e apesar de ambos terem ido adiante com carreiras sólidas, jamais consolidaram o estrelato que lhes parecia justamente devido. A proposta de uma refilmagem da obra vinha circulando estúdios há pelo menos vinte anos, pois desde 2003 apareciam boatos sobre ideias para uma nova versão, mas foram necessárias duas décadas até que o projeto vingasse pelas mãos e criatividade de jovens talentos que comandariam a reimaginação da trama. A refilmagem deu certo? Ela foi bem servida pelas surpresas que a dupla de cineastas agregou à estória original? Explorarei os pontos mais adiante, após a breve sinopse.

Breve sinopse: Logo a partir da primeira cena, "Cemitério Maldito" mostra a que veio de forma misteriosa e intrigante. Uma bem-executada tomada aérea captura a imensidão de um bosque fechado que, conforme aprenderemos, é em si uma importante personagem da trama, e segue filmando por cima a copa de árvores muito altas até se deter em um confuso cenário de homicídio: duas casas próximas uma à outra. Enquanto uma delas arde em chamas, a outra exibe sinistras pegadas de solo barrento que levam ao alpendre cheio de sangue. O filme, então, volta ao passado recente para que compreendamos os motivos por trás do caos exibido na introdução. A família Creed está de mudança para Ludlow, uma pacata cidadezinha do interior do Maine, e quando somos apresentados a eles, encontramos uma típica família feliz: ao volante, Louis Creed (Jason Clarke) é o líder natural, um homem bem-apessoado aos seus trinta e tantos anos, um médico que optou por tirar mulher e filhos da movimentada Boston para assumir o cargo de diretor do serviço de medicina do campus universitário; ao lado de Louis, Rachel (Amy Seimetz, que dá a performance excepcional do filme), devota esposa e mãe carinhosa das duas crianças no banco detrás, Ellie (Jeté Laurence), a irmãzinha mais velha, e Gage (Hugo Lavoie), um bebê. Há um outro passageiro muito especial entre os Creed, cujo arco servirá para impulsionar a trama em direção ao cenário de absoluto horror. Trata-se de Church, um felino da raça Maine Coon que é a "razão de viver" de Ellie. Para esta refilmagem, Church foi reimaginado como um gato enorme e peludo, distinto do Church original (tanto no romance quanto no filme de 1989, ele é descrito como um British Shorthair). O começo exibe com
graciosidade e leveza a chegada dos Creed à espaçosa residência onde
estabelecerão suas vidas, uma casa de dois andares com um belo alpendre e uma árvore com balanço. O cenário encanta a
todos, sobretudo a menina, que recebe do pai as chaves para ser a primeira a abrir a porta da frente. Nisso, um rumor súbito e
estridente vindo da pista assusta
Rachel. Aquilo funciona como um tipo de aviso, pois embora tenham se
realocado para uma agradável cidadezinha, a propriedade dos Creed
situa-se às margens de uma autoestrada cujo movimento incessante
deve-se ao fluxo de carretas e veículos de grande porte que levam e
trazem mercadorias das principais cidades ao interior do Maine. Muito
ternamente, Louis põe Rachel no colo antes de atravessar a soleira
da porta. Aqui, devo dizer que um de meus
principais temores ao assistir à refilmagem foi eliminado. Explico:
um dos elementos mais duradouros na minha memória ao assistir ao filme quando criança fora a sintonia maravilhosa entre o
Louis e a Rachel da produção de 1989. Eu temia que semelhante química
não fosse emulada para a reimaginação. Para minha feliz
surpresa, Jason Clarke & Amy Seimetz exibem a mesma facilidade e harmonia na maneira de se coadjuvarem.
Acreditamos na força da união entre os dois adultos da estória
desde o momento no qual ele a toma nos braços e a eleva do chão para transpor a entrada. Na calada
da noite, servidos pelo silêncio, enquanto Church dorme a seus pés
na cama, Rachel conversa amorosamente com o marido, querendo saber se
ele ficou feliz pela mudança. Claro, em seu tom ainda há certa apreensão, afinal trata-se de uma importante mudança de trajetória de vida.
Eventualmente, Louis indica que, sim, ele verdadeiramente crê no
aspecto positivo da corajosa decisão. Cócegas entre os dois geram
beijos e abraços, e eles vão dormir.


Na manhã seguinte,
Louis conhece o campus onde comandará os serviços médicos. O local chama a atenção, o campus é amplo e agradável, linda arquitetura de prédios antigos. Como dona de casa,
Rachel cuida das crianças e se encarrega de tirar as coisas das caixas para
arrumar a mudança. Enquanto ela se distrai conversando ao
telefone com a mãe, que a canhoneia com perguntas sobre se a filha
gostou da mudança, Ellie se aproveita do descuido e dá uma escapulida,
motivada pelos batuques que escuta vindo do bosque fechado para depois das árvores. Ela vai parar em um bucólico, infantil cemitério
originalmente organizado por crianças locais para enterrarem seus
animaizinhos mortos na pista, por conta da movimentação
dos veículos de grande porte que dia e noite não cessam suas
viagens. Crianças locais vestidas com máscaras de bichinhos marcham em uma pequena cerimônia fúnebre para um animalzinho. O mais interessante, entretanto, gira em torno de uma
espécie de "muralha", na verdade um gigantesco amontoado de
galhos e pedaços de tronco ali erigido para criar uma barreira
natural de modo que não se possa ir além do cemitério dos animais
rumo o caminho que verdadeiramente leva ao coração do bosque
e, mais além, a um platô alto originalmente povoado pelos índios
Micmacs. Quando se prepara para ganhar os galhos e transpor a
barreira, Ellie se assusta por causa de um idoso que aparece e lhe chama a
atenção. Ela perde o equilíbrio e cai; nada grave, mas o suficiente para deixar um arranhão na
canela. O idoso é o vizinho dos Creed e se chama Jud. Ele viveu
ali a vida inteira e conhece os segredos da terra. A menina logo se
põe à vontade na companhia de Jud, que lhe conta muito
superficialmente o passado do cemitério de animais. Rachel chega à
cena, naturalmente apreensiva e zangada com a filha fujona. Jud
se apresenta à Rachel como vizinho, e após as saudações e uma casual conversa, eles se despedem. De certa
forma, a experiência mexe com a cabeça da menina, pois à noite,
quando pai e mãe vão pô-la na cama, a menina lhes
dirige perguntas sobre a razão de os animais não viverem tanto
tempo quanto as pessoas. A conversa entre pai
e filha sobre metabolismo e os fatos da vida incomodam Rachel, que
tem razões pessoais para não falar sobre morte. O trauma de Rachel
remonta a infância, quando ela assistiu à irmã mais velha Zelda
definhar por causa de uma penosa enfermidade provocada pela meningite raquidiana. Louis crê que a esposa comete um erro na sua
obstinada superproteção da filha no que tange a morte, um dos fatos fundamentais
da vida, porém nada parece demovê-la, e as marcas deixadas por Zelda ganham vida através de flashbacks aterrorizantes. Em uma das lembranças, quando a menina Rachel vai
levar a comida para a irmã no quarto, vemos Zelda passageiramente deitada sobre a cama, mas a imagem de suas costas magérrimas parece
aterradora, sobretudo para uma criança.

