Nota do autor: este roteiro foi originalmente escrito em 2013 e publicado neste blog no ano seguinte. Retirado para edições voltadas a poli-lo, republico-o sete anos após sua concepção original.
Olá, pessoal. A vocês que vêm prestigiando meu trabalho há algum tempo, tenho a satisfação de trazer neste começo de ano "Nenhum Passo em Falso", o roteiro que escrevi para a "reimaginação" do filme "Ôdishon", de Takashi Miike. Previamente analisado no blog, no fechamento da resenha de "Ôdishon", mencionei que dentre todos os suspenses refeitos por Hollywood ao longo da década passada o filme de Miike foi um dos poucos que não mereceu o mesmo tratamento de "O Chamado", por exemplo, talvez pela dificuldade que cineastas ocidentais teriam para transpor temas tão próprios à cultura que o gerou. Baseado no romance de Ryo Murakami, o filme foi estrelado por Ryo Ishibashi no papel de Aoyama, um homem honrado e honesto que alguns anos após o duro golpe da perda da mulher para o câncer resolve acatar a sugestão do amigo, o produtor de cinema Yoshikawa, para forjar um processo seletivo para o elenco de um projeto que existe somente no papel, apenas para que Aoyama conheça novas moças e quem sabe encontre alguma que demonstre afinidades que ele busca em uma futura companheira.
Jennifer Connelly como Kylie Grattan; Burt Reynolds vive Eric Dudley. |
Em linhas bem simples, Aoyama se apaixona por uma jovem atriz muito bonita e misteriosa chamada Asami. Encantado pela sua beleza e timidez, deixa de enxergar sinais muito explícitos que apontam para problemas seriíssimos logo à frente. Yoshikawa investiga as referências fornecidas pela moça e descobre que as peças não se encaixam. As informações preenchidas no formulário levam apenas a becos sem saída. Aoyama não dá ouvidos ao melhor amigo, que suplica que não ponha a emoção acima da razão. O que se sucede é um filme de horror muito forte e de incomum estrutura, jamais experimentada anteriormente. "Ôdishon" começa com uma tragédia (a esposa morrendo), assume a aparência de comédia romântica, estilo os filmes protagonizados por Rachel McAdams, e então, quando menos se espera, torna-se um mistério de horror claustrofóbico sem tréguas. Apesar de brilhantemente executado, compreendo que o filme perde parte do charme ao descambar para a escatologia de seu terço final. A crueza brutal e desnecessária das cenas mais violentas prejudica a elegância tão bem sustentada pelo cineasta durante a primeira metade. Minha observação não significa que o filme falhou, muito pelo contrário: "Ôdishon" é uma máquina de suspense. Em minha humilde opinião, entretanto, creio que teria sido beneficiado pelo exercício da paciência e discrição.
Quando comecei a escrever "Nenhum Passo em Falso", a derivação imaginada para a trama de Murakami, não esperava que o destino dos personagens fosse mudar tanto, tampouco considerava a introdução de novos protagonistas. O apelo misterioso de Tóquio, já tão bem explorado em filmes como "Kairo", de Kiyoshi Kurosawa, cedeu lugar ao sentimento de transitoriedade e melancolia de Toronto, anteriormente explorado nos horrores de David Cronenberg. Aoyama se tornou "Eric Dudley", o personagem escrito exclusivamente para o ator Burt Reynolds, um papel que teria sido brilhantemente interpretado por ele, principalmente em 1999, dois anos após o renascimento artístico obtido com "Boogie Nights Prazer Sem Limites". Yoshikawa, o melhor amigo e voz da razão, sofreu uma "cisão", produzindo dois novos rostos: "Jason Hammond", o amigo publicitário de Eric, e "Colby Rodriquez", um rapaz que Dudley conhece por acaso, ao procurar por uma lanchonete próxima ao aeroporto internacional onde possa sobreviver `as noites insones virando xícaras de café nos primeiros anos após a morte da esposa. Rick Hoffman ("Os Condenados") é um ator de cinema muito versátil que sabe equilibrar humor cínico e seriedade dramática em doses salutares. Só um artista capaz de balancear comédia e drama de forma suave teria a desenvoltura para fazer do machista "Jason Hammond" de "Nenhum Passo em Falso" um personagem interessante e não uma caricatura, cujo arco serve à jornada dos protagonistas. Andrew Jacobs, um jovem ator latino novato que acaba de estrelar o excitante "Atividade Paranormal: Marcados pelo Mal", tem todas as características que pensei ao escrever "Colby Rodriquez". Colby é um estudante universitário cursando Direito durante o dia e virando as madrugadas atendendo no balcão da atemporal 211 Bel Air Café, a lanchonete situada nas imediações do aeroporto internacional. Ao longo do filme, o rapaz desenvolve uma grande amizade com Eric Dudley e tem a oportunidade de fazer algo grandioso e heroico no terço final da história. Asami, a psicopata fria e implacável, tornou-se "Lacy Morel", em quem vi o rosto da talentosa Caroline Dhavernas. A atriz havia me deixado forte impressão no eletrizante "O Voo da Coruja", onde esbanjou a sedução e o mistério que levariam um homem comum a se apaixonar cegamente e desprezar todos os maus sinais. Assim como no original de Miike, Dudley é um dedicado pai para o filho, que aqui foi chamado de "Charly". Do trabalho original de Murakami como ponto de partida, aproveitei a premissa do homem que perde a mulher para o câncer e atravessa anos de depressão até procurar se abrir para um novo e grande amor com consequências desastrosas. Ao longo da história, homenageio o filme do Sr. Miike em uma cena de pesadelo (a famosa "cena da criatura dentro do saco" foi recriada para "Nenhum Passo em Falso") e uma linha de diálogo ("Viver nada mais é do que se aproximar da morte gradualmente"). Apesar da premissa intacta, novos personagens e situações distanciaram esta "reimaginação" da fonte original. Vocês veem que praticamente mencionei todas as contrapartidas para os personagens do original; entretanto, dois protagonistas de "Nenhum Passo em Falso" sequer existem em "Ôdishon". Selma Blair dá vida a "Jordan Harwood", uma tenente corrupta da força policial de Toronto ligada ao passado de um dos personagens centrais por um tétrico segredo. Para fechar o elenco principal, Scott Speedman foi o artista que visualizei assim que comecei a desenvolver o papel de "Cary St. Pierre", o marido e aliado da protagonista, "Kylie Grattan". Speedman atuou em um filme romântico muito interessante chamado "Para Sempre", com Rachel McAdams e Channing Tatum. Ele interpretava o ex-noivo rico que jamais tinha esquecido a heroína. Depois que ela perde a memória em um acidente, procura "roubá-la" do personagem de Channing Tatum. Nas mãos de um ator medíocre, o personagem teria descambado para o clichê, com tintas fortes, o que não foi o caso do excelente "Para Sempre", onde Speedman, apesar de antagonizar o herói, não me parece propriamente "vilão", mas um homem em conflito, ainda apegado ao recente passado romântico. Ao tratar de "Cary St. Pierre", sou levado a finalmente falar sobre a personagem principal da história, a "Kylie Grattan", que só poderia ser mesmo vivida por uma única pessoa.
_________________________________________________________________________
Este trabalho é dedicado ao Sr. Richard Anthony Fry.
Todos os direitos autorais reservados ao autor Ary Luiz Dalazen Júnior.
Quis o destino que Allie Dudley desse seu último suspiro sem que o homem que a acompanhara durante o doloroso e inútil processo de tratamento estivesse aos pés do leito hospitalar para a despedida. Eric foi acordado de um sono profundo, sem sonhos, às dez para as quatro da tarde, pela secretária. Ela não teve de lhe dizer muito. Assim que foi arrancado da inconsciência por causa do barulho da porta, aberta de supetão, parte de si soube que o pior acontecera, e abreviou a difícil missão da empregada, abraçando-a e a assegurando de que se esforçaria para lidar com tudo com muita classe. Não houve tempo para cenas emocionantes ou recordações comoventes. Isso só ocorreria mais tarde e ao lado da mais improvável das companhias. Para sua própria surpresa, Eric pareceu aceitar a morte da esposa com impressionante estoicismo. No minuto seguinte, a mente já calculava o modo de como lidar com o processo do luto de uma maneira metódica, distanciada e segura: telefonemas a fazer, serviço funerário, o cerimonial. Era tolice ocupar a cabeça com bobagens, mas as diferentes etapas da burocracia da morte pareciam ajudá-lo a sublimar a dor que obviamente não queria reconhecer.
Apanhar Charly na escola e lhe contar que mamãe partira, porém, era o desafio a se enfrentar sozinho. Sensibilidade de criança é uma coisa impressionante. No carro, ambos metidos em introspecção, Eric ensaiava a introdução menos agressiva, até Charly quebrar o gelo e lhe poupar o trabalho "Papai, eu sei o que quer me dizer. A dança acabou". "Isso, Charly, acabou. É mesmo uma dança. Mamãe e eu tivemos momentos maravilhosos, mas a banda deixa de tocar, e cada um tem de voltar a seu lugar". E foi o suficiente para que toda a dor, amortecida pela praticidade com que se conduzira até então, apanhasse-o pelo pescoço e o impedisse de raciocinar logicamente. Os minutos iniciais, teoricamente os mais delicados e a que Eric sobrevivera com dignidade, não valiam mais nada. Agora, estava sentindo dor do mesmo jeito.
Scott Speedman é Cary St. Pierre; Rick Hoffman vive Jason Hammond; Caroline Dhavernas completa o elenco como Lacy Morel. |
O filme praticamente pertence a Jennifer Connelly, que imaginei como "Kylie Grattan". Não gostaria de falar sobre a personagem, pois tudo gira em torno de sua jornada. Parece-me importante que entrem na história às escuras. Ao lado do "Eric Dudley" de Burt Reynolds, a "Kylie" de Jennifer Connelly comanda "Nenhum Passo em Falso". O mistério está ancorado na conexão entre esses dois personagens, e o show recai sobre os ombros de Jennifer & Burt. Até a alguns parágrafos antes do desfecho, acredito que os amigos não terão como adivinhar se os dois terminarão juntos.
Senhores, espero que apreciem a "Nenhum Passo em Falso" do mesmo jeito que foi um prazer escrevê-lo. Imaginar histórias e rodar filmes são processos criativos distintos, mas tamanha a influência do cinema sobre a minha vontade de expressão, penso que criei uma história cuja linguagem descritiva em muito ensaia os suspenses que ajudaram a formar a minha consciência apreciativa de arte. Eu disse certa feita que escritores são cineastas frustrados que jamais "aconteceram", porém creio que deva falar apenas por mim. Se pudesse traduzir meus sentimentos para uma linguagem exclusivamente cinematográfica, baseado nas minhas inspirações, penso que "Nenhum Passo em Falso" seria rico nos movimentos de câmera e o split-screen de De Palma, na atmosfera e na profundidade psicológica de Cronenberg, nas personagens femininas ambíguas e interessantes de Clive Barker, no olhar melancólico rico em luzes de neon verdes e vermelhas de Morten Soborg, nas performances de Jennifer Connelly e Burt Reynolds, ambos na época e com idades certas para defenderem seus personagens, e na melodia de Ennio Morricone, à vontade tanto em sequências eletrizantes como quando Clint Eastwood chega a tempo de se jogar na frente da bala destinada ao Presidente dos Estados Unidos, em "Na Linha de Fogo", quanto em cenas de beleza estonteante, como a que serve de introdução a "Malena", de Giuseppe Tornatore, ou "Lolita", de Adrian Lyne. É a soma de partes que refletem o que eu amo na arte que me inspira a imaginar obra tão ambiciosa assim, praticamente inatingível. Como Ethan Hawke disse em "Antes do Pôr-do-Sol", entretanto, a felicidade está no "fazer", não necessariamente no "alcançar".
Com os senhores, "Nenhum Passo em Falso", a obra onde encontrei felicidade ao fazer, por mais que jamais tenha se concretizado.
Este trabalho é dedicado ao Sr. Richard Anthony Fry.
Todos os direitos autorais reservados ao autor Ary Luiz Dalazen Júnior.
Quis o destino que Allie Dudley desse seu último suspiro sem que o homem que a acompanhara durante o doloroso e inútil processo de tratamento estivesse aos pés do leito hospitalar para a despedida. Eric foi acordado de um sono profundo, sem sonhos, às dez para as quatro da tarde, pela secretária. Ela não teve de lhe dizer muito. Assim que foi arrancado da inconsciência por causa do barulho da porta, aberta de supetão, parte de si soube que o pior acontecera, e abreviou a difícil missão da empregada, abraçando-a e a assegurando de que se esforçaria para lidar com tudo com muita classe. Não houve tempo para cenas emocionantes ou recordações comoventes. Isso só ocorreria mais tarde e ao lado da mais improvável das companhias. Para sua própria surpresa, Eric pareceu aceitar a morte da esposa com impressionante estoicismo. No minuto seguinte, a mente já calculava o modo de como lidar com o processo do luto de uma maneira metódica, distanciada e segura: telefonemas a fazer, serviço funerário, o cerimonial. Era tolice ocupar a cabeça com bobagens, mas as diferentes etapas da burocracia da morte pareciam ajudá-lo a sublimar a dor que obviamente não queria reconhecer.
Apanhar Charly na escola e lhe contar que mamãe partira, porém, era o desafio a se enfrentar sozinho. Sensibilidade de criança é uma coisa impressionante. No carro, ambos metidos em introspecção, Eric ensaiava a introdução menos agressiva, até Charly quebrar o gelo e lhe poupar o trabalho "Papai, eu sei o que quer me dizer. A dança acabou". "Isso, Charly, acabou. É mesmo uma dança. Mamãe e eu tivemos momentos maravilhosos, mas a banda deixa de tocar, e cada um tem de voltar a seu lugar". E foi o suficiente para que toda a dor, amortecida pela praticidade com que se conduzira até então, apanhasse-o pelo pescoço e o impedisse de raciocinar logicamente. Os minutos iniciais, teoricamente os mais delicados e a que Eric sobrevivera com dignidade, não valiam mais nada. Agora, estava sentindo dor do mesmo jeito.
Eric estava em marcha acelerada, ganhando a highway 409, quando, ao olhar pela janela, teve a atenção capturada pelos hangares do terminal 01. Subitamente, pensou que "fugir de toda a dor" não seria de todo uma má ideia. O menino não se oporia, "férias surpresa". Não fazia ideia de onde ir, mas a promessa de libertação representada pelas pistas justificava qualquer capricho. Contanto que fugisse `a dor, qualquer decisão deveria ser compreendida pelos familiares e amigos, ou ao menos Eric desejava crer. Apesar das falsas promessas de libertação prometidas pelo aeroporto - com as suas portas automáticas abrindo e fechando convidativamente - Eric acabou indo para o acostamento de uma vicinal, que por sua vez o levou a uma simpática cafeteria próxima ao Pearson.
Quando conheceu Colby, não foi um bom encontro. Eric havia se sentado com o filho no segundo piso, e queria consumir um expresso antes de comprar as passagens. Tentava ganhar tempo, colocar um pouco de senso na cabeça antes de embarcar no próximo voo, por mais tentadora que a ideia de desaparecer soasse. Era a primeira semana de Colby na lanchonete, e assim como Eric, trazia a cabeça "cheia de coisas", por razões distintas. Colby errou na medida do volume de água quente para o expresso, e preparou um café aguado e sofrível, o que acabou por surpreendentemente canalizá-los ao esboço de uma inocente conversa. Com bom humor, desculpou-se se o café não oferecia o melhor sabor, a que Eric sorriu e respondeu estar bem. A breve troca de cordialidades evoluiu para um diálogo. Algo na simplicidade e sorriso fácil de Colby fazia Eric imaginar que o garoto poderia ser seu filho. Dudley não chegou a terminar a xícara. Colby foi convidado a se sentar à mesa, e assim Eric conseguiu ganhar tempo suficiente para recobrar o bom senso e não cometer a tolice de deixar Toronto.
De costas encurvadas para a escada voltada ao mirante, Eric não viu a chegada de Kylie Grattan, mas a escutou. Ela viera sozinha. A forma como fazia os saltos altos pisarem o chão era única, algo peculiar na urgência das batidas, talvez. Kylie colocou as mãos sobre os seus ombros, e Eric levantou-se para abraçá-la, sempre o apaziguador, mesmo que fosse seu o mais estraçalhado dos corações. Colby assistia a tudo com olhos assustados. Percebia que algo de gravidade acontecera. Quase reflexivamente, deu alguns passos para trás, limitando-se a assistir ao encontro do casal a uma distância segura. Não foi possível escutar o que conversavam, mas o casal teve uns bons dez minutos de tratativas até que outro cavalheiro também apontasse nas escadas da lanchonete. Era um jovem homem elegante e muito bonito aos seus trinta e pouco anos, Cary St. Pierre, a quem Colby reconheceu de imediato. Era filho do prefeito de Toronto. O visitante já foi abraçando Eric.
- Olá, amiguinho. Posso fazer algo por você? - Colby perguntou a Charly, a imagem do cansaço. Apoiara os cotovelos sobre a mesa, a cabeça afundada nas mãos.
- Não. - E Charly complementou, quase como dever. - Mamãe morreu.
Colby não soube o que dizer. Solidário, limitou-se a passar as mãos nas costas do garotinho, e retornar para trás da caixa registradora. Enxergou-os deixando o segundo piso, desaparecendo um pouquinho mais a cada degrau. Quando foi apanhar a xícara na mesinha, acabou por se sentar ali, procurando fazer sentido do que vira e de como se sentia a respeito. Recriminou-se por não ter acrescentado algo de valia ao cavalheiro com quem conversara há pouco. Colby voltou os olhos para as pistas. O céu estava sombrio e havia uma fila de aeronaves aguardando a autorização da torre. Seria mesmo uma longa tarde. Colby considerou que logo precisaria solicitar mudança de turno por causa do começo das aulas. Com um suspiro cansado, levou a xícara no pratinho e tratou de enxaguar o amontoado de louças da pia.
Era julho de 2004. Nas semanas posteriores `a morte de Allie, Eric sentia-se sufocado por um nevoeiro muito fechado. Os familiares estavam sempre entrando e saindo de casa, mas Eric escolhera não notá-los. Voltou ao trabalho, para o escritório de publicidade. Passava as tardes navegando pela internet, lendo e relendo notícias desinteressantes, sobrevivendo `a entediante passagem dos ponteiros, para ao fim de todas as tardes retornar `a miséria emocional de uma cama vazia. Quem tomou a dianteira da situação e o guiou através do luto foi Kylie, a melhor amiga. Tomou conta de Charly, foi competentíssima quanto ao tratamento das burocracias referentes ao "trâmite da morte", e esteve por perto para que Eric chorasse sobre seus ombros. Kylie era assessorada por Cary, que a seu turno telefonava de dois em dois dias, e sempre dava um jeito de visitá-lo no escritório, ao término das tardes, para convidá-lo para passear, tomar drinques, desabafar. Não havia amigos melhores, Eric pensava, a aquela altura.
Quando completou um mês da morte, Eric começou a se habituar ao nevoeiro no qual as circunstâncias o haviam aprisionado. De repente, não existiam mais tantos familiares pelas salas e corredores, de modo que precisou aprender a cuidar do filho sozinho. Eric não conseguia descansar bem e, uma noite, depois de verificar se Charly dormia, pegou o carro e retornou para o aeroporto internacional. Às duas da madrugada, a highway era toda sua. Imprimia velocidade máxima ao carro, a gélida e umedecida brisa nas janelas ajudando-o a recobrar os sentidos, a "dissipar o nevoeiro". Sorriu ao reencontrar Colby, que não o enxergou imediatamente, e vestia uma expressão de tédio enquanto folheava um livro aberto no balcão.
- Olá. - Disse, batendo levemente a chave do carro na mesa.
- Ah, olá! - Ficou satisfeito por revê-lo. Parecia ter ensaiado algo a dizer, algo que no momento não lhe ocorria com melhor clareza ou naturalidade.
- Lamento por aquilo. - Eric disse, tomando a iniciativa. - Eu não estava nas melhores condições.
- O menininho me contou o acontecido. Eu sinto muito. - Colby fechou o livro e estendeu a mão para cumprimentá-lo. - Chamo-me Colby Rodriquez.
Quando conheceu Colby, não foi um bom encontro. Eric havia se sentado com o filho no segundo piso, e queria consumir um expresso antes de comprar as passagens. Tentava ganhar tempo, colocar um pouco de senso na cabeça antes de embarcar no próximo voo, por mais tentadora que a ideia de desaparecer soasse. Era a primeira semana de Colby na lanchonete, e assim como Eric, trazia a cabeça "cheia de coisas", por razões distintas. Colby errou na medida do volume de água quente para o expresso, e preparou um café aguado e sofrível, o que acabou por surpreendentemente canalizá-los ao esboço de uma inocente conversa. Com bom humor, desculpou-se se o café não oferecia o melhor sabor, a que Eric sorriu e respondeu estar bem. A breve troca de cordialidades evoluiu para um diálogo. Algo na simplicidade e sorriso fácil de Colby fazia Eric imaginar que o garoto poderia ser seu filho. Dudley não chegou a terminar a xícara. Colby foi convidado a se sentar à mesa, e assim Eric conseguiu ganhar tempo suficiente para recobrar o bom senso e não cometer a tolice de deixar Toronto.
De costas encurvadas para a escada voltada ao mirante, Eric não viu a chegada de Kylie Grattan, mas a escutou. Ela viera sozinha. A forma como fazia os saltos altos pisarem o chão era única, algo peculiar na urgência das batidas, talvez. Kylie colocou as mãos sobre os seus ombros, e Eric levantou-se para abraçá-la, sempre o apaziguador, mesmo que fosse seu o mais estraçalhado dos corações. Colby assistia a tudo com olhos assustados. Percebia que algo de gravidade acontecera. Quase reflexivamente, deu alguns passos para trás, limitando-se a assistir ao encontro do casal a uma distância segura. Não foi possível escutar o que conversavam, mas o casal teve uns bons dez minutos de tratativas até que outro cavalheiro também apontasse nas escadas da lanchonete. Era um jovem homem elegante e muito bonito aos seus trinta e pouco anos, Cary St. Pierre, a quem Colby reconheceu de imediato. Era filho do prefeito de Toronto. O visitante já foi abraçando Eric.
- Olá, amiguinho. Posso fazer algo por você? - Colby perguntou a Charly, a imagem do cansaço. Apoiara os cotovelos sobre a mesa, a cabeça afundada nas mãos.
- Não. - E Charly complementou, quase como dever. - Mamãe morreu.
Colby não soube o que dizer. Solidário, limitou-se a passar as mãos nas costas do garotinho, e retornar para trás da caixa registradora. Enxergou-os deixando o segundo piso, desaparecendo um pouquinho mais a cada degrau. Quando foi apanhar a xícara na mesinha, acabou por se sentar ali, procurando fazer sentido do que vira e de como se sentia a respeito. Recriminou-se por não ter acrescentado algo de valia ao cavalheiro com quem conversara há pouco. Colby voltou os olhos para as pistas. O céu estava sombrio e havia uma fila de aeronaves aguardando a autorização da torre. Seria mesmo uma longa tarde. Colby considerou que logo precisaria solicitar mudança de turno por causa do começo das aulas. Com um suspiro cansado, levou a xícara no pratinho e tratou de enxaguar o amontoado de louças da pia.
Era julho de 2004. Nas semanas posteriores `a morte de Allie, Eric sentia-se sufocado por um nevoeiro muito fechado. Os familiares estavam sempre entrando e saindo de casa, mas Eric escolhera não notá-los. Voltou ao trabalho, para o escritório de publicidade. Passava as tardes navegando pela internet, lendo e relendo notícias desinteressantes, sobrevivendo `a entediante passagem dos ponteiros, para ao fim de todas as tardes retornar `a miséria emocional de uma cama vazia. Quem tomou a dianteira da situação e o guiou através do luto foi Kylie, a melhor amiga. Tomou conta de Charly, foi competentíssima quanto ao tratamento das burocracias referentes ao "trâmite da morte", e esteve por perto para que Eric chorasse sobre seus ombros. Kylie era assessorada por Cary, que a seu turno telefonava de dois em dois dias, e sempre dava um jeito de visitá-lo no escritório, ao término das tardes, para convidá-lo para passear, tomar drinques, desabafar. Não havia amigos melhores, Eric pensava, a aquela altura.
Quando completou um mês da morte, Eric começou a se habituar ao nevoeiro no qual as circunstâncias o haviam aprisionado. De repente, não existiam mais tantos familiares pelas salas e corredores, de modo que precisou aprender a cuidar do filho sozinho. Eric não conseguia descansar bem e, uma noite, depois de verificar se Charly dormia, pegou o carro e retornou para o aeroporto internacional. Às duas da madrugada, a highway era toda sua. Imprimia velocidade máxima ao carro, a gélida e umedecida brisa nas janelas ajudando-o a recobrar os sentidos, a "dissipar o nevoeiro". Sorriu ao reencontrar Colby, que não o enxergou imediatamente, e vestia uma expressão de tédio enquanto folheava um livro aberto no balcão.
- Olá. - Disse, batendo levemente a chave do carro na mesa.
- Ah, olá! - Ficou satisfeito por revê-lo. Parecia ter ensaiado algo a dizer, algo que no momento não lhe ocorria com melhor clareza ou naturalidade.
- Lamento por aquilo. - Eric disse, tomando a iniciativa. - Eu não estava nas melhores condições.
- O menininho me contou o acontecido. Eu sinto muito. - Colby fechou o livro e estendeu a mão para cumprimentá-lo. - Chamo-me Colby Rodriquez.
- Sim, sim, você já tinha me dito. Difícil esquecer um nome tão incomum. - Eric brincou, mas imediatamente se arrependeu. Colby reagiu com uma gargalhada. Tranquilizado pela aceitação da gafe, Eric se sentiu à vontade para rir também.- Eric Dudley. Ainda tem aquele expresso horroroso a que chama de café?
- Não acha que está abusando de minha boa vontade? - Mais risadas. Colby puxou o banco alto para que Eric se acomodasse aos pés do balcão. - Melhorei muito desde a última vez. Precisa me dar um tempo, senhor. Eu comecei faz pouco.
- É, deu para notar. - Eric examinou o cardápio plastificado. - Um croquete de carne seca com abóbora acompanharia bem o café.
Colby definitivamente havia feito o dever de casa. Eric esteve distraído por não mais do que cinco minutos, quando o rapaz veio servir o croquete e o café. O aroma era delicioso. Enquanto os experimentava, os olhos de Colby o estudavam com antecipação. Eric abaixou a xícara e exibiu o polegar em aprovação. Colby sacudiu afirmativamente a cabeça, sorrindo com orgulho e balançando quase reflexivamente a cabeça ante a resposta.
- Prepare-se, você me verá muito por aqui. - Fez um gesto com a xícara em direção às cinco vastas pistas. - Eu não consigo ficar quieto, à noite. Se eu me deito, sei que passarei a madrugada às claras. É como se as pistas estivessem me chamando para cá.
- Ei, será um prazer recebê-lo, a 211 Bel Air Café agradece a clientes pagantes. São lindas, não? Ao passo que você não consegue dormir porque fica pensando nas pistas, eu não consigo estudar por causa delas.
- O que estuda?
- Primeiro ano de Direito. - Levantou o livro com uma careta de desagrado e exibiu seu grosso tomo de "An Introduction to the Principles of Morals and Legislation", de Bentham.
- É admirável. Eu trabalho com publicidade, mas quando vejo os advogados que compõem a banca da La Fabrique, gente como Cary, conversando sobre legalidades, sei que não conseguiria compreender uma linha. - Deu um gole e se corrigiu. - Bem, mas hoje, nem mesmo publicidade consigo compreender tão bem. Depois da confusão, os sócios tomaram conta.
- Não me admire tanto, eu ainda não terminei um capítulo sequer! - Colby empurrou o livro de lado e elaborou. - Eu comecei o curso neste semestre. Não estou muito `a frente, mesmo dos leigos.
- Ainda assim, está fazendo o curso. É admirável. - Eric rasgou o plástico com os talheres. Quando enfiou o garfo no croquete quente, o branco viscoso da abóbora escorreu para fora. - Quando comecei com a publicidade... Houve uma época em que me questionei se fizera a escolha certa. Não me arrependo de ter persistido, mas no começo foi muito duro... Uma das coisas mais duras pelas quais passei, desde... - E os dois ficaram em silêncio. Pela graciosidade com que Eric ensaiava romper o tabu e abordar o delicado assunto, Colby perguntou mais claramente.
- O que aconteceu com a sua esposa, senhor?
- Câncer. - Eric respondeu com um suspiro, os olhos perdidos na pista. Um grande Boeing da Star Alliance aquecia seus motores Rolls Royce na cabeceira antes de iniciar a corrida da decolagem. Eric abaixou o rosto e levou os dedos ao septo. - Foi muito rápido, não levou um ano sequer. E por incrível que pareça, fomos mais unidos nos últimos meses do que antes. Não que tenha sido um casamento ordinário, pelo contrário. Gosto de pensar que foi maravilhoso. Ei, ao menos te asseguro que o foi para mim. É que nunca estivemos tão emocionalmente investidos quanto nos últimos meses.
- Naquela tarde em que apareceu... - Colby começou a compreender.
- Foi a tarde da morte. O Charly, o menininho...Charly é meu filho.Eu estava tão confuso que pensei em comprar duas passagens para o próximo voo para o Brasil. - Eric deu um sorriso condescendente ao se recordar da estupidez. Meneou com a cabeça e prosseguiu. - Péssima ideia. Achei que bastaria sumir para que os problemas desaparecessem completamente, em Toronto. Depois de vir parar na lanchonete e revisar o plano na cabeça, vi a quantidade de furos. Quero dizer, dá para passar um trem pelos buracos desse "plano". Mesmo que quisesse, não poderia levar Charly tão fácil. - Concluída a bebida, Colby tomou a iniciativa de puxar a xícara e preparar uma segunda. Antes de colocar a cápsula na máquina, procurou a aprovação do cliente, que sinalizou afirmativamente.
- Havia uma moça muito elegante e bonita... - Assim que Colby mencionou a "estranha", a primeira que chegou para conversar com o viúvo, Eric sentiu-se reconfortado quando a lembrança de Kylie se avivou em sua mente.
- Kylie. - Eric fez menção de que teceria maiores comentários sobre a estranha que chamara a atenção de Colby - e de todos os homens - mas algo pareceu perder-se no instante em que abriu a boca para vocalizar o que tinha em mente, e realmente não soube continuar. Antes que se apercebesse de que Kylie lhe era suficientemente cara para deixá-lo sem palavras, Colby emendou.
- Pensei que se tratasse da sua filha.
- Eu pareço tão velho assim, é? - Fingiu-se zangado. - Ora, dane-se! - Os dois começaram a rir. - Com um nome desses, que direito tem de...
- Deixe meu nome em paz, coroa! - O rapaz desligou a máquina, que ainda espirrou um pouco de leite na xícara. Colby mexeu a bebida com uma palhetinha e a entregou a Eric. - Garanto que está melhor do que o primeiro que tomou por aqui!Esta é o "chococino", uma bebida à base de chocolate quente.
- Chococino... - Eric repetiu divertidamente, como se quisesse memorizar o curioso nome antes de experimentar o primeiro gole.
E foi naquela noite em que a improvável amizade entre o publicitário e o rapaz da 211 Bel Air começou. O espontâneo bom humor que o jovem imprimia ao bate papo tornava as rodadas de xícaras de café mais amenas e espirituosas, e muito embora a melancolia jamais deixasse de mantê-lo acordado à noite, ainda que Eric precisasse retomar o rumo para o aeroporto, agora tinha um amigo com quem podia dar risadas sobre as bobagens do dia-a-dia. Eric e Colby conversavam sobre filmes e esportes, o que era especialmente importante para o viúvo, pois o ajudava a recuperar a impressão de normalidade. Eric guardava a chaves os instantes mais valiosos desfrutados com Allie. Eventualmente, compartilhava-os com Colby, o que trazia certo conforto ao coração. Havia os dias certos para Eric aparecer na lanchonete. O viúvo começava a visitar a 211 Bel Air nas quintas-feiras e seguia retornando pelas próximas duas noites, ou seja, até sábado. A 211 Bel Air geralmente recebia uma clientela muito jovem nos finais de semana, mas como Eric aparecia por último, o lugar jamais deixou de lhe parecer exclusivo. Eric era praticamente o último cliente. Havia uma quietude própria à lanchonete que o viúvo afirmava não ter encontrado em lugar algum. Ao estacionar o carro, detinha-se para estudar com os olhos a vicinal que fazia a ligação da lanchonete à estrada que serpenteava no sentido do aeroporto. Entre os dois mundos, achava-se dividido: havia a promessa de redenção, simbolizada pelas pistas onde aviões corriam e deixavam; existiam o dourado fraco dos charmosos postes da 211 Bel Air e as luzes de neon vermelhas e verdes que fulguravam de dentro da cafeteria, quando Eric se sentia só, como se a vida lhe tivesse pregado uma peça da qual não conseguia fazer sentido. Sentava-se à mesa do segundo piso, pois somente dali ou do deck tinha como admirar o aeroporto internacional, quando procurava se decidir se permaneceria na sua realidade pouco promissora em Toronto ou simplesmente fugiria.
Uma tarde chuvosa de setembro, Eric chegava a La Fabrique de Films, seu escritório de publicidade, quando estranhou as portas trancadas. Ao examinar a situação pelo lado de fora, através das janelas, constatou o desligamento das luzes. Girou rapidamente a chave e entrou apressado. Foi apanhado pela certeira chuva de confetes e serpentinas. As luzes foram ligadas em força total, revelando os colegas de profissão estrategicamente posicionados por todos os cantos: em cima de cadeiras, ao redor das pranchetas, até mesmo uma das secretárias sentada sobre o último degrau de um cavalete, terminando de amarrar balões coloridos no lustre da sala!Eric levou as mãos à cabeça e somente então deu-se pelo fato de completar anos naquela data. Relutante em se emocionar, procurou fazer graça da situação e emendar brincadeira após a outra. Por dentro, fora profundamente tocado, e desejava ficar momentaneamente a sós para que não se preocupasse se choraria ou não. "Discurso, discurso!", começaram a gritar. Eric pensou "Essa não!".
- Eu sei que tenho parecido ausente nos últimos meses. - Eric começou, e o rumor dos amigos feneceu, como se alguém tivesse reduzido o volume no controle remoto. - Eu sinto muito se não tenho sido de grande valia para vocês mas os amo todos. Eu... - Entre tantos rostos queridos, foi o de Kylie que ganhou sua exclusiva atenção. Ocorreu-lhe quando ela aparecera pela La Fabrique seis anos antes, uma estagiária falastrona que não parecia compreender muito bem a dinâmica das relações sociais e, pior, do mundo. Conhecera-a uma menina maluquinha, e agora ali estava, aquela pessoa que ficara no lugar da menina, uma mulher elegante, sofisticada, cujos olhos enigmáticos e tristes reforçavam sua autoconfiança. Portava-se com graciosidade, autoridade e segurança, comandando os ambientes pelos quais transitava, fossem mesas de negócios ou confraternizações. Kylie tinha os cabelos pretos curtos que `as vezes insistiam em cair em uma mecha, era esbelta e alta. Vendo-a ali parada ao pé da escada, Eric imaginou como pareceria ainda mais exuberante, estivesse vestindo longas luvas de seda que subissem um pouco acima dos cotovelos. Era interessante, pois por muito tempo a enxergara como a amiga maluquinha, e agora era, bem, uma fascinante, fascinante mulher. Quando os seus olhares se encontraram, Kylie lhe sorriu, e Eric fez sinal de que conversariam mais tarde. - Eu sou um homem abençoado. Eu não sei se mereci muitos anos de felicidade ao lado de Allie. Poucos homens teriam merecido, realmente. Eu sou grato pelas lembranças e as levarei comigo para sempre. - Do segundo piso, as palavras de Eric foram respondidas com aplausos imediatos de Kylie. No mesmo segundo, os demais fizeram coro, e o estúdio veio abaixo em palmas.
- Seja bem vindo de volta, querido. - Kylie anunciou. Os companheiros se concentraram no centro do salão e o abraçaram.
Foi uma feliz noite de reencontros, celebrando a oportunidade dos recomeços. Um buffet havia sido contratado e os convidados puderam conversar e se divertir, embalados pela excelente performance de um grupo musical que passou a noite ensaiando, em sax, lindas rendições dos temas mais inesquecíveis do cinema. Eric tentava encontrar Kylie no salão quando Hermione o apanhou pelo braço e o guiou à sua mesa. Hammond e Alexandra não o deixaram mais sair, afoitos para lhe contar o projeto para a grade das noites de segunda-feira para a Fox TV. Enquanto escutava os amigos ilustarem muito amplamente a ideia da atração - algo sobre criar oportunidades para que pessoas se declarassem umas às outras - os olhos de Eric vasculhavam o estúdio. Somente mais tarde, quando parte dos convidados se fora e o sax lançava melodias mais tristes e românticas, Eric a encontrou. Viu as suas costas muito sinuosas, ainda mais atraentes graças à generosidade com que o vestido vermelho as revelava ao cair. Cary a acompanhava à mesa. Um cigarro descansava entre os dedos de Kylie, a réstia de fumaça ascendendo preguiçosamente com o neon azulado e sobrenatural a contrastando. "Desculpem-me", Eric se escusou.
Eric reconheceu a balada romântica que preenchia o salão de incomum desespero amoroso. O grupo dava a versão para "The Hallway", da trilha de "The Prince of Tides". Escutá-la traria lágrimas aos olhos dos mais sensíveis. Era linda assim!Eric aproximou-se da mesa de Cary e Kylie e a tirou para dançar. Bailando solitariamente entre confetes e serpentinas, cercados por mesas em grande parte vazias, Kylie descansava a cabeça no peito de Eric, que finalmente parecia menos resistente à ajuda e ao carinho daqueles que se importavam com seu estado emocional. Kylie seguia murmurando o quanto sentia muito, e Eric, de olhos bem fechados, deixava que algumas lágrimas escorressem. Ocorreu-lhe que desde a morte de Allie, era o primeiro verdadeiro momento somente seu e de Kylie, o instante em que conversavam francamente sem que o viúvo procurasse sair pela tangente ou negar a forma como sua presença mexia com seu comportamento.
- Lembro-me de quando chegou. - Sussurrou, a que Kylie fez "Uh-Hum". - As meninas te achavam metida. - Kylie deixou o peito de Eric e o encarou com um sorriso espevitado.
- Eu era mesmo metida, não?
- Mesmo então, eu enxerguei além. Eu apreciei a sua companhia desde o primeiro instante. - Kylie voltou a repousar o rosto no ombro do amigo.
- Sim. As aparências diziam tudo o que os outros queriam saber sobre mim. Família rica, roupas elegantes, beleza...As meninas se fartaram com adjetivos aos montes para me rotular. Você enxergou através. - Constatou, com a voz estremecida pela dor da recordação. - É sensacional voltar a dançar contigo. - Ela observou, a voz ou triste, ou cansada, Eric não soube precisar. - Lamento por...
- Eu sei, eu sei. - Impediu-a de continuar. - Não se sinta culpada. Você tem sido fantástica.
- Tinha medo de me intrometer. Allie poderia vir a considerar ideias erradas e eu não suportaria que me odiasse gratuitamente.
- Shhhh, está tudo bem. - Apertou-a contra si, assegurando-a com dois socos leves na parte alta das costas. - Apenas fique aqui comigo até a música acabar.
- Só até a música acabar? - Kylie insinuou e imediatamente se arrependeu. - Desculpe-me.
Cary aproximou-se com discrição, talvez por reconhecer a exclusividade do momento. Queria se despedir e marcar uma happy hour para a noite do próximo sábado. "Na minha casa", Eric topou e pediu que avisasse os demais do círculo de amigos. "Cuidarei dos detalhes e entrarei em contato no decorrer da semana", Cary se despediu. Kylie também precisou se despedir e aproveitou a carona oferecida pelo amigo.
Quando Eric voltou para casa, foi recebido pela secretária, senhora Medina, a competente funcionária que todos os dias cuidava do menino, das roupas e da comida, e só ia embora depois da chegada do viúvo. Ela deixara o jantar preparado, dentro do microondas, e tinha colocado o menino para dormir com no mínimo uma hora de antecedência. Antes de sair, mencionou um certo "brilho diferenciado" em seu olhar, a que o viúvo reagiu com um sorriso encabulado. Corações podiam ser tão facilmente lidos assim? Por um tempo, contentou-se com o breu reinante na sala, encontrando sossego no refúgio do silêncio, não se atentando a nada que não o rumor da precipitação a descender consistentemente sobre Toronto. Procurou distinguir um certo barulho, um ritmo peculiar que começou a notar à medida que os olhos foram se adaptando à escuridão, e seus ouvidos à chuva. Era um rumor diferenciado, definitivamente não o de água torrencial pelos caibros. Não conseguia defini-lo muito bem, pelo menos até desistir de capturá-lo exclusivamente pela audição. Não, o rumor presente não podia ser capturado, apenas sentido. O rumor reverberava do passado, uma eletricidade usualmente oriunda de recordações, e se tornava mais perceptível ao colidir violentamente com o presente. Momentos de outra época, de doce ingenuidade, grandes felicidades, invadiam o presente de contradições, de amarguras e expectativas, de culpas e desejos não vocalizados. O resultado? o distinto rumor que Eric Dudley somente naquela noite passava a compreender melhor. As pálpebras foram pesando, e por entre resquícios de neon e explosões de raios prateados a riscarem o céu muito longe, enxergou a si nos braços de Kylie, ambos embalados no meio da sala principal, mais vazia após a morte de Allie, ao sabor de "The Hallway" em sax. Sobre o piano de cauda, o porta-retrato com a foto da esposa morta, o retrato perdendo a cor, como se assistisse com olhos muito dolorosos a Dudley e Grattan conversando baixinho, abraçados. Eric foi arrastado para a inconsciência sem se aperceber de quão rapidamente imergia na escuridão. Somente mais tarde, quando acordou sobre a poltrona, deu-se pelo quanto estava emocionalmente exaurido.
Cuidando para não fazer barulho, Eric visitou o quarto de Charly para ver se o menino tinha se coberto. Quando estava para deixar, Charly o chamou. Eric sentou-se na beirada da cama. O carrossel com recortes de cavalos e soldadinhos girava vagarosamente em torno do eixo, a lâmpada do abajur projetando um mundo de aventuras em constante movimento nas paredes e em seus rostos.
- Ficou acordado, filho?
- Eu vi você dormindo na sala mas tive pena de acordá-lo para subir. - Explicou, com a vozinha sonolenta. O pai puxou o cobertor à altura dos ombros da criança, revelando a gata, a "Pernetinha", a nova moradora da casa, que dia desses Charly convencera o pai a deixar criar, dormindo aos pés de seu mestre.
- Pode me chamar sempre que quiser. - Eric vacilou por um momento, mas retomou. - Charly, eu sei o quanto está sendo duro para você também, mas não quero que alimente a tristeza. Precisamos passar por isso unidos, e realmente queria que desfrutássemos de mais tempo juntos. Você sabe que eu te amo, né?
- Está tudo bem, papai. - Rolou no colchão, ficando de costas ao pai. Eric tomou a deixa como momento para deixar o filho dormir sem maiores amolações.
- Durma bem, Charly. - Beijou-lhe a testa. À porta, foi detido por um inesperado pedido da criança.
- Papai, tia Kylie será a minha nova mãe?
- Ora, tia Kylie é a melhor amiga de papai, e quer que sejamos muito felizes. Ela não pretende ocupar o espaço deixado por mamãe. O que te fez pensar que eu e Kylie...
- Antes de mamãe adoecer, o senhor parecia diferente com tia Kylie. - Uma pausa. Eric procurou rememorar se desde então vinha demonstrando o quanto começava a se interessar romanticamente pela melhor amiga.
- Tia Kylie jamais faria algo para nos machucar. Ela gosta muito de você. Até mesmo por não ter filhos, ela te enxerga nestes moldes. Não quero que a antagonize. Eu não estou pensando em trazer mulher alguma. Procure se lembrar do que disse, está bem, Charly?Combinamos de enfrentar o recomeço juntos e é o que vamos fazer.
- Quando diz "juntos" inclui tia Kylie?
- Charly, deixe de preocupações infundadas, vamos. - Eric sacudiu a cabeça. - Que mal tem se ela vier nos visitar, como sempre faz?Ela se importa muito com...
- Você a ama, papai? - A pergunta à queima-roupa deixou Eric boquiaberto. Charly se virou e decretou. - Se eu tivesse feito essa pergunta há alguns anos, você teria respondido no mesmo segundo. Teria dito "Claro que sim, ela é a minha amiga". Hoje, o senhor não responde, porque sabe que a ama, sim, mas não como "amiga". Você a ama... Diferente. - E voltou a se encolher, abraçando-se ao travesseiro e à gata. Soltou um bocejo e nada mais falou. Eric ficou grato por Charly não ter continuado a disparar sua metralhadora de assertivas. Raciocinaria uma melhor maneira de conversar sobre o assunto com o garoto. Desejou-lhe "Boa Noite", mas não recebeu resposta alguma.
Reuniram-se no sábado seguinte Kylie, Hermione, Alexandra e Hammond. Cary não pôde aparecer, e o sexto sentido de Eric lhe dizia que havia algo a ser dito e seria o último a saber. Kylie era a única que não integrava mais o time da La Fabrique de Films. Ela era a CEO de seu próprio grupo publicitário, o Avant!, mas devia o profundo conhecimento aos anos passados sob a proteção de Dudley na La Fabrique. Ainda assim, parecia que jamais deixara a turma, e confraternizações sem sua presença seriam incompletas. Eric parecia o "patriarca" da turma, o mais velho. O restante mal haviam chegado à casa dos 30 anos. Hermione era sempre a austera imagem do compromisso, a executiva pragmática desprovida de sentimentalismos; Alexandra, a mocinha de fala suave e mansa, vítima da própria inocência, sempre "em perigo" e pedindo para ser salva; e Hammond, o machista realista e esclarecido que enfurecia e provocava as meninas da La Fabrique com os comentários ferozes e politicamente incorretos. A reunião acontecia sempre na casa de Eric, aos finais de semana, e obedecia a uma espécie de maravilhosa agenda cultural: um filme era especialmente escolhido pelo grupo, na sala de projeção, e depois faziam a mesa redonda, regada a café e a charutos, quando confrontavam diferentes pontos de vista. Quando a turma passava para a sala de jantar, o bate papo ficava mais descompromissado. Pediam pizzas e soltavam as línguas por causa do álcool. Ao fim da noite, alguns estariam cochilando sobre o carpete, outros, conversando à beira da lareira, homens discutindo política ou esportes no alpendre, mulheres fofocando maldades sobre colegas executivas do escritório. Era sempre uma ocasião de muito prazer e alegria. Pela primeira vez depois de muito tempo, o período do diagnóstico do câncer de Allie até a sua morte mais exatamente, os amigos retomavam o costume, e parecia que a última vez tinha sido ontem: lembranças boas têm seu jeito de parecerem frescas e recentes. Naquela noite, a turma havia assistido a Gritos e Sussurros, de Ingmar Bergman, e Hammond estava despedaçando o sueco.
- Vocês sabem... - Ironizava, entre baforadas de charuto, indiferente ao julgamento das meninas. - Quando Ingmar rodou Gritos e Sussurros, estava na melhor fase da sua vida. Só há uma única tentativa de suicídio em todo o filme. - As meninas vaiaram, mas Eric teve de dar boas gargalhadas!
- Filmou tudo com o filtro vermelho, que escolha... - Eric comentou, meneando com a cabeça, meio que se censurando por cair na tentação de se juntar a Hammond no linchamento da obra.
- Eu diria que o vermelho simboliza o interior de seus personagens. Você não diriam o mesmo? - Disse Hammond, com seriedade. Quando ele e Dudley se entreolharam, voltaram à carga com as gargalhadas.
Hammond estava visivelmente "alto", porém o café refreara a língua ferina. Felizmente, era Alexandra quem o devolveria à casa. Como de se esperar, Alexandra ficara somente com os sucos, e dentre seus amigos, era a única realmente sóbria - ou talvez não, vez que se dava o trabalho de responder às críticas dos bêbados acerca da obra de Bergman!Kylie flertava com Dudley e cuidava para não o fazer tão escancaradamente. Sentia-se em casa. Estava descalça e nem se recordava de onde tinha deixado seus saltos. Hermione sentou-se no braço da poltrona de Hammond e eles engataram uma conversa acalorada sobre aquilo que o publicitário acusava como a destruição da família tradicional: o feminismo. Eric se viu à vontade com Kylie, os dois sentados ao chão, perto da lareira. As lascas de madeira estalavam baixinho, criando uma convidativa atmosfera de intimidade. Sobre a tenaz apoiada nos tijolos, havia uma precoce meia vermelha, alusão ao Natal.Encarando-se em silêncio, Kylie e Eric estavam para ficar envergonhados, quando o viúvo passou delicadamente a mão sobre sua testa, tirando a mecha de cabelo que descia até acima do lábio superior. Sua boca ganhava expressividade por causa de um incomum vermelho de batom, realçado pelos dentes muito brancos que expunha ainda mais quando abria o sorriso de tirar o fôlego. Desceu os dedos ao queixo de Kylie e tocou o pequeno pontinho preto, o sinal que existia no canto superior esquerdo. Ela subitamente vestiu um olhar de tristeza e preocupação. Ele não precisava dizer mais nada. Parecia suficientemente claro que estava se apaixonando e ela se preocupava muito em não feri-lo. Os seus dedos se entrelaçaram. Repentinamente, Eric compreendeu que não eram seus olhos os único marejados. Kylie também parecia emocionada.
Eles teriam muito o que conversar, mas como se entendiam através do olhar, diálogos seriam secundários. Ambos estavam divididos, lutando contra sentimentos de culpa e remorso. Alheio e inocente, Charly apareceu e saltou sobre o peito do pai, surpreendendo a ambos. Eric sabia que a preocupação do filho sobre Kylie passaria. Colocava-se no lugar do menino, compreendia que era muita informação para processar. Kylie abraçou o garotinho por trás e rolou com o menino sobre o tapete. Já estava tarde para Charly ficar no meio de adultos. Habilidosa, Kylie soube a maneira de reconquistar a confiança da criança. Não precisava que Eric lhe contasse sobre conversas como a que tivera na outra noite para entender o menino. Sabia que na cabecinha de Charly, estava sempre correndo o risco de passar dos limites, parecer a "invasora". Kylie tinha apanhado o garotinho pelas costas e o desafiava a se soltar. Charly dava risadinhas e obviamente não avançava muito nas suas tentativas de se desvencilhar.
- A Kylie é o tipo de mulher que luta, Charly. É melhor desistir! - Gritou Hammond, soando definitivamente mais sóbrio, do outro lado da sala.
- Bem, se não tem como levá-lo para dormir sozinho... - Eric se debruçou sobre os dois e os arrebatou no colo. - Eu levo a ambos. Vocês vão comigo!Nossa, como pesam!
- Eric! - Kylie exclamou ao ser suspensa. Foi uma bonita cena, o viúvo ganhando os degraus da elegante escada de corrimãos de fina madeira, com Kylie e o menininho nos braços. Hammond assoviou e aplaudiu, muito brincalhão, e certamente Alexandra e Hermione ficaram com inveja.
Eric empurrou a porta da suíte com o pé, cantarolando Toni Braxton. "... I dont want to Hum another Melody...", Eric entoava com inesperado talento, e Kylie o acompanhava, carregando na parte que mais apreciava, fazendo soar "Melodeeeee". O viúvo os pousou suavemente sobre a cama. O rumor do ar-condicionado jamais soava intromissivo e o primeiro contato com o frio era delicioso. O volume da televisão havia sido reduzido, e eram tocados somente pelo caleidoscópio de luzes a emanar da tela. Depois de acomodá-los, ajoelhou-se aos pés da cama.
- Chocolate gelado, chocolate gelado! - Charly pediu, acompanhando a ordem com palmas. Kylie molhou os lábios e fez que sim.
Depois que os convidados se foram, sobraram apenas Eric, Kylie e Charly. Quando subiu e os encontrou dormindo abraçados, seu coração foi assaltado por amargura. Parte do filho temia que Kylie ocupasse o vazio deixado pela mãe, mas outra desejava intensamente uma figura feminina materna capaz de suprir a carência seguinte à morte de Allie, a necessidade emocional com que Eric jamais saberia lidar muito bem, afinal era homem. Ele fechou a porta e os deixou dormindo na suíte. No dia seguinte, um domingo, propôs uma aventura, e Kylie topou antes mesmo que levasse os planos à mesa. O trio apanhou o ônibus na pequena rodoviária de Bay Street, decididos a se permitirem uma bela manhã em Niagara Falls. Com Charly se aventurando afoito pelas passarelas, Kylie teve de ficar o tempo inteiro correndo atrás do menininho, sob as gargalhadas de Eric. À beira da grade, aguardavam a vez de serem molhados pela "Ferradura", a super catarata de mais de oitocentos metros de largura, toneladas e toneladas de água despencando por segundo!Exaustos, foram descansar no terraço do Edgewaters Tap & Grill, sobre o qual Niagara parecia, ao longe, silente e pacata. Servidos de um excelente churrasco e uma garrafa de vinho, os dois adultos tiveram a abertura para conversar enquanto o garotinho, exausto, dormia com a cabeça no colo de Kylie. Quando precisou se despedir, Charly pediu que ela ficasse. Eric e Kylie se encararam, o desejo e a dor sem deixarem jamais os seus olhares.
Naquela mesma noite, Eric apareceu na 211 Bel Air Café mais cedo do que de costume, e de humor reparado. Colby recebia encomendas dos fornecedores e não deu imediatamente pela chegada do amigo. Só ao concluir o assessoramento à descarga das caixas e enxugar a testa com o lenço, provavelmente imaginando o trabalho que teria para colocar os salgados na estufa quente, deu pela presença do viúvo, escorado no balcão. Imediatamente, abriu um sorriso de grata surpresa e foi cumprimentá-lo.
- Deixe-me ajudá-lo, garoto. - Deixou as chaves sobre o balcão e arregaçou as mangas.
- Por favor, não faça...
- Ande, me diga logo como eu te ajudo? - Não lhe deu ouvidos e se agachou ao lado dos recipientes de isopor.
Eric estava animado para contar sobre a festa surpresa, sobre como engatilhara novamente os sábados de exibição de filmes para os amigos mais próximos. Lia-se a satisfação nas fáceis expressões de Colby, louco para escutá-lo. Eric sentia que trazia muito no peito para desabafar, para conversar, e queria pedir a opinião de Colby sobre sua situação com Kylie. Quando o movimento diminuiu um pouco, Rodriquez teve como puxar o banco para conversar com o amigo. Ele se interessou pelas sessões de cinema e se convidou para a próxima. Eric disse que seria muito bem acolhido pelo grupo. Seguiram conversando até a lanchonete parecer tão vazia quanto nas madrugadas, seu horário preferido.
- ... Mas não sei se seria uma boa ideia, até porque agiria movido por emoções, e não pela razão.
- O que o atormenta?Se me permite a honestidade, senhor Dudley...
- Sim, claro. - Eric o deixou à vontade. Precisava de sinceridade e as observações de Colby seriam de muita valia. - Apenas converse comigo, livremente.
- Bem, acontece que, inicialmente, acreditei que você estivesse atormentado pela possibilidade de vir esquecendo a sua esposa Allie, "rápido demais". Até aí, nenhuma novidade. Cônjuges sobreviventes passam pelo luto e a superação da culpa é apenas uma parte da jornada. Hoje, todavia, e em face de tudo o que me conta sobre sua amiga Kylie, eu me arriscaria a opinar que seus sentimentos pela moça advém de uma época anterior ao câncer. - Eric impressionou-se e Colby soube que desvendara o mistério inconfessável, mesmo que todos os elementos da equação, somados, apontassem para uma conclusão perfeitamente clara. - Agora, é bastante possível que o tenha negligenciado, o sentimento, o "friozinho" quando Kylie se encontra por perto, mas se for sincero, entenderá que sua dor sempre esteve aqui. Você fala sobre momentos e detalhes com uma precisão tão cirúrgica que fica óbvio que a reparava antes mesmo do problema com a sua mulher. - Com um sorriso compassivo, Colby bateu o punho contra o peito, na altura do coração. - E não há nada de mal nisso, senhor Dudley. Isso não o torna um mau marido ou um pai irresponsável. Somos seres humanos, animais passionais, e estamos aqui para "sentir". Imagine quantas coisas conquistamos ao longo da vida, e pense no instante de nossa morte. Somos donos de uma coisa somente, e refiro-me a nossas emoções. Somos depositários do restante. - Colby seguia enumerando com os dedos. - Casas, carros, contas bancárias, bens, tudo emprestado. As nossas emoções, porém, elas nos seguem mesmo depois que vamos embora. Você não pode... - Colby temeu soar muito direto, mas sentia que devia ao amigo o benefício da assertividade de um observador imparcial. - Você não pode negligenciar as emoções. Se você gosta dessa moça, a Kylie, precisa parar de fugir do que sente. Porque mesmo que Kylie diga que não sente o mesmo, estará se libertando para amar uma outra pessoa, uma outra mulher, que mereça emoções tão nobres e engrandecedoras quanto a sua.
- Tão engrandecedoras que... - Seus olhos fecharam-se pela dor, ou "friozinho", que Colby descrevera tão perfeitamente. Mesmo falar sobre isso era angustiante. - ... que mal consigo comportá-las.
- Você vai ficar bem, coroa. - Consolou-o. - Permita-se sentir, porque quando parar de lutar contra as emoções, enxergará melhor. Você não tem como perder!
- Obrigado, garoto. Eu aprendo sempre um pouco mais contigo! - Eric ergueu a xícara, como brinde, e brincou. - E você está cursando Direito em vez de Psicologia?
- Pois não é? - Colby deu com os ombros. - Em vez de estar ganhando rios de dinheiro, estou perdendo meu tempo dando conselhos gratuitos a perdedores como você, senhor Dudley... - Os dois deram sonoras gargalhadas.
Eric encontrava-se na highway voltando para downtown Toronto, quando o celular chamou. Hammond contou que estivera mais cedo na sua casa, mas não o encontrara. Ele disse que deixou o convite para a estreia do "Not Easily Broken", o novo programa que ocuparia o horário nobre da Fox TV nas segundas-feiras. O lançamento seria ao vivo e a presença de Eric era esperada pelo time artístico que tornara o projeto uma realidade. O viúvo agradeceu pelo convite, porém tentou se esquivar. O projeto fora levado à frente pelo mérito da equipe de Hermione, Alexandra e Hammond, exclusivamente, afinal ele estivera distanciado por causa da mulher, não queria tirar o holofote do trio de amigos neste momento de glória. Eric escutou então a voz das meninas ao fundo, em protesto.
- Tá ouvindo, Eric? - Hammond reiterou, levantando o celular acima dos ombros e o voltando para trás. - Você faz parte deste time!A sua presença é obrigatória. Nós te queremos conosco!Toronto Congress Centre, amanhã às 18:00, para as filmagens e a coletiva de imprensa.
- Muito bem. Avise-as que eu os encontrarei por lá. - Eric ficou tocado com a insistência dos amigos. - Foi um ótimo sábado. No próximo tem mais, combinado?
- Contanto que não seja Bergman! - Hammond gozou.
- Não. - E Eric entrou na onda. - Tarkosvki!
- Oh, droga, "Solaris" de novo? Uma tarde chuvosa de sábado regada à filosofia soviética?Se fode aí! - Eric estourou em risadas e desligou o telefone antes de perder o controle da direção!
Eric passou a noite de domingo para segunda-feira às claras. Na rádio, a voz de Kenneth B. Edmonds entoava "Where Will You Go". Procurava imaginar como seria o momento da conversa com Kylie, a maneira como passaria a limpo os lindos sentimentos que lhe reservara. Decidiu sentar-se ao computador para escrever uma carta, que de certa forma representaria o primeiro verdadeiro passo para um amanhã ensolarado Ninguém antes parecera fazer mais perfeito sentido do que Colby, que estava absolutamente correto ao afirmar que o resultado de sua declaração - Kylie terminando ou não ao seu lado ao fim - era o elemento menos importante da história inteira. A partir de sua escolha de pôr termo às indefinições, saberia para que direção levar a vida. Se ela aceitasse o seu pedido de namoro, Eric estava convicto de que faria seu melhor. Se não, saberia que Kylie não o enxergava da mesma maneira, e eventualmente encontraria alguém que o amasse da maneira que precisava. Tomou conta de que o esforço consumira toda a madrugada quando o céu escurou começou a se diluir em um azul profuso. Imprimiu a carta para lê-la, o que o fez da sacada, com o amanhecer ao fundo. Achou um pouco de graça, pois mesmo na sua idade existia uma invejável e doce ingenuidade na forma de se expressar. Escrevera coisas bonitas, coisas que julgava não ter o talento para expressar ou a pureza para ainda acreditar.
Eric alugou um smoking para a festa e encontrou Hammond para almoço, ocasião em que o amigo lhe entregou a programação para a noite. Eric não tinha de se preocupar em responder perguntas pois os outros fariam o trabalho, mas precisava compor a bancada na coletiva de imprensa. Haveria produtores e executivos da Fox TV. Depois do programa, que seria feito ao vivo, a turma se encontraria no restaurante do centro de convenções para uma festa de gala. Eric estava impressionado com a envergadura da noite de gala.
- Mas sobre... Afinal, o que é o programa, do que se trata?
- "Not Easily Broken". - Hammond puxou o folder do paletó e o entregou a Eric. Na primeira página, o design criativo de um coração partido e o nome da atração acima sugeriam a temática. - Referindo-se ao coração, entende?Decepções amorosas, declarações de amor... É esse tipo de programa.
- Está me assustando. - Eric brincou. - Levando em consideração os últimos dias, vou começar a pensar que o convidado da atração será a minha pessoa!
- A ideia é criar uma super produção para que um homem possa se declarar para a sua outra... Como é mesmo o termo que usam? - Hammond riu com o deboche de quem não acreditava em coisas do tipo e completou, ao se lembrar. - Ah, sim, "metade significante". Submetemos a pessoa a todo um processo de produção, melhoramos a sua aparência, restauramos a auto confiança, ensaiamos coreografias, forjamos uma mentirinha para levar a "metade significante" ao programa, e então a grande surpresa: a declaração de amor.
- É impressão minha ou a maioria destes casos acabará com corações arruinados por "foras" monumentais em rede nacional?
- Ei, eu concordo contigo. Não acredito nisso, Eric, mas eu sou um executivo e vendo o produto. Se bobalhões que não compreendem o mundo e vivem na "friendzone" querem passar atestado de otário, o problema é deles.
Quando foram juntos pegar os carros no estacionamento-garagem, Eric procurou fazer parecer casual ao perguntar para Hammond se Kylie apareceria na festa. Hammond respondeu que sim e o aconselhou a apanhar um táxi com uma hora de antecedência no mínimo. "Nós nos vemos no foyer, no coquetel que antecederá a coletiva", Hammond determinou. Eric não apareceu na La Fabrique à tarde. Ele foi direto para casa, esperar o horário da festa. Com a antecedência recomendada, tomou banho, vestiu o smoking e ligou para o serviço de táxi. Novamente, a senhora que cuidava da administração do lar confessou que o sentia "diferente".
- Ansioso. - Eric nominou melhor, com um sorriso apreensivo. Esfregou as palmas das mãos e refez a mesma pergunta usada para se esquivar. - Você ficará bem com o Charly, não é?
- Vai dar tudo certo! - A senhora Medina assegurou, passando a mão sobre a sua cabeça, como uma mãe faria ao filho antes de uma importante partida de futebol. - Vá, e não se preocupe conosco!
- Como estou? - Indagou, lançando o olhar para o topo da escada, onde Charly brincava com o videogame portátil. O garotinho deixou o game de lado e acenou com os dois polegares. - Agora sim, eu estou confiante!
A visão do Grand Ballroom enchia os olhos pela pujança, e Eric se sentiu intimidado ao contemplar, do mezanino, a sua abertura. Ali havia lugar para mais de três mil pessoas, e o trio prodígio da La Fabrique mereceria todas as atenções em cima do palco. As filmagens do primeiro episódio do "Not Easily Broken" se dariam no grandioso salão de festas, cuidadosamente preparado com câmeras sobre trilhos, montadas para recontar a história de amor a ser abordada naquela noite. Aconteceu como um sonho, e a estreia foi extraordinária; entretanto Eric tinha outras preocupações. A todo instante, fantasiava vários cenários para a conversa com Kylie. Quando o programa já chegara a meio caminho, platéia, coreografias e explosões de cores a todo vapor no Salão Principal, ele se afastou e seguiu caminhando pelos corredores do elegante centro de convenções até se ver diante do salão do bar. Empurrou a porta de vai-e-vem e foi acolhido pelas reconfortantes sombras aprofundadas. Havia monitores pelo corredor, e agora Eric via que também existiam pelo bar, para que a equipe técnica não perdesse o controle da atração. Ainda assim, não havia pessoal de produção por ali. De olhos arregalados, Eric tateou a parede até encontrar o interruptor. Quarenta bancos de almofadas vermelhas, em formato de ferradura - um dia possivelmente bastante concorridos vez que de frente ao bar - agora encontravam-se vazios e poeirentos. A comoção distante que vinha do Ballroom ressoava amortecida por causa do carpete das paredes. Eric se agachou para examinar melhor o monitor, quando a sombra de Kylie foi projetada sobre o piso laminado de madeira.