Aqui, ocorre uma
das cenas cruciais, uma centelha do horror por vir. O modo
como os diretores contam o momento encontra perfeita
consonância com um dos temas da estória, já que no frigir dos ovos
a espinha dorsal de "Cemitério Maldito" revolve a luta de uma
família sob o assédio de uma entidade demoníaca. Voltarei ao tema
posteriormente, durante a análise do mérito. De qualquer modo, a
cena nos mostra Louis em seu ambiente de trabalho, em uma manhã
ensolarada de um dia que promete ser igual aos demais desde a chegada a Ludlow. Há movimento, mas sem nenhuma importante novidade no centro médico. Louis está louco para tirar um tempo para descanso, pois passou a
manhã atendendo estudantes. Subitamente, vem do corredor uma comoção,
e não por menos: um jovem chamado Victor Pascow (Obssa Ahmed) sofreu
um violentíssimo atropelamento. Ao dar entrada no ambulatório, levado sobre a maca, seu estado deplorável causa
arrepios nas enfermeiras. O atropelamento foi severo a ponto de causar uma fratura craniana caracterizada pelo esmagamento de um lado do rosto que permitiu
vazamento de massa encefálica. Mesmo acostumado a cenas do tipo, Louis se assusta. Ele mantém a compostura para executar
o trabalho com muito profissionalismo. Louis tenta a ressuscitação
e presta os primeiros socorros. Fica claro, outrossim, que o rapaz precisa
ser imediatamente realocado para um grande centro, visto que precisará
passar por delicadas e extensas cirurgias. Lamentavelmente, enquanto espera a chegada de uma ambulância para o deslocamento de Pascow, Louis
testemunha o último suspiro do rapaz. Ele se afasta da cama,
pesaroso, e dá as costas para o leito. As lâmpadas de LED começam
a trepidar, o que o faz se voltar para a cama, quando sofre um
terrível susto. Ele enxerga Victor ali, sentado na beirada,
com aquele rosto esmigalhado terrível, alertando-o de que "a
barreira não foi feita para ser desrespeitada". Louis só desperta
da cena de horror pelos chamados insistentes da enfermeira mais
velha. Livre do torpor, ao olhar para o mesmo canto, vê o cadáver imóvel na cama, como se o breve, aterrorizante instante jamais tivesse
ocorrido. Na volta para casa, à noite, passa um tempo dentro do
carro, à margem da pista maior, refletindo sobre os acontecimentos
da manhã. A esposa sente a mágoa do marido e se aproxima para conversar,
no alpendre. Louis lhe explica os motivos da tristeza. Íntima do
marido, Rachel sempre encontra o jeito certo de reassegurá-lo.
Para todos os
efeitos, na manhã seguinte, entre os Creed, a morte de Pascow parece
assunto encerrado. Ellie visita Jud e repara nas fotos em cor
sépia de uma mulher muito bonita. Jud fala à menina da falecida esposa, morta há alguns anos em decorrência de uma
doença. Docemente, a menina opina que ela estaria no
céu, olhando por todos. A menina discorre sobre seu gato e
como o nome veio de Winston Churchill, "um homem que viveu há
muito tempo". Jud lhe diz que sabe quem Winston Churchill foi, e
Ellie complementa, inocentemente: "Então ele deve ser bem velho mesmo".
Os dois dão boas risadas. Logo, a família Creed começa a se aproximar bastante do simpático, solitário idoso, e eles o acolhem em casa
para um almoço. Ellie pratica balé e executa um belo
número em homenagem ao convidado. Church salta sobre o colo do visitante. Se essa turma fizesse parte de uma orquestra, eles se sentariam com seus
instrumentos na mesma fileira, tão harmonicamente se relacionam.
Naquela noite, Louis vive uma experiência horripilante. Tudo ocorre
magicamente, como se ele se encontrasse no mundo dos sonhos. Pascow
se materializa perante o médico no quarto e "abre uma passagem
mágica" através da qual o leva diretamente ao
coração do bosque cuja envergadura Louis ainda não conhece por
causa da barreira. Pascow lhe traz alertas insistentes sobre como o
solo é amaldiçoado e não tem nada de bom para oferecer, por mais
tentador que a ideia lhe pareça. Louis desperta com os gritinhos de
Gage na cama. Por um minuto, suspira aliviado, crente de que o "passeio" se resumiu a uma noite mal dormida, porém ao puxar os
lençóis e encontrar os pés sujos de barro, fica em dúvida se dormia ou chegou
a efetivamente caminhar através do bosque na companhia do homem
morto.





























Quando assisti a "Starry Eyes" (foto), durante o filme e antes que a estória chegasse a sua parte mais sangrenta, eu já havia me impressionado com a sensibilidade dos diretores ao retratarem o aspecto humano da tragédia. Como a trama seguia a jornada de uma garçonete aspirante a atriz vivida por Alex Essoe, o filme tinha o dever de nos cativar com os dilemas e dramas experimentados pela protagonista. O "monstro" do filme não era algo tangível, mas nascia do apetite que as circunstâncias muito deprimentes tinham incutido no coração da moça, de maneira a galvanizar na sua mente a crença de que valia quaisquer sacrifícios pessoais pelo estrelato, até mesmo abrir mão da própria alma. Em vez de monstros ou efeitos especiais, os diretores apoiaram-se no pior dos antagonistas, abstrato demais para que se possa enfrentá-lo perfeitamente. No dia a dia de um grupo de jovens tão díspares e perdidos como átomos soltos, Kevin Kolsch & Dennis Widmyer passeavam suas câmeras pelo deck da piscina de um motel batido e deprimente onde iam desperdiçando suas vidas, através de antessalas de processos de audição para papéis em filmes B, através da cozinha de pequenas diners da parte mais periférica e pobre de Los Angeles, através das calçadas das glamourosas avenidas de Hollywood, que, à noite, denunciam a transitoriedade e mentira de tudo aquilo, estampadas nos rostos tristes e desencantados das almas errantes que passam vidas inteira ali, esperando o tão sonhado dia em que receberão uma ligação para um papel de cinema que lhes dará a felicidade do estrelato. No impecável tratamento dado ao verdadeiro monstro, Kevin Kolsch & Dennis Widmyer realizaram um feito e tanto, demonstrando uma visão tão afiada e inovadora quanto a do escritor Hubert Selby Jr., por exemplo, ao escrever sua evocativa obra literária "The Demon", a mais lúcida e realista descrição de um processo de obsessão diabólica, da qual tomei nota graças a Prof. Olavo de Carvalho ao ministrar o curso "A Consciência da Imortalidade". Além da assertividade dos cineastas, a magistral atuação do jovem elenco garantiu a "Starry Eyes" o status de clássico instantâneo. Cinco anos após "Starry Eyes", os diretores se reuniram para comandar "Cemitério Maldito", e ao se verem às voltas com a política de um grande estúdio mais preocupado com o tempo de projeção (que reflete no número de vezes que um filme pode ser exibido por um dia e, portanto, na bilheteria) do que com a autêntica, poética expressão artística, eles souberam que a melhor forma de tratar o projeto seria encontrando pequenas maneiras de instilar na produção pequenas, refrescantes sacadas e modo de pensar do cinema independente que dão ao filme uma elegância muito agradável, bem como tratando o Wendigo como um inalcançável mistério, notado exclusivamente pelos rastros deixados no mundo físico.