- Oh, Kylie... - Eric se levantou reflexivamente, como alguém apanhado em indiscrições. Ele bateu as palmas empoeiradas das mãos e as enfiou no bolso do paletó, tocando a carta dobrada. Naquele instante, não soube se iria adiante com o plano. - Você está linda!Estive procurando por...
- Eu sei, eu o segui até aqui. - Cortou-o de modo doce e aparentemente casual.
- Espere um pouco. - Eric a segurou pelos braços e a afastou um pouco para observá-la melhor. - Deixe-me vê-la melhor. - Sobre Kylie, deitava-se o verde e o vermelho neon vindos das placas led de alto brilho, o letreiro luminoso do bar, com as palavras "Aberto, Café" e o desenho de uma xícara de café com o vapor a ascender pelas bordas. Ela parecia saída de sua imaginação, ou melhor, da maneira que um dia a imaginara, ao alto das escadas da La Fabrique. Vestia o retrô preto longilíneo, estilístico e elegante com que Audrey Hepburn aparecia na primeira cena de Bonequinha de Luxo, na Fifth Avenue, a cintura valorizada pela exibição dos quadris, a diferença apenas na saia, um pouquinho mais aberta que a do filme. As luvas brancas eram de seda e subiam até a pouco acima dos cotovelos. Kylie Grattan era uma femme-fatale saída de um filme de suspense ambientado nos anos 40, alguns anos após o término da Segunda Grande Guerra, um revival do New Look de Dior, de 1947. - É a maneira pela qual quero me lembrar para sempre de você. - Eric explicou, e os olhos de Kylie ficaram mais tristes. - Você disse que me seguiu até ao bar?
- Eric, você está falando comigo, lembra-se?Não consegue esconder nada de mim, ao menos não por tanto tempo. Eu imaginei que quisesse me contar algo, no mínimo desde o fim de semana na sua casa.
- Você jamais foi o problema. Eu sempre confiei em você, Kylie, e sempre me senti à vontade para ser quem eu realmente sou quando estou contigo. O problema era comigo, com uma falsa culpa, talvez.
Repentinamente, explosões de fogos no Ballroom. Kylie e Eric assistiram pelo monitor `a chegada do momento da declaração. O lugar parecia um inebriante baile de excessos e ostentações, homem e mulher no centro do Ballroom enquanto as centenas que participavam do episódio assistiam ao desenrolar e torciam pelo melhor. A produção fizera uma maravilhosa escolha para a trilha.
- Morricone, Love affair. - Kylie reconheceu a faixa de imediato. Os seus olhos deixaram preguiçosamente o monitor e retornaram aos de Dudley. - Finding Each Other Again. Escolheram muito bem, eu diria.
- Quando falei de culpa, referi-me à Allie. E tinha um pouco de medo da rejeição. Foi apenas depois de conversar com meu amigo que comecei a enxergar a questão sob um novo prisma. Ele falou sobre como somos essencialmente emoções. A maioria das coisas pelas quais nos jogamos na linha de fogo não permanece em nossas mãos, uma vez que vamos embora, mas as emoções, elas são as nossas verdadeiras impressões digitais. E quando você está por perto, ou mesmo longe, a sua lembrança traz essa eletricidade, definitivamente uma forte emoção. - Eric mordeu os lábios, surpreso e concentrado. Não esperava que soaria tão espontâneo e confiante. Kylie segurou suas mãos. Mais aplausos reverberando pelas paredes do bar: pelo monitor, viram que a moça dissera "Sim" ao pedido de namoro, e agora os dois se beijavam sob a tempestade que jorrava dos lança confetes chuva de prata. Era uma linda cena, e a música de Morricone alavancava o momento a um escopo épico. Simultaneamente, ali estavam Kylie e Eric, vivendo uma experiência similar, ao sabor da mesma Love Affair, mas distantes de câmeras e de olhares. - Quando eu a vi abraçada a Charly na cama, e na tarde do dia seguinte precisou partir, a distância me disse claramente... Que eu te amo.- Uma das mãos de Kylie deslizou para trás da nuca de Eric, e com os dedos da outra, levantou-lhe o rosto pelo queixo, forçando-o a encará-la enquanto falava.- E sabe, era tolice temer tanto a resposta, se a resposta seria "sim" ou "não", pois seja lá qual for, trata-se de um sentimento espetacular, e mesmo que não funcione entre a gente e exista um outro cara a quem ame, ficarei feliz por ter me livrado do segredo, e por saber que você se sentirá bem!E eu só quero que fique bem, realmente. Preparei...Uma... - Eric tateou o paletó até puxar do bolso a carta dobrada. - ...É uma carta. Sinto que me expressei melhor através da escrita.
- Eu me preocupo tanto contigo, Eric. - Trouxe-o para si, para seu ombro. - Você me mata de preocupações. - Os dois ficaram abraçados e Kylie parecia não querer largá-lo. - Eu leio seus pensamentos. Eu sabia que se apaixonara por mim desde antes de Allie morrer. Eu ficava arrasada, pois enxergava muito claramente o que a doença da Allie e sua autocensura estavam fazendo contigo. Eu realmente queria ajudá-la, mas era um passo que precisava dar sozinho, querido. Eric, preste atenção... - Kylie hesitou. Via-se que o que estava para dizer lhe traria enorme dor. - Eu e Cary estamos juntos.
Agora, as pistas se somavam de forma a oferecer um todo coerente. Cary meio que se "ausentara" do círculo de amizades pois sabia que eventualmente Kylie contaria a Eric que tinham começado a namorar. Depois de tanto temer a rejeição, Eric se surpreendeu com o quão positivamente lidou com a resposta. O que sentia por Kylie era tão genuíno, diferenciado, um sentimento verdadeiramente raro e nobre, que mesmo diante do "não", sentia-se muito feliz por Kylie ter encontrado alguém. Reconheceu com humildade que o fato de ambos serem igualmente jovens tornava os seus mundos, o de Cary & Kylie, mais próximos e semelhantes.
- Fico feliz. Você merece. - Eric a parabenizou. Foi tomado por angústia quando Kylie começou a chorar no seu peito. - Oh, não, não faça isso, Kylie! - Ele a trouxe para si. Alisando seus cabelos, procurou consolá-la. - Eu não queria deixá-la confusa com toda essa história.
- Não quero magoá-lo. - A voz carregava uma urgência de partir o coração. Era Kylie quem temia perdê-lo.
- Você não me magoou. - Segurou-a pelo rostinho e insistiu, com um sorriso compreensivo e aliviado. - Você é excelente e eu te amo!Acho fantástico que esteja com Cary pois o que me importa é saber que ficará bem. Não me magoou, fique convicta disso!
- Odeio a ideia de perder o que temos aqui! - Ela mostrou os dedos cruzados. - Somos unha e carne, e eu não conseguiria sobreviver sem a sua amizade, Eric, realmente...
- Shhhhh, você tem a mim, sua boba, você tem a mim! - E igualmente comovido, brincou para amenizar a situação. - Quem levou o fora fui eu, e não você! - Conseguiu minimizar o suspense da conversa, e Kylie, rir e apartar-se momentaneamente das lágrimas. - Vai ficar tudo bem, sua boba. Eu te amo.
- Eu te amo também. Você deve me prometer... Você deve me prometer que jamais se distanciará!
- Sim, eu prometo. Você vai se sentir melhor, fique comigo aqui um tempo...
- Uma última coisa. - Eric lhe dirigiu um olhar questionador e Kylie fez o pedido. - Eu quero que me entregue a carta.
- Oh, Kylie, mas talvez não seja uma boa ideia. Você tem um companheiro agora e...
- Entregue-me a carta. Preciso lê-la, quero tê-la.- Kylie tomou delicada e decididamente o envelope das mãos de Eric. Ela o deslizou para dentro da luva de seda branca. - Eu preciso tê-la, para relê-la, para me lembrar do que sentiu por mim em uma dada altura de nossas vidas.
- Tudo bem. Você se sente melhor? - Não veio a resposta. Agora, Kylie voltava a chorar. Eric estudou o ambiente, seus olhos mais acomodados ao breu. Tinha a sensação incomum, até mágica, de que subitamente o lugar ganharia luz e vida, e por todos os lados irromperia um baile de máscaras saído diretamente dos anos 40. - Vamos, Kylie. Fique comigo, vai passar, vai passar...
No Ballroom, a parafernália de efeitos visuais laureava o "Sim" tão batalhado pelo herói da vez. A noite havia sido um sucesso para o casal da história... E também para um outro, aquele que se resolvera afastado das câmeras, cercado exclusivamente pelo silêncio e os arcos de penumbra do elegante, atemporal bar de hotel. Sucesso, pois agora Eric tinha a resposta e podia se sentir mais aliviado por ter escolhido o caminho mais correto, por mais difícil que tivesse parecido vocalizar as emoções, a única parte de si que o acompanharia mesmo depois da morte, consoante Colby brilhantemente colocara. A orquestra chegava às notas finais da obra prima do genial Morricone e o compasso do coração de Kylie retomava a batida usual. "Vai passar", Eric insistia. Enquanto que para a multidão no Ballroom a chuva de papéis picados prateados não parava de polvilhá-los, a que descia sobre Kylie e Eric era verdadeiramente invejável, uma formada por verdadeiras estrelas, a penetrar pelas gigantescas Bay Windows de madeira.
Uma semana se passou. Eric preferiu se ausentar por um tempo do trabalho. Para não levantar suspeitas, fingiu um problema desimportante de saúde. Com isso, pôde guardar distância da La Fabrique e não cruzar acidentalmente com Kylie. Quando disse que a amaria para sempre, fora honesto. Em um primeiro momento, no entanto, parecia prudente permanecer sozinho para investigar melhor os sentimentos, principalmente depois de uma experiência tão importante. Quando Eric apareceu na 211 Bel Air Café, o seu bom humor era tamanho que Colby pensou que Kylie e o amigo tivessem terminado juntos. Eric explicou que muito embora o final feliz pretendido tivesse sido reservado somente ao casal do "Not Easily Broken", sentia-se mais leve. Torcia pelo sucesso de Kylie e sabia que ao lado de Cary St. Pierre ela receberia todos os cuidados e atenções. Quando Hammond ligou para o viúvo na sexta-feira, para perguntar se se sentia melhor, Eric acabou contando o que ocorrera no início da semana. O amigo o convidou para drinques, mas Eric fez melhor. Resolveu levá-lo para provar o café da 211 Bel Air.
- Eu lamento, Eric. - Hammond acabara de ouvir a tudo. Coçou a têmpora, cismado, ponderando um prognóstico. Filou um cigarro do maço. Naquela noite, o cliente mais assíduo da 211 Bel Air Café tinha companhia: calouros da universidade "esquentavam" para a noite de amadores e, barulhentos, faziam a festa nas últimas mesas, mais próximas à máquina de jukebox.
- Não lamente, eu me sinto bem! - Frisou, apertando-lhe a mão com camaradagem. - E não apareci ainda apenas para dar um tempo. Seria um pouco constrangedor...
- A Kylie surgiu ontem te procurando. Falou pouco e quando eu disse que você não se encontrava, não se demorou. Conversamos sobre alguma coisa referente ao "Not Easily Broken" e ela logo se escusou.- Hammond deu uma tragada e mexeu com sofreguidão a xícara de chocolate quente. Depois de considerar um pouco mais, aconselhou, de pronto. - Não fuja mais. Acho que cometeu um grande erro ao não aparecer no trabalho, pois sinalizou fraqueza emocional. Precisa delimitar seu território.
- Como assim, "erro" ?
- Ao faltar pelo restante da semana, você sinalizou a Kylie que ela guarda enorme poder sobre seu emocional. Quando Kylie ressurgir, trate-a muito bem, tenha uma postura bem-humorada e atenciosa, mas a saque de vez da mente, porque ficou bem claro que essa história de amor que alimenta na cabeça não vai acontecer!Chega de prestar favores gratuitos ou atender a todas as ligações que ela fizer. Você precisa se proteger, assegurar-se de que ela não está te usando como muleta afetiva!
- Ela não é o tipo de pessoa que... - Eric tentou defendê-la, mas Hammond prontamente o atropelou.
- Isso não a torna uma pessoa má. Mesmo inconscientemente, Kylie está te usando, sim, para se validar. Não acho que faça por mal, mas se serve de sua presença em um contexto utilitário, pedindo conselhos, servindo-se de seu ombro amigo para desabafar. Você é um homem muito bom, e "homens muito bons" tendem a convenientemente preencher o vazio existencial de mulheres "independentes". Quer a minha previsão?Kylie vai ficar com o Cary e assim que ele a tratar mal e precisar de alguém que repare a auto estima, procurará por ti. Ela te enfiou no inferno da "friendzone".
- Mas... Afinal de contas, o que é a "friendzone"? - Eric indagou, sem cuidar de que falava em um tom um pouquinho mais elevado. Os calouros pareceram ouvi-lo, pois do outro lado do bar atiraram-lhe a resposta em todo seu doloroso realismo.
- "Friendzone" é quando um homem e uma mulher se tornam amigos muito próximos e então o homem se apaixona!
- É isso. - Hammond grunhiu, sinalizando os calouros com o polegar por sobre os ombros. - Eles sabem pois já devem ter passado pela experiência. - Hammond exibiu a xícara para Colby, expressando desejar mais. - Eu não nasci sabendo de tudo, Eric. Assim como você, tive as minhas experiências, e pus em prática o que aprendi. Eu faço votos de que aprenda com a sua. Colby estava certo quando o aconselhou a se abrir. - O garoto encheu a xícara nos canos cromados da máquina, despejando o chocolate quente e complementando a metade da xícara com o leite. - Você precisava conversar com a Kylie para se ver livre da prisão emocional. Agora, escute ao que eu tenho a dizer: não siga analisando minuciosamente o que se deu. Desanuvie a cabeça, pare de enxergá-la sob um prisma fantástico e como uma criatura perfeita e angelical. Dedique-se a si e a Charly. Houve o tempo em que passei por essa maré de azar até descobrir que havia algo errado com a maneira com a qual vinha encarando o mundo. Pare e raciocine, e compreenderá que mulheres não colocam os "alfas" na friendzone. Artistas famosos, gângsteres, empresários poderosos, você não vê mulheres colocando caras do tipo na "zona da amizade". Elas fazem isso com vulneráveis ou sujeitos reféns dos próprios valores. Para os destacados, jogam-se aos pés. São boazinhas e ingênuas para os destacados, mas jamais para os corretos. Tome cuidado com as aparências, Eric. Kylie é uma mulher independente, rica, aventureira e manipuladora.
- Mas Senhor Hammond, você não acha que tamanha generalização leva a equívocos? - Colby sugeriu.
- Olhe, Colby, depois de tudo pelo que passei, posso afirmar que meu tom duro apenas reflete a realidade crua, não há nada de subjetivo em meu discurso. - Hammond apoiou-se com a ponta do sapato no balcão para girar o banco alto e se pôr de frente para os calouros. - Pensem comigo: Eric está aos pés dessa bela mulher, a ponto de não distinguir "direita" de "direto". A moça vai telefonar para Eric queixando-se do canalha com quem saiu, Eric fará a coisa nobre e decente, aconselhá-la, massagear o ego com lindas palavras. A pergunta é: Eric vai transar com a Kylie? - Todos riram, mas a pergunta fora colocada seriamente. - Levantem as mãos, aqueles que acham que Eric vai transar com a Kylie. - Silêncio. Ninguém levantou a mão. - Eric não vai transar com a Kylie. Sabem o cara que ela chamou de canalha ao telefone?Eu garanto a vocês, esse cara vai comer a Kylie novamente.
- Eu entreguei uma carta a Kylie e acho que consegui me explicar melhor. - Assim que Eric falou, Hammond levou as mãos `a testa, em desconsolo.
- Não devia ter feito isso. - Sentenciou, em um sopro desapontado.
- Eu não queria dar, mas ela insistiu tanto que eu...
- Cometeu um erro.
Eles permaneceram na 211 Bel Air Café pela madrugada inteira, conversando e trocando ideias. Hammond revisitou um pouco o seu "background" e a partir do momento em que Colby e Eric conheceram o seu passado, pareceu mais claro de onde vinha a sua postura. Hammond conhecia "friendzone", estivera trancafiado naquele inferno por muitos anos e, conforme as palavras usadas pelo próprio, perdera um valioso tempo com coisas das quais hoje fugiria `a mera desconfiança. Tinha sido a partir do momento em que se pusera em primeiro lugar que a vida sofrera uma impressionante guinada. Hoje, Hammond não apreciava ficar com a mesma mulher por mais que um semestre. Ele era machista e centrado no próprio desenvolvimento e sucesso, mas se conduzia conforme um nobre código de ética. Recompensava uma mulher quando se portava como dama honrada; era gélido e indiferente com as espertinhas, e invariavelmente as largava assim que a menor sombra de joguinhos psicológicos deitava-se sobre o seu pescoço, como a perspectiva da guilhotina, armadilha em que caíra no passado as vezes necessárias até aprender.
Hammond e Eric caminhavam juntos pelo estacionamento. O frio era rigorosíssimo e a noite já começava a se rasgar como fina seda tensionada, revelando o amarelado de uma nova manhã. Eric se voltou para acenar para Colby. O garoto devolveu o aceno e retornou para a cozinha, onde existia uma pilha de xícaras e pratos sujos que deixara amontoar para apreciar a boa conversa com os amigos mais velhos. Correndo pela highway, conseguiam ver muito claramente a CN Tower. Hammond sugeriu que subissem ao topo. Eric gostou da inesperada sugestão, e os dois amigos foram parar no ponto turístico mais famoso de Toronto, sobre a cobertura a quase quinhentos metros de altura de onde se podia enxergar a panorâmica da cidade inteira. Aconchegante em seu silêncio, era como se dali de cima seus problemas parecessem insignificantes. Tinham feito bem em realizar a visita cedo, não havia mais ninguém.
- Então... - Eric introduziu a questão. - Você acha que eu cometi um erro.
- Sim. - Respondeu, convicto, os olhos sequestrados pelo magnetismo urbanístico do centro financeiro de Toronto, ainda adormecido. - Dependendo do que escreveu, e eu acredito que deva ter jogado todos os seus sentimentos confusos no papel, pode ter dado a Kylie munição para que ela possa te castigar sempre que quiser. Você revelou o seu coração, Eric, e não se faz isso `a mulher alguma, a não ser à mãe.
- Eu não vejo como uma carta possa voltar para me assombrar, de verdade. - Disse, ansioso para que Hammond revelasse os detalhes que tinham escapado a sua despreparada percepção da realidade.
- Kylie sabe que a ama e sempre que tentar se distanciar, quando ela ler a carta, sentirá saudades do seu apego, e irá te procurar. Venha, vamos sentar... - Hammond o convidou a esticar as pernas na passagem que dava para o terraço. - Não se preocupe. Apenas me prometa que procederá com maior cautela. Ponha-se em primeiro plano, com Charly. A sua fé inabalável e o amor que vocês têm um pelo outro são a única verdadeira força que os sustenta, Eric, e por isso deve sempre manter a guarda. Promete-me?
- Sim, prometo. - Apertou o braço de Hammond, e com a voz emocionada o agradeceu. - Obrigado por tudo.
- Quero que fique claro: penso que foi bonito que tenha passado a limpo os seus sentimentos pela Kylie. Não é feio sentir carinho por alguém. - Levou a mão aos ombros de Eric. - Apenas achei uma tolice entregar a carta. Também preocupo-me com o que fará a partir de agora, mas já sabe como proceder. Desapego, para tocar a vida para frente. "Bomba ninja" na Kylie, desapareça por uns tempos. Quando reencontrá-la, quero que a trate normalmente. Gentil, atencioso e elegante. Não se encante com palavras bonitas. Seja econômico com seu tempo. Depois da troca de cordialidades, continue caminhando, por mais que se sinta devastado ao deixá-la para trás. No começo, será difícil, porém eventualmente se habituará. A verdadeira felicidade encontra-se dentro de ti. Uma mulher legal agregará `a sua felicidade, representará algo que te deixará ainda mais satisfeito, porém o cerne encontra-se dentro de ti. Procure a felicidade no seu centro.
- Consegui tranquilizá-la. - Sussurrou, com os braços cruzados e um olhar clínico. - A senhora pode ir, creio que darei conta.
Foi uma noite em que Eric não conseguiu relaxar. Kylie caiu em um sono profundo e Eric viu as horas passar, vagando silenciosamente de um quarto ao outro para checar filho e amiga. Vez ou outra, descia as escadas e ia se distrair, preparando café. Somente quando a madrugada avançara quase completamente, Eric deitou-se ao lado da Kylie e o cansaço encarregou-se do resto, apagando-o de um minuto ao outro. Quando despertou, passava de meio-dia, e o que o fez acordar foi o cheiro forte, familiar e harmonioso de ovos fritos, queijo, presunto, pães frescos e café. Eric suspirou aliviado ao se deparar com a suave e inspiradora imagem de Charly ajudando a tia Kylie a pôr a mesa com a ajuda da senhora Medina. Kylie vestia camisa de botão e bermuda emprestadas de Eric. A turma nem se deu pela presença do viúvo, que ao cansar da invisibilidade, deu duas batidinhas na porta e anunciou:
- "Toc, toc", olá, alguém precisa de um pai por aqui? - Ajoelhou-se para receber o abraço do filho. Deu um beijo na nuca de Kylie e perguntou, baixinho. - Você acordou melhor?
Eric esboçou um doce, concordante sorriso. Admirado com a beleza com que Kylie enxergava o incomum relacionamento, trouxe-a para si e a abraçou desinibidamente.O sol estava para concluir o trajeto descendente para trás da linha do horizonte. Por mais prateada que fosse a tonalidade que a noite vindoura prometesse vestir como véu, o frio era estupendo, e somente nos braços de Eric - e de ninguém mais - Kylie encontrava o conforto que o seu ego parecia demandar. A aquela altura, fins de 2004, Kylie começava a perceber que, de uma forma ímpar, Eric se tornara parte de seu sistema. Ele tinha um papel importantíssimo, insubstituível, tocando-a em sentimentos a que os homens com quem se envolvia sexualmente não tinham acesso. De certa forma, Eric era a promessa de redenção, a grande incógnita da vida de Kylie, que sentia que sempre ficaria bem, se ao menos não desistisse de lhe esperar, não deixasse virar cinzas as belas emoções que redigira tão bem na carta.
- O que acontece é que pessoas boas sofrem muito nesta vida. - Hammond desabafou, e no timbre da voz Eric pôde reconhecer a amargura de um homem que um dia acreditara ter sido tão bom quanto, mas precisara se transformar em face das decepções que só haviam se amontoado. - Às vezes, "bom" não é o suficiente, Eric.Inicialmente louváveis, não custa a atitudes semelhantes `as suas sinalizarem aos outros que podem chegar e sapatear em cima de seus sentimentos, apenas para saírem impunemente. Você pode ser um bom homem, mas não pode fugir das consequências de um coração desarmado. Lembre-se de minhas palavras, amigo. Seja prudente, adquira um pouco de malícia, não ponha as necessidades dos outros à frente de seu bem-estar. Do jeito que está se conduzindo, apenas comprará um bilhete só de ida para a amargura. Você não merece passar por...
Eric se despediu de Hammond e Colby, e voltou ao carro. Correndo pela highway, os seus olhos buscavam o aeroporto através do retrovisor, e o aeroporto ia gradualmente afundando no espelho até restar somente a rodovia vazia e postes muito altos, passando e passando. Dontown Toronto era uma pérola preciosa, a vida noturna bem representada pela luz que emanava e parecia subir até a um determinado ponto do arco celeste. Temeroso em razão do sono, avivou o rádio, trazendo o volume ao máximo. Ao chegar em casa, foi só o tempo de se livrar das roupas: caiu exausto sobre o colchão, lençóis de seda e ar-condicionado os facilitadores que o induziram rapidamente ao relaxamento total e `a inconsciência. Não escutou quando menos de uma hora depois o telefone do escritório começou a chamar. A secretária eletrônica recebeu a chamada. Enquanto Eric e Charly estavam absolvidos das preocupações cotidianas, a voz urgente de Hammond era gravada.
Naquele fim de semana, houve uma festa na cidade cenográfica da Toronto Network, uma noite de gala para comemorar a década de existência do canal. Embora não se sentisse mais tão seguro em festas de confraternização, Eric deixou sua zona de conforto. Ele não sabia, mas a sua maior abertura ao mundo e aos outros devia muito à expectativa que advinha da possibilidade de conhecer uma nova mulher. Sentia-se mais resoluto e sorridente, e é claro que a primeira pessoa a notar a mudança de comportamento foi a senhora Medina.
- Ei. - Veio a voz melodiosa e feminina. Mesmo dentre outras, mesmo em meio a músicas, fez-se perfeitamente distinta aos ouvidos acostumados de Dudley.
Eric jantou com o filho, e os dois desfrutaram de uma noite animada e aprazível. Da cozinha, a senhora Medina sorria de contentamento ao escutar as gargalhadas de pai e filho vindas da sala de estar. O filho também estava excitado, motivado pelas próprias razões e projetos. A expectativa quanto ao filme que pretendia rodar com os coleguinhas vinha consumindo seu tempo fora do colégio, e a senhora Medina disse a Eric que a dedicação do garoto ao projeto era impressionante. Metido no quarto, o menino usava a tarde para escrever e rescrever o roteiro, atendendo ligações, recebendo os amigos para discutir questões de câmeras e o trabalho de montagem. Mais uma semana se passou até Hermione compilar as candidatas em um colecionador. Ela o repassou a Dudley. Eric recebeu a pasta com currículos e fotos de jovens atrizes interessadas no papel de "Kate Croy", a vilã de "Wings of the Dove". Sentado na escrivaninha do gabinete, a lareira estalando as lascas de madeira e afugentando o frio de uma das noites mais severas do ano em Toronto, Eric foi folheando os papéis do colecionador, encontrando candidatas que cobriam um amplo espectro de variáveis que um homem consideraria antes de escolher sua esposa.
Colby o convidou ao terraço. Era uma madrugada especial para se admirar a noite. A visão panorâmica permitia que estudassem a infinita envergadura do horizonte esticado, e a aproximadamente oitenta quilômetros acima de Toronto, as nuvens notilucentes, eletrizadas por cristais de gelo minúsculos, que refletiam a luz solar, mesmo o sol ainda por nascer, abaixo da linha do horizonte, pincelando o céu, a tela de um Deus artista, de extravagância e romantismo.
Eric impacientou-se quando as batidas na porta não foram prontamente atendidas. Começou a chamar por Lacy. Os seus dedos tocavam o teclado do celular quando a porta finalmente foi aberta e uma Lacy de olhos sonolentos e sorriso gratuito apontou na soleira. Dudley os correspondeu com outro sorriso, não tão delicado quanto o da namorada. Eles se abraçaram e Lacy pediu para que entrasse. Voltou a insistir em acompanhá-la no sábado, porém nem mesmo no cansaço venceria a batalha. Lacy pediu que ficasse até que dormisse. Eric desligou os interruptores e o apartamento foi banhado pelo sobrenatural anil, cortesia das placas luminosas de neon dos pequenos comércios do quarteirão onde a namorada vivia. Na televisão, um filme de horror mudo em preto-e-branco. "Fantasma da Ópera?", Eric acreditou identificar Lon Chaney, ao ver Christine arrancando a máscara do fantasma ao piano, revelando o monstro de aparência repugnante que contraditoriamente por ela nutria o belo amor como ninguém mais o faria. Depois que Lacy adormeceu, Eric a cobriu e escreveu uma pequena nota pedindo para que retornasse logo para Toronto para que casassem e fizessem do presente o melhor momento de todos.
- O que estuda?
- Primeiro ano de Direito. - Levantou o livro com uma careta de desagrado e exibiu seu grosso tomo de "An Introduction to the Principles of Morals and Legislation", de Bentham.
- É admirável. Eu trabalho com publicidade, mas quando vejo os advogados que compõem a banca da La Fabrique, gente como Cary, conversando sobre legalidades, sei que não conseguiria compreender uma linha. - Deu um gole e se corrigiu. - Bem, mas hoje, nem mesmo publicidade consigo compreender tão bem. Depois da confusão, os sócios tomaram conta.
- Não me admire tanto, eu ainda não terminei um capítulo sequer! - Colby empurrou o livro de lado e elaborou. - Eu comecei o curso neste semestre. Não estou muito `a frente, mesmo dos leigos.
- Ainda assim, está fazendo o curso. É admirável. - Eric rasgou o plástico com os talheres. Quando enfiou o garfo no croquete quente, o branco viscoso da abóbora escorreu para fora. - Quando comecei com a publicidade... Houve uma época em que me questionei se fizera a escolha certa. Não me arrependo de ter persistido, mas no começo foi muito duro... Uma das coisas mais duras pelas quais passei, desde... - E os dois ficaram em silêncio. Pela graciosidade com que Eric ensaiava romper o tabu e abordar o delicado assunto, Colby perguntou mais claramente.
- O que aconteceu com a sua esposa, senhor?
- Câncer. - Eric respondeu com um suspiro, os olhos perdidos na pista. Um grande Boeing da Star Alliance aquecia seus motores Rolls Royce na cabeceira antes de iniciar a corrida da decolagem. Eric abaixou o rosto e levou os dedos ao septo. - Foi muito rápido, não levou um ano sequer. E por incrível que pareça, fomos mais unidos nos últimos meses do que antes. Não que tenha sido um casamento ordinário, pelo contrário. Gosto de pensar que foi maravilhoso. Ei, ao menos te asseguro que o foi para mim. É que nunca estivemos tão emocionalmente investidos quanto nos últimos meses.
- Naquela tarde em que apareceu... - Colby começou a compreender.
- Foi a tarde da morte. O Charly, o menininho...Charly é meu filho.Eu estava tão confuso que pensei em comprar duas passagens para o próximo voo para o Brasil. - Eric deu um sorriso condescendente ao se recordar da estupidez. Meneou com a cabeça e prosseguiu. - Péssima ideia. Achei que bastaria sumir para que os problemas desaparecessem completamente, em Toronto. Depois de vir parar na lanchonete e revisar o plano na cabeça, vi a quantidade de furos. Quero dizer, dá para passar um trem pelos buracos desse "plano". Mesmo que quisesse, não poderia levar Charly tão fácil. - Concluída a bebida, Colby tomou a iniciativa de puxar a xícara e preparar uma segunda. Antes de colocar a cápsula na máquina, procurou a aprovação do cliente, que sinalizou afirmativamente.
- Havia uma moça muito elegante e bonita... - Assim que Colby mencionou a "estranha", a primeira que chegou para conversar com o viúvo, Eric sentiu-se reconfortado quando a lembrança de Kylie se avivou em sua mente.
- Kylie. - Eric fez menção de que teceria maiores comentários sobre a estranha que chamara a atenção de Colby - e de todos os homens - mas algo pareceu perder-se no instante em que abriu a boca para vocalizar o que tinha em mente, e realmente não soube continuar. Antes que se apercebesse de que Kylie lhe era suficientemente cara para deixá-lo sem palavras, Colby emendou.
- Pensei que se tratasse da sua filha.
- Eu pareço tão velho assim, é? - Fingiu-se zangado. - Ora, dane-se! - Os dois começaram a rir. - Com um nome desses, que direito tem de...
- Deixe meu nome em paz, coroa! - O rapaz desligou a máquina, que ainda espirrou um pouco de leite na xícara. Colby mexeu a bebida com uma palhetinha e a entregou a Eric. - Garanto que está melhor do que o primeiro que tomou por aqui!Esta é o "chococino", uma bebida à base de chocolate quente.
- Chococino... - Eric repetiu divertidamente, como se quisesse memorizar o curioso nome antes de experimentar o primeiro gole.