Tecnicamente, pessoas familiarizadas a "Starry Eyes" também notarão um interessante aceno dos cineastas ao filme. Como sabemos, "Starry Eyes" explora a lenta desintegração mental da protagonista. Ela "vende a alma" ao Diabo pelo estrelato. Durante a descida ao abismo, ela executa os amigos com quem coabitava a mesma casa, enquanto eles transitavam de audições a audições, à espera do sucesso. O assassinato mais chocante ocorria quando a personagem de Alex Essoe enfiava a lâmina em um rapaz aspirante a diretor de cinema, que por ela nutrira simpatia e até mesmo ajudara no começo da trama. Ela desfere uma estocada na barriga do rapaz e ele não tem tempo de reagir. O rapaz cai sentado na poltrona, em estado de choque, ao lado da assassina, enquanto a atriz sustenta a faca nas entranhas e vai adicionando insulto à injúria lhe falando imoralidades. Em "Cemitério Maldito", Kolsch & Widmyer imaginaram uma cena parecida, quando Ellie acerta Rachel com uma facada na espinha dorsal. Logo depois, enquanto Rachel agoniza, a vemos sentada no chão ao lado da mãe, agora sustentando uma segunda, mais violenta estocada em um dos flancos, um assassinato idêntico ao performado por Alex Essoe em "Starry Eyes". Em termos de mudanças propostas pelo time criativo, gostaria de tecer considerações a respeito de algumas delas. A mais explícita e corajosa deve-se à mudança da criança atropelada na pista. No romance, Gage era apanhado de frente por uma potente carreta ao deixar o piquenique e correr em direção à estrada atrás da pipa, num momento de desatenção dos pais. Essa versão de 2019 repete o horror da pista, e não obstante os diretores arquitetem a cena de forma a acharmos que será novamente Gage a criança colhida, uma fração de segundo muda completamente o desfecho, pois ao passo que o bebê é arrancado da "linha de fogo" por Louis, é a pobre Ellie quem recebe o pesado tanque deslizante. A proposta traz seus prós e contras, e, incrivelmente, tais pontos são exatamente idênticos, pois somente mudam ao sabor do ponto de vista. Ao escolher a menina mais velha como veículo para o demônio, os diretores abriram uma maior frente de ação. Agora, ao demônio são franqueadas ações impossíveis a um bebê. Dentro do corpo de uma criança de nove anos, o demônio pode se movimentar desenvolto e falar mais ameaçadoramente. De fato, na execução de Jud, Ellie causa arrepios pelos movimentos esquisitos com ombros e quadris, um jeito quase felino, realizado no alto da escada e, obviamente, pelo uso da máscara de gato. Ela também soa crível durante o homicídio da mãe, quando lhe fala palavras ruins enquanto a mantém em xeque graças à facada nos flancos. Simultaneamente, quando o romancista e a diretora do original escolheram o bebê como ferramenta do Wendigo, não podemos negar quão intrigante tornava-se o mistério da "ressurreição" e a forma como o demônio se relacionava com a mente da pessoa. A doçura da infância está para a malícia de um anjo decaído assim como água para óleo: não se misturam, não combinam. Justamente pela incongruência, a escolha do autor nos confundia e criava uma situação enormemente desconfortável e apavorante. Não podemos nos esquecer da cena do homicídio de Rachel pelas mãos do bebê Gage. Não testemunhamos uma cena tão gráfica quanto a do matricídio da versão recente, porém está para ser superada a contundência de uma mãe que abraça seu bebezinho, esperando confortá-lo só para tomar inadvertidamente os golpes de um afiado bisturi. Nesta refilmagem, Kolsch & Widmyer também parecem dar ao Wendigo uma "inteligência macabra" por trás da estratégia. Ao longo do filme, ações supostamente isoladas somam-se em estratégia, denunciando um propósito. O demônio deseja pacientemente apoderar-se das mentes de todos e arregimentar os Creed como ferramenta para se relacionar com o mundo material. Na qualidade de puro espírito, não tem como relacionar-se com nosso meio sem um corpo. O Wendigo não se satisfaz com Church. Logo, afia as garras para pegar os demais. Sua amplitude de ação se potencializa ao entrar em Ellie. A partir daí, fica mais simples arrastar os demais à armadilha. A impressão oferecida pela última cena, quando através do ponto de vista do bebê dentro do carro pontuamos a aproximação do trio e, em seguida, do gato que salta sobre o capô, é que o heterogêneo grupo resume-se à exata mesma entidade. Suas mentes perderam a individualidade. Eles viraram brinquedos manipulados pelo demônio por trás de suas ações aparentemente espontâneas. A fisicalidade dada por Kolsch & Widmyer ao demônio me surpreendeu pela maturidade. A dupla levanta possibilidades que apontam o quanto devem ter pesquisado e estudado durante o polimento do script. Eles desejaram compreender o mistério, e trataram o tema com o protocolo que confere com os fatos da vida. Retomo a passagem na qual Louis tenta salvar a vida de Pascow no ambulatório do campus. Ao permanecer para trás, sozinho com o cadáver, e ter seu nome chamado pela aparição sentada na maca, Louis vive seu primeiro contato com um aspecto do mundo para além da compreensão. No instante seguinte, uma enfermeira, presente ao ambulatório e alheia à cena, chama-o pelo nome, inteiramente imune à fugaz visão. Aqui, mesmo que insuspeitos, os diretores descreveram genialmente o modus operandi da psicologia demoníaca. Indiscutivelmente, Louis viu algo e não me refiro a uma invenção da mente. Sua cabeça não armou a visão, mas foi a plataforma pela qual a cena se desdobrou, ou melhor, para que fosse armada pelo demônio. "Nossa luta não é contra carne e sangue", afirma o apóstolo Paulo ao explicar como guerreamos contra "principados e potestades; contra os dominadores deste mundo tenebroso; contra as forças espirituais do mal, nas regiões celestes". Interpreto a cena como uma representação dramática impecável da ação demoníaca. A enfermeira porta-se normalmente, pois não enxerga o mesmo. Pascow falante com olhos injetados de sangue e cabeça estourada é algo real para o médico, mas só no âmbito da mente, o campo onde anjos decaídos fazem uso de nossas faculdades, inseguranças e medos mais enraizados para estabelecer um ponto de contato entre um âmbito superior que escapa de nossos olhos e o mundo físico onde efetivamente nos relacionamos. A colega de Louis não enxerga o "fantasma" pelo mesmo motivo que se você tirar uma foto de ondas de raio não as capturará - mas ondas de raio existem. Há uma qualidade espiritual ao mundo, porém como o próprio nome insiste, é espiritual. Nossos vícios e equívocos ao observar a coisa, por outro lado, nos frustram, pois nos levam a um absurdo viés, um beco sem saída onde a noção vira uma sugestão estapafúrdia digna de gozações. Perdemos tanto a acuidade do discernimento que ao examinarmos um caso como o do sr. Joseph Sciambra (foto), ao qual fui apresentado por um vídeo de Padre Paulo Ricardo, não conseguimos enxergar o mal justamente quando se encontra defronte de nossos olhos, tão explícito quanto Pascow com a cabeça estourada, avisando a Louis sobre não desrespeitar a barreira do bosque. Eu não escreverei detalhadamente sobre o caso Joseph Sciambra, pois encontrarão extenso material online acerca da história. Cristão renascido, o sr. Joseph Sciambra narra sua jornada através do inferno no livro "Swallowed by Satan: how our Lord Jesus Christ saved me from pornography, homosexuality and the occult", onde descreve como, por trás das aparências do cotidiano, a perversidade se insinua na mente e no coração sem qualquer tipo de extravagância ou espetáculo, razão pela qual a tentação é a mais insidiosa das armadilhas do demônio. Ela se traveste do banal, pois assim lança-se no tempo, ocasião na qual causa estragos às vezes irreparáveis. Sr. Joseph Sciambra era um garoto quando encontrou revistas de mulheres mal vestidas em poses sensuais nas gavetas do pai. Ele não passava de uma criança atrás de um propósito de vida, todavia o encontro ordinário estabeleceu seu primeiro contato com um mal que o acompanharia até a vida adulta e alteraria drasticamente seu caminho. Quando menos esperava, o apetite gerado pelas fotos reclamava um material mais explícito. Passou a buscar revistas com fotos mais agressivas explorando o ato sexual entre homem e mulher e, logo mais, apenas entre mulheres, e então entre homens. Aproximadamente na mesma época, o lançamento de vídeo-cassetes revolucionou a indústria pornográfica, estimulada a produzir e desaguar suas produções nas locadoras para atender a uma demanda crescente. Para abreviar uma longa, dolorosa história, detalhadamente descrita no livro, Joseph mergulhou no pesadelo que consumiu uma fatia considerável da vida, ensaiando nos coitos perigosos mantidos nos becos das ruas da Castro Street de São Francisco as cenas tenebrosas dos filmes pornôs que fervilhavam na sua mente desde a infância. De ator de produções marginais especializadas em fetichismo à prostituição, ele foi perdendo pelas calçadas a vivacidade e a própria alma. Isso durou até o dia em que, tendo desempenhado uma cena de sexo em grupo, voltou para casa com uma hemorragia e precisou sofrer uma intervenção cirúrgica. Enquanto a mãe chorava orando na sala de espera, pela primeira vez ocorreu-lhe rezar o Pai nosso. Durante a experiência de quase morte, sentiu a presença de dois demônios ao lado lhe instruindo: "abra!". Ao terminar a oração e ser trazido de volta pelos médicos, Joseph sentia que nascera pela segunda vez. Ele descreve a impressão dos primeiros dias como se uma névoa pesada tivesse se dissipado. Confuso, no ano seguinte à experiência, fugiu de São Francisco. Seu despertar e a aproximação ao Senhor são bem documentados no livro e no vídeo de aproximadamente uma hora de duração, disponível no Youtube, onde revisita locais e pontos fundamentais da jornada por Castro Street, ao longo de uma tarde ensolarada, e rememora episódios da época em que caminhara pelas mesmas calçadas. Assolado pelas recordações muito pesadas e gráficas, em certo momento ele se deixa ser avassalado pela emoção, e vomita e chora copiosamente. Muitos leriam sobre o caso e assistiriam ao documentário, e ficariam satisfeitos por terem conhecido a história. Simultaneamente, falhariam na tentativa de achar a conexão entre os eventos da vida de Joseph com o fenômeno da obsessão diabólica. Essas mesmas pessoas provavelmente leriam o livro de Hubert Selby Jr. e se indagariam, após fecharem-no, tendo concluído a leitura: "Bem, mas onde fica o demônio?". "Ele" não pode "ficar" em algum lugar, já que nem corpo tem para "entrar" ou "sair" do protagonista, Harry White. Nós é que, às vezes, "estamos neles". Desconsiderando casos raríssimos de assédio, nos quais se manifestam muito agressiva e visivelmente por consentimento da providência divina, como nas vidas de Santo Padre Pio ou São João Maria Vianney, sua ação preferencial e ordinária, a tentação, permeia-se nas mais diversas searas da vida. A psicologia de anjos decaídos é corretamente examinada numa analogia criada pelo pastor Neil T. Anderson ao narrar um episódio da infância. Quando criança, os passeios nas cercanias da fazenda com o pai e o irmão nunca eram uma ocasião de sossego, pois o cachorrinho da propriedade vizinha tinha por hábito correr atrás do garoto a ponto de lançá-lo numa escalada árvore acima, onde ele costumava esperar até que o bicho se fosse, depois de latir até cansar. Pai e irmão não prestavam atenção ao cachorrinho, que a eles não causava nenhum mal; entretanto, para o garoto, o bicho não lhe dava trégua, até o dia do pai o orientar: "Meu filho, apenas pare de fugir quando ele vier! Seja homem! Ele o deixará em paz!". Anderson assim procedeu, e adivinhem só? O cachorrinho avançou e latiu, mas ao se surpreender com o desprezo e a pouca importância com que o menino o recebeu, deu meia-volta e nunca mais o atormentou. Sr. Neil T. Anderson pergunta: "Afinal, que real poder tinha aquele cãozinho minúsculo e ridículo para me colocar no alto daquela árvore? Nenhum! Ele se serviu da minha mente, das minhas emoções, minha vontade e minhas pernas para me colocar em cima da árvore". Ele arremata, ao voltar à questão dos demônios: "Eles verdadeiramente não possuem poder algum, apenas aquilo que você dá a eles, e na realidade é tudo uma decepção, uma mentira essencialmente, ele é o pai da mentira, mas se você crê numa mentira, a mentira tem força para te devorar por dentro". Sr. Anderson aborda o perigo da sedução que essas coisas exercem sobre a curiosidade do homem comum e descreve a resposta adequada a questões do tipo: "Essas coisas já foram devidamente desarmadas na cruz, então, para nós, resume-se a reclamar a nossa autoridade sobre as mesmas e calá-las. Eu não preciso conhecer o inimigo porque ele só está comprometido com a mentira, e ele jamais é o mesmo, muda constantemente. É por isso que você não encontra quase nada nas Escrituras em termos de estrutura no que importa às táticas de Satanás, pelo simples fato de que ele é um mentiroso, ao passo que o oposto é verdade para o Senhor: Ele é o mesmo de ontem, hoje e amanhã, Ele nunca mudará, e é por causa de Sua consistência que eu tenho estabilidade na minha vida. Então, o fundamental não é aprender as táticas do demônio, não existe consistência nelas, a consistência se encontra em Cristo. Não é a mentira que eu tenho que buscar conhecer, é a verdade". Aprofundando-se na sua experiência com pessoas que sofreram obsessão, ele se vale de alguns casos para ilustrar pontualmente a ação ordinária do demônio, dentre eles o de uma mulher sobrevivente de abuso criada dentro do satanismo. Ela procurou sr. Anderson com a queixa de que vinha despertando com arranhões nas costas, braços e pernas, e não sabia explicar a origem do ataque. O pastor o nomina seu caso mais pesado: após investigar a fundo, descobriu que era a própria moça quem causava os hematomas no corpo. Ocorria que, assim como acontece à maioria de sobreviventes de abusos acontecidos na infância, ela desenvolvera DID (Dissociative Identity Disorder - Desordem da Dissociação de Personalidade, antigamente conhecida como Múltiplas Personalidades), e não entendia que uma "outra parte de si" vinha se manifestando à noite, mantendo-a naquele meio macabro, quase como em estado de sujeição demoníaca. Se você esperava uma surpresa extraordinária, pela qual o pastor rastrearia um demônio alado gigantesco assomado no meio da sala de estar, você tomaria o desfecho do caso como anti-climático. Muito pelo contrário, o desdobramento da história prova-se muito mais tenebroso do que a mais fértil das imaginações conceberia, principalmente por ser a verdade. Neil T. Anderson prossegue: "Se você vive enganado, você não passa de um instrumento do inimigo, mas ele ainda precisa de seus braços e boca e cordas vocais para agir, ele sozinho não pode, um anjo decaído não tem braços ou cordas vocais ou pernas, então, em essência, ele necessita de objetos animados para se relacionar com o mundo físico, daí casos onde, por exemplo, grupos de orações não conseguem rezar por causa de cães que começam a ladrar sem razão aparente justamente quando querem orar. Bem, demônios não conseguem ladrar, eles não têm boca, não têm cordas vocais. E por sinal, eis uma questão muito interessante, é muito, muito importante que você entenda: quando as pessoas me procuram dizendo que ouvem vozes, o que elas estão efetivamente ouvindo? Bem, para se ouvir, no mundo natural, você necessita de uma fonte de som, e aqui eu meramente descrevo um fenômeno físico, a contração e retração das moléculas no ar que 'batem' no tímpano, que por sua vez manda sinais elétricos para meu cérebro. Como eu vejo, no mundo natural? Eu preciso de uma fonte de luz que reflita um objeto material, e a informação chega aos meus nervos óticos que mandam os sinais elétricos para o meu cérebro. Agora, se eu apagasse as luzes, você não me veria, pois você precisa de uma fonte física de luz. Então quando pessoas me contam que estão vendo coisas horrorosas no meu gabinete, quando as atendo - e eu já testemunhei isso - o que elas realmente estão vendo? Porque eu olho para o mesmo canto e não vejo nada. 