E foi naquela noite em que a improvável amizade entre o publicitário e o rapaz da 211 Bel Air começou. O espontâneo bom humor que o jovem imprimia ao bate papo tornava as rodadas de xícaras de café mais amenas e espirituosas, e muito embora a melancolia jamais deixasse de mantê-lo acordado à noite, ainda que Eric precisasse retomar o rumo para o aeroporto, agora tinha um amigo com quem podia dar risadas sobre as bobagens do dia-a-dia. Eric e Colby conversavam sobre filmes e esportes, o que era especialmente importante para o viúvo, pois o ajudava a recuperar a impressão de normalidade. Eric guardava a chaves os instantes mais valiosos desfrutados com Allie. Eventualmente, compartilhava-os com Colby, o que trazia certo conforto ao coração. Havia os dias certos para Eric aparecer na lanchonete. O viúvo começava a visitar a 211 Bel Air nas quintas-feiras e seguia retornando pelas próximas duas noites, ou seja, até sábado. A 211 Bel Air geralmente recebia uma clientela muito jovem nos finais de semana, mas como Eric aparecia por último, o lugar jamais deixou de lhe parecer exclusivo. Eric era praticamente o último cliente. Havia uma quietude própria à lanchonete que o viúvo afirmava não ter encontrado em lugar algum. Ao estacionar o carro, detinha-se para estudar com os olhos a vicinal que fazia a ligação da lanchonete à estrada que serpenteava no sentido do aeroporto. Entre os dois mundos, achava-se dividido: havia a promessa de redenção, simbolizada pelas pistas onde aviões corriam e deixavam; existiam o dourado fraco dos charmosos postes da 211 Bel Air e as luzes de neon vermelhas e verdes que fulguravam de dentro da cafeteria, quando Eric se sentia só, como se a vida lhe tivesse pregado uma peça da qual não conseguia fazer sentido. Sentava-se à mesa do segundo piso, pois somente dali ou do deck tinha como admirar o aeroporto internacional, quando procurava se decidir se permaneceria na sua realidade pouco promissora em Toronto ou simplesmente fugiria.
Uma tarde chuvosa de setembro, Eric chegava a La Fabrique de Films, seu escritório de publicidade, quando estranhou as portas trancadas. Ao examinar a situação pelo lado de fora, através das janelas, constatou o desligamento das luzes. Girou rapidamente a chave e entrou apressado. Foi apanhado pela certeira chuva de confetes e serpentinas. As luzes foram ligadas em força total, revelando os colegas de profissão estrategicamente posicionados por todos os cantos: em cima de cadeiras, ao redor das pranchetas, até mesmo uma das secretárias sentada sobre o último degrau de um cavalete, terminando de amarrar balões coloridos no lustre da sala!Eric levou as mãos à cabeça e somente então deu-se pelo fato de completar anos naquela data. Relutante em se emocionar, procurou fazer graça da situação e emendar brincadeira após a outra. Por dentro, fora profundamente tocado, e desejava ficar momentaneamente a sós para que não se preocupasse se choraria ou não. "Discurso, discurso!", começaram a gritar. Eric pensou "Essa não!".
- Eu sei que tenho parecido ausente nos últimos meses. - Eric começou, e o rumor dos amigos feneceu, como se alguém tivesse reduzido o volume no controle remoto. - Eu sinto muito se não tenho sido de grande valia para vocês mas os amo todos. Eu... - Entre tantos rostos queridos, foi o de Kylie que ganhou sua exclusiva atenção. Ocorreu-lhe quando ela aparecera pela La Fabrique seis anos antes, uma estagiária falastrona que não parecia compreender muito bem a dinâmica das relações sociais e, pior, do mundo. Conhecera-a uma menina maluquinha, e agora ali estava, aquela pessoa que ficara no lugar da menina, uma mulher elegante, sofisticada, cujos olhos enigmáticos e tristes reforçavam sua autoconfiança. Portava-se com graciosidade, autoridade e segurança, comandando os ambientes pelos quais transitava, fossem mesas de negócios ou confraternizações. Kylie tinha os cabelos pretos curtos que `as vezes insistiam em cair em uma mecha, era esbelta e alta. Vendo-a ali parada ao pé da escada, Eric imaginou como pareceria ainda mais exuberante, estivesse vestindo longas luvas de seda que subissem um pouco acima dos cotovelos. Era interessante, pois por muito tempo a enxergara como a amiga maluquinha, e agora era, bem, uma fascinante, fascinante mulher. Quando os seus olhares se encontraram, Kylie lhe sorriu, e Eric fez sinal de que conversariam mais tarde. - Eu sou um homem abençoado. Eu não sei se mereci muitos anos de felicidade ao lado de Allie. Poucos homens teriam merecido, realmente. Eu sou grato pelas lembranças e as levarei comigo para sempre. - Do segundo piso, as palavras de Eric foram respondidas com aplausos imediatos de Kylie. No mesmo segundo, os demais fizeram coro, e o estúdio veio abaixo em palmas.
- Seja bem vindo de volta, querido. - Kylie anunciou. Os companheiros se concentraram no centro do salão e o abraçaram.
Foi uma feliz noite de reencontros, celebrando a oportunidade dos recomeços. Um buffet havia sido contratado e os convidados puderam conversar e se divertir, embalados pela excelente performance de um grupo musical que passou a noite ensaiando, em sax, lindas rendições dos temas mais inesquecíveis do cinema. Eric tentava encontrar Kylie no salão quando Hermione o apanhou pelo braço e o guiou à sua mesa. Hammond e Alexandra não o deixaram mais sair, afoitos para lhe contar o projeto para a grade das noites de segunda-feira para a Fox TV. Enquanto escutava os amigos ilustarem muito amplamente a ideia da atração - algo sobre criar oportunidades para que pessoas se declarassem umas às outras - os olhos de Eric vasculhavam o estúdio. Somente mais tarde, quando parte dos convidados se fora e o sax lançava melodias mais tristes e românticas, Eric a encontrou. Viu as suas costas muito sinuosas, ainda mais atraentes graças à generosidade com que o vestido vermelho as revelava ao cair. Cary a acompanhava à mesa. Um cigarro descansava entre os dedos de Kylie, a réstia de fumaça ascendendo preguiçosamente com o neon azulado e sobrenatural a contrastando. "Desculpem-me", Eric se escusou.
Eric reconheceu a balada romântica que preenchia o salão de incomum desespero amoroso. O grupo dava a versão para "The Hallway", da trilha de "The Prince of Tides". Escutá-la traria lágrimas aos olhos dos mais sensíveis. Era linda assim!Eric aproximou-se da mesa de Cary e Kylie e a tirou para dançar. Bailando solitariamente entre confetes e serpentinas, cercados por mesas em grande parte vazias, Kylie descansava a cabeça no peito de Eric, que finalmente parecia menos resistente à ajuda e ao carinho daqueles que se importavam com seu estado emocional. Kylie seguia murmurando o quanto sentia muito, e Eric, de olhos bem fechados, deixava que algumas lágrimas escorressem. Ocorreu-lhe que desde a morte de Allie, era o primeiro verdadeiro momento somente seu e de Kylie, o instante em que conversavam francamente sem que o viúvo procurasse sair pela tangente ou negar a forma como sua presença mexia com seu comportamento.
- Lembro-me de quando chegou. - Sussurrou, a que Kylie fez "Uh-Hum". - As meninas te achavam metida. - Kylie deixou o peito de Eric e o encarou com um sorriso espevitado.
- Eu era mesmo metida, não?
- Mesmo então, eu enxerguei além. Eu apreciei a sua companhia desde o primeiro instante. - Kylie voltou a repousar o rosto no ombro do amigo.
- Sim. As aparências diziam tudo o que os outros queriam saber sobre mim. Família rica, roupas elegantes, beleza...As meninas se fartaram com adjetivos aos montes para me rotular. Você enxergou através. - Constatou, com a voz estremecida pela dor da recordação. - É sensacional voltar a dançar contigo. - Ela observou, a voz ou triste, ou cansada, Eric não soube precisar. - Lamento por...
- Eu sei, eu sei. - Impediu-a de continuar. - Não se sinta culpada. Você tem sido fantástica.
- Tinha medo de me intrometer. Allie poderia vir a considerar ideias erradas e eu não suportaria que me odiasse gratuitamente.
- Shhhh, está tudo bem. - Apertou-a contra si, assegurando-a com dois socos leves na parte alta das costas. - Apenas fique aqui comigo até a música acabar.
- Só até a música acabar? - Kylie insinuou e imediatamente se arrependeu. - Desculpe-me.
Cary aproximou-se com discrição, talvez por reconhecer a exclusividade do momento. Queria se despedir e marcar uma happy hour para a noite do próximo sábado. "Na minha casa", Eric topou e pediu que avisasse os demais do círculo de amigos. "Cuidarei dos detalhes e entrarei em contato no decorrer da semana", Cary se despediu. Kylie também precisou se despedir e aproveitou a carona oferecida pelo amigo.
Quando Eric voltou para casa, foi recebido pela secretária, senhora Medina, a competente funcionária que todos os dias cuidava do menino, das roupas e da comida, e só ia embora depois da chegada do viúvo. Ela deixara o jantar preparado, dentro do microondas, e tinha colocado o menino para dormir com no mínimo uma hora de antecedência. Antes de sair, mencionou um certo "brilho diferenciado" em seu olhar, a que o viúvo reagiu com um sorriso encabulado. Corações podiam ser tão facilmente lidos assim? Por um tempo, contentou-se com o breu reinante na sala, encontrando sossego no refúgio do silêncio, não se atentando a nada que não o rumor da precipitação a descender consistentemente sobre Toronto. Procurou distinguir um certo barulho, um ritmo peculiar que começou a notar à medida que os olhos foram se adaptando à escuridão, e seus ouvidos à chuva. Era um rumor diferenciado, definitivamente não o de água torrencial pelos caibros. Não conseguia defini-lo muito bem, pelo menos até desistir de capturá-lo exclusivamente pela audição. Não, o rumor presente não podia ser capturado, apenas sentido. O rumor reverberava do passado, uma eletricidade usualmente oriunda de recordações, e se tornava mais perceptível ao colidir violentamente com o presente. Momentos de outra época, de doce ingenuidade, grandes felicidades, invadiam o presente de contradições, de amarguras e expectativas, de culpas e desejos não vocalizados. O resultado? o distinto rumor que Eric Dudley somente naquela noite passava a compreender melhor. As pálpebras foram pesando, e por entre resquícios de neon e explosões de raios prateados a riscarem o céu muito longe, enxergou a si nos braços de Kylie, ambos embalados no meio da sala principal, mais vazia após a morte de Allie, ao sabor de "The Hallway" em sax. Sobre o piano de cauda, o porta-retrato com a foto da esposa morta, o retrato perdendo a cor, como se assistisse com olhos muito dolorosos a Dudley e Grattan conversando baixinho, abraçados. Eric foi arrastado para a inconsciência sem se aperceber de quão rapidamente imergia na escuridão. Somente mais tarde, quando acordou sobre a poltrona, deu-se pelo quanto estava emocionalmente exaurido.
Cuidando para não fazer barulho, Eric visitou o quarto de Charly para ver se o menino tinha se coberto. Quando estava para deixar, Charly o chamou. Eric sentou-se na beirada da cama. O carrossel com recortes de cavalos e soldadinhos girava vagarosamente em torno do eixo, a lâmpada do abajur projetando um mundo de aventuras em constante movimento nas paredes e em seus rostos.
- Ficou acordado, filho?
- Eu vi você dormindo na sala mas tive pena de acordá-lo para subir. - Explicou, com a vozinha sonolenta. O pai puxou o cobertor à altura dos ombros da criança, revelando a gata, a "Pernetinha", a nova moradora da casa, que dia desses Charly convencera o pai a deixar criar, dormindo aos pés de seu mestre.
- Pode me chamar sempre que quiser. - Eric vacilou por um momento, mas retomou. - Charly, eu sei o quanto está sendo duro para você também, mas não quero que alimente a tristeza. Precisamos passar por isso unidos, e realmente queria que desfrutássemos de mais tempo juntos. Você sabe que eu te amo, né?
- Está tudo bem, papai. - Rolou no colchão, ficando de costas ao pai. Eric tomou a deixa como momento para deixar o filho dormir sem maiores amolações.
- Durma bem, Charly. - Beijou-lhe a testa. À porta, foi detido por um inesperado pedido da criança.
- Papai, tia Kylie será a minha nova mãe?
- Ora, tia Kylie é a melhor amiga de papai, e quer que sejamos muito felizes. Ela não pretende ocupar o espaço deixado por mamãe. O que te fez pensar que eu e Kylie...
- Antes de mamãe adoecer, o senhor parecia diferente com tia Kylie. - Uma pausa. Eric procurou rememorar se desde então vinha demonstrando o quanto começava a se interessar romanticamente pela melhor amiga.
- Tia Kylie jamais faria algo para nos machucar. Ela gosta muito de você. Até mesmo por não ter filhos, ela te enxerga nestes moldes. Não quero que a antagonize. Eu não estou pensando em trazer mulher alguma. Procure se lembrar do que disse, está bem, Charly?Combinamos de enfrentar o recomeço juntos e é o que vamos fazer.
- Quando diz "juntos" inclui tia Kylie?
- Charly, deixe de preocupações infundadas, vamos. - Eric sacudiu a cabeça. - Que mal tem se ela vier nos visitar, como sempre faz?Ela se importa muito com...
- Você a ama, papai? - A pergunta à queima-roupa deixou Eric boquiaberto. Charly se virou e decretou. - Se eu tivesse feito essa pergunta há alguns anos, você teria respondido no mesmo segundo. Teria dito "Claro que sim, ela é a minha amiga". Hoje, o senhor não responde, porque sabe que a ama, sim, mas não como "amiga". Você a ama... Diferente. - E voltou a se encolher, abraçando-se ao travesseiro e à gata. Soltou um bocejo e nada mais falou. Eric ficou grato por Charly não ter continuado a disparar sua metralhadora de assertivas. Raciocinaria uma melhor maneira de conversar sobre o assunto com o garoto. Desejou-lhe "Boa Noite", mas não recebeu resposta alguma.
Reuniram-se no sábado seguinte Kylie, Hermione, Alexandra e Hammond. Cary não pôde aparecer, e o sexto sentido de Eric lhe dizia que havia algo a ser dito e seria o último a saber. Kylie era a única que não integrava mais o time da La Fabrique de Films. Ela era a CEO de seu próprio grupo publicitário, o Avant!, mas devia o profundo conhecimento aos anos passados sob a proteção de Dudley na La Fabrique. Ainda assim, parecia que jamais deixara a turma, e confraternizações sem sua presença seriam incompletas. Eric parecia o "patriarca" da turma, o mais velho. O restante mal haviam chegado à casa dos 30 anos. Hermione era sempre a austera imagem do compromisso, a executiva pragmática desprovida de sentimentalismos; Alexandra, a mocinha de fala suave e mansa, vítima da própria inocência, sempre "em perigo" e pedindo para ser salva; e Hammond, o machista realista e esclarecido que enfurecia e provocava as meninas da La Fabrique com os comentários ferozes e politicamente incorretos. A reunião acontecia sempre na casa de Eric, aos finais de semana, e obedecia a uma espécie de maravilhosa agenda cultural: um filme era especialmente escolhido pelo grupo, na sala de projeção, e depois faziam a mesa redonda, regada a café e a charutos, quando confrontavam diferentes pontos de vista. Quando a turma passava para a sala de jantar, o bate papo ficava mais descompromissado. Pediam pizzas e soltavam as línguas por causa do álcool. Ao fim da noite, alguns estariam cochilando sobre o carpete, outros, conversando à beira da lareira, homens discutindo política ou esportes no alpendre, mulheres fofocando maldades sobre colegas executivas do escritório. Era sempre uma ocasião de muito prazer e alegria. Pela primeira vez depois de muito tempo, o período do diagnóstico do câncer de Allie até a sua morte mais exatamente, os amigos retomavam o costume, e parecia que a última vez tinha sido ontem: lembranças boas têm seu jeito de parecerem frescas e recentes. Naquela noite, a turma havia assistido a Gritos e Sussurros, de Ingmar Bergman, e Hammond estava despedaçando o sueco.
- Vocês sabem... - Ironizava, entre baforadas de charuto, indiferente ao julgamento das meninas. - Quando Ingmar rodou Gritos e Sussurros, estava na melhor fase da sua vida. Só há uma única tentativa de suicídio em todo o filme. - As meninas vaiaram, mas Eric teve de dar boas gargalhadas!
- Filmou tudo com o filtro vermelho, que escolha... - Eric comentou, meneando com a cabeça, meio que se censurando por cair na tentação de se juntar a Hammond no linchamento da obra.
- Eu diria que o vermelho simboliza o interior de seus personagens. Você não diriam o mesmo? - Disse Hammond, com seriedade. Quando ele e Dudley se entreolharam, voltaram à carga com as gargalhadas.
Hammond estava visivelmente "alto", porém o café refreara a língua ferina. Felizmente, era Alexandra quem o devolveria à casa. Como de se esperar, Alexandra ficara somente com os sucos, e dentre seus amigos, era a única realmente sóbria - ou talvez não, vez que se dava o trabalho de responder às críticas dos bêbados acerca da obra de Bergman!Kylie flertava com Dudley e cuidava para não o fazer tão escancaradamente. Sentia-se em casa. Estava descalça e nem se recordava de onde tinha deixado seus saltos. Hermione sentou-se no braço da poltrona de Hammond e eles engataram uma conversa acalorada sobre aquilo que o publicitário acusava como a destruição da família tradicional: o feminismo. Eric se viu à vontade com Kylie, os dois sentados ao chão, perto da lareira. As lascas de madeira estalavam baixinho, criando uma convidativa atmosfera de intimidade. Sobre a tenaz apoiada nos tijolos, havia uma precoce meia vermelha, alusão ao Natal.Encarando-se em silêncio, Kylie e Eric estavam para ficar envergonhados, quando o viúvo passou delicadamente a mão sobre sua testa, tirando a mecha de cabelo que descia até acima do lábio superior. Sua boca ganhava expressividade por causa de um incomum vermelho de batom, realçado pelos dentes muito brancos que expunha ainda mais quando abria o sorriso de tirar o fôlego. Desceu os dedos ao queixo de Kylie e tocou o pequeno pontinho preto, o sinal que existia no canto superior esquerdo. Ela subitamente vestiu um olhar de tristeza e preocupação. Ele não precisava dizer mais nada. Parecia suficientemente claro que estava se apaixonando e ela se preocupava muito em não feri-lo. Os seus dedos se entrelaçaram. Repentinamente, Eric compreendeu que não eram seus olhos os único marejados. Kylie também parecia emocionada.
Eles teriam muito o que conversar, mas como se entendiam através do olhar, diálogos seriam secundários. Ambos estavam divididos, lutando contra sentimentos de culpa e remorso. Alheio e inocente, Charly apareceu e saltou sobre o peito do pai, surpreendendo a ambos. Eric sabia que a preocupação do filho sobre Kylie passaria. Colocava-se no lugar do menino, compreendia que era muita informação para processar. Kylie abraçou o garotinho por trás e rolou com o menino sobre o tapete. Já estava tarde para Charly ficar no meio de adultos. Habilidosa, Kylie soube a maneira de reconquistar a confiança da criança. Não precisava que Eric lhe contasse sobre conversas como a que tivera na outra noite para entender o menino. Sabia que na cabecinha de Charly, estava sempre correndo o risco de passar dos limites, parecer a "invasora". Kylie tinha apanhado o garotinho pelas costas e o desafiava a se soltar. Charly dava risadinhas e obviamente não avançava muito nas suas tentativas de se desvencilhar.
- A Kylie é o tipo de mulher que luta, Charly. É melhor desistir! - Gritou Hammond, soando definitivamente mais sóbrio, do outro lado da sala.
- Bem, se não tem como levá-lo para dormir sozinho... - Eric se debruçou sobre os dois e os arrebatou no colo. - Eu levo a ambos. Vocês vão comigo!Nossa, como pesam!
- Eric! - Kylie exclamou ao ser suspensa. Foi uma bonita cena, o viúvo ganhando os degraus da elegante escada de corrimãos de fina madeira, com Kylie e o menininho nos braços. Hammond assoviou e aplaudiu, muito brincalhão, e certamente Alexandra e Hermione ficaram com inveja.
Eric empurrou a porta da suíte com o pé, cantarolando Toni Braxton. "... I dont want to Hum another Melody...", Eric entoava com inesperado talento, e Kylie o acompanhava, carregando na parte que mais apreciava, fazendo soar "Melodeeeee". O viúvo os pousou suavemente sobre a cama. O rumor do ar-condicionado jamais soava intromissivo e o primeiro contato com o frio era delicioso. O volume da televisão havia sido reduzido, e eram tocados somente pelo caleidoscópio de luzes a emanar da tela. Depois de acomodá-los, ajoelhou-se aos pés da cama.
- Chocolate gelado, chocolate gelado! - Charly pediu, acompanhando a ordem com palmas. Kylie molhou os lábios e fez que sim.
Depois que os convidados se foram, sobraram apenas Eric, Kylie e Charly. Quando subiu e os encontrou dormindo abraçados, seu coração foi assaltado por amargura. Parte do filho temia que Kylie ocupasse o vazio deixado pela mãe, mas outra desejava intensamente uma figura feminina materna capaz de suprir a carência seguinte à morte de Allie, a necessidade emocional com que Eric jamais saberia lidar muito bem, afinal era homem. Ele fechou a porta e os deixou dormindo na suíte. No dia seguinte, um domingo, propôs uma aventura, e Kylie topou antes mesmo que levasse os planos à mesa. O trio apanhou o ônibus na pequena rodoviária de Bay Street, decididos a se permitirem uma bela manhã em Niagara Falls. Com Charly se aventurando afoito pelas passarelas, Kylie teve de ficar o tempo inteiro correndo atrás do menininho, sob as gargalhadas de Eric. À beira da grade, aguardavam a vez de serem molhados pela "Ferradura", a super catarata de mais de oitocentos metros de largura, toneladas e toneladas de água despencando por segundo!Exaustos, foram descansar no terraço do Edgewaters Tap & Grill, sobre o qual Niagara parecia, ao longe, silente e pacata. Servidos de um excelente churrasco e uma garrafa de vinho, os dois adultos tiveram a abertura para conversar enquanto o garotinho, exausto, dormia com a cabeça no colo de Kylie. Quando precisou se despedir, Charly pediu que ela ficasse. Eric e Kylie se encararam, o desejo e a dor sem deixarem jamais os seus olhares.
Naquela mesma noite, Eric apareceu na 211 Bel Air Café mais cedo do que de costume, e de humor reparado. Colby recebia encomendas dos fornecedores e não deu imediatamente pela chegada do amigo. Só ao concluir o assessoramento à descarga das caixas e enxugar a testa com o lenço, provavelmente imaginando o trabalho que teria para colocar os salgados na estufa quente, deu pela presença do viúvo, escorado no balcão. Imediatamente, abriu um sorriso de grata surpresa e foi cumprimentá-lo.
- Deixe-me ajudá-lo, garoto. - Deixou as chaves sobre o balcão e arregaçou as mangas.
- Por favor, não faça...
- Ande, me diga logo como eu te ajudo? - Não lhe deu ouvidos e se agachou ao lado dos recipientes de isopor.
Eric estava animado para contar sobre a festa surpresa, sobre como engatilhara novamente os sábados de exibição de filmes para os amigos mais próximos. Lia-se a satisfação nas fáceis expressões de Colby, louco para escutá-lo. Eric sentia que trazia muito no peito para desabafar, para conversar, e queria pedir a opinião de Colby sobre sua situação com Kylie. Quando o movimento diminuiu um pouco, Rodriquez teve como puxar o banco para conversar com o amigo. Ele se interessou pelas sessões de cinema e se convidou para a próxima. Eric disse que seria muito bem acolhido pelo grupo. Seguiram conversando até a lanchonete parecer tão vazia quanto nas madrugadas, seu horário preferido.
- ... Mas não sei se seria uma boa ideia, até porque agiria movido por emoções, e não pela razão.
- O que o atormenta?Se me permite a honestidade, senhor Dudley...
- Sim, claro. - Eric o deixou à vontade. Precisava de sinceridade e as observações de Colby seriam de muita valia. - Apenas converse comigo, livremente.
- Bem, acontece que, inicialmente, acreditei que você estivesse atormentado pela possibilidade de vir esquecendo a sua esposa Allie, "rápido demais". Até aí, nenhuma novidade. Cônjuges sobreviventes passam pelo luto e a superação da culpa é apenas uma parte da jornada. Hoje, todavia, e em face de tudo o que me conta sobre sua amiga Kylie, eu me arriscaria a opinar que seus sentimentos pela moça advém de uma época anterior ao câncer. - Eric impressionou-se e Colby soube que desvendara o mistério inconfessável, mesmo que todos os elementos da equação, somados, apontassem para uma conclusão perfeitamente clara. - Agora, é bastante possível que o tenha negligenciado, o sentimento, o "friozinho" quando Kylie se encontra por perto, mas se for sincero, entenderá que sua dor sempre esteve aqui. Você fala sobre momentos e detalhes com uma precisão tão cirúrgica que fica óbvio que a reparava antes mesmo do problema com a sua mulher. - Com um sorriso compassivo, Colby bateu o punho contra o peito, na altura do coração. - E não há nada de mal nisso, senhor Dudley. Isso não o torna um mau marido ou um pai irresponsável. Somos seres humanos, animais passionais, e estamos aqui para "sentir". Imagine quantas coisas conquistamos ao longo da vida, e pense no instante de nossa morte. Somos donos de uma coisa somente, e refiro-me a nossas emoções. Somos depositários do restante. - Colby seguia enumerando com os dedos. - Casas, carros, contas bancárias, bens, tudo emprestado. As nossas emoções, porém, elas nos seguem mesmo depois que vamos embora. Você não pode... - Colby temeu soar muito direto, mas sentia que devia ao amigo o benefício da assertividade de um observador imparcial. - Você não pode negligenciar as emoções. Se você gosta dessa moça, a Kylie, precisa parar de fugir do que sente. Porque mesmo que Kylie diga que não sente o mesmo, estará se libertando para amar uma outra pessoa, uma outra mulher, que mereça emoções tão nobres e engrandecedoras quanto a sua.
- Tão engrandecedoras que... - Seus olhos fecharam-se pela dor, ou "friozinho", que Colby descrevera tão perfeitamente. Mesmo falar sobre isso era angustiante. - ... que mal consigo comportá-las.
- Você vai ficar bem, coroa. - Consolou-o. - Permita-se sentir, porque quando parar de lutar contra as emoções, enxergará melhor. Você não tem como perder!
- Obrigado, garoto. Eu aprendo sempre um pouco mais contigo! - Eric ergueu a xícara, como brinde, e brincou. - E você está cursando Direito em vez de Psicologia?
- Pois não é? - Colby deu com os ombros. - Em vez de estar ganhando rios de dinheiro, estou perdendo meu tempo dando conselhos gratuitos a perdedores como você, senhor Dudley... - Os dois deram sonoras gargalhadas.
Eric encontrava-se na highway voltando para downtown Toronto, quando o celular chamou. Hammond contou que estivera mais cedo na sua casa, mas não o encontrara. Ele disse que deixou o convite para a estreia do "Not Easily Broken", o novo programa que ocuparia o horário nobre da Fox TV nas segundas-feiras. O lançamento seria ao vivo e a presença de Eric era esperada pelo time artístico que tornara o projeto uma realidade. O viúvo agradeceu pelo convite, porém tentou se esquivar. O projeto fora levado à frente pelo mérito da equipe de Hermione, Alexandra e Hammond, exclusivamente, afinal ele estivera distanciado por causa da mulher, não queria tirar o holofote do trio de amigos neste momento de glória. Eric escutou então a voz das meninas ao fundo, em protesto.
- Tá ouvindo, Eric? - Hammond reiterou, levantando o celular acima dos ombros e o voltando para trás. - Você faz parte deste time!A sua presença é obrigatória. Nós te queremos conosco!Toronto Congress Centre, amanhã às 18:00, para as filmagens e a coletiva de imprensa.
- Muito bem. Avise-as que eu os encontrarei por lá. - Eric ficou tocado com a insistência dos amigos. - Foi um ótimo sábado. No próximo tem mais, combinado?
- Contanto que não seja Bergman! - Hammond gozou.
- Não. - E Eric entrou na onda. - Tarkosvki!
- Oh, droga, "Solaris" de novo? Uma tarde chuvosa de sábado regada à filosofia soviética?Se fode aí! - Eric estourou em risadas e desligou o telefone antes de perder o controle da direção!
Eric passou a noite de domingo para segunda-feira às claras. Na rádio, a voz de Kenneth B. Edmonds entoava "Where Will You Go". Procurava imaginar como seria o momento da conversa com Kylie, a maneira como passaria a limpo os lindos sentimentos que lhe reservara. Decidiu sentar-se ao computador para escrever uma carta, que de certa forma representaria o primeiro verdadeiro passo para um amanhã ensolarado Ninguém antes parecera fazer mais perfeito sentido do que Colby, que estava absolutamente correto ao afirmar que o resultado de sua declaração - Kylie terminando ou não ao seu lado ao fim - era o elemento menos importante da história inteira. A partir de sua escolha de pôr termo às indefinições, saberia para que direção levar a vida. Se ela aceitasse o seu pedido de namoro, Eric estava convicto de que faria seu melhor. Se não, saberia que Kylie não o enxergava da mesma maneira, e eventualmente encontraria alguém que o amasse da maneira que precisava. Tomou conta de que o esforço consumira toda a madrugada quando o céu escurou começou a se diluir em um azul profuso. Imprimiu a carta para lê-la, o que o fez da sacada, com o amanhecer ao fundo. Achou um pouco de graça, pois mesmo na sua idade existia uma invejável e doce ingenuidade na forma de se expressar. Escrevera coisas bonitas, coisas que julgava não ter o talento para expressar ou a pureza para ainda acreditar.
Eric alugou um smoking para a festa e encontrou Hammond para almoço, ocasião em que o amigo lhe entregou a programação para a noite. Eric não tinha de se preocupar em responder perguntas pois os outros fariam o trabalho, mas precisava compor a bancada na coletiva de imprensa. Haveria produtores e executivos da Fox TV. Depois do programa, que seria feito ao vivo, a turma se encontraria no restaurante do centro de convenções para uma festa de gala. Eric estava impressionado com a envergadura da noite de gala.
- Mas sobre... Afinal, o que é o programa, do que se trata?
- "Not Easily Broken". - Hammond puxou o folder do paletó e o entregou a Eric. Na primeira página, o design criativo de um coração partido e o nome da atração acima sugeriam a temática. - Referindo-se ao coração, entende?Decepções amorosas, declarações de amor... É esse tipo de programa.
- Está me assustando. - Eric brincou. - Levando em consideração os últimos dias, vou começar a pensar que o convidado da atração será a minha pessoa!
- A ideia é criar uma super produção para que um homem possa se declarar para a sua outra... Como é mesmo o termo que usam? - Hammond riu com o deboche de quem não acreditava em coisas do tipo e completou, ao se lembrar. - Ah, sim, "metade significante". Submetemos a pessoa a todo um processo de produção, melhoramos a sua aparência, restauramos a auto confiança, ensaiamos coreografias, forjamos uma mentirinha para levar a "metade significante" ao programa, e então a grande surpresa: a declaração de amor.
- É impressão minha ou a maioria destes casos acabará com corações arruinados por "foras" monumentais em rede nacional?
- Ei, eu concordo contigo. Não acredito nisso, Eric, mas eu sou um executivo e vendo o produto. Se bobalhões que não compreendem o mundo e vivem na "friendzone" querem passar atestado de otário, o problema é deles.
Quando foram juntos pegar os carros no estacionamento-garagem, Eric procurou fazer parecer casual ao perguntar para Hammond se Kylie apareceria na festa. Hammond respondeu que sim e o aconselhou a apanhar um táxi com uma hora de antecedência no mínimo. "Nós nos vemos no foyer, no coquetel que antecederá a coletiva", Hammond determinou. Eric não apareceu na La Fabrique à tarde. Ele foi direto para casa, esperar o horário da festa. Com a antecedência recomendada, tomou banho, vestiu o smoking e ligou para o serviço de táxi. Novamente, a senhora que cuidava da administração do lar confessou que o sentia "diferente".
- Ansioso. - Eric nominou melhor, com um sorriso apreensivo. Esfregou as palmas das mãos e refez a mesma pergunta usada para se esquivar. - Você ficará bem com o Charly, não é?
- Vai dar tudo certo! - A senhora Medina assegurou, passando a mão sobre a sua cabeça, como uma mãe faria ao filho antes de uma importante partida de futebol. - Vá, e não se preocupe conosco!
- Como estou? - Indagou, lançando o olhar para o topo da escada, onde Charly brincava com o videogame portátil. O garotinho deixou o game de lado e acenou com os dois polegares. - Agora sim, eu estou confiante!
A visão do Grand Ballroom enchia os olhos pela pujança, e Eric se sentiu intimidado ao contemplar, do mezanino, a sua abertura. Ali havia lugar para mais de três mil pessoas, e o trio prodígio da La Fabrique mereceria todas as atenções em cima do palco. As filmagens do primeiro episódio do "Not Easily Broken" se dariam no grandioso salão de festas, cuidadosamente preparado com câmeras sobre trilhos, montadas para recontar a história de amor a ser abordada naquela noite. Aconteceu como um sonho, e a estreia foi extraordinária; entretanto Eric tinha outras preocupações. A todo instante, fantasiava vários cenários para a conversa com Kylie. Quando o programa já chegara a meio caminho, platéia, coreografias e explosões de cores a todo vapor no Salão Principal, ele se afastou e seguiu caminhando pelos corredores do elegante centro de convenções até se ver diante do salão do bar. Empurrou a porta de vai-e-vem e foi acolhido pelas reconfortantes sombras aprofundadas. Havia monitores pelo corredor, e agora Eric via que também existiam pelo bar, para que a equipe técnica não perdesse o controle da atração. Ainda assim, não havia pessoal de produção por ali. De olhos arregalados, Eric tateou a parede até encontrar o interruptor. Quarenta bancos de almofadas vermelhas, em formato de ferradura - um dia possivelmente bastante concorridos vez que de frente ao bar - agora encontravam-se vazios e poeirentos. A comoção distante que vinha do Ballroom ressoava amortecida por causa do carpete das paredes. Eric se agachou para examinar melhor o monitor, quando a sombra de Kylie foi projetada sobre o piso laminado de madeira.
- Oh, Kylie... - Eric se levantou reflexivamente, como alguém apanhado em indiscrições. Ele bateu as palmas empoeiradas das mãos e as enfiou no bolso do paletó, tocando a carta dobrada. Naquele instante, não soube se iria adiante com o plano. - Você está linda!Estive procurando por...
- Eu sei, eu o segui até aqui. - Cortou-o de modo doce e aparentemente casual.
- Espere um pouco. - Eric a segurou pelos braços e a afastou um pouco para observá-la melhor. - Deixe-me vê-la melhor. - Sobre Kylie, deitava-se o verde e o vermelho neon vindos das placas led de alto brilho, o letreiro luminoso do bar, com as palavras "Aberto, Café" e o desenho de uma xícara de café com o vapor a ascender pelas bordas. Ela parecia saída de sua imaginação, ou melhor, da maneira que um dia a imaginara, ao alto das escadas da La Fabrique. Vestia o retrô preto longilíneo, estilístico e elegante com que Audrey Hepburn aparecia na primeira cena de Bonequinha de Luxo, na Fifth Avenue, a cintura valorizada pela exibição dos quadris, a diferença apenas na saia, um pouquinho mais aberta que a do filme. As luvas brancas eram de seda e subiam até a pouco acima dos cotovelos. Kylie Grattan era uma femme-fatale saída de um filme de suspense ambientado nos anos 40, alguns anos após o término da Segunda Grande Guerra, um revival do New Look de Dior, de 1947. - É a maneira pela qual quero me lembrar para sempre de você. - Eric explicou, e os olhos de Kylie ficaram mais tristes. - Você disse que me seguiu até ao bar?
- Eric, você está falando comigo, lembra-se?Não consegue esconder nada de mim, ao menos não por tanto tempo. Eu imaginei que quisesse me contar algo, no mínimo desde o fim de semana na sua casa.
- Você jamais foi o problema. Eu sempre confiei em você, Kylie, e sempre me senti à vontade para ser quem eu realmente sou quando estou contigo. O problema era comigo, com uma falsa culpa, talvez.
Repentinamente, explosões de fogos no Ballroom. Kylie e Eric assistiram pelo monitor `a chegada do momento da declaração. O lugar parecia um inebriante baile de excessos e ostentações, homem e mulher no centro do Ballroom enquanto as centenas que participavam do episódio assistiam ao desenrolar e torciam pelo melhor. A produção fizera uma maravilhosa escolha para a trilha.
- Morricone, Love affair. - Kylie reconheceu a faixa de imediato. Os seus olhos deixaram preguiçosamente o monitor e retornaram aos de Dudley. - Finding Each Other Again. Escolheram muito bem, eu diria.
- Quando falei de culpa, referi-me à Allie. E tinha um pouco de medo da rejeição. Foi apenas depois de conversar com meu amigo que comecei a enxergar a questão sob um novo prisma. Ele falou sobre como somos essencialmente emoções. A maioria das coisas pelas quais nos jogamos na linha de fogo não permanece em nossas mãos, uma vez que vamos embora, mas as emoções, elas são as nossas verdadeiras impressões digitais. E quando você está por perto, ou mesmo longe, a sua lembrança traz essa eletricidade, definitivamente uma forte emoção. - Eric mordeu os lábios, surpreso e concentrado. Não esperava que soaria tão espontâneo e confiante. Kylie segurou suas mãos. Mais aplausos reverberando pelas paredes do bar: pelo monitor, viram que a moça dissera "Sim" ao pedido de namoro, e agora os dois se beijavam sob a tempestade que jorrava dos lança confetes chuva de prata. Era uma linda cena, e a música de Morricone alavancava o momento a um escopo épico. Simultaneamente, ali estavam Kylie e Eric, vivendo uma experiência similar, ao sabor da mesma Love Affair, mas distantes de câmeras e de olhares. - Quando eu a vi abraçada a Charly na cama, e na tarde do dia seguinte precisou partir, a distância me disse claramente... Que eu te amo.- Uma das mãos de Kylie deslizou para trás da nuca de Eric, e com os dedos da outra, levantou-lhe o rosto pelo queixo, forçando-o a encará-la enquanto falava.- E sabe, era tolice temer tanto a resposta, se a resposta seria "sim" ou "não", pois seja lá qual for, trata-se de um sentimento espetacular, e mesmo que não funcione entre a gente e exista um outro cara a quem ame, ficarei feliz por ter me livrado do segredo, e por saber que você se sentirá bem!E eu só quero que fique bem, realmente. Preparei...Uma... - Eric tateou o paletó até puxar do bolso a carta dobrada. - ...É uma carta. Sinto que me expressei melhor através da escrita.
- Eu me preocupo tanto contigo, Eric. - Trouxe-o para si, para seu ombro. - Você me mata de preocupações. - Os dois ficaram abraçados e Kylie parecia não querer largá-lo. - Eu leio seus pensamentos. Eu sabia que se apaixonara por mim desde antes de Allie morrer. Eu ficava arrasada, pois enxergava muito claramente o que a doença da Allie e sua autocensura estavam fazendo contigo. Eu realmente queria ajudá-la, mas era um passo que precisava dar sozinho, querido. Eric, preste atenção... - Kylie hesitou. Via-se que o que estava para dizer lhe traria enorme dor. - Eu e Cary estamos juntos.
Agora, as pistas se somavam de forma a oferecer um todo coerente. Cary meio que se "ausentara" do círculo de amizades pois sabia que eventualmente Kylie contaria a Eric que tinham começado a namorar. Depois de tanto temer a rejeição, Eric se surpreendeu com o quão positivamente lidou com a resposta. O que sentia por Kylie era tão genuíno, diferenciado, um sentimento verdadeiramente raro e nobre, que mesmo diante do "não", sentia-se muito feliz por Kylie ter encontrado alguém. Reconheceu com humildade que o fato de ambos serem igualmente jovens tornava os seus mundos, o de Cary & Kylie, mais próximos e semelhantes.
- Fico feliz. Você merece. - Eric a parabenizou. Foi tomado por angústia quando Kylie começou a chorar no seu peito. - Oh, não, não faça isso, Kylie! - Ele a trouxe para si. Alisando seus cabelos, procurou consolá-la. - Eu não queria deixá-la confusa com toda essa história.
- Não quero magoá-lo. - A voz carregava uma urgência de partir o coração. Era Kylie quem temia perdê-lo.
- Você não me magoou. - Segurou-a pelo rostinho e insistiu, com um sorriso compreensivo e aliviado. - Você é excelente e eu te amo!Acho fantástico que esteja com Cary pois o que me importa é saber que ficará bem. Não me magoou, fique convicta disso!
- Odeio a ideia de perder o que temos aqui! - Ela mostrou os dedos cruzados. - Somos unha e carne, e eu não conseguiria sobreviver sem a sua amizade, Eric, realmente...
- Shhhhh, você tem a mim, sua boba, você tem a mim! - E igualmente comovido, brincou para amenizar a situação. - Quem levou o fora fui eu, e não você! - Conseguiu minimizar o suspense da conversa, e Kylie, rir e apartar-se momentaneamente das lágrimas. - Vai ficar tudo bem, sua boba. Eu te amo.
- Eu te amo também. Você deve me prometer... Você deve me prometer que jamais se distanciará!
- Sim, eu prometo. Você vai se sentir melhor, fique comigo aqui um tempo...
- Uma última coisa. - Eric lhe dirigiu um olhar questionador e Kylie fez o pedido. - Eu quero que me entregue a carta.
- Oh, Kylie, mas talvez não seja uma boa ideia. Você tem um companheiro agora e...
- Entregue-me a carta. Preciso lê-la, quero tê-la.- Kylie tomou delicada e decididamente o envelope das mãos de Eric. Ela o deslizou para dentro da luva de seda branca. - Eu preciso tê-la, para relê-la, para me lembrar do que sentiu por mim em uma dada altura de nossas vidas.
- Tudo bem. Você se sente melhor? - Não veio a resposta. Agora, Kylie voltava a chorar. Eric estudou o ambiente, seus olhos mais acomodados ao breu. Tinha a sensação incomum, até mágica, de que subitamente o lugar ganharia luz e vida, e por todos os lados irromperia um baile de máscaras saído diretamente dos anos 40. - Vamos, Kylie. Fique comigo, vai passar, vai passar...
No Ballroom, a parafernália de efeitos visuais laureava o "Sim" tão batalhado pelo herói da vez. A noite havia sido um sucesso para o casal da história... E também para um outro, aquele que se resolvera afastado das câmeras, cercado exclusivamente pelo silêncio e os arcos de penumbra do elegante, atemporal bar de hotel. Sucesso, pois agora Eric tinha a resposta e podia se sentir mais aliviado por ter escolhido o caminho mais correto, por mais difícil que tivesse parecido vocalizar as emoções, a única parte de si que o acompanharia mesmo depois da morte, consoante Colby brilhantemente colocara. A orquestra chegava às notas finais da obra prima do genial Morricone e o compasso do coração de Kylie retomava a batida usual. "Vai passar", Eric insistia. Enquanto que para a multidão no Ballroom a chuva de papéis picados prateados não parava de polvilhá-los, a que descia sobre Kylie e Eric era verdadeiramente invejável, uma formada por verdadeiras estrelas, a penetrar pelas gigantescas Bay Windows de madeira.
Uma semana se passou. Eric preferiu se ausentar por um tempo do trabalho. Para não levantar suspeitas, fingiu um problema desimportante de saúde. Com isso, pôde guardar distância da La Fabrique e não cruzar acidentalmente com Kylie. Quando disse que a amaria para sempre, fora honesto. Em um primeiro momento, no entanto, parecia prudente permanecer sozinho para investigar melhor os sentimentos, principalmente depois de uma experiência tão importante. Quando Eric apareceu na 211 Bel Air Café, o seu bom humor era tamanho que Colby pensou que Kylie e o amigo tivessem terminado juntos. Eric explicou que muito embora o final feliz pretendido tivesse sido reservado somente ao casal do "Not Easily Broken", sentia-se mais leve. Torcia pelo sucesso de Kylie e sabia que ao lado de Cary St. Pierre ela receberia todos os cuidados e atenções. Quando Hammond ligou para o viúvo na sexta-feira, para perguntar se se sentia melhor, Eric acabou contando o que ocorrera no início da semana. O amigo o convidou para drinques, mas Eric fez melhor. Resolveu levá-lo para provar o café da 211 Bel Air.
- Eu lamento, Eric. - Hammond acabara de ouvir a tudo. Coçou a têmpora, cismado, ponderando um prognóstico. Filou um cigarro do maço. Naquela noite, o cliente mais assíduo da 211 Bel Air Café tinha companhia: calouros da universidade "esquentavam" para a noite de amadores e, barulhentos, faziam a festa nas últimas mesas, mais próximas à máquina de jukebox.
- Não lamente, eu me sinto bem! - Frisou, apertando-lhe a mão com camaradagem. - E não apareci ainda apenas para dar um tempo. Seria um pouco constrangedor...
- A Kylie surgiu ontem te procurando. Falou pouco e quando eu disse que você não se encontrava, não se demorou. Conversamos sobre alguma coisa referente ao "Not Easily Broken" e ela logo se escusou.- Hammond deu uma tragada e mexeu com sofreguidão a xícara de chocolate quente. Depois de considerar um pouco mais, aconselhou, de pronto. - Não fuja mais. Acho que cometeu um grande erro ao não aparecer no trabalho, pois sinalizou fraqueza emocional. Precisa delimitar seu território.
- Como assim, "erro" ?
- Ao faltar pelo restante da semana, você sinalizou a Kylie que ela guarda enorme poder sobre seu emocional. Quando Kylie ressurgir, trate-a muito bem, tenha uma postura bem-humorada e atenciosa, mas a saque de vez da mente, porque ficou bem claro que essa história de amor que alimenta na cabeça não vai acontecer!Chega de prestar favores gratuitos ou atender a todas as ligações que ela fizer. Você precisa se proteger, assegurar-se de que ela não está te usando como muleta afetiva!
- Ela não é o tipo de pessoa que... - Eric tentou defendê-la, mas Hammond prontamente o atropelou.
- Isso não a torna uma pessoa má. Mesmo inconscientemente, Kylie está te usando, sim, para se validar. Não acho que faça por mal, mas se serve de sua presença em um contexto utilitário, pedindo conselhos, servindo-se de seu ombro amigo para desabafar. Você é um homem muito bom, e "homens muito bons" tendem a convenientemente preencher o vazio existencial de mulheres "independentes". Quer a minha previsão?Kylie vai ficar com o Cary e assim que ele a tratar mal e precisar de alguém que repare a auto estima, procurará por ti. Ela te enfiou no inferno da "friendzone".
- Mas... Afinal de contas, o que é a "friendzone"? - Eric indagou, sem cuidar de que falava em um tom um pouquinho mais elevado. Os calouros pareceram ouvi-lo, pois do outro lado do bar atiraram-lhe a resposta em todo seu doloroso realismo.
- "Friendzone" é quando um homem e uma mulher se tornam amigos muito próximos e então o homem se apaixona!
- É isso. - Hammond grunhiu, sinalizando os calouros com o polegar por sobre os ombros. - Eles sabem pois já devem ter passado pela experiência. - Hammond exibiu a xícara para Colby, expressando desejar mais. - Eu não nasci sabendo de tudo, Eric. Assim como você, tive as minhas experiências, e pus em prática o que aprendi. Eu faço votos de que aprenda com a sua. Colby estava certo quando o aconselhou a se abrir. - O garoto encheu a xícara nos canos cromados da máquina, despejando o chocolate quente e complementando a metade da xícara com o leite. - Você precisava conversar com a Kylie para se ver livre da prisão emocional. Agora, escute ao que eu tenho a dizer: não siga analisando minuciosamente o que se deu. Desanuvie a cabeça, pare de enxergá-la sob um prisma fantástico e como uma criatura perfeita e angelical. Dedique-se a si e a Charly. Houve o tempo em que passei por essa maré de azar até descobrir que havia algo errado com a maneira com a qual vinha encarando o mundo. Pare e raciocine, e compreenderá que mulheres não colocam os "alfas" na friendzone. Artistas famosos, gângsteres, empresários poderosos, você não vê mulheres colocando caras do tipo na "zona da amizade". Elas fazem isso com vulneráveis ou sujeitos reféns dos próprios valores. Para os destacados, jogam-se aos pés. São boazinhas e ingênuas para os destacados, mas jamais para os corretos. Tome cuidado com as aparências, Eric. Kylie é uma mulher independente, rica, aventureira e manipuladora.
- Mas Senhor Hammond, você não acha que tamanha generalização leva a equívocos? - Colby sugeriu.
- Olhe, Colby, depois de tudo pelo que passei, posso afirmar que meu tom duro apenas reflete a realidade crua, não há nada de subjetivo em meu discurso. - Hammond apoiou-se com a ponta do sapato no balcão para girar o banco alto e se pôr de frente para os calouros. - Pensem comigo: Eric está aos pés dessa bela mulher, a ponto de não distinguir "direita" de "direto". A moça vai telefonar para Eric queixando-se do canalha com quem saiu, Eric fará a coisa nobre e decente, aconselhá-la, massagear o ego com lindas palavras. A pergunta é: Eric vai transar com a Kylie? - Todos riram, mas a pergunta fora colocada seriamente. - Levantem as mãos, aqueles que acham que Eric vai transar com a Kylie. - Silêncio. Ninguém levantou a mão. - Eric não vai transar com a Kylie. Sabem o cara que ela chamou de canalha ao telefone?Eu garanto a vocês, esse cara vai comer a Kylie novamente.
- Eu entreguei uma carta a Kylie e acho que consegui me explicar melhor. - Assim que Eric falou, Hammond levou as mãos `a testa, em desconsolo.
- Não devia ter feito isso. - Sentenciou, em um sopro desapontado.
- Eu não queria dar, mas ela insistiu tanto que eu...
- Cometeu um erro.
Eles permaneceram na 211 Bel Air Café pela madrugada inteira, conversando e trocando ideias. Hammond revisitou um pouco o seu "background" e a partir do momento em que Colby e Eric conheceram o seu passado, pareceu mais claro de onde vinha a sua postura. Hammond conhecia "friendzone", estivera trancafiado naquele inferno por muitos anos e, conforme as palavras usadas pelo próprio, perdera um valioso tempo com coisas das quais hoje fugiria `a mera desconfiança. Tinha sido a partir do momento em que se pusera em primeiro lugar que a vida sofrera uma impressionante guinada. Hoje, Hammond não apreciava ficar com a mesma mulher por mais que um semestre. Ele era machista e centrado no próprio desenvolvimento e sucesso, mas se conduzia conforme um nobre código de ética. Recompensava uma mulher quando se portava como dama honrada; era gélido e indiferente com as espertinhas, e invariavelmente as largava assim que a menor sombra de joguinhos psicológicos deitava-se sobre o seu pescoço, como a perspectiva da guilhotina, armadilha em que caíra no passado as vezes necessárias até aprender.
Hammond e Eric caminhavam juntos pelo estacionamento. O frio era rigorosíssimo e a noite já começava a se rasgar como fina seda tensionada, revelando o amarelado de uma nova manhã. Eric se voltou para acenar para Colby. O garoto devolveu o aceno e retornou para a cozinha, onde existia uma pilha de xícaras e pratos sujos que deixara amontoar para apreciar a boa conversa com os amigos mais velhos. Correndo pela highway, conseguiam ver muito claramente a CN Tower. Hammond sugeriu que subissem ao topo. Eric gostou da inesperada sugestão, e os dois amigos foram parar no ponto turístico mais famoso de Toronto, sobre a cobertura a quase quinhentos metros de altura de onde se podia enxergar a panorâmica da cidade inteira. Aconchegante em seu silêncio, era como se dali de cima seus problemas parecessem insignificantes. Tinham feito bem em realizar a visita cedo, não havia mais ninguém.
- Então... - Eric introduziu a questão. - Você acha que eu cometi um erro.
- Sim. - Respondeu, convicto, os olhos sequestrados pelo magnetismo urbanístico do centro financeiro de Toronto, ainda adormecido. - Dependendo do que escreveu, e eu acredito que deva ter jogado todos os seus sentimentos confusos no papel, pode ter dado a Kylie munição para que ela possa te castigar sempre que quiser. Você revelou o seu coração, Eric, e não se faz isso `a mulher alguma, a não ser à mãe.
- Eu não vejo como uma carta possa voltar para me assombrar, de verdade. - Disse, ansioso para que Hammond revelasse os detalhes que tinham escapado a sua despreparada percepção da realidade.
- Kylie sabe que a ama e sempre que tentar se distanciar, quando ela ler a carta, sentirá saudades do seu apego, e irá te procurar. Venha, vamos sentar... - Hammond o convidou a esticar as pernas na passagem que dava para o terraço. - Não se preocupe. Apenas me prometa que procederá com maior cautela. Ponha-se em primeiro plano, com Charly. A sua fé inabalável e o amor que vocês têm um pelo outro são a única verdadeira força que os sustenta, Eric, e por isso deve sempre manter a guarda. Promete-me?
- Sim, prometo. - Apertou o braço de Hammond, e com a voz emocionada o agradeceu. - Obrigado por tudo.
- Quero que fique claro: penso que foi bonito que tenha passado a limpo os seus sentimentos pela Kylie. Não é feio sentir carinho por alguém. - Levou a mão aos ombros de Eric. - Apenas achei uma tolice entregar a carta. Também preocupo-me com o que fará a partir de agora, mas já sabe como proceder. Desapego, para tocar a vida para frente. "Bomba ninja" na Kylie, desapareça por uns tempos. Quando reencontrá-la, quero que a trate normalmente. Gentil, atencioso e elegante. Não se encante com palavras bonitas. Seja econômico com seu tempo. Depois da troca de cordialidades, continue caminhando, por mais que se sinta devastado ao deixá-la para trás. No começo, será difícil, porém eventualmente se habituará. A verdadeira felicidade encontra-se dentro de ti. Uma mulher legal agregará `a sua felicidade, representará algo que te deixará ainda mais satisfeito, porém o cerne encontra-se dentro de ti. Procure a felicidade no seu centro.
E então, após as palavras de sabedoria de Hammond, Eric Dudley retomou o rumo de volta à vida e fez aquilo que parecia a parte mais difícil: seguir em frente sem pensar muito na Kylie. Nos dias seguintes, fracassou terrivelmente e não conseguiu se concentrar em objetivo algum; entretanto, quando a semana aproximava-se do fim, sentia-se definitivamente mais bem-humorado. Estava faltando as tardes para passar mais tempo com Charly. Ele gostava de ficar ouvindo o menino falar sobre os filmes cujos pôsteres decoravam as paredes de seu quarto. Eram cartazes de filmes de suspense. Eric achava o gosto do filho diferenciado. Mesmo tão novo, Charly explicitava evidente melancolia, quase como um principezinho trágico e sem reino, e Eric começava a compreender o enorme apelo de Kylie sobre sua mente sugestionada. Além do fato de ser a sua melhor amiga, quando ele via o filho tão feliz nos braços dela, não tinha como deixar de imaginar os três como uma família comum e realizada. Um fim de tarde, descia as escadas do escritório para a sala do time criativo, quando deu com Kylie. Determinado, comportou-se conforme as orientações sugeridas por Hammond. Foi espirituoso, atencioso e gentil; porém, após as felicitações, afirmou que tinha pressa para apanhar Charly na escola. Kylie esforçou-se para sorrir, contudo fracassou, o desapontamento maior que o seu rostinho lindo (sobre o qual a mecha sempre parecia cair, o detalhe que Eric tanto apreciava) conseguia esconder. Ele tirava as luvas para pô-las nos bolsos. Esfregando as palmas para se esquentar, procurava pelas chaves, quando Kylie veio para tirar satisfações.
- Charly não está na escola e você sabe disso. - Disse, em um tom sufocado. Eric se virou assustado. Ela estava com os olhos semicerrados, o que denunciava frustração e raiva contida. - Eu sei, pois te procurei primeiro em casa. Por que mentiu para mim?
- Oh, eu sinto muito, querida. - Eric tentou a reaproximação, mas a sombra perigosa de eletricidade não deixou o olhar de Kylie.
- Agora vamos jogar esse jogo?O que foi que me disse, quando conversamos?
- Eu...- Eric não sabia a que parte Kylie se referia. Ela se impacientou.
- Você disse que jamais iríamos nos perder, um ao outro. Uma mentira? - Kylie estava chorando e Eric ficou preocupado. Tentou consolá-la, contudo dessa vez recebeu um gesto agressivo de repúdio. - E as coisas lindas que me escreveu?Passei a semana lendo e relendo sua maldita carta, procurando entender por que se afastou de mim!Como alguém que escreve coisas tão bonitas dá as costas tão facilmente?Como alguém que escreve que "gostaria de dormir nos seus braços todas as noites, e de esquentar os meus pés nos seus, nas mais frias", e coisas semelhantes simplesmente deixa de me procurar, de me ligar ou de me dar notícias?Você escreveu a mesma coisa para outras mulheres ou foi somente comigo que exercitou pretensões literárias? - Girou os olhos, como uma pessoa que acaba de se descobrir como objeto de uma pegadinha. Ela estava furiosa! - Foi apenas para dar gargalhadas depois de me deixar?
- Você me conhece melhor do que ninguém e antes de eu ter aberto o jogo contigo, pressentia o meu carinho. Eu te amava. Eu ainda amo. Depois que conversamos, e me contou sobre Cary, eu precisei dar espaço para nós dois... Para compreender... - Eric falava a verdade. O fato de realmente amá-la, porém, tornava a experiência apenas mais dolorosa e desgastante. - Venha, entre comigo, vamos sair daqui.
Kylie perdeu-se em um profundo pranto do qual Eric não conseguia demovê-la. Preocupado, voltou direto para casa, onde poderia cuidar melhor da amiga. Charly testemunhou o pai entrando apressadamente pela porta da sala de jantar, com a mala sob um dos braços, e Kylie apoiada no outro ombro. "Abra espaço, filho, vamos", ordenou, deixando a mala cair sobre a mesa, para que pudesse segurá-la com os dois braços. Com a ajuda da empregada, carregou-a até a suíte, acomodando-a sobre a cama e fechando a porta após a passagem. Ele cerrou as cortinas. Charly estava sentado na escada, os braços fechados em torno dos joelhos, com cara de choro.
- Filho, vá para seu quarto e fique por lá. Depois papai te chama. - Deu a mão para que o menino se levantasse do degrau e o entregou nas mãos da senhora Medina. - Por favor, preciso que fique com o garoto.
- Senhor Dudley, não seria melhor levá-la a um hospital? - A senhora Medina perguntou, as mãos bem apertadas em improvisada oração, a voz trêmula de susto.
- Kylie teve uma péssima semana e o que aconteceu foi a somatização de uma porção de coisinhas acumuladas. - Explicou, lançando um olhar intrigado para o quarto. - Creio que eu consigo dar conta do recado. Mantenha Charly ocupado, certo?
Encontrou Kylie de bruços, o rosto enfiado no travesseiro, debulhando-se em lágrimas. Eric reafirmou aquilo que Kylie devia saber - e o que Hammond suplicara para que não vocalizasse: que seu sentimento não se atrelava a condições, e que somente se afastara para que pudesse reavaliar melhor a direção para onde conduziria a vida, agora que a mulher a quem amava comprometera-se com outro homem. Eric deitou-se ao lado e a abraçou por trás. Queria comparecer, mostrar que se encontravam na mesma barca. Pediu desculpas por tê-la magoado com o distanciamento e confessou que pela última semana também se sentira em suspensão, que o que perdera com o afastamento tinha sido horroroso, deixado um vazio irreparável. Enquanto falava, ia afagando seus cabelos, deixando os dedos deslizarem por entre os mesmos, a cada paciente e cuidadosa passagem. Não demorou até o choro reduzir-se a soluços cada vez mais espaçados. Em dado momento, pareceu adormecer. Eric cuidou para se levantar sem movimentos bruscos. Quando foi checar Charly, o menino pegara no sono. No quarto do garoto, a senhora Medina assistia a uma telenovela mexicana com o volume reduzido. Antes que lhe perguntasse sobre Kylie, Eric exibiu um dedo silenciador e a convidou para o corredor.
- Consegui tranquilizá-la. - Sussurrou, com os braços cruzados e um olhar clínico. - A senhora pode ir, creio que darei conta.
- Não prefere que eu durma aqui, senhor Dudley?
- Não. Recomendaria que a senhora descansasse, fez muito por mim hoje! - Deu um abraço inesperado e caloroso na idosa e lhe entregou o dinheiro da diária. - Faça um retorno seguro para casa. Amanhã, coloco-a a par do que vier a acontecer esta noite.
Foi uma noite em que Eric não conseguiu relaxar. Kylie caiu em um sono profundo e Eric viu as horas passar, vagando silenciosamente de um quarto ao outro para checar filho e amiga. Vez ou outra, descia as escadas e ia se distrair, preparando café. Somente quando a madrugada avançara quase completamente, Eric deitou-se ao lado da Kylie e o cansaço encarregou-se do resto, apagando-o de um minuto ao outro. Quando despertou, passava de meio-dia, e o que o fez acordar foi o cheiro forte, familiar e harmonioso de ovos fritos, queijo, presunto, pães frescos e café. Eric suspirou aliviado ao se deparar com a suave e inspiradora imagem de Charly ajudando a tia Kylie a pôr a mesa com a ajuda da senhora Medina. Kylie vestia camisa de botão e bermuda emprestadas de Eric. A turma nem se deu pela presença do viúvo, que ao cansar da invisibilidade, deu duas batidinhas na porta e anunciou:
- "Toc, toc", olá, alguém precisa de um pai por aqui? - Ajoelhou-se para receber o abraço do filho. Deu um beijo na nuca de Kylie e perguntou, baixinho. - Você acordou melhor?
- Sim. - Respondeu, em um sopro resignado, com o olhar comprometido de alguém que parecia prometer não voltar mais ao lugar mental sombrio que a colocara no estado do dia anterior. - Preparamos o café da manhã, ou melhor, Charly preparou!
- Olhe, Senhora Medina, você sabe o trabalho que Charly me dá. Agora, o que acha de eu criar essa grandona aqui?! - Gozou, agarrando Kylie por trás e tentando levantá-la. Todos riram.
Eles comeram juntos à mesa, abrindo uma encantadora janela cuja vista permitia que Eric enxergasse uma fatia daquilo que tanto queria: uma vida normal em família. Posteriormente, quando Eric e Kylie tiveram a oportunidade de conversar melhor, Eric disse que não era porque `as vezes estavam afastados que a esquecera. Kylie pareceu mais assegurada. Ao fim do dia, quando lhe deu carona para casa, ela pediu desculpas se o perturbou com o destempero. Kylie morava pelos lados de Bloor-Yorkville, uma das regiões mais caras e exclusivas de Toronto, procurada pela nova geração de jovens profissionalmente bem-sucedidos. Deixou-a no portão, mas Kylie pediu que descesse.
- Não sei se seria uma boa ideia. - Eric comentou, com certo constrangimento na voz. Temia magoá-la, mas parecia hesitante em aceitar o convite.
- Eu estou com Cary e aprecio a sua companhia, mas sou dona de minha própria vida e ele sabe que para estar comigo, eu escolho meus próprios termos. Quero que entre.
Kylie serviu uma bebida a Eric e os dois foram se sentar na cadeira de balanço do alpendre. No jardim organizado, simétrico e bem-cuidado, flores de cerejeira e lavanda desenhavam colunas coloridas, formando caminhos forrados de pétalas que pareciam confluir em um bosque. Uma visão incomum, sem dúvidas. Em pleno bairro movimentado e badalado, era como se o lugar de Kylie tivesse sido pinçado de uma serra e deixado ali, o melhor dos dois mundos. Kylie colocou os calcanhares sobre o balanço, abraçou os joelhos e encostou a cabeça no ombro de Eric. Passarinhos trinavam ao mergulhar cautelosamente na piscina que era a fonte. Borboletas bailavam em torno das flores, desgovernadas, como pilotos da Primeira Grande Guerra mergulhando sobre Londres destruída, agora flores de um amarelo reforçado e exuberante. Com os olhos cheios de tensão, Eric raciocinava uma maneira de "se safar" do apego, mas de modo a deixá-la bem. Kylie o lia como poucos, e dela Eric pouco conseguia esconder.