'Nossa luta não é contra carne e sangue'. O demônio não está lá fora, ele reside aqui dentro (e ele aponta para a cabeça), e a coisa usa sua mente para encenar toda a experiência". Este foi o primeiro aspecto muito interessante da representação de "Cemitério Maldito" para a ação demoníaca, pois para Louis, a experiência com Pascow no ambulatório se sucede explicitamente perante os olhos (na verdade, a mente); a enfermeira, entretanto, não enxerga o tenebroso cenário. Nessa toada, não há de se falar no "fantasma" de Pascow, e sim numa encenação, um estratagema da coisa para capturar a atenção do chefe de família, que àquele ponto já tem seus pensamentos embaralhados pela existência do evocativo poder do bosque. O outro aspecto que emoldura excelentemente o assédio se dá pelo viés da estratégia do Wendigo de "arregimentar" a família inteira. Refiro-me, claro, à tomada pela qual os diretores reúnem no mesmo frame os Creed caminhando em direção ao carro, a partir do ponto de vista da criança sentada do lado de dentro. Rachel, Louis e Ellie vão se achegando vagarosamente, e Church salta repentinamente sobre o capô. Eles vestem o mesmo olhar malévolo e faminto. Sendo uma obra de ficção, é lógico que os diretores se valeram do exagero da linguagem poética; entretanto, o frame em questão - um grupo de pessoas em relação simbiótica - também confere com a noção que se tem dos demônios na vida real. Se prestarem atenção à cena, concluirão que não obstante vejamos três indivíduos distintos - um homem, uma mulher e uma menina -, o trio, na verdade o quarteto, incluindo-se o gato, dá ao Wendigo o perfeito conduto para canalizar sua ação no mundo físico. Aquelas pessoas deixaram de existir individualmente; agora, viraram uma coisa só, uma mente demoníaca, e embora só tomemos consciência após certa reflexão, eis a cristalina imagem do Wendigo: pessoas dentro de um mesmo frame, um mesmo enquadramento, uma mesma frequência de ação. Antes de explicar a razão de meus elogios à sensibilidade da dupla de cineastas, devo falar sobre minha própria experiência. Escrevi claramente acima que viemos ao mundo para nos sairmos bem em dois flancos: amar a Deus no próximo & conhecer a verdade. "Renuncie a si mesmo, tome a sua cruz dia após dia e me siga", ordenou Cristo Jesus a quem quisesse ouvi-Lo, reafirmando, nas entrelinhas, um trecho da petição na oração de Pai nosso, quando pedimos para que não nos deixe cair em tentação e nos livre do Mal. Aprendemos que nos cabe rogar para resistirmos às tentações; entretanto, elas virão. O catecismo segue na mesma linha: "Embora Satanás atue no mundo por ódio a Deus e o seu reinado em Jesus Cristo, e embora a sua ação cause graves prejuízos – de natureza espiritual e indiretamente, também, de natureza física – a cada homem e à sociedade, essa ação é permitida pela divina Providência, que com vigor e doçura dirige a história do homem e do mundo. A permissão divina da atividade diabólica é um grande mistério, mas nós sabemos que Deus colabora em tudo para o bem daqueles que O amam". De uma estranha forma, conforme diz Padre Marco Tosatti, em entrevista ao site de Padre Paulo Ricardo, sobre seu livro "Padre Pio contro Satana: la battaglia finale", o fato de lutarmos até o fim contra um inimigo tão misterioso nos torna pessoas melhores. Ele opina: "Vemos que Deus se serve do demônio, de forma misteriosa, como um instrumento, um instrumento estranho, vá lá, mas que serve à santificação das pessoas. É um mistério. É como ver um bordado pela parte de trás: parece-nos um caos, um emaranhado de fios e cores. Mas o bordador, que o vê de cima, costurando o desenho, sabe bem o que faz". Se durante nossa caminhada humana parte daquilo que nos ocorre se introduz sem que tenhamos compreensão de onde vieram, à medida que crescemos, não acumulamos somente tempo. A experiência de vida calibra o alcance dos olhos, também passamos a ver os detalhes. Do mesmo jeito que a cada um de nós há uma peculiaridade, uma regularidade para determinado problema ou drama que parece nos seguir, com o tempo eu vim a discernir essa presença na minha vida pessoal - e acerca do problema já escrevi esporadicamente -, algo bem identificável e concreto, chamado "transtorno de personalidade narcisista". Entrou na minha vida quando eu tinha cinco ou seis anos através da pessoa de uma mulher loira que, no seu primeiro encontro comigo, costumava me visitar à noite para tirar a minha blusa para me beliscar. Ela o fazia à noite porque podia agir mais livremente. Depois, conformou-se em me ameaçar e acuar, mas o que verdadeiramente desejava era me matar. Ela só não o fez por conta das complicações que teria. Se tivesse dependido da vontade, estou certo de que teria me matado com o travesseiro já naquelas duas ou três semanas nas quais convivemos pela primeira vez. Essa presença teve um período certo para me atormentar: foi de 1986 a 1991, salvo engano, quando nunca mais a vi, embora ela tenha descoberto o telefone da casa de minha avó e me procurado em 2003, a que foi completamente ignorada. Dela, eu me recordo dos abusos a que me submeteu, e o fato de que ela era a cara de uma atriz canadense chamada Deborah Unger no filme "Crash Estranhos Prazeres", de 1996, do diretor David Cronenberg. Pessoas vindas mais tarde repetiam o mesmo padrão comportamental. Por alguma razão, elas se viam atraídas por mim. Eu me recordo que minha avó, a pessoa a quem eu mais amei, parecia perceber aquele estranho, curioso fenômeno, porém, ao não compreender a natureza da coincidência, não sabia como me ajudar, a não ser me amando e protegendo. Foi somente anos depois, aproximadamente um semestre após o falecimento dela, há quatro anos, que chegou à minha atenção um artigo sobre o transtorno de personalidade narcisista. Intrigado, passei a ler os textos, a assistir aos vídeos. Ocorreu-me que o motivo de eu jamais ter me sentido bem-recebido em lugar algum, a não ser sob o teto de minha avó, podia ser rastreado ao transtorno, pois quase todos os adultos que de uma maneira ou outra haviam entrado e saído de minha vida exibiam os sintomas clássicos. Não apenas isso, o mais arrepiante consiste na realidade de que mesmo hoje, aos meus quarenta anos, a coisa parece não ter ido completamente embora. Ainda vejo em olhares traços daquelas representações da minha infância, e me lembro que antes de ler qualquer linha sobre a doença, ao encontrar tais olhos voltados na minha direção, eu costumava dizer para mim mesmo: "Rapaz, não pode ser, mas eu já conheço essa besta, esse monstro de algum lugar!". E por isso, quanto a "Cemitério Maldito", acho genial que Kevin Kolsch & Dennis Widmyer tenham colocado os Creed num mesmo frame para emprestar fisicalidade a um demônio abstrato e intangível, porém muito real e ativo. Conforme me ensina a experiência de vida, a mulher loira e as pessoas vindas nos anos seguintes até o dia de hoje são mais íntimas do que pensam, ainda que não tenham se relacionado anteriormente: elas são a mesma coisa. Quando a verdade se assomou e eu formei a convicção de que a natureza do inimigo transcendia psicopatas ou gente puramente hedonista, pus sob perfeito contraste a identidade da coisa que durante meu crescimento despertava-me à noite, da coisa cujo assédio minha avó não compreendia bem, mas que a preocupava o suficiente para que, quando me via distante de sua proteção, chamasse agoniada pelo meu nome na escuridão, perguntando-se se eu estaria bem, ao acordar de madrugada. Os céticos dariam com os ombros e me diriam, "Mas claro que a coisa existe, e a coisa tem um nome, não há nada de anormal! Chama-se transtorno de personalidade narcisista". Possivelmente, eu responderia com um aceno de cabeça para finalizar o assunto, mas no íntimo sei que aqui o senso comum não cabe, não fornece o quadro mais amplo. Aquela gente não se liga somente por conta de um mesmo transtorno psiquiátrico. Trata-se de algo muito abstrato e espiritual dotado de ascendência e magnetismo sobre suas cabeças. Por qualquer razão, entrou na minha vida lá atrás, aos seis anos, e me acompanhou por todos esses anos, até eu a ter visto. A coisa sempre me odiou e quis minha ruína e desgraça. Emblematizada no olhar assassino da mulher loira que erguia o indicador sobre os lábios para que eu me mantivesse calado enquanto me beliscava, se a coisa a tivesse possuído naquela noite no distante ano de 1985, ela teria me sufocado com um travesseiro. Não o fez pois sobre sua mente não exercia possessão, somente um curioso estado de sujeição. Quando a coisa notou que eu a via, trinta anos mais tarde, elevou o tom do ataque, o que fica atestado nas perseguições aparentemente aleatórias que sofro até hoje. Embora tenha atormentado minha vida, particularmente na época em que se escondia por trás das aparências, eu lhe devo gratidão, pois dela tirei grandes bênçãos. Não fosse a presença misteriosa da coincidência que liga esse elenco de pessoas, desde a mulher loira a aqueles em cujo soslaio do olhar eu ainda vejo a coisa, eu não teria conhecido o amor de minha avó. Ao tentar me proteger, ela me deu a definitiva prova de que ninguém me amou tanto quanto sua pessoa, e são pouquíssimas as pessoas amadas assim: os narcisistas mesmo jamais são verdadeiramente amados, e para eles este é o pior insulto, o insulto que os paralisa no tempo como crianças birrentas, arrogantes e cruéis. Minha história pode soar chocante para qualquer um que chegou ao artigo interessado no filme e agora lamenta ter lido até aqui, porque as coisas que escrevi o farão pensar sobre uma pletora de temas, mas você sabe que, no âmbito pessoal, também escuta o canto de sereia, a mentira diabólica que o prende ao problema do qual não consegue se desvincular. Pensar a respeito da mensagem trazida no artigo, todavia, poderá levá-lo a desejar a verdade, a única arma para se fazer frente `a palavra ilusória do demônio que te promete uma falsa felicidade. "Mas o que você vê?", você me perguntaria, louco para ler acerca da fisicalidade da "coisa". Bem, eu lamento decepcionar, não tenho surpresas. Eu não tenho adjetivos para descrevê-la, mas posso usar a analogia para ilustrar o caso: se em dado momento você amou alguém, se estabeleceu os pilares da vida em torno desse amor, então os bens que construiu ou juntou para viabilizá-lo puderam ser vistos e tocados em determinado ponto do tempo. Eles efetivamente existiram no mundo material; por outro lado, você nunca viu o seu amor. Você jamais viu um coraçãozinho vermelho sorridente de luvas brancas atravessando a faixa de pedestres, como aquele pessoal fantasiado dos parques de Walt Disney. O coraçãozinho jamais se assomou diante de seus olhos ou estabeleceu uma relação face a face; não obstante, entre vocês, existiu uma relação pessoal, e você empregou seu tempo no mundo para apostar todas as fichas em cima de um sentimento invisível pois parte de si soube o tempo inteiro que ele era mais real que os bens ao alcance dos sentidos. De fato, à medida que o tempo vai passando, são os bens aqueles que se esfarelam e desaparecem engolidos pela névoa, e as coisas invisíveis as que ficam fortes como rochedo. A constatação se explicita melhor se você prestar atenção a uma foto de si aos quinze anos e notar que aquela pessoa um dia foi você. Ao passo que nossas células foram trocadas a ponto de nenhuma delas ser a mesma de vinte anos atrás, a certeza da continuidade se manteve e jamais mudou. O mistério gira em torno da identidade do elemento constituinte o qual permite que ao nos recordarmos de um fato ocorrido aos quinze anos, por exemplo, ainda nos identifiquemos com a experiência. Não pode ter sido sua identidade social, sempre em perene transformação. Considere o que houve entre os quinze anos e hoje, e listará um leque de mudanças. Você se formou, casou, teve filhos, perdeu e ganhou dinheiro, mudou de trabalho... Seu "eu social" rotineiramente lhe causa angústia e preocupação, pois as transformações, mesmo quando para melhor, nos deixam inquietos perante o desconhecido: "Afinal, devo ou não aceitar tomar posse neste ótimo, novo cargo, mas distante de casa? Afinal, devo ou não seguir adiante e casar com fulano? afinal, devo...". No "eu social" jamais encontramos estabilidade, pois nessa constelação de símbolos inconexos nos vemos sempre nos adaptanto a circunstâncias inéditas, não pode ser ele o elemento de onde vem sua familiaridade com a foto antiga. Não deve ser o "eu presencial", pois ele tampouco oferece consistência, a não ser o recebimento dos estímulos exteriores filtrados pelo caráter seletivo da percepção presente e a resposta imediata aos estímulos. Agora, você presta atenção na leitura do texto, mas há meia hora fazia algo completamente diferente e o artigo não compunha um elemento de sua vida; daqui a meia hora, dificilmente se recordará do que leu, pois então outra coisa lhe ocupará a mente, enquanto tantas outras ocorrerão em simultâneo sem que jamais tenham parecido fazer parte do mundo. É verdade que o "eu presencial" sempre esteve aí, pois ninguém se recorda de "ter estado no nada", mas o "eu presencial" jamais se apresenta de maneira contínua. O conjunto de notas percebidas e desligadas umas da outras muda ao sabor do tempo. O "eu biográfico", descontínuo e pouco confiável, não elucida o mistério, pois ele também não conta a vida que transcorreu, mas a versão que demos a ela, uma versão dependente das narrativas que não conferem com a totalidade do ocorrido. Fora os enormes blocos perdidos de memória que não voltam mais, também prejudicam a percepção as pequenas coisas que não absorvemos no momento do acontecido, mas que mais tarde se mostraram importantíssimas. Cito minha experiência com os narcisistas malignos. Seus olhares voltados à minha pessoa a partir da infância até a vida adulta eram notados, contudo só se revelaram importantes à medida que conheci o transtorno da personalidade narcisista. Olhares que aquelas pessoas lançavam sobre mim chamavam-me a atenção pela malícia; entretanto, no minuto seguinte, eu já não pensava mais a fundo. Mais tarde, descobri que ali existiam votos pela minha desgraça e me encaravam daquela forma por se divertirem com meu desconhecimento do que estava em jogo. O mesmo houve quanto a olhares de