- Eu estava bem. Cary e eu vínhamos nos encontrando e nos conhecendo melhor. Até que eu li sua maldita carta. - Ela contou, os olhos perdidos em algum lugar para além da faixa das tulipas. - A maneira como colocou os sentimentos, algo, talvez a doçura nostálgica que pontuei em várias passagens, como quando fala sobre o quanto você gostaria de dormir em meus braços e... - Eric ficou corado. Ela prosseguiu. - Ninguém jamais falou sobre emoções semelhantes, não com essas palavras. Claro, eles queriam me ter em suas camas, mas a todos faltavam a pureza datada e o amor que você conseguiu demonstrar naquele papel. Você jura que se sente assim em relação a mim?
- Sim. - Deu com os ombros e, resoluto, aprofundou-se. - A pior parte foi aceitar que eu estava me apaixonando pela minha melhor amiga. Eu estava bastante dividido por causa da doença da Allie. Por algum tempo, vivi sob a sombra da culpa, até que depois de uma conversa com um grande amigo, resolvi me permitir voltar à vida. Ele discorria sobre como o que sentimos, as nossas emoções, são realmente tudo o que temos, em oposição a todas essas coisas materiais que estamos enxergando e que no fim de nada valem. Não apenas deixei de reprimir meus sentimentos, durante o processo aprendi que o resultado seria o menos importante, pois não havia como perder. Se ficasse ao meu lado, eu acredito que seríamos muito felizes. Se você dissesse não, também ficaria em paz, porque sei que ficaria melhor com um outro alguém. O importante seria deixar de negligenciar os meus sentimentos e foi o que eu fiz. A carta que leu, as palavras, eu as tirei de lugares dentro de mim que sequer imaginava existirem.
- Então por que se afastou de mim?
- Acho que para não sofrer, para me desapegar. Eu fiquei feliz por você, e imaginei que seria bastante feliz ao lado do Cary. Pensei que se deixássemos de nos encontrar por um tempo... A mudança faria bem para...
- Mas eu não quero perdê-lo. - Meneou angustiadamente a cabeça, os lábios bem fechados, inconformados com qualquer escolha cujo resultado forçasse o distanciamento. - Nada valeria perdê-lo. Eu sei que deve me achar egoísta, mas há coisas na vida que acontecem, e não há muitas razões. Nós dois... Nós somos uma dessas coisas, que acontecem de tempo em tempo e para as quais não existem explicações.
Eric esboçou um doce, concordante sorriso. Admirado com a beleza com que Kylie enxergava o incomum relacionamento, trouxe-a para si e a abraçou desinibidamente.O sol estava para concluir o trajeto descendente para trás da linha do horizonte. Por mais prateada que fosse a tonalidade que a noite vindoura prometesse vestir como véu, o frio era estupendo, e somente nos braços de Eric - e de ninguém mais - Kylie encontrava o conforto que o seu ego parecia demandar. A aquela altura, fins de 2004, Kylie começava a perceber que, de uma forma ímpar, Eric se tornara parte de seu sistema. Ele tinha um papel importantíssimo, insubstituível, tocando-a em sentimentos a que os homens com quem se envolvia sexualmente não tinham acesso. De certa forma, Eric era a promessa de redenção, a grande incógnita da vida de Kylie, que sentia que sempre ficaria bem, se ao menos não desistisse de lhe esperar, não deixasse virar cinzas as belas emoções que redigira tão bem na carta.
Tendo os ânimos suavizado, Eric a levou para jantar. Eles conversaram bastante sobre o quanto haviam aprendido na última semana, e concluíram que a experiência os tinha aproximado ainda mais. Kylie explicou o quanto as mentiras, mesmo as menores, podiam ferir, e que ficara bastante magoada por saber que Eric inventara a história de apanhar Charly na escola apenas para não conversar. Eric segurou-lhe as mãos muito suaves e prometeu que jamais partiria seu coração novamente. Ao desfecho da noite, o casal passeava pelas animadas calçadas ladeadas por vias muito largas, acompanhadas no sentido do infinito por postes dos quais emanava a relaxante duma amarelada que compunha uma casta sobrenatural, e cintilantes luzes, muita luzes, como se o Natal tivesse chegado mais cedo. O engarrafamento só conseguia enaltecer a frágil harmonia de um cenário que parecia imaginado para uma história romântica passada às vésperas do Natal. Apesar da grande movimentação de transeuntes e carros, as pessoas pareciam bem-humoradas, e o que existia de cantigas, gritos e rumores, a típica cacofonia de downtown Toronto, soava como boas novas para outros tempos.
"Você sabe que ela está jogando com os seus sentimentos", Hammond advertiu. Eric estava de costas ao parapeito da NC Tower, e Hammond a sua frente, torturando-o com uma dura expressão de julgamento. Às 22:30, o terraço era bastante disputado. Visto de cima, Toronto assemelhava-se a um circuito de trilhas e luzes, uma fatia do planeta Terra, escrutinada por lentes. Os dois ainda pretendiam visitar a 211 Bel Air, hábito que Hammond incorporara a sua semana. O publicitário levou o cigarro à boca e, protegendo-o com as mãos, teve-o aceso por um solícito garçom, de passagem.
- Você está se permitindo envolver e, inevitavelmente, perdendo a objetividade. Assuntos do coração... - Nominou, sacudindo a cabeça e dando uma risadinha. - Colocamos a emoção onde faria melhor somente a razão, e tomamos as decisões mais tacanhas possíveis. Você não venceu o apego. Pode ter contrastado o problema, porém falta muito até vencê-lo. Desculpe-me, não quero parecer excessivamente pessimista. - Levou a mão aos ombros de Eric e disse. - Venha, vamos tirar o gosto da bebida virando as xícaras de cafés que somente Colby sabe preparar!
Na cafeteria, o trio se divertiu ao assistir uma nova reprise do "Not Easily Broken". O programa fazia um sucesso absurdo. Durante a exibição, a rapaziada que estava por ali se achegou ao balcão, para ver melhor as trapalhadas de um trouxa apaixonado. Quando o rapaz havia terminado de se declarar e estava beijando a mão da moça, Hammond xingou a televisão e grunhiu, a que todos quase caíram de rir de seus bancos: "Coloca a boca no lugar certo, seu veado". Foi somente ao fim da noite na 211 Bel Air, todavia, quando estavam pegando o carro, que Hammond reservou os conselhos que, dentre os demais, mais viriam a pesar sobre sua cabeça, causar-lhe poderosa impressão. Hammond basicamente falou que entendia de onde vinha a hesitação de Eric. Ele era um bom homem, e aí residia a problemática. O fato de se sensibilizar com os dilemas de Kylie, mesmo depois de ter lhe dito que namorava outra pessoa, a sua comovente determinação a poupá-la, abria toda uma porta para que se impusessem sobre a sua vulnerabilidade as chantagens emocionais, os pedidos comoventes, os olhares carentes, as palavras de lisonja. Hammond confidenciou que mesmo quando lhe dera os conselhos sobre "sumir" por um tempo, sabia que bastaria Kylie reaparecer reclamando sobre o afastamento e o encurralando contra a parede que Eric se sentiria o mais cruel dos homens.
- O que acontece é que pessoas boas sofrem muito nesta vida. - Hammond desabafou, e no timbre da voz Eric pôde reconhecer a amargura de um homem que um dia acreditara ter sido tão bom quanto, mas precisara se transformar em face das decepções que só haviam se amontoado. - Às vezes, "bom" não é o suficiente, Eric.Inicialmente louváveis, não custa a atitudes semelhantes `as suas sinalizarem aos outros que podem chegar e sapatear em cima de seus sentimentos, apenas para saírem impunemente. Você pode ser um bom homem, mas não pode fugir das consequências de um coração desarmado. Lembre-se de minhas palavras, amigo. Seja prudente, adquira um pouco de malícia, não ponha as necessidades dos outros à frente de seu bem-estar. Do jeito que está se conduzindo, apenas comprará um bilhete só de ida para a amargura. Você não merece passar por...
- Tudo bem. - Eric capitulou, levando as mãos às têmporas, atordoado.
- Eu sei que a Kylie te faz se sentir ótimo, e que nela enxerga qualidades que nem a própria encontra. - Hammond esfregou as mãos nas calças, para esquentá-las. Olhou para os lados, e, bem distante, avistou o link train, em perene movimento entre os terminais 1, 2 e 3, emanando descargas vívidas de fulgor, tal qual uma alienígena enguia elétrica, um azul borrado e sem charme, e emanando um ronronado distante e manhoso, o de uma sedutora preguiçosa que acabava de despertar ao lado do amante. - Todos os caras na La Fabrique adorariam sair com a Kylie, apenas porque ela é mesmo uma mulher lindíssima. Eu mesmo adoraria, mas há algo em seus olhos...Que me dá arrepios. Você, porém, prefere enxergar o que tem de melhor, apega-se `as nuances positivas que a própria Kylie está descobrindo somente agora por sua causa, e apenas porque você a ensinou a se olhar no espelho sob esse maravilhoso prisma. É por isso que te perder não é aceitável. Ela poderá vir a se apaixonar por você, mesmo tornar-se possessiva. E ela vai arruinar a sua cabeça. Kylie não precisaria de força física para te derrotar. Basta usar os sentimentos, os bons sentimentos, as suas fraquezas, a sua parte que quer resumir as pessoas ao melhor que mostraram, mesmo naqueles que estão jogando com as suas carências. Ela pegará todas as coisas boas e as voltará contra você, dada a oportunidade.
- Ei, pessoal... - Era Colby, dirigindo-se à dupla da porta de vai-e-vem. Ele desligou as luzes, as últimas a apagarem, as dos letreiros de neon. - Ainda estão aqui fora?
- Podemos te oferecer uma carona, garoto? - Eric perguntou.
- De forma alguma, amigos, obrigado. A linha do monotrilho passa em frente ao meu bairro. - Apontou rapidamente para o aeroporto e disse. - Mas se quiserem me dar uma rápida carona à frente do Pearson...
- Entra aí, garoto. - Hammond respondeu, abrindo as portas com o alarme. - Já está ficando gelado. Pense sobre o que conversamos, cara. - Finalizou com Eric.
Eric se despediu de Hammond e Colby, e voltou ao carro. Correndo pela highway, os seus olhos buscavam o aeroporto através do retrovisor, e o aeroporto ia gradualmente afundando no espelho até restar somente a rodovia vazia e postes muito altos, passando e passando. Dontown Toronto era uma pérola preciosa, a vida noturna bem representada pela luz que emanava e parecia subir até a um determinado ponto do arco celeste. Temeroso em razão do sono, avivou o rádio, trazendo o volume ao máximo. Ao chegar em casa, foi só o tempo de se livrar das roupas: caiu exausto sobre o colchão, lençóis de seda e ar-condicionado os facilitadores que o induziram rapidamente ao relaxamento total e `a inconsciência. Não escutou quando menos de uma hora depois o telefone do escritório começou a chamar. A secretária eletrônica recebeu a chamada. Enquanto Eric e Charly estavam absolvidos das preocupações cotidianas, a voz urgente de Hammond era gravada.
Eric foi despertado algumas horas depois – já começo da manhã – por batidas insistentes na porta. Hermione e Alexandra não deram atenção à senhora Medina e marcharam para dentro mesmo que o viúvo desconhecesse a chegada das duas. A secretária e o garotinho ficaram ali, ao pé da porta, o menininho abraçado à empregada pelo avental, a senhora Medina resmungando em latino. Eric ficou abismado ao dar pela chegada das amigas, incapaz de conceber o que se dera enquanto dormia. As duas exibiam olheiras profundas, e o excesso de maquiagem que diariamente usavam parecia desbotado agora que lágrimas as tinham descompensado. Elas se sentaram na beirada da cama e o canhonearam com as notícias. Assustado, Eric as interrompeu e exigiu:
- Muito bem, aconteceu algo a Kylie? - Mas não havia sido nada com a melhor amiga, como pôde constatar no minuto seguinte, quando o barulho de passos a ganharem as escadas antecederam a chegada dela ao lado de Cary St. Pierre. No casal, a mesma expressão que existia nos rostos de Hermione e Alexandra. Pura confusão. Kylie escutou quando Eric perguntou se acontecera algo a ela e houve um pequeno momento onde a sua gratidão desenhou o tímido sorriso no canto da boca, no lado onde logo sobre o lábio superior existia o sinal.
- Hammond está morto. - Kylie sumarizou de forma muito direta. Não se preocupou em narrar detalhes, concentrou-se nos fatos, e a verdade era que Hammond fora assassinado. Saíra com Eric Dudley para tomar as xícaras de café da 211 Bel Air e agora não existia mais, tudo em questão de horas, poucas horas. Eric sentiu a cabeça girar e a visão escurecer.
- O que ocorreu?
Eric reagiu ao assassinato do amigo de forma similar ao que ocorrera na ocasião da morte de Allie. Atônito, repetia que não era possível. Os dois haviam virado xícaras de chococino na 211 Bel Air há poucas horas. Kylie pediu para ficar a sós com Eric. Enquanto o viúvo recolhia algumas peças de roupa do armário e as jogava de qualquer jeito sobre a cama, Kylie lhe dizia que tinham tentado contatá-lo assim que sabido da confusão.
- Havia mais de vinte ligações na sua secretária eletrônica. - Ela contou, enquanto acendia um cigarro, voltada para a janela. As venezianas faziam com que os vestígios da manhã se mantivessem fora, ou ao menos parcialmente. Os raios que adentravam realçavam a bela silhueta de Kylie. Em parte, parecia a mocinha estagiária metidinha na La Fabrique de muitos anos atrás; noutra, movimentos entregavam que agora era uma mulher ilegível e elegante protegida por trás de uma fachada que fazia difícil, se não impossível, conhecer o que existia atrás do mistério. Soltou uma baforada. A fumaça subiu pesada e densa por entre as venezianas, colorindo-as momentaneamente de um bege datado. - Hermione, Alexandra, a turma da La Fabrique, essa gente toda ligou para contar o que se deu, ou ao menos versões do que se deu. Fiz a gentileza de apagar esse monte de inutilidades.
- Oh, obrigado, Kylie. - Eric se sentou, a gravata ainda desatada em volta do pescoço. Afundou o rosto nas mãos, desconsolado. Começou a chorar. - Oh meu Deus, alguém me diga...O que aconteceu com Hammond?
- Imagino que tenha sido um assalto, Eric. Encontraram-no em uma esquina, baleado nas costas. Descarregaram o revólver no Hammond. - Disse de forma direta e imparcial, virando o rosto para que a fumaça não atingisse o seu rosto, soltando-a simultaneamente pela boca e pelo nariz. - Carregaram carteira e relógio. Aconteceu em um ponto da Dundas Street, imagine só.
- Oh...Oh meu Deus. - Eric sentia o corpo dormente e acreditou que desmaiaria.
- Shhhhhh, querido. - Kylie o abraçou e o ajudou a se deitar. Ela se ajoelhou sobre a cama e ao lado e segurou as mãos gélidas e suadas. - Você não vai desmaiar. Olhe para mim, olhe para os meus olhos, e respire devagar. Está tudo bem. Estou apertando as suas mãos. Olhe-me nos olhos. Eric... - Kylie e a sua voz foram se afastando como uma televisão antiga ao ser desligada. Quando Kylie era apenas um borrão de café no cantinho do campo de visão, todo o resto era a escuridão.
Em menos de vinte e quatro horas, a polícia já tinha seu culpado. Há câmeras que tornam o crime perfeito em Dundas Street impossível. Não demorou a enquadrarem um jovem problemático e dependente de drogas com extensa ficha policial como o autor dos disparos. Um mês após a prisão, o rapaz foi encontrado morto, no que pareceu ser um caso típico de suicídio por enforcamento. Ele amarrara a calça em um dos encanamentos da cela e no pescoço e saltara do beliche. As duas mortes muito trágicas, dadas em intervalo curto, causaram muita consternação. Podia-se dizer que o assassinato havia sido o primeiro grande crime em anos, em Downtown Toronto. Depois do impacto inicial, os veículos de comunicação pareceram perder o interesse quanto ao que se sucedera naquela madrugada em Dundas Street. Dudley perdia muito com a morte de Hammond. Privado não somente da companhia de um grande amigo, agora também se fora a voz de cautela que o tinha guiado por tempos incertos. Agora, Eric se sentia realmente inseguro quanto a seus sentimentos por Kylie.
Colby também passou por um período de depressão, atormentado pela culpa. Não tinha muito como ajudar à força policial. A última vez que vira o Hammond, estava atravessando as portas automáticas do Pearson, quando o publicitário deu duas buzinadas para se despedir e Colby respondeu com o aceno, incapaz de imaginar o que se daria em questão de minutos. Ainda enxergou o amigo dando a preferencial para os carros que trafegavam pela rodovia antes de ligar o sinaleiro e entrar na highway assim que o caminho ficou desimpedido. No último dia do ano, em 2004, uma sexta-feira, Eric apareceu na 211 Bel Air e o encontrou aborrecido, os cotovelos sobre a mesa, o queixo apoiado sobre os punhos cerrados. Não havia gente por ali, quase todos, que não Eric e Colby, tinham mais o que fazer na virada de ano. Chorar as mágoas na cafeteria de um aeroporto internacional jamais fora idéia de diversão. Charly estava esperando a queima de fogos na grande festa prestes a acontecer `a beira-mar. Ele fora passar as férias na casa de praia da tia Virgínia, irmã de Allie, em Ward's Island. Servia de consolo a Eric saber que os parentes de Allie amavam o menino e a todo instante queriam estar por perto para verificar como se sentia e do que precisava. Amenizavam um pouco o peso de sua responsabilidade, de modo que tinha como lidar com o luto sem ter de fingir estar bem a todo instante por causa da criança.
- Um brinde a Hammond. - Deixou a xícara estendida, esperando que Colby desfechasse o brinde. Bateram os cafés, e Eric ergueu-a para cima, honrando-o onde quer que se encontrasse. - Jamais esquecerei as suas palavras, amigo. Espero não desapontá-lo.
"Amém", Colby disse baixinho, com um sorriso orgulhoso. Veio a contagem regressiva. A televisão transmitia a virada nas principais capitais do mundo. Eric e Colby assistiram à chegada de 2005 da cobertura da 211 Bel Air, sentados sobre caixotes de madeira. Bem distante, em downtown Toronto, elipses verdes e vermelhas deslumbrantes explodiam em uma parafernália pirotécnica. Por dentro, ambos se sentiam desencorajados, mas faziam o possível para demonstrar o contrário. Eric estava voltando para casa, quando recebeu a ligação de Kylie fazendo votos de felicidade e saúde. Kylie se encontrava com amigas no badalado Bistrô 333. Ela o convidou a esticar a noite na sua companhia, na festa do andar de cima, no Club Ménage.
Eric valorizara os conselhos de Hammond. Não era porque não os seguira a risca que não lhes dera importância. Reconhecia muitas das constatações irrefutáveis de seu amigo, porém parte de si, a que Hammond nominara de "parte boa", parecia mantê-lo cativo dos velhos paradigmas. Naquela virada de ano, Eric teve sua primeira lição prática da necessidade do desapego. O Club Ménage atingira o ponto de ebulição. Eric concluiu que se metera fora de seu meio. Ali, a maioria era formada por gente entre vinte e cinco a trinta anos. O chão era de madeira, os lustres clássicos de cristal. A decoração imbuía a casa de um ar de requinte e elegância. O conjunto de telões de LED exibiam gaivotas em voo sobre a linha do mar, sob um lindo céu azul. Enquanto procurava enxergar a Kylie, Hermione chamou-o de um ponto do mezanino. Eric respondeu com um aceno e foi se sentar com o pessoal da La Fabrique.
Kylie não estava à mesa, mas na pista. Dançava com Cary St. Pierre, a quem em seus braços se entregava enquanto "All Because of You" do Miami Sound Machine lhes dava a justificativa perfeita para o exibicionismo. Eric assistiu a tudo, Kylie lançando a cabeça para trás e dando gargalhadas aos comentários cada vez mais sacanas de Cary. Muito embora se recordasse de que o seu bonito sentimento por ela a nada se atrelasse, escolheu partir. À varanda do apartamento, tocado pela entusiasmada brisa fria, Eric sorriu com nostalgia e gratidão ao se recordar das palavras do amigo Hammond. Kylie era maravilhosa e o lançava em direção à vida, porém não era tão simples assim. Como o próprio nome sugere, o jogo da paixão era exatamente isso: um jogo. Ingênuos como Eric acreditavam que filmes românticos equivaliam à vida real. Quão mais equivocados poderiam estar?Assim como a maioria, sabia que mesmo tendo pisado repetidas vezes na mesma armadilha, o ego o manteria por muito tempo preso ao ciclo. Acreditara que quando estivesse apaixonado, finalmente poderia encontrar alguma felicidade ao lado de alguém com quem poderia ser o que era, sem pressões ou subterfúgios. A paixão, entretanto, era o imprevisível e implacável campo de batalha onde joguinhos psicológicos cada vez mais complicados e ferozes se sucediam muito rapidamente, onde tolos apegados acabavam arruinados, levados à loucura passional ou ao suicídio. Fora ingênuo ao pensar que escaparia ileso de Kylie, depois de em linhas tão encantadoras e sinceras ter exposto as imagens românticas que o mantinham preso a ilações de como poderia ter sido. Ousara dizer que a amava e agora havia o preço a pagar por tamanha ousadia: o jogo do "afasta-aproxima", a realocação de culpa, a inversão de papéis, a chantagem emocional, a manipulação e o mais terrível castigo de todos, o apego. Nesse jogo, para os vencedores, haveriam as noites tão perfeitamente descritas por Eric na carta, noites de amor irrestritas e sem limites nos braços da mulher por quem se sofria, por quem se torturava emocionalmente, todas as dúvidas por fim esclarecidas pela força de um simples beijo morno demorado, a prévia de prazeres inenarráveis por vir. Para os psicologicamente enfraquecidos, a destruição completa. Era uma valsa na escuridão, um passeio sobre a corda bamba.
Seis anos mais tarde. Muito pode acontecer em seis anos. Enquanto seus amigos seguiram com suas vidas, conheceram novas experiências e prosperaram, Eric ficou à deriva, e tudo o que lhe aconteceu foi mais do mesmo. Produziu bons trabalhos, mas nada excepcional, voltou a ocupar o tempo com compromissos e obrigações. Emocionalmente, porém, se sentia à deriva. O contraste entre as vidas dos amigos e a imutabilidade entediante da sua existência era um excelente indicador de que não soubera retomar as rédeas de onde deixara os próprios planos após a morte de Allie. Charly se tornou um adolescente que não dava dores de cabeça ao pai. Ele era um menino estudioso e apreciador da companhia dos amigos e agora paquerava uma colega de sala. Colby estaria se formando no fim do ano, e Eric adorava as noites de sexta e sábado, quando aparecia para jogar papo fora, e o rapaz lhe falava sobre todas as coisas que imaginava para o futuro e a maneira como pretendia ajudar a avó e os primos. Eric incentivava-o, e já adiantara o convite: assim que passasse no exame, que procurasse a La Fabrique, pois o incorporaria à banca de advogados do estúdio. Eric avisou que Colby alçaria voos maiores, mas que aprenderia muito na La Fabrique. "Veja o exemplo da Kylie, que começou como estagiária e hoje é a CEO da Avant!, o melhor escritório de publicidade de Toronto", ele citou.
Eric percebia que pronunciar o nome de Kylie ainda o movia com sentimentos complicados. Dentro desse hiato de seis anos, Kylie havia se casado com Cary St. Pierre, porém jamais se afastara completamente do viúvo. Agora que algum tempo tinha se passado desde a morte de Hammond, Eric entendia por que o amigo vocalizara votos de se manter sempre por perto para incentivá-lo com os aconselhamentos certeiros. Muito frequentemente, a sedução da fantasia devolvia os supostamente esclarecidos ao limbo das indefinições, que a longo prazo acabava lhes parecendo mais aprazível do que a dura, mas certa realidade. Eric não tinha mais idade para isso, mas existiam noites em que se via pensando em Kylie, em como estaria, em como teria sido se tivessem saído juntos naquela noite de estreia do "Not Easily Broken", em quão diferente teriam sido as coisas agora. Estariam juntos hoje, "unha e carne", como a própria Kylie colocara?Ainda assim, Grattan e Dudley eram faces da mesma moeda e não se podia pensar em um sem citar o outro. Havia momentos em que Eric poderia jurar que estava na mente de Kylie, e vice versa. Não imaginava a assertividade desse pressentimento.
2009 foi embora e 2010 chegou sem novidades. Toronto parecia vestir perenemente o mesmo luto da alma de Eric. Pelas manhãs e tardes, o céu nada tinha de sorrisos a oferecer, a sua carranca sempre plúmbea. Somente quando a noite se punha a meio caminho, todo o cinza era substituído por um deslumbrante e melancólico prateado. Eric errara nos passos, na área de "approach", e a bola saiu direto para a canaleta. Agora, estava sendo vaiado pela turminha do filho, que adorava levá-lo junto em suas saídas para o Ballroom Bowl Bar Bistro. Dando gargalhadas e protegendo a cabeça dos tapas, Eric voltou ao seu lugar para deixar que os jovens concluíssem a partida. Depois do jogo, levou o filho e os colegas para comer pizza no restaurante logo ao lado, na praça de alimentação. Eric era o "pai preferido" da garotada, aquele que invariavelmente acabava levando a meninada nos passeios. De seu próprio jeito, Eric substituía a ausência de Allie com a algazarra e a alegria que toda aquela galerinha trazia para dentro de casa. Nos finais de semana, muitos amigos do Charly iam jogar e assistir a filmes em casa, e Eric achava tudo muito bom, mesmo que a turma não se fizesse de rogada nos barulhos e nas bagunças!
Uma noite, uma sexta-feira chuvosa de janeiro, Eric chegou assoberbado de trabalhos da La Fabrique, esperando ser recebido pelo barulho da turminha de Charly, que regularmente estaria vendo filmes na sala. Dessa vez, porém, não havia ninguém. A senhora Medina contou que Charly tinha ido jogar com os meninos do condomínio no campinho. Tinha feito o prato especial de Eric, o peixe frito à milanesa com rodelas de tomate, que preparava uma vez por semana para seu grande deleite. Sentado à mesa comprida da sala de jantar, o viúvo jantou solitariamente. Quando estava para terminar, o filho chegou. Ao ver o peixe, perguntou se havia mais.
- A senhora Medina deixou para você. - Apontou para a cozinha. - Dentro do forno. Você pode requentar no microondas.
- Ah, não. O senhor já terminou? - Lamentou, atirando a mochila no sofá e indo lavar as mãos no banheiro social.
- Eu fico aqui para conversar, filho. - Procurou enxergá-lo na cozinha, mas só via o seu vai-e-vem, manipulando o depósito com o peixe e pré-aquecendo o microondas. - Faça um café para mim.
- Apenas não espere algo no nível do que o Colby prepara para você na Bel Air! - Charly gritou da cozinha. - Vou esquentar a água.
- Ei, você não trocando açúcar por sal já fica de bom tamanho!
Entre garfadas de peixe, Charly contou ao pai que vinha fazendo planos para depois que se formasse, e o interessava o curso de cinema. A ideia agradou a Eric, que saberia como ajudá-lo no meio publicitário, intimamente ligado à experiência cinematográfica. Charly estava escrevendo um roteiro, e comentou que os amigos participariam de seu primeiro experimento por trás das câmeras. Orgulhoso, pediu para que lhe mostrasse o roteiro, mas ele respondeu que não tinha terminado.
- Quase pronto, não falta muito, mas ainda não terminei! - Explicou, enquanto pingava gotas de limão na cauda crocante.
- E do que se trata?
- Uma história de amor. - Sumarizou, sem oferecer detalhes.
- Ótimo, agora vou morrer de curiosidade. E o que vocês jovens entendem de amor? - Eric sorriu, virando a xícara para terminar o café com leite. - Filhão, é mais complicado do que parece. Precisará viver muitos anos para poder saber a primeira coisa sobre amor.
- Mas ficar trancado dentro de casa não o ajudará a encontrar outro, papai. Você não pensa em se casar novamente?
- Não quero cometer um erro, na minha idade. Se tiver de acontecer, terá que ser com a pessoa certa. Tenho medo de... Bem, depois que a sua mãe morreu, houve apenas uma única pessoa em quem me interessei. Mas... Foi complicado. - Eric temeu que Charly trouxesse à mesa o nome de Kylie e logo emendou um outro assunto. - Se os seus amigos quiserem aprender a fazer filmes, a La Fabrique abrirá seleção para uma nova minissérie a ser rodada em Toronto e Ontário. Vamos escalar atores e atrizes, rostos novos para papéis secundários. Seria uma ótima oportunidade, não?De eles acompanharem a dinâmica de...
- Não. - Os olhos do menino repentinamente estavam bem abertos e iluminados, como que se uma ideia espetacular tivesse lhe ocorrido. - Uma ótima oportunidade para conseguirmos uma nova namorada para o senhor!
- Do que está... Oh, não, Charly. - Eric riu, embaraçado, mas o filho não arredou.
- Claro que sim!Receberá currículos de muitas mulheres interessantes!Que mal há em unir útil a agradável?E se encontrar uma moça que não se encaixe nos moldes do que a personagem exige, porém nos do que procura em uma companheira, por que não?Claro, mesmo que ela não consiga o papel, seria ótimo para vocês dois, certo?Você precisa retomar a vida, papai, mas para isso tem de se dar a oportunidade. Por que não agarrar a oportunidade?
Colby escutava a Eric com os olhos bem surpresos e encantados, um sorriso espertalhão no rosto. Era como se o resto não importasse. Vez ou outra, a rapaziada presente a Bel Air lançava exclamações e insultos à televisão, pois uma importante partida de futebol estava sendo travada, e o time local, perdendo. Alguém na mesa próxima à máquina de jukebox exclamava que o pedido não havia chegado, e já esperara mais de meia hora. Colby só estalava os dedos para as outras garçonetes, para que tratassem de resolver as pendências dos fregueses. Por enquanto, só tinha ouvidos para Eric.
- Então Charly disse que queria me acompanhar nas seleções, para depois trocarmos impressões. O fato é que criaria a oportunidade para que eu conhecesse novas pessoas, e se levarmos em conta o número de candidatas a todos os papéis femininos, então aumenta a probabilidade de existir alguma mulher que atenda as expectativas do que eu espero em uma esposa.
- Mas então, senhor Dudley, o que espera de uma esposa? - Eric foi pego de surpresa e ficou em silêncio. - Espero que não se importe de eu ter perguntado.
- Oh, não, não. - Deu uma risada e o apanhou pelo braço com camaradagem. - Surpreendi-me porque não pensei a fundo na questão que me acabou de fazer, "O que eu espero de uma namorada". - Levou os dedos ao queixo, os olhos perdidos na janela que dava para a Pearson. Eric caçava dentro de si a resposta. Depois de um tempo, soube precisar melhor. - Eu diria uma mulher madura, de trinta e cinco a quarenta anos. Inteligente, decidida, alguém com experiência de vida, uma carreira profissional a honrar. Entenda... Eu não tenho mais tempo a perder com aventuras.
- Por Deus, o senhor faz soar como se tivesse noventa anos! - Colby estourou em gargalhadas, quase deixando espirrar o café. - Você ainda nem chegou aos sessenta anos, homem!
- Bem, quanto mais penso a respeito, menos má me parece a ideia.
- Claro que não. - Passou um pano umedecido em movimentos circulares sobre o balcão, a que Eric levantou os braços e a xícara para que terminasse a limpeza. - Eu também achei uma sacada muito inteligente. Só não recomendo que vá escutar as opiniões de seu filho quanto a mulher certa!Ele é um menino de dezesseis anos, o que saberia da vida?
- Eu tenho mais de cinquenta e não sei de nada, imagine uma criança!Foi o que eu disse a Charly. Cá entre nós, apenas me apoderei da ideia porque foi boa! - Novas risadas, e os dois amigos seguiram conversando enquanto o restante do público da Bel Air amolava-se com a péssima performance do time de Toronto.
Caminhando apressadamente pelo hall do prédio da La Fabrique, Hermione resumia para o chefe a premissa do projeto a ser produzido pela Toronto Network. Também os acompanhava a diretora de casting. Hermione fazia considerações sobre o enredo, as aparentes necessidades de produção, demandadas pelo período da narrativa (século XIX em Londres, o que prometia um peso extra para o pessoal de cenografia e figurinos), e sobre os rostos que julgava interessante para o elenco principal. Entraram no gabinete de Eric, Hermione fechando a porta após a sua passagem. Dudley sentou-se pesadamente sobre a cadeira de couro e a colega jogou-lhe a pasta com o prospecto.