afeto os quais eu não soube captar à época em que teriam feito toda a diferença; ali havia pessoas que tinham gostado muito de mim, e eu não pude reconhecer e retribuir o carinho por ignorância e imaturidade da juventude; na verdade, afastei-as. Recordo-me de quando tinha dezessete anos, em 1997, de uma ocasião na qual esperava ser buscado pela minha mãe, à noite, na porta do colégio pré-universitário, após um aulão de véspera. Uma menina da sala se aproximou com naturalidade e cortesia, e me cumprimentou. Seu único intento era introduzir uma conversa, ser minha amiga, alguém com quem eu pudesse contar. Eu dei uma resposta bem arrogante e cretina, e ela se afastou, pega de surpresa. Já ali, eu me senti absolutamente envergonhado. Perguntei-me, em pensamento, "Meu Deus, por que eu fiz isso?!". Foi tão aleatório e gratuito. Em todos esses anos, eu nunca consegui esquecer minha grosseria. Ela estudou, tornou-se médica, casou-se, provavelmente é uma mamãe, e nem deve se lembrar daquela noite, em 1997, mas eu jamais esqueci meu pecado. Faz tanto tempo, porém ocasionalmente penso nela, e espero que ela e a família estejam bem e felizes. Isso sem falar em momentos cruciais os quais não testemunhamos, mas que se consolidaram em nossas histórias pessoais. Você se recorda de ter nascido? A resposta é negativa, mas acredita nisso porque alguém te contou, ou seja, a ocasião do nascimento não foi parte de sua memória, mas da memória alheia, incorporada à sua. Os fatores com os quais você reconta sua jornada, em síntese, eliminam a pretensão de que ela pareça imutável e retilínea. Não foi seu passado que mudou, e sim a narrativa dos fatos. Os três "eu" acima compõem-se de fragmentos desconectados e sem nenhuma unidade efetiva, não nos ajudam a responder a questão porque não apontam a localização exata da experiência perene do "eu definitivo". Não sabemos de onde vem o sentimento da continuidade, não tem como ser reportado a outro fator que o constitua. Não há como o referirmos ao corpo, à linguagem, a nenhum outro elemento, a não ser ao próprio, a que chamamos de "eu substancial". Tudo depende do "eu substancial", pois ele é o verdadeiro senso de continuidade, diferente dos demais sentimentos picotados e inconstantes dos outros "eu", sublinhando-os todos, conectando os fragmentos descontínuos da percepção e os colando numa coesa e lógica unidade que, por exemplo, permite-nos, ao piscarmos, sabermos que ao abrirmos os olhos nos encontraremos no mesmo lugar, ou nos reconhecermos nos sonhos, ainda que inconscientes. Sua presença é inerente à existência do ser humano. Não sabemos de onde vem, contudo é coextensivo à nossa vida, inclusive no período pré-uterino. É como um rio sempre correndo por baixo da estrutura do mundo, ao qual podemos voltar quantas vezes quisermos. Esse rio é incognoscível, ele não é pensável, tampouco redutível a um mero conteúdo da mente. Não pode ser comportado por uma representação do pensamento, e corre para além de nosso alcance, sem poder ser detido. Tudo o que nos acontece, se dá dentro dele, escapando ao dogma da Psicanálise, segundo a qual o "eu" seria uma construção do inconsciente. Como o "eu substancial" não pode ser constituído por qualquer coisa, porque sua presença é pré-requisito para a de todas as outras, ele não é produto da mente, tampouco algo que a mente possa conhecer. A única maneira indireta de "conhecê-lo" é admiti-lo como algo que não temos como mentalmente dominar ou representar, porém emblematiza o que há de mais consistente em nós, e que só se conhece através da experiência do existir. Só Deus conhece o "eu substancial" de cada pessoa, e embora seja tão misterioso, não existe nada mais verdadeiro. O resto limita-se a um tecido de aparências costurado pela mente, cujo trabalho é apenas superficial e descontínuo e depende diretamente da firme estrutura ontológica do "rio corrente" que a acompanha, sustenta e sublinha, o "eu substancial", que mantém a coesão entre as formas físicas e psicológicas que você experimenta no decorrer do tempo, e onde verdadeiramente repousa sua força decisória. Por nos constituir em uma individualidade completa e irredutível, tornar-nos indivíduos perfeitamente reais, tudo o que podemos conhecer de Deus se dá através da aceitação dessa individualidade irredutível. Questões que tanto preocupam a humanidade - livre arbítrio, determinismo, Bem & Mal, pecado & graça - se reportam e são respondidas pelo "eu substancial", e não pelo binômio mente & corpo. Encontramos o "eu substancial" sempre que, diante da enormidade e imprevisibilidade da vida, nos perguntamos a razão de nos encontrarmos aqui. Como o "eu substancial" não tem o menor fundamento e, na verdade, estamos em queda livre no ar, como ele não é comportado por algo maior que o justifique, como o conhecemos só pelo dado de algo que está aí, e não como um processo causal que fundamenta minha existência, só há uma resposta: eu estou aqui porque Deus quis e nada pode revogar minha existência. Somos criaturas do amor divino. Ele não era obrigado a nos criar; no entanto, o fez. Vivenciar a nossa falta de fundamento é o momento em que falamos com Deus, a única experiência de Deus possível. Não avançamos um único passo além disso, a não ser que Ele avance em nossa direção. No frigir dos ovos, a história da jornada humana passa pela compreensão do "eu substancial"; nele reside a diferença entre salvação e danação, pois na resposta que seu "eu substancial" dará à constatação de que você é uma criatura sem fundamento algum, a não ser o amor divino, duas coisas podem acontecer: você se põe humildemente como um ser do amor divino ou você não o aceita e resolve ser seu próprio fundamento. Não aceitar o amor foi a queda, foi o "Não servirei" de Satanás, foi a guerra dos anjos que, conforme escrevi, não se deu com punhos ou espadas, mas no intelecto. No final, todas as coisas felizes ou tristes que o futuro nos reserva serão apenas isso, coisas que aconteceram. Por quanto tempo Cristo sofreu? Uma semana. Há quanto tempo ele goza da beatitude da contemplação de Deus? Não há comparação entre uma coisa e outra. E quanto ao fato de termos nos chafurdado tanto na lama a ponto de suplicarmos que nos tire esse "maldito livre arbítrio", já que somos uma sucessão de pecados e fracassos? Como nossa miséria humana se compararia à misericórdia divina de um Pai que, diante do erro do filho, age perdoando-o e trazendo-o para mais perto de Si, sendo suficiente que apenas se peça? Nossos pecados não definirão nosso destino final. Até o mais desgraçado dos párias pode, se quiser, levantar-se da calçada imunda da sarjeta como homem e se tornar um santo maior que Pedro, o príncipe dos apóstolos. Paulo mesmo foi um frio assassino de cristãos, até o dia em que caiu do cavalo. Por extensão, creio que tampouco as mais fantásticas realizações pesem tanto, pois apesar de agradarem a Deus, Ele não precisa da gente para nada. No instante decisivo, não se resumirá a uma questão de merecimento. Até o mais perfeito dos homens, alguém como Padre Pio, a meu ver o homem definitivo do século XX, não merece de per si a misericórdia divina. Acontece que Deus vai dá-la até ao pior dos párias, porque nos ama, e é isso. O que definirá a história será a resposta ao "eu substantivo". Se por um lado você pode abraçá-lo e saltar para a eternidade da contemplação de Deus, seja lá o que isso for, visualmente falando, por outro lado você tem a escolha de virar as costas e sair andando. E, tendo dado as costas a Ele, só resta deixar-se diluir no oceano de escuridão que é a mente diabólica.