- Para a heroína, a personagem principal... - Hermione mordiscava a ponta do lápis, os óculos de aros muito finos dando-lhe um ar arrogante. - Alguém com beleza clássica, britânica. Nada vulgar, quero uma beleza elegante, aristocrática. Precisamos de uma jovem Charlotte Rampling, vocês entendem o que eu tenho em mente, não?
- Eu gostaria de uma cópia do roteiro. - Eric recomendou. A secretária bateu à porta para perguntar se precisavam de algo. Hermione pediu um copo d'água. - Vocês me falaram sobre o enredo, porém quero conhecer a história mais detalhadamente. Naturalmente, os rostos aparecerão na minha cabeça à medida que eu for avançando. Tem mais uma coisa, Hermione. - Ela levantou a vista da folha para os seus olhos. - No que concerne ao elenco principal, haverá um período certo para discussões, e então tratativas com agentes e por aí vai. Para os papéis menores, todavia, penso que poderíamos acelerar o processo de seleção na semana que vem.
- Precisamos de marketing, precisamos de alcance. Com intromissões nos intervalos dos programas de horário nobre teríamos toda a publicidade de que precisamos! - Hermione opinou. Batia impacientemente o lápis no aro, até detê-lo no ar, como se uma lâmpada tivesse acendido dentro de sua mente. - Precisamos da Avant! de Kylie. Com a sua ajuda, teríamos publicidade para tornar o projeto um grande sucesso antes mesmo que a primeira cena fosse rodada.
- Só para esclarecer, Hermione. - Eric colocou os óculos para examinar as demandas deixadas na prancheta. - O roteiro é baseado no livro do Henry James, que eu não li, mas sei que estaremos atualizando o enredo para os nossos tempos.
- Ótimo, menos preocupações para mim! - Ela suspirou, sorrindo, riscando com o lápis as considerações prévias que levantara sobre cenografia e figurinos.
Naquele fim de semana, houve uma festa na cidade cenográfica da Toronto Network, uma noite de gala para comemorar a década de existência do canal. Embora não se sentisse mais tão seguro em festas de confraternização, Eric deixou sua zona de conforto. Ele não sabia, mas a sua maior abertura ao mundo e aos outros devia muito à expectativa que advinha da possibilidade de conhecer uma nova mulher. Sentia-se mais resoluto e sorridente, e é claro que a primeira pessoa a notar a mudança de comportamento foi a senhora Medina.
A cidade cinematográfica da Toronto Network era justamente isto: uma cidade. O centro administrativo ocupava uma ampla região de mais de duzentos mil metros quadrados. O projeto arquitetônico respeitava a expressão cultural canadense. O edifício esbanjava paredes em curvas, e internamente favorecia a integração perfeita entre ballrooms de alta capacidade, corredores para fluxo e salões para encontros e coquetéis, permitindo a combinação perfeita entre negócios e prazeres. O coquetel acontecia no ballroom, enquanto no nível superior o pessoal do cerimonial preparava a sala para a conferência onde o presidente do canal receberia o título de comendador, a ser concedido pelo pai de Cary, prefeito de Toronto. Alguns convidados subiam ao mezanino para observar melhor a deslumbrante festa e gozar de um pouco de espaço, e Eric foi uma dessas pessoas. Girava discretamente o copo com champanhe, tentando fazer a bebida durar, enquanto se deleitava com uma música triste romântica de Peabo Bryson, Shower You with Love.
- Ei. - Veio a voz melodiosa e feminina. Mesmo dentre outras, mesmo em meio a músicas, fez-se perfeitamente distinta aos ouvidos acostumados de Dudley.
- Kylie. - O viúvo reconheceu, precisando escutar o nome de sua própria boca para saber que não fantasiara o reencontro.
- Olá. - Beijaram-se duas vezes na face, dois elegantes e discretos adultos amigos. Kylie usava um vestido branco one-sholder com transparência e pedras bordadas. Eric esperou encontrar alguma inspiração para soar charmoso e bem-humorado, mas nada lhe ocorria. Ele ainda amava a amiga, mesmo após tantos anos. Kylie sorriu e ajeitou sua gravata. - Permite-me?
- Obrigado. - Recordou-se de Hammond, naquela madrugada gelada na cafeteria do aeroporto. "Seja gentil e bem-humorado, e siga andando, por mais devastado que se sinta". - Você parece ótima.
- É mesmo? - Eric sentiu uma ponta de impaciência em Kylie. A sua pergunta soou como crítica. "É isso que te preocupa?Como eu pareço?", isso sim era o que Kylie quis dizer.
- É. Suponho que deva escutar muito isso por aí. - Disparou, começando a fracassar na tentativa de mascarar ressentimentos abertos.
- O que quer dizer com isso? - Enquanto Eric começava a rachar e mostrar sinais de apego, Kylie parecia explicitamente furiosa.
- Faço votos de que tenha uma boa noite. - Deu as costas para se retirar, mas Kylie não estava disposta a escutar ironias e ficar quieta.
- Você não vai a lugar algum, idiota!Eu falei contigo! - Segurou-o pelo pulso e se aproximou. Seus rostos ficaram a um palmo um do outro. Eric pôde sentir a raiva emanando de Kylie. - O que quer dizer com isso?Eu escuto muito o quê por aí?
- Desculpe-me. - Abaixou o rosto, envergonhado. Amava-a, porém tentara azucriná-la pelo fato de ela ter casado com outro. - Às vezes eu sou um pouco atrevido. Não sei o que me deu. - Os dedos de Kylie imediatamente se afrouxaram ao redor do pulso. A humildade de Eric e o fato de ele prontamente pôr-se em retirada a deixaram cheia de remorsos.
- Eric, espere. - O viúvo a obedeceu. - Eu não quero ser a sua inimiga. - O seu rostinho, sempre lindo com o narizinho arrebitado, olhos tristes e a mecha, transformou-se momentaneamente numa máscara de dor quando ela diminuiu o tom, e a raiva a deixou. - Eu te amo tanto. Orgulho-me pela forma como criou Charly e pelo homem que você é!
- Estou confuso, estou confuso. - Sacudiu a cabeça e fechou os olhos.
- Olhe para mim, por favor. - Ela segurou o rosto dele de maneira intromissiva, e quando Eric abriu os olhos, reiterou. - Não quero ser a sua inimiga!Por que vem fugindo de mim?Ainda tenho a sua carta guardada!Por que não consegue me encarar quando menciono essa carta?Eu conheço o seu coração, revisito a sua alma, todas as vezes em que a abro!
- Não. - Atordoado, Eric foi se afastando, cambaleante. Precisava chegar ao elevador e deixar o lugar.
Ele conseguiu apanhar o elevador vago e escolheu o número que o levaria ao andar mais alto, qualquer lugar que o afastasse da mulher que amava, e que imaginava jamais poder possuir. Enquanto uma pletora de sentimentos girava como um redemoinho na cabeça, recordava-se das palavras de Hammond. A felicidade está dentro de si, Hammond ensinara, mas se assim o era, por que não conseguia experimentá-la hoje, quando não a tinha ao lado?Isolado dentro do elevador, arrancado do mundo dos ricos e privilegiados, Eric foi escorregando com as costas contra a parede até cair no tapete do elevador, que seguia subindo e subindo. O seu rosto estava banhado de lágrimas. Quando conseguiu chegar a 211 Bel Air, já passava das três horas da madrugada. Colby colocava o lixo para fora, e viu que Eric parecia em péssimo estado, mesmo dentro do carro, a testa encostada ao volante. Auxiliou-o a descer do automóvel e o levou para a cozinha. Empurrou um banquinho e pediu que se sentasse. Encheu um copo d'água e o entregou a Eric. O viúvo o bebeu em poucos e demorados goles. Era surpreendente o quão bem se conheciam, pois mesmo que nada tivesse sido dito, Colby o abordou com muita perspicácia:
- Senhor Dudley, você um dia dará risadas de tudo, porém deve dar o primeiro passo para se libertar dessa situação. Verá que conhecer uma pessoa legal o ajudará a entender que o mundo é mais importante do que essa mulher, a Kylie.
- Ela veio em minha direção... - Começou a contar sobre a festa, a voz o reflexo do cansaço da alma. - Se ela apenas não mencionasse a maldita carta!Não sei o que ela quer de mim!
- Escute, o senhor preocupa-se mesmo com gatilhos emocionais? - Colby o mirou com o olhar severo e pôs as coisas sob perspectiva. - Sabe de uma coisa?Precisa fazer amor com essa moça logo para desmistificá-la!Quando fizer, enxergará que ela era apenas isso: uma mulher! - Graças à simplória colocação, Colby conseguiu extrair um sorriso divertido do emocionado amigo. - Menciona a questão da carta, e o que Kylie estaria querendo te dizer todas as vezes em que levanta o assunto... Senhor Dudley, não conhecemos completamente nem mesmo a nós. Siga tentando adivinhar a mecânica do pensamento dessa mulher e terminará louco. Pessoalmente, imagino que deva ter se emocionado, pois homem algum escreveria coisas tão bonitas ou profundas. Por isso, ela jamais se esqueceu do que escreveu e sempre estará trazendo à tona suas palavras. O que acha?
- Na semana que vem, a Toronto Network começará a veicular as chamadas para a minissérie, e então os formulários preenchidos começarão a chegar. - Eric deitou a mão sobre o ombro do rapaz e fez um pedido. - Ajuda-me a passar a vista pelos currículos, a escolher?
- Aos meus vinte e quatro anos, eu não tenho nem de longe sua experiência. Se ainda acredita, porém, que eu serei de valia nessa nova empreitada da sua vida, adoraria ajudá-lo! - Os dois bateram os punhos cerrados em camaradagem e Colby jurou. - Apenas me avise quando chegar o momento, e eu estarei lá!
- Você é um dos poucos amigos que me sobraram, Colby. - Eric decretou, de uma forma muito sincera.
- Ei, não será simples assim! - O brincalhão Colby imediatamente restaurou o bom humor e afugentou preocupações e tristezas. - Eu o ajudarei a escolher uma noiva para você, mas quero outra para mim também, hein?!
A briguinha com Kylie na festa da Toronto Network definitivamente introjetou novo fôlego `a determinação de Eric, que agora focava-se em virar a página e retomar a vida o quanto antes. Quando explicou a Charly que os currículos começariam a chegar na semana seguinte, e que em menos de duas estariam realizando a seleção, o filho o parabenizou e expressou que não via a hora de conhecer "a sua nova mãe". Até mesmo a senhora Medina o estudava com um sorriso divertido, a que o viúvo explodia em gargalhadas ao perguntar "Por que raios estão me olhando diferente?!". Repentinamente, era como se Eric tivesse conseguido restaurar a autoconfiança que o tornara um homem tão interessante dez anos atrás. Um fim de tarde, Eric retornava da La Fabrique para casa, o tráfego detido por um terrível engarrafamento causado por uma batida de automóveis bem no centro de um importante cruzamento de downtown Toronto, quando escutou pela primeira vez, pela rádio, a gentil intromissão de uma voz feminina, da Toronto Network, anunciando a chamada para a minissérie e prestando instruções para as jovens atrizes que pretendiam dar vida a uma importante personagem feminina romântica da trama.
"Você já parou para pensar que um dia até mesmo as maiores estrelas de cinema passaram desapercebidas entre tantas outras garotas?Se você sempre aspirou uma oportunidade para participar da indústria, eis a sua grande chance!Wings of the Dove, a obra imortal de Henry James sobre vingança e o poder redentor do amor, ganha nova roupagem nesta versão adaptada para os dias de hoje!Estrelando Rupert Friend como Merton e Gina McKee como Milly, a trama também oferece um grande leque de personagens importantes que estão esperando para serem escalados... Isso mesmo, uma das personagens pode ser sua!Mande seu currículo para a Toronto Network, e participe da seleção. Você poderá vir a brilhar junto às grandes estrelas do cinema!". A voz feminina então orientava quanto ao procedimento de remessa de currículos e os critérios de seleção. Eric achou a chamada perfeita. Soava emocional, misteriosa e prática. Com as mãos pacientemente descansadas sobre o volante, ele soube que daria tudo certo. O tráfego deixou de importar, e quando chegou a casa, mais de uma hora mais tarde, e entrou pela porta da sala de estar, banhado de chuva e abarrotado de papéis, era a contraditória imagem do ânimo e entusiasmo, sob uma noite onde o céu vinha abaixo e quase todos que trabalhavam provavelmente estavam cansados e impacientes.
Eric jantou com o filho, e os dois desfrutaram de uma noite animada e aprazível. Da cozinha, a senhora Medina sorria de contentamento ao escutar as gargalhadas de pai e filho vindas da sala de estar. O filho também estava excitado, motivado pelas próprias razões e projetos. A expectativa quanto ao filme que pretendia rodar com os coleguinhas vinha consumindo seu tempo fora do colégio, e a senhora Medina disse a Eric que a dedicação do garoto ao projeto era impressionante. Metido no quarto, o menino usava a tarde para escrever e rescrever o roteiro, atendendo ligações, recebendo os amigos para discutir questões de câmeras e o trabalho de montagem. Mais uma semana se passou até Hermione compilar as candidatas em um colecionador. Ela o repassou a Dudley. Eric recebeu a pasta com currículos e fotos de jovens atrizes interessadas no papel de "Kate Croy", a vilã de "Wings of the Dove". Sentado na escrivaninha do gabinete, a lareira estalando as lascas de madeira e afugentando o frio de uma das noites mais severas do ano em Toronto, Eric foi folheando os papéis do colecionador, encontrando candidatas que cobriam um amplo espectro de variáveis que um homem consideraria antes de escolher sua esposa.
Entre tantas mulheres de interesses e habilidades díspares, foi uma de rosto anguloso e sorriso aberto e espontâneo quem mais lhe chamou a atenção. "Lacy Morel" era o nome, 31 anos de idade, natural de Montral, Quebec, estudara música no Royal Conservatory of Music até o acidente que rompeu os ligamentos do tornozelo e interrompeu precocemente sua carreira. Com o fim da perspectiva da dança, Lacy partiu para a atuação. Quando Eric leu que Lacy orgulhava-se de uma participação em um filme romântico onde interpretava a vilã metida e arrogante que acabava sendo atirada em uma piscina pela heroína, não teve como segurar o ligeiro sorriso que a doçura da descrição estimulou. Algo que somente uma moça ingênua e pura faria questão de declinar, sem dúvida. Interessado em descobrir coisas novas de Lacy, Eric vestiu o sobretudo, apanhou as luvas que já estavam guardadas nos bolsos laterais, e resolveu verificar se a locadora do bairro possuia o filme, uma bobagem água com açúcar chamada "The best so far".
Eric conseguiu o DVD, à custa de muito esforço do menino da Blockbuster, que foi bastante atencioso ao pinçar o filme da sessão "Romance". Consultando a internet, Eric descobriu que a produção havia sido lançada em alguns festivais de cinema da Europa, em 2002, de modo que parecia ter sido rodado, no mínimo, dois anos antes. O enredo não oferecia nada de novo, era o que Eric costumava chamar de "entretenimento indolor", filmes que até tinham algo de bonito e gentil para oferecer, porém que no grande esquema das coisas, não encontravam como sobreviver nos multiplexes e invariavelmente acabavam acumulando poeira na sessão de DVDs, isso quando conseguiam ser lançados. A fotografia parecia ótima, mas aqui e acolá os valores limitados da produção se evidenciavam, e eram elegantemente escondidos pela montagem competente. "The best so far" era a história de um hippie norte-americano exilado em Amsterdã, dono de uma loja de livros raros e antigos, que fugira para a Europa nos anos 60 para se esquecer das dolorosas recordações de um grande amor. O americano está sendo pressionado por um gângster espertalhão local a vender o imóvel para que a filial japonesa de um grande conglomerado de fast-food instale novas franquias na boardwalk. O hippie é o único que não quer entrar na composição. Um dia, uma jovem muito bonita entra na livraria. Investida em uma jornada de autodescoberta, de férias por Amsterdã, ela acaba formando uma bonita amizade com o americano. O frescor e o espírito aventureiro e positivo da garota acabam por evocar recordações da sensacional história de amor que o velho experimentara, mais de quarenta anos antes. Enquanto seu presente é invadido por lembranças de épocas mais felizes, reviravoltas no enredo trazem à história a mãe da menina... Justamente o grande amor perdido do hippie. Um romance açucarado e bonitinho, que jamais sobreviveria ao lado dos grandes filmes de estúdio. Simplório demais para a sustentação visual que o público frequentador de cinema espera, honesto e puro a ponto de não ter como vencer o cinismo e a ironia que parecem ditar as mensagens dos filmes de hoje em dia. Eric se surpreendeu com os olhos marejados ao término da produção, e responsabilizou a vulnerabilidade a toda a questão envolvendo a Kylie e o grande deserto que estava por atravessar em busca de uma nova chance. No filme, havia, sim, a antagonista para a heroína. A vilã era a ex-namorada de seu pretendente rico, e conforme Lacy escrevera no currículo, sobre o quanto se divertira ao ter sido atirada à piscina, Eric deu boas gargalhadas quando o surpreendente momento aconteceu.
A sala para o processo de audição era bem espaçosa e arejada, e o seu revestimento de vidro translúcido fazia com que quem passasse pelos corredores não enxergasse mais do que vultos de pessoas e perfis de móveis de escritório. Por dentro, a frente dava para a esquadria retangular de correr, por cujas lâminas parte dos raios que não era refratada penetrava preguiçosamente para se assentar somente sobre o espaço onde fora colocada a cadeira da entrevista. À mesa a frente, os avaliadores, entre eles Eric, anotariam as suas impressões. Hermione e a diretora de casting tinham comparecido, mas eram Eric e Colby os mais animados, aqueles de quem partiam as mais divertidas perguntas. As concorrentes eram muito diversificadas, porém os avaliadores tinham como categorizá-las dentro de padrões. Algumas, profissionais liberais que haviam colocado em prática o desejo de se aventurar em novos projetos; outras, advindas do meio artístico, ligeiramente desapontadas por não terem ainda "feito grande" no cinema ou na televisão. As mais jovens, em sua maioria, tinham raízes no teatro, e paixão por romances de época, em especial obras de Jane Austen. Eram "heroínas" que em suas existências diárias menos interessantes, viviam as fantasias e intrigas sobre as quais Austen e Henry James escreviam tão magistralmente. A programação do dia estava acertada para que os avaliadores fizessem uma interrupção ao meio-dia, para almoço, e retomassem às 14:00.
Ao longo da manhã, Colby e Eric haviam entrevistado mais dez candidatas, e declinado nas folhas de rosto observações pertinentes. Para o papel de "Kate Croy", a manhã fora promissora, mas até então não aparecera nenhuma outra garota que tivesse parecido remotamente interessante aos olhos de Eric quanto Lacy Morel. Eles se preparavam para a pausa do meio-dia, para retornar às 14:00. Hermione sublinhava com uma caneta azul os nomes das meninas mais interessantes para o papel de Kate, e outros com a vermelha, as que achava que ficariam excelentes como personagens periféricas. Eric foi lavar as mãos, e ao passar pela ante-sala, a dama que estava de costas para a sua pessoa, sozinha à mesa, lendo um pocket book, chamou-lhe a atenção. Era Lacy, ele pôde dizer. Enquanto as outras candidatas se mantinham ocupadas acessando os celulares pela rede wireless, conversando umas com as outras ou folheando revistas, Lacy parecia entretida em seu próprio mundo. Depois de tantos anos em que mantivera Kylie no coração, a visão de Lacy oferecia a mesma eletricidade, talvez até mais, de quando, por exemplo, vira-a na estreia do "Not Easily Broken" em 2004, e se declarara. Eric revivia o passado e, desta vez, tinha a chance de fazer funcionar.
Hermione prometeu retornar para o prosseguimento dos testes. Eric não se dispôs a interromper a continuidade das entrevistas. Ele se despediu da colega e prometeu que dariam sequência à seleção pela tarde. Depois que a colega foi embora, explicou para Colby que a próxima moça seria a candidata que lhe chamara a atenção. A secretária abriu a porta e fez um semi-arco com o braço, convidando-a a entrar e se sentir à vontade. Ela se movimentava com a graciosidade de uma ex-dançarina clássica, mas o que a deixava mais interessante era a impressão de vulnerabilidade transparecido em momentos que somente podiam ser capturados pela sensibilidade, como quando cumprimentava os avaliadores, com uma certa urgência na forma de baixar respeitosamente o joelho e a cabeça, ou se sentava `a cadeira, somente após pedir – e lhe ter sido concedida – licença para tanto. Eric sustentava um sorriso ameno e aberto, deixando às claras o seu encanto, enquanto Colby a observava com olhos impessoais e analíticos.
- Senhorita Lacy Morel, cavalheiros. - A secretária anunciou, para em seguida se escusar.
- Como vai? - Eric foi o primeiro a falar, e esperou não denotar uma certa ansiedade. - Por favor, sente-se, senhorita Morel.
- Vou muito bem. É um prazer conhecê-los, senhores... - Apertou levemente os olhos, à espera da resposta, que veio de Eric, novamente antecipando-se a Colby.
- Chamo-me Eric Dudley, e este é Colby Rodriquez. - Colby parecia surpreso com a desenvoltura de Eric. O amigo definitivamente não parecera igualmente extrovertido nas audições anteriores. Pelo contrário, o encontro com Lacy mais se assemelhava a reencontro de amigos do que processo seletivo. - Li o seu currículo. Gostei muito do filme que você... - Ela deu uma risadinha envergonhada e Eric sorriu. - … Que você fez, "The best so far". Envergonha-se do filme?
- Não, de maneira alguma. - Corrigiu o mal entendido de imediato. - Aprecio o filme, sim... Mas foi uma experiência de tantos anos atrás!Imagino que deva me achar bastante diferente de quando eu...
- Olhe, parece mais linda. - Ousou. Colby voltou-se ao colega e o olhou com discreta preocupação. Desejava sinalizar para que retirasse o pé do acelerador. Lacy sorriu. Tão alva era, ficou muito explícito o enrubescimento, em razão do evidente galanteio. - Talvez concorde comigo, o filme foi ótimo, apenas achei que, no contexto maior, a doçura da história não tenha como sobreviver em uma época tão cínica!
- Sim, sim. - Concordou, cruzando elegantemente as pernas e, nisso, mostrando as compridas botas de couro que sentavam muito bem com a calça jeans justa. - Aos vinte e poucos, me pareceu uma obra prima. - Os dois riram quase simultaneamente. - É claro que, com o tempo, eu fui percebendo que não foi tão espetacular assim. O que restou da experiência foi o sabor de nostalgia. Foi algo ingênuo e puro, que à época parecia maior do que a minha própria vida.Quantos de nós podemos afirmar que tivemos algo semelhante?
Em alguns minutos de conversa, Lacy exibia uma incomum profundidade quanto a questões de vida e destino. No seu jeito de falar, sobressaiam-se pinceladas de remorsos e tristezas que convidavam Eric a enxergar a si com outros olhos. Lacy lhe transmitia a segurança de quem apreciava o momento, sinalizando para que prosseguisse em sua aventura de autodescoberta. Colby, que mais fizera questões nos testes anteriores, não conseguia retomar a liderança na condução da entrevista. Enquanto lhes assistia, compreendeu que, no que importava a Lacy, Eric não estava preocupado com "Wings of the Dove" ou com quem faria o papel de "Kate-não-sei-das-quantas". Também enxergou que a contrapartida era verdadeira. Agora, Lacy lhe falava sobre o tornozelo ruim, e como tivera de substituir um sonho, a dança, por um outro, a atuação.
- Eu me lembro de um excelente filme chamado "Bridges of Madison County". - Eric se recordou, a observação servindo ao assunto como uma luva à mão. - Clint Eastwood disse uma frase que guardei e da qual gosto de rememorar quando as coisas não andam conforme as tracei originalmente. Clint dizia "Os antigos sonhos foram bons sonhos. Não se realizaram, mas foi bom tê-los". - Uma dor muito serena dava ênfase `a frase, e a expressão de saudade teria passado desapercebida por alguém sem a sensibilidade necessária para identificar dores do tipo. Como Eric, Lacy também era uma daquelas raras pessoas que quanto mais sutis as emoções, mais fortes as contrastavam.
- A frase o reconforta quando pensa em alguém que se foi, eu imagino?
- Como sabe?
- Você acabou de me dizer. - Respondeu, referindo-se à verdade estampada no olhar maltratado. Ela limpou a garganta, fez um esforço óbvio para se recompor, e prosseguiu. - "A morte deixa no coração a dor que ninguém pode sarar; o amor, a memória que ninguém pode roubar". Essa frase é minha.
Não havia mais o que fazer. Eric encontrara o que havia procurado e o restante parecia inexpressivo. Hermione e Alexandra apareceram às 14:00 para a continuidade do processo seletivo. A secretária lhes disse que Eric fora para casa, porém que pedira que continuassem mesmo sem sua presença. As duas não suspeitaram de coisa alguma. Quando deixou Colby na vizinhança da 211 Bel Air, o rapaz aproveitou a privacidade e falou a Eric o que desejara transmitir com o olhar discreto.
- Não perca a objetividade, senhor Dudley. - Esperou não soar intromissivo ou prepotente. Com a pouca idade, sabia que conselhos vindos de sua boca podiam soar esdrúxulos para um homem de cinquenta e poucos anos. - Seria pertinente confrontar todo o histórico que Lacy forneceu, não acha?
- Gostei dela. - Eric desabafou, soltando a tensão dos ombros rígidos, os olhos presos às relaxantes luzes dos semáforos, vários deles, cadenciados ao longo da pista, o fulgor borrado. - Inteligente, assertiva, sensível, vê-se que tem bons modos. Algo em seus olhos...
- Isso. - Colby disse em um sopro, os olhos bem alertas. - Também reparei.
- Algo em seus olhos me agrada. Um certo mistério, um mundo de possibilidades apenas esperando para que eu o desbrave e possua.
- Algo em seus olhos me agrada. Um certo mistério, um mundo de possibilidades apenas esperando para que eu o desbrave e possua.
- Não. Não me compreendeu. - Colby destravou o cinto para a descida e inclinou-se para o motorista, falando em um tom mais sério e grave. - "Algo em seus olhos". Não vê que ela o atrai justamente por evocar o mesmo perigo que a mulher por quem foi apaixonado por todos estes anos?Não se prenda a coisas do passado, senhor Dudley. Eu não acho que... - O motorista do ônibus que esperava passagem sinalizava a saída para a esquerda e começava a impacientar-se. Colby teve de saltar do automóvel, mas pediu para que Eric aparecesse pela 211 Bel Air, quando terminariam a conversa.
Eric apareceu na 211 Bel Air, muito tarde da noite. Apresentou-se com uma expressão serena e fácil, seus modos muito leves como há muito não pareciam. Colby, muito pelo contrário, parecia um pouco tenso. Já do estacionamento, ao lançar o olhar para dentro e vê-lo mexer em algo na cafeteira industrial, Eric o notou meio contrariado. O publicitário abriu passagem para dois policiais que deixavam a Bel Air com copos de isopor em mãos. "Boa noite", disse ao passar pela dupla, e um dos oficiais ergueu o copo e lhe sorriu, retribuindo a atenção. Diferente das outras circunstâncias quando esteve na Bel Air, Colby o recebeu com olhos assustados que não se fixavam aos seus por muito tempo, furtivos como peixe em mãos ensaboadas.
- Apenas seja honesto comigo e me diga o que realmente pensa. - O viúvo facilitou, enquanto mexia o café com a palhetinha de plástico.
- Não me parece prudente, é tudo! - Disparou, deixando seu pano de prato de lado. - Não se esqueça do que custou para chegar até aqui.
- Você fala como se essa moça fosse um perigo, como se ela fosse me ferir.
- E você, como se ela jamais fosse te ferir! - Cruzou os braços na frente do peito e sacudiu desanimado a cabeça. - Ora, a sua amiga Kylie não queria magoá-lo propositalmente, correto?E veja o que aconteceu, homem!Ela quase te matou, com todo o apego que provocou!
- Mas Colby, não foi Kylie quem... - Tanto não guardava certeza do que dizia, soava trepidante. Colby imediatamente o interpelou.
- Ora, senhor Dudley, está falando comigo. Coloquemos as cartas na mesa. Kylie jogou com a sua cabeça do instante em que entrou no seu escritório de publicidade pela primeira vez. O senhor Hammond saberia explicar melhor. Ela jamais se afastou porque mesmo hoje precisa da validação. Agora, explique-me a lógica de se jogar de cabeça em um novo relacionamento, sem realizar ao menos uma consulta prévia sobre as referências que...
Uma jovem bem-vestida, provavelmente uma executiva de passagem por Toronto, a caminho do Pearson, que ali parara para jantar, intrometeu-se entre os dois pela mera presença, parando de pé bem ao lado. Colby deixou de falar para lhe lançar um olhar inquisitivo, a que a mulher explicou-se, pacientemente, afirmando que esperava para ser atendida. Deixou para que a mocinha, a garçonete da noite, cuidasse de fritar ovos e repor xícaras de café com leite, e concedeu a si um intervalo. "Lá para cima", indicou a Eric, referindo-se ao terraço de onde conseguiam admirar as pistas do aeroporto.
Naquela noite, só se via aviões nos terminais, conectados aos fingers. As pistas, enormes, passavam a impressão de desolamento quando desertas, banhadas por luzes brancas e douradas geradas pelas lâmpadas a vapor de sódio de alta pressão. Eric encontrou o rapaz no terraço, de costas para a escada, os punhos cerrados na cintura. Mesmo tendo dado pela chegada do viúvo, Colby não se virou. Eric parou ao lado do rapaz, e ambos permaneceram em silêncio por alguns minutos, o vento correndo por entre seus corpos, chicoteando seus cabelos para os lados. Por fim, Colby rompeu o silêncio:
- Quando as pessoas querem muito algo, seja o que for, acontece sempre da mesma maneira. - Os dois se entreolharam. - Perdemos a capacidade de enxergar o óbvio. Precisamos tanto que os fatos se amoldem às nossas expectativas, relevamos as bandeiras vermelhas que pipocam no caminho ao precipício. Essa moça daí traz mais bandeiras vermelhas que um campo minado.
- Você sabe de alguma coisa que eu não?
- Eu sei que ela conseguiu encantá-lo em um encontro apenas, senhor Dudley, e isso sempre fica perigoso. - O rapaz esfregou os dedos nos olhos cansados e continuou. - Pense bem. Lacy é bonita, inteligente, elegante e os seus modos são requintados. Uma mulher assim cairia tão fácil no nosso esquema?
- Ainda ficamos de nos conhecer. Não podemos tirar conclusões tão prematuramente!
- Muito bem, nisso, nós concordamos. Procure aproximar-se dessa nova situação da mesma forma que procede com os negócios, homem. Seja cauteloso, aja racional, não emocionalmente. Investigue a fundo as referências que ela te forneceu. Alguma coisa vai aparecer! - Eric parecia não querer acreditar, porém Colby foi incisivo e duro, fuzilando-o ao concluir. - Não pode ser tão fácil assim. Nada é tão fácil assim.
- Eu preciso ir. -Ele mentiu, obviamente sem sucesso. - Eu agradeço pelo seu suporte, garoto.
- Não quero desanimá-lo, amigo. Procure me entender. Pode não soar agradável, mas tem de escutar.
- Nós nos vemos depois. - Eric vestiu as luvas e lhe deu um tapa camarada no ombro. - Retorno para contar as novidades.
Eric abrira mão da prudência por causa da emoção, e Colby sabia disso. No dia seguinte, não se concentrou em tarefa alguma. No gabinete na La Fabrique, ficou mexendo na internet, procurando outros créditos artísticos onde aparecesse o nome de Lacy Morel. Consoante a página da internet movie database, o maior filme do qual participara fora mesmo o "The best so far"; entretanto, havia algumas participações em séries menores, das quais Dudley jamais ouvira falar. Averiguou os créditos das produtoras e nada digno de nota apareceu. Com os pés para cima da mesa, os dedos entrelaçados por trás da nuca, Eric assistiu ao tráfego modorrento correr as highways de Toronto para além da janela, raciocinando uma forma segura de levar a aventura adiante. Com a folha de Lacy em mãos, relia informações que já conhecia de cor, e vez ou outra seus dedos tocavam o teclado do telefone. Ele queria ligar, mas uma série de pequenas coisinhas o mantinha relutante quanto a ideia. Imaginava se pareceria apegado ao procurá-la, ou mesmo se a apanharia em boa hora. A cada possibilidade, muitas novas derivações apareciam, até que Eric resolveu afugentar as ilações, teclar os números e deixar que o acaso tomasse conta do restante.