"Cemitério Maldito" não é somente um filme de horror. Oriundo de um romance de escol psicológico, mesmo não tendo cumprido inteiramente o potencial, ele já dispara à frente de quase todos os filmes do gênero de 2019. Ao privilegiar a família como o centro da ação do Wendigo, o filme nos toca a um nível muito íntimo ao nos remeter à nossa própria família, intrigando-nos com desdobramentos a partir dos quais partem perguntas fundamentais: se fosse de seu conhecimento semelhante lugar, você teria sido levado pela mentira do inimigo e enterrado um filho ou a esposa no solo? Simultaneamente, na obra literária, "Cemitério Maldito" tempera o terror da ação demoníaca com episódios dramáticos da vida ordinária familiar, encantando-nos em momentos belamente descritos, razão pela qual, além de recomendar este filme dos srs. Kevin Kolsch & Dennis Widmyer, insisto para que leiam o romance. Dentre tantas bonitas passagens, recordo-me de quão genuínas soavam as conversas e momentos entre Louis e Rachel, detalhes e dilemas adoráveis que nos levavam juntos na aventura de dois seres humanos aos trinta e tantos anos, pais e parceiros românticos, certo que falíveis, mas singulares em sua boa vontade. Ambos reconheciam os respectivos calos. Próprio a amigos cujas histórias viemos a conhecer e participar, esse vibrante sentimento se encontra pulsante nas páginas do livro. A estória não termina após fecharmos o romance; os Creed seguem conosco para sempre, e no decorrer dos nossos dramas diários reais, vasculhamos as lembranças atrás dos quatro para estabelecer uma comparação criativa entre nossas escolhas e as de Rachel e Louis. O guia da intrigante jornada, obviamente, é o misterioso Church. Sendo um gato, não há melhores olhos através dos quais testemunharíamos os estranhos fatos na casa dos Creed tão afiadamente, mas devo dizer que Church não foi o primeiro felino a servir como testemunha da jornada humana. Em "Coraline & o mundo secreto", um inesquecível filme que somente de fachada é um desenho, mas no cerne trata-se de um drama sobre narcisismo maligno, a protagonista também é guiada por um misterioso gato preto que some e aparece conforme as necessidades, e a vai conduzindo no doloroso processo do despertar da consciência. Gatos também compuseram o pano de fundo da minha vida, eles sempre estiveram por perto. Eu os servia sempre, mas neste infeliz momento, vi-me forçado a me manter longe dos meus gatos da praia, a quem eu tinha por serviço dar comida nas sextas-feiras, sábados e domingos, na verdade um tributo à memória do bem-aventurado Carlo Acutis. Hoje, acompanho-os de longe, pois é a família da barraca que não lhes deixa faltar nada. Isso não durará para sempre, pois logo a pandemia terá se dissipado, e eu voltarei aos meus príncipes. Como sabem o tamanho de minha saudade, enviam-me pelo celular, ao fim do dia, vídeos dos gatos comendo a ração sobre a passagem que dá para a praia. De qualquer maneira, tudo o que eu fizer será muito pouco em comparação às lições que me ensinaram no silêncio e na naturalidade do agir. Meus insights ocorrem em momentos nos quais os observo lá de cima, da sacada, os gatos da minha quadra, aqueles que ainda posso alimentar nas manhãs e tardes, já que mais próximos. Eu pensava nas minhas palavras sobre o "eu substancial", sobre a única diferença entre danação & salvação, e, de repente, ocorreu-me a identidade entre algo infinitamente complexo e a singeleza e simplicidade de gatos que se movem e se relacionam ao longo de um quarteirão esvaziado de humanos. Ao subtrair as pessoas, as circunstâncias potencializaram o alcance da lente pela qual os compreendo tão intimamente. Vendo-os na lida social, ninguém faz política como os felinos. Eles formam parcerias, convivem na hora de comer porções de ração, protegem-se da chuva sob a segurança oferecida pelo terreno onde a construção de um edifício foi paralisada, triangulam o ataque aos pombos durante o comecinho da manhã... Quando desço do automóvel para servi-los, reforçam território, tramam uns contra os outros por domínio de espaço... Imagino que para eles, nas suas cabecinhas, esses pitorescos elementos cotidianos representem os dramas mais fundamentais do mundos. E, no momento seguinte, ao suave toque da noite, quando me posiciono na sacada muito acima e deles guardo visão mais abrangente, ao tempo que os observo se conduzindo conforme seus interesses, consoante a política dos gatos, para mim não há distinção. Por mais que entre si suas individualidades lhes valham a riqueza de imprevisibilidades que caracteriza suas breves existências, muitas vezes findas tragicamente, aos olhos daquele que observa de cima, a questão fica mais clara: não há diferença entre eles. Eu verdadeiramente os amo todos, e ora emocionando-me ao vê-los brincar, ora tentando apartá-los quando se metem em brigas territoriais, eu torço pelo melhor. Às vezes, eu me pergunto se nossas vidas neste mundo louco não seriam observadas da mesma maneira, do ponto de vista dessa miríade de anjos, os bons e os decaídos, e do ponto de vista de Deus. Pergunto-me se, ao tempo que experimentamos a vida achando que são as coisas do mundo as mais definitivas e importantes, Deus não estaria nos observando pacientemente, sem estabelecer diferenças, amando indistintamente e torcendo para que cheguemos lá. Dos anjos, não tenho certeza de onde ou como nos observam; agora, no meu caso, minha certeza de presença repousa sobre os gatos. Eles sempre estiveram por perto, mais me observando do que sendo exclusivamente observados de cima, já a partir de minha meninice, quando crescia sob o olhar de uma avó amorosa. Os gatos, permanecem de pé sobre uma espécie de ponte, ali ao lado da minha avó, ligando minha infância à conversão, por mais que desde aquele tempo, em 1995, ainda tão longe da verdade, minha mente de criança já pressentisse que ao subir na ponte eu cruzaria a fronteira a partir da qual as aparências passariam a se esfarelar até sumirem envoltas pela névoa, e os bens invisíveis se pronunciariam para fora dos sonhos, tão discerníveis quanto o tipo de verdade a qual não se pode negar.