- Olá, boa noite... Senhorita Morel? - Eric conquistou o nervosismo. Temia soar extremamente formal, porém ao menos tinha deixado a zona de conforto.
- Sim. - A voz sonolenta anunciou. - Sou eu falando.
- Oh, como vai?Aqui é Eric Dudley, da La Fabrique de Films... - Ele se identificou, e então a voz de Lacy pareceu se encher de vida.
- Ah...Olá!Aguardava a sua liga... Digo, a ligação do pessoal da La Fabrique!
- Espero não tê-la acordado. Pela voz, imagino que estivesse dormindo.
- Por favor, não! - Uma risada, seguida pelo barulho semelhante ao de livros depositados sobre um criado-mudo. - Eu esperei que me chamasse. Estava temerosa que... - Ela se calou e Eric sorriu. Sentia que Lacy estava tão ansiosa quanto o próprio, e agora tinha cometido o deslize de mostrar mais do que desejava.
- Eu estive pensando se poderia levá-la para tomar um café uma noite dessas. - Sugeriu, e esperou a resposta, girando o lápis nas mãos, os olhos na imensidão de downtown Toronto.
- Adoraria, adoraria. - Veio a resposta. Então, constrangedor silêncio, que nem chegou a somar um minuto, mas que, ao fim, levou ambos às risadas.
- Imagino que não seja muito bom nisso. - Eric confessou, a voz calorosa e sempre inspirando confiança.
- Você se saiu bem! - Mais risadas, e Lacy brincou. - Não se preocupe. Tampouco eu.
Eric a levou a um excelente e discreto restaurante de carnes e grelhados na esquina da Dundas St. com Greenwood Av. A fachada e interior obedeciam aos ditames da arquitetura dos charmosos cafés parisienses. Não era um espaço concorrido ou conhecido, sendo a sua exclusividade um dos motivos pelos quais o viúvo passara a frequentá-lo. Eric a convidou a se sentar no charmoso terraço aberto de onde se podia contemplar a estrutura do asfalto da Dundas St. em sua magnitude. A amenidade do clima fazia do jantar à luz de velas a escolha mais apropriada para um primeiro encontro. Escolhendo do cardápio forrado a couro, Lacy fez o pedido, e Eric, os cortes de sempre. Depois que o garçom se retirou, Lacy perguntou encantada por que ele a olhava de forma tão enlevada.
- Não há nada mais sedutor do que assistir a uma mulher bonita lendo pratos cujos nomes soam complicados. - Eric disse. Ela ruborizou, o que lhe deu a motivação perfeita para deslizar a mão sobre a mesa para tocá-la. - Aprecio a sua companhia. Fico feliz que tenha aceitado o convite.
- Temia que não me procurasse mais. - A urgência na voz de Lacy era honesta.
- Não precisa temer. Eu estou aqui contigo. - Encarou-a com o respeito que homem algum lhe reservara no passado. No sorriso de Lacy, surgiu o alívio de alguém que tivera o coração partido mais do que o suportável. Lacy e Eric eram mesmo parecidos, ambos almas sensíveis em um mundo que não poderia se importar menos, pessoas que haviam queimado a cota de desilusões e se cruzavam no que parecia ser a oportunidade de suas vidas. - Sobre o papel...
- Oh, não. - O franco sorriso minimizou a importância da questão. - Não se preocupe. Eu me sinto grata por desfrutar de sua companhia.
- Saberemos mais adiante. As meninas te chamarão para novos testes, com câmeras. Minissérie à parte, gostaria de conhecê-la melhor.
- Eu também. - Fez discretamente com a cabeça em afirmativo.
- Gosta de lugares como este? - Varreu o terraço com os olhos e então a encarou. - Espero que aprecie a noite.
- Sim, gosto. - Ela começou a se soltar, a parecer mais à vontade. - É um lugar muito agradável, quieto, excelente opção para se jantar e conversar. - Arqueou as sobrancelhas e revelou. - Trabalhei em Dundas Street, há muitos anos atrás. Em uma casa de show, que ficava mais para baixo.
- Deve ter sido difícil abdicar de algo que amava. Refiro-me a dança.
- Certamente. - Ela tossiu, o franzido da testa evidenciando a sombra do pesar. Lacy pareceu considerar algo em especial, antes de retomar. - Profissionalmente, a dança está acabada para mim, mas ainda hoje eu a pratico.
- Sério?Onde você estuda dança?
- Na Órbita, no terceiro andar. Se caminhar pela calçada às segundas e quartas, por volta das 21:00, conseguirá nos ver pelas janelas muito grandes, ensaiando coreografias.
- Prestigiarei a sua performance, uma noite qualquer. - Eric a provocou, e Lacy pareceu gostar da ideia, mostrando-se aberta e interessada na proposta. - Suponho que deva dançar estupendamente, mas creio que deva fazer trabalho ainda melhor como atriz.
- Por quê? - Perquiriu, formando uma covinha, no doce e encantador instante quando uma mulher se torna uma menininha intrigada.
- Há certa tristeza em seu olhar. Eu tinha um amigo que afirmava que mulheres muito felizes tendem a virar atrizes medíocres. Ele acreditava que são as mais tristes as que mais têm emoções interessantes para mostrar. A minha análise lhe parece acertada?
- Não sei. - Ponderou, para responder honestamente. - Não saberia dizer quanto a "tristeza". Eu diria que o meu olhar traz peso, sim, talvez gravidade, mas apenas em razão de tudo pelo que passei. Quando começamos aos dezoito anos o mundo nos parece nosso, temos os segredos em mãos. Alguns anos de estrada funcionam para nos deixar mais humildes. Acho que as minhas experiências de vida estão muito bem representadas pelo meu olhar. Se isto me tornou uma atriz melhor, eu não saberia dizer.
- E as minhas, pelo peso sobre meus ombros. - Indicou, para explicar no momento seguinte. - O mesmo amigo também dizia que a tensão de uma vida tende a se acumular sobre os ombros. Ele afirmava que pelo caminhar de uma pessoa, pode-se dizer muito sobre o momento de sua vida.
- O peso sobre os ombros. - Ela sinalizou com a ponta do indicador. - Vem se amontoando desde a morte de sua esposa?
- Não sei, imagino que sim. - Considerando a pergunta um pouco mais, encontrou a certeza para se corrigir. - Sim, certamente sim. Não só pelo câncer da Allie, mas por uma série de outras variáveis.
- Houve alguma mulher depois de Allie?
- Sim. Se quiser pensar em um contexto exclusivamente platônico, houve sim. - Eric se abria, enquanto examinava as mãos, talvez em dúvida entre acrescentar prematuramente muita bagagem sobre si, àquela altura, ou esperar. - Foi uma época muito sombria. A nossa história remonta ao passado, quando a Kylie apareceu na La Fabrique, muitos, muitos anos antes, na década de 90. Eu acompanhei toda a sua evolução, pois surgiu como uma mocinha inexperiente e se tornou uma mulher fora de série.
- Então, quando menciona o termo "platônico", foi um amor que jamais se concretizou?
- Bem, ela soube dos meus sentimentos. Na época, todavia, não deu certo. - Era como se Eric assistisse aos últimos anos passando como uma sucessão de imagens de trailer de cinema bem diante de seus olhos. Interessante, pois ali, acompanhado por Lacy, as imagens não surgiam envoltas pela amargura de antes, e sim somente por nostalgia, por serena tristeza, no sentido de não ter funcionado. - Ela é uma dama muito especial. Eu fico grato por ter se saído tão bem.
- Ainda... - Lacy sentiu-se presa a um dilema, mas Eric adiantou-se.
- Se eu ainda a amo? - Ele passou os dedos nos lábios secos antes de provar um gole do vinho, e encarou a pergunta com muita coragem e sinceridade. - Sim, porém não de uma maneira ordinária. Eu a amo incondicionalmente, sim, pelas lembranças bonitas que mesmo hoje me proporciona. Foi a parte "boa" do amor, que eu consegui separar dos sentimentos de apego, de posse, para trazer sempre comigo. A Kylie se casou com um homem responsável que cuida bem dela, e é tudo o que importa. Sim, eu a amo, mas me libertei para viver um grande amor, e não permitir que a lembrança da Kylie persista como a coisa mais importante da vida. - Eric esperou que Lacy o tivesse entendido bem, e ficou feliz que sim. Lacy o compreendera, e a admiração estampada no olhar era prova da assertiva. - Deixemos Kylie de lado. O que acha de nos concentrarmos no que podemos fazer daqui para frente?
- Eu acho melhor. - Disse, candidamente, apertando-lhe a mão com carinho, como se selassem um acordo. O garçom trazia os pedidos. No terraço, os dois estavam à vontade, separados de downtown Toronto, mesmo que praticamente aos pés da highway. O céu esticava-se magnificamente em uma perfeita noite.
- Espero que aprecie o jantar. - Eric desejou.
- Aprecio estar contigo. - Veio o inocente flerte. Os dois brindaram a recomeços, e Eric a ajudou a dispor o guardanapo no colo antes que começassem a comer.
Quando chegou o momento da despedida, Eric preferiu respeitá-la. Os dois trocaram um discreto e breve beijo antes que Lacy descesse do táxi mais adiante, quase ao fim da Dundas Street. Tinha sido uma noite de descobertas e aproximações. Sem dúvidas, ambos dançavam ao sabor do mesmo tema, os dois interessados, instigados pelo jogo do cortejo e sedução. Eric a viu ficando cada vez menor enquanto o táxi ganhava distância do calçadão, uma sombra em meio às luzes de semáforos, carros e comércios na insone Dundas Street. Quando ainda estava no táxi, recebeu uma ligação de Charly. O garoto perguntou se ele poderia trazer novas caixas de nuggets, pois o estoque havia acabado. Eric solicitou que o motorista parasse um quarteirão antes do condomínio fechado, onde existia uma mercearia muito acolhedora. Costumara comprar bobagens em noites insones antes de se aventurar pela 211 Bel Air Café.
Eric colocava as caixas de nuggets e uma latinha de café com leite no contador, quando deu pela aproximação de um cavalheiro bem-vestido. Cary St. Pierre estendeu a mão, e, embora inicialmente surpreso, Eric devolveu o cumprimento e esboçou um sorriso amistoso. A menina da caixa enfrentava problemas de leitura do código de barras do café com leite, e Eric pensou "ótimo, coisas assim sempre acontecem nos piores momentos". Ele jamais ressentira Cary. Respeitava o seu caráter, talento e dignidade. Depois que Kylie surgiu entre os dois, porém, sentia-se menos à vontade na sua presença. Eric acreditou que o encontro ficaria nas cordiais saudações; entretanto, depois que a menina finalmente conseguiu ler o código de barras para passar a mercadoria, Cary o convidou a tomar um café do outro lado da rua.
- Escute, deixe-me adiantar que não há problema algum! - Foi dando as razões da inesperada reunião, à mesa, enquanto aguardavam os expressos. - Não precisamos de problemas para conversar, certo? Quero dizer, éramos amigos, Eric.
- Olhe, até onde eu saiba, ainda somos, Cary. - Eric afastou as impressões bobas. - Você entende a minha situação com a Kylie, eu espero.
- Sim, e eu gostaria que soubesse que pode discutir comigo a respeito.
- Nós éramos da mesma turma, você se recorda bem: eu, a Kylie, você, Hammond, Hermione e todo o resto. - Com inesperado saudosismo, revisitou os encontros daqueles tempos. - Os filmes de arte, a mesa redonda, os drinques e pizzas...
- Foi uma época maravilhosa! - Sacudiu a cabeça concordante, tão encantado quanto Eric ao se recordar de dias mais simples.
- Não esperava vir a me apaixonar pela Kylie, e sejamos muito sinceros, sabe que eu me apaixonei por ela, certo?
- Eu imaginava que sim, mesmo antes de se abrir. Por essa razão, distanciei-me, pouco tempo antes de terem a conversa. Você se recorda, não?
- Como me esquecer? - Provou o expresso e ilustrou. - A estréia do "Not Easily Broken".
- Ela está muito dividida, porque sabe que as coisas nunca mais foram as mesmas. - Impaciente, Cary passou a mão sobre a boca e foi mais direto. - Olhe, ela me falou sobre a festa na Toronto Network. Kylie está arrasada. Ela não sabe como te abordar para conversar. Ela não suporta ficar em maus termos contigo, Eric. Eu a amo muito e odeio vê-la cabisbaixa. Gostaria que resolvessem a situação, ou melhor, que aceitasse o meu pedido de...
- Cary, você é um homem honrado e generoso. - Frisou, abrindo-lhe um sorriso gratuito de camaradagem e compreensão. - Muito embora eu tenha ficado, sim, bastante triste por Kylie e eu não termos terminado juntos, o fato de cuidar tão bem dela me diz tudo o que preciso saber. Eu a amo e nunca deixarei de amá-la, porém meu papel na vida dela cumpriu seu ciclo depois que a Kylie deixou o estágio e se tornou uma mulher absolutamente independente. Diga a ela que sempre a manterei no coração e lamento por nossa briga.
- Você é um verdadeiro cavalheiro, Eric. - Elogiou-o, firmemente. - Eu espero que encontre alguém para ocupar o espaço deixado por Allie. Ela era uma grande mulher, então imagino que será um pouquinho difícil, mas...
- Acho que conheci. - Disse baixinho, atento ao outro lado da rua, onde as luzes brancas dos postes tornavam o espaço uma sofisticada e luminosa extravagância.
- Conheceu? - Cary insistiu, surpreso. Eric voltou ao amigo e, com um discreto movimento de cabeça, confirmou.
- Creio que sim. - Então, deu com os ombros, e declarou sensatamente. - Espero que sim!
Charly assistia a um DVD com uma colega do colégio, uma garota muito bonita, cabelos curtinhos em franja, nariz arrebitado e o jeitinho de menina maluquinha com que Eric se recordava de Kylie quando a conhecera em meados dos anos 90. Ficou feliz por encontrar o filho movendo-se tão independentemente, cheio de projetos e sonhos, e agora começando a ensaiar aproximação com as meninas. Havia muito aprender, e Eric sorria ao constatar que mesmo fadado a ter seu coração partido eventualmente, a descoberta de um sentimento maior do que qualquer outro era realmente incomensurável. Eric exibiu as caixas de nuggets.
- A senhora Medina preparará para vocês. - Deixou-as sobre a bancada da cozinha. - Filho, não está muito tarde para a sua amiga...
- Oh, não. Moro logo na casa a uma quadra abaixo, senhor Dudley! - Ela explicou. - Aqui no condomínio.
- Ah, então está bem. - Eric olhou para o filho, e apontando para a visitante, orientou-o. - Ainda assim, Charly, eu não quero que a deixe voltar para casa desacompanhada. Acompanhe-a até a volta, combinado, filho?
- Não gostaria de ficar para comer conosco? - A jovem o convidou, mãos dadas, balançando os braços como a um pêndulo, uma menininha ansiosa.
- Não, querida, eu jantei há pouco. Vou subir para o gabinete. Tenho de tomar banho e passar a vista por alguns trabalhos. Sinta-se à vontade. Charly, juízo. - Antes de deixá-los para que assistissem ao filme, Eric e Charly trocaram olhares, enquanto a garota levava as caixas para a cozinha, e o pai fez o sinal de positivo, aprovando a escolha do filho, a que Charly balançou discreta e afirmativamente a cabeça, sorridente e orgulhoso!
Livrou-se do casaco, com um suspiro esgotado, e o deixou sobre o cabideiro. Desatou a gravata, desabotoou a camisa e socorreu-se das pedras de gelo no congelador do frigobar do gabinete para deixar o whisky no ponto. Uma vez sentado e completamente relaxado, soltou um novo, prolongado suspiro, desta vez de alívio, e deixou que o breu que tomava conta do escritório o engolisse junto às coisas. A ideia de a escuridão o tragar para o silêncio e a inconsciência, reforçada pelo frio, parecia atraente, tudo o que mais queria naquele instante. De olhos fechados, pensou em Allie, e construiu em pensamento, como arquiteto de castelos de areia, como seria se apenas retornasse para conversar, só por aquela noite, e...
Allie regressou da terra dos mortos como uma altiva princesa de conto de fadas. Bastou ao viúvo fechar os olhos e desejar de seu âmago. Quando os abriu, Eric a encontrou ali, ao lado das cortinas da janela de mansarda do escritório. Primeiramente, não conseguiu delinear traços bem definidos, mas a silhueta era definitivamente a de Allie. Quando a vista se acostumou à escuridão, e ele pôde enxergar o rosto, viu que se tratava mesmo da falecida esposa, o olhar um pouquinho lânguido, talvez em razão dos esforços demandados para encontrar o caminho de volta ao vale dos vivos. Ele sorriu convidativo, e a finada se aproximou, encantada com a naturalidade da recepção. Sem sustos, sem dramas, a mesma serenidade com que Dudley fora informado sobre sua morte, seis anos antes, ele voltava agora a exibir, quando de seu retorno. O reencontro desafiava os conceitos da Física, de modo que não havia alternativas, que não a de viver a experiência, às favas com a sanidade. O mundo que habitara há pouco - o das highways que levavam a downtown Toronto, o do livre acesso aos círculos mais exclusivos da sociedade, que vez ou outra o aproximavam ou distanciavam de Kylie Grattan, a própria Kylie sentada de pés descalços e pernas dobradas, no tapete, à beira da lareira, trabalhando a sua sedução no imaginário do desavisado Eric – ficara para bem depois da porta. Ali dentro do gabinete, imerso no breu, a vida parecia reencontrar as raízes de quando os cânones do mundo ainda eram escritos. Era um lugar mágico e sobrenatural, onde não existia a morte, ou melhor, vida e morte se confundiam, quase a mesma coisa, e grandes amores retornavam de lugares muito longínquos, talvez tão distantes quanto o que Eric reservara em seu coração para as más recordações, tudo por um último instante ao lado de seus amores. Uma conversinha, antes que Eric se apaixonasse por Lacy e seguisse em frente com a vida, antes que com o seu esquecimento deixasse-a aprisionada para sempre nos mistérios do descanso final.
- Foi uma boa noite? - Allie perguntou, escorando-se na escrivaninha e cruzando os braços, mal contendo a curiosidade.
- Tão boa quanto às que tivemos quando você estava viva, quer dizer? - Perguntou, com humor. - Eu acho que ela gosta de mim. - E então, cheio de si, revelou. - E no fim, nós nos beijamos.
- Fico feliz. - Ela riu facilmente. - Já era tempo de deixar que eu descansasse.
- Fez uma longa viagem? - Eric perguntou, sem saber exatamente por quê a fizera, qual a lógica da questão.
- Não chega a ser tão distante. - E então, abrindo mais os olhos e voltando-se para a janela, distraída por um galho mais revolto a arranhar a superfície do vidro, elaborou. - É impressionante, uma vez que se morre, e se chega lá, percebemos a porção de arquétipos equivocados que levamos conosco para o "outro lado". Mas é questão de perspectiva, não concorda? Não há um "Outro lado". Existimos apenas nós, e a aceitação de que a consciência não termina nunca, por mais que a vida no lado de cá seja apenas transitória, uma gota no mar.
- Como é estar morta, meu amor? - Eric odiava sentimentalismos, mas ali se flagrou fazendo perguntas cujas respostas o acabariam machucando.
- Não difere muito de viver. Este é o problema, afinal de contas. Quando estamos para morrer, funciona como se estivéssemos com os dedos na cortina, a ponto de puxá-la para finalmente revelar o Mágico de Oz. Depois que morremos, porém, descobrimos que não há nada... de especial. - Em um salto com as costas para a prancheta, ela se sentou bem diante de Eric. - Há os dias de tédio, os dias de aventura, os dias de... - Allie seguiria numerando, mas acreditou que explicitara muito bem seu ponto. - Morrer é apanhar as chaves do carro para ir comprar o leite na padaria. Nada mais extraordinário que isso. O fato é que nós mortos continuamos a pagar impostos, a esperar na fila para comprar ingressos, a ferrar com o regime no mês de dezembro por causa da ceia de Natal, a correr na esteira para tentar queimar desesperadamente o peso que ganhamos...Acontece que quem parte não consegue mais cruzar com os que ainda estão por aqui. Uma... Incompatibilidade de horários. - Allie o tocou, as pontas gélidas de seus dedos nas maçãs do rosto fizeram eriçar todos os cabelos da nuca do viúvo. - Quando estou em casa, você ainda não terminou a reunião no trabalho. Quando você está em casa, eu estou queimando calorias na esteira da academia da esquina. Ou descendo de um táxi. Ou tirando o dinheiro da carteira para pagar pelo meu expresso, no bar do mesmo restaurante onde jantou hoje com a Lacy.
- Então tudo é verdade? - Eric perguntou, as lágrimas correndo.
- Tudo era verdade, baby. - Como esposa conhecedora de todos os botões a apertar, Allie filou um cigarro Charm de um maço guardado na gaveta. Quando o acendeu, Eric pôde observar o seu rosto melhor. Ainda era linda, mas agora que morrera, a pele adquirira a polidez de porcelanato. Deu uma tragada, soltou a fumaça de forma a desenhar anéis que subiam e esbranquiçavam ainda mais o seu sorriso fácil, e sumarizou. - Tudo era verdade. Deus é um astronauta, Oz está sobre o arco-íris, e a morte não existe. O que há é apenas incompatibilidade de horários. Venha cá, venha, querido. - Chamou-o com o dedo, de uma forma sedutora. Ela se inclinou sobre o seu ombro e sussurrou em seu ouvido. - Em 2004, quando eu... "morri"...Lembra-se?Pois bem, eu estive na festa de abertura para o "Not Easily Broken". Sabe quando entregou a carta para a Kylie? O bar não estava vazio, não. Na última bancada, à esquerda, logo atrás das caixas registradoras muito antigas e poeirentas, estive com um suco de laranja em mãos assistindo a tudo e torcendo por vocês.
- Oh, Allie. - Eric foi deslizando para fora da cadeira reclinável, abraçando-se às pernas de Allie. Usava um vestido azul longo, que descia um pouco abaixo do joelho, e ao tocar as suas canelas, pareceu-lhe tocar azulejos gelados. - Charly sente a sua falta. Nós temos vivido a "vida louca" desde que partiu, meu amor.
- Partir? - Allie meneou negativamente com a cabeça. - Por onde você estiver, Eric, eu estarei descendo de um táxi ou passando pelas portas automáticas de um shopping. Quando for tomar café na 211 Bel Air, preste atenção aos rostos dos gatos pingados que surgem de madrugada, porque eu estarei lá estes dias.
Eric sentiu a cabeça pesar, e o que era fantasioso ficou ainda mais confuso quando momentos de épocas distintas se sobrepuseram, e a escuridão da sala se tornou o mostruário para toda a riqueza de emoções. Morte e vida pareciam a mesma coisa, porém também o eram passado, presente e futuro. Quando despertou, o gosto na sua boca era amarg. A cabeça latejava. Enxaguou a cara para apagar da memória o pesadelo horroroso, e quando levantou a tampa para urinar, encontrou a bituca de cigarro Charm com manchas de batom. Quando foi ao quarto de Charly, já passava de duas horas da madrugada, e o menino dormia. Eric tomou um banho quente, e ao perceber que não conseguiria dormir, rolando na cama e mudando de canais, resolveu se vestir e procurar pelas xícaras de café e os conselhos de Colby Rodriquez.
"E então, estava lá no jornal: casal coloca apartamento novo à venda para assistir à Copa do Mundo. Os dois adiaram o sonho da casa própria para custear viagem, estadia, bilhetes e alimentação para os jogos na África do Sul. O apartamento ele já perdeu, agora vai perder a mulher também para deixar de ser burro. No fim, ela vai dizer que o marido perdedor é o culpado por tamanha loucura, e ao perceber que não tem amor próprio, vai lhe dar um pé no traseiro". Colby conversava com os cotovelos no balcão, com um visitante que saboreava a torta de limão e escutava as histórias do rapaz entre deliciosas gargalhadas. Eric os cumprimentou e pediu a mesma coisa que o cavalheiro ao lado saboreava. Entre colheradas de torta de limão e xícaras de café, o trio se entreteve, Colby destilando os comentários realistas sobre relacionamentos. O homem estava de passagem, aguardando o horário do voo que o levaria de volta à Dinamarca, seu país de origem. Apreciara a estadia em Toronto, e na conversa Eric aprendeu que o turista visitara o mesmo restaurante onde levara Lacy. Duas horas antes da previsão de embarque, o dinamarquês lhes estendeu a mão, grato pela madrugada de boa conversa, e deixou pela porta de vai-e-vem, o vento gélido adentrando a 211 Bel Air após a porta ter sido delicadamente empurrada.
- Bem, agora que estamos a sós, vá contando o que se deu. Assim que o vi entrar, soube que havia algo errado. Acertei?
- Sim. - Eric fez um muxoxo de aborrecimento antes de introduzir a questão. - Um pesadelo muito real com a Allie. Entrou no meu gabinete e conversou comigo. Como se não tivesse morrido. No começo, foi maravilhoso vê-la, mas daí caiu a ficha e achei que finalmente tinha enlouquecido.
- Ainda não consegue vocalizar, não é? - Colby compreendia a dificuldade, mas precisava insistir realisticamente. - A vida precisa continuar, senhor Dudley, quer queira ou não. Não foi a senhora Allie quem o visitou esta noite no gabinete, foi uma parte de si que o recrimina desde que começou a se mover para a libertação.
- Libertar? Você se refere a …
- A qualquer uma das duas "mulheres de sua vida". - Colby pôs a colherinha sobre o pratinho onde servira a torta e levou as louças para a pia. Da cozinha, ofereceu seus 10 cents. - Pode ser autocensura, porque estendeu a mão à vida, mesmo que Allie esteja morta; remorso, por vir apagando os rastros da Kylie de sua história recente. Até Lacy surgir, parece-me que o distanciamento de Kylie virara sua zona de conforto. Você se apegava à ideia de que só por ter procurado se afastar, tinha vencido o apego magnético que os conectava. Acontece que Lacy significa a ruptura total e completa do passado recente. Amputaria a Kylie de seu imaginário, e isso é assustador demais para dar esse passo.
- Gostei da teoria. - Eric passou as mãos pelos bolsos do paletó. - Colby, acenda meu cigarro, por gentileza.
- Aqui está. - Riscou o fósforo e Eric deu uma relaxante tragada. - A Lacy... Eu acho fantástico que tenha se permitido amar novamente, senhor Dudley. Não podemos aceitar que nossos corações acabem empedernidos, mesmo diante da morte de pessoas queridas. Tudo o que pedi foi que procedesse com cautela. Pode ser que a Lacy represente exatamente o que transparece. Ou não. Apenas não quero que se machuque. Há mais coisas em jogo do que coração partido. Você perdeu a esposa, mas Charly perdeu a mãe, e não tem a cabeça preparada para lidar com essas transformações malucas que vêm ocorrendo ao longo dos últimos seis anos. É muito para uma criança internalizar, concorda?
- Charly... - Murmurou, e quando pensou no filho, se deu conta de que, ao contrário do que `as vezes considerava, era ele quem mais tinha a perder. - Eu não podia desejar um filho melhor. É tão maduro para a idade. Charly gosta de filmes. – Os olhos de Eric subitamente despertaram, como os de pessoas que descobrem maravilhosas histórias para compartilhar. - E decorou a parede com os cartazes dos filmes dos diretores que ama. Para um adolescente de dezesseis anos, ele consegue conciliar muita coisa. Estuda, escreve roteiros, sonha em rodar os próprios trabalhos. - Ambos sorriram. Colby estava enchendo uma nova xícara de chococino para o amigo. - A ingenuidade de crianças... - Concluiu, em um murmurinho desolado.
- Aqui está a bebida. - Empurrou vagarosamente o pires para não derramar o chocolate quente. - Sou só eu, ou todo esse neon dá nas vistas?
- Bem, não me incomoda, mas também não sou eu quem passo a semana inteira aqui. - Assoprou antes de provar. O vapor pareceu ganhar volição ao toque do sopro, desenhando um arco ascendente de curva quase perfeita.
- Tem cartazes de filmes sérios e tristes demais para uma criança apreciar!Charly tem dezesseis anos, mas o seu gosto gira em torno de filmes de David Cronenberg, Clive Barker... Imagino que os seus amigos de sala prefiram coisas mais ensolaradas a dramas densos como "Gêmeos Mórbida Semelhança" ou "Hellraiser".
- Coloque-se no lugar do garoto. Os dramas no decorrer de seu processo de conhecimento favoreceram essa espécie de melancolia. Ele só procurar encontrar na arte uma maneira de extravasar a somatização das experiências, e não há nada de errado nisso.
- Às vezes, sinto-me um pai fracassado. - Lançou-lhe um olhar aflito, respondido por Colby com um sorriso compreensivo, que meneou negativamente com a cabeça. - Ele é um garoto tão maravilhoso, apegado às artes, apegado a filmes... Meio que se viu obrigado a substituir a ausência emocional do pai por estrelas de cinema e filmes, e...
- Você não se ausentou. Não pode esperar suprir, ao menos não completamente, o vazio deixado pela mãe do menino. Foi uma tragédia que precisaram enfrentar.
- Charly tem uma sensibilidade tão surpreendente. Ele crescerá para se tornar um adulto a quem tirarão vantagens ou machucarão facilmente. - Levou a mão à testa e fechou os olhos, atormentado pelos fantasmas que eram as consequências de suas más escolhas. - Tinha 11 anos, foi alguns meses após a morte da mãe. Eu estava chegando da La Fabrique, a senhora Medina me contou que Charly tinha ido brincar no playground do condomínio. Eu o vi a uma certa distância e já reparei que estava sozinho, mas falando com alguém. Eu me aproximei para ver o que acontecia, fiquei atrás do escorregador. Charly conversava com um gatinho pequenino, que aparecera por ali. Literalmente conversando com o animalzinho "Você vem comigo, eu vou cuidar de você", daí ele se afastava alguns passos, e o gatinho o seguia, chorando. Ele parava, falava que ia ficar tudo bem, dava mais alguns passos, e o gatinho miando, atrás. O animalzinho estava com a pata toda machucada, imagino que tinha sido atropelado. Então, Charly pegou o bichinho no colo, deu o abraço mais doce que já vi. "Você nunca mais vai ficar sozinho", insistia, enquanto o acariciava. A cena me assaltou como uma forte bordoada na cara, porque tive como enxergar toda sua dor e carência. Encarei a minha impotência de suprir o que lhe faltava, o quanto Charly sentia a necessidade de mesmo não contando com o afeto da mãe cuidar dos outros, até um animalzinho, com carinho e atenção. - Eric começou a chorar, e Colby preferiu dar espaço para que o amigo desabafasse. Solidariamente, passou as mãos nas costas do publicitário, consolando-o baixinho "tudo bem, tudo bem". - O fato é que... - Sabotou o choro com uma risada nostálgica e revelou. - O gatinho... Descobrimos depois que era uma gata. Levei-a na mesma tarde ao veterinário, claro que tiveram de lhe amputar a patinha ferida, mas ela sobreviveu. Há seis anos, era uma filhotinha, hoje tá uma gata enorme. Só dorme com Charly, meio que o elegeu como seu mestre.
- Bonita história, amigo. - Colby saiu de detrás do balcão e ocupou um dos bancos altos, ao lado do amigo. Ficaram em silêncio por um par de minutos, Colby ruminando a tristeza da lembrança.
- Tantos anos que venho aqui, atormentando-o com meus dramas. - Limpou o canto da boca com o guardanapo de papel e, mais animado, emendou. - Não o escuto falando sobre os seus problemas, mas o amolo com os meus. Eu também estou aqui para escutar.
- Você quer saber qual a minha montanha a transpor, por assim dizer. - O rapaz melhor definiu, e Eric assentiu. - Quer saber qual a minha "Kylie Grattan". - Os dois riram ao mesmo tempo. Colby repensou a própria vida por um instante e respondeu. - Eu acho que um conjunto de coisas, senhor Dudley. Certamente os nossos dramas diferenciam-se. O seu, muito bem definido, a morte de Allie, e todas as implicações vindas posteriormente. O meu, uma adição de coisas, mas que também envolvem dores parecidas. A perda de pessoas amadas, o sentimento de se ver às margens dos sonhos enquanto a banda segue marchando. Apenas a forma como as peças se encaixam e o produto final diferem um pouco.
Colby o convidou ao terraço. Era uma madrugada especial para se admirar a noite. A visão panorâmica permitia que estudassem a infinita envergadura do horizonte esticado, e a aproximadamente oitenta quilômetros acima de Toronto, as nuvens notilucentes, eletrizadas por cristais de gelo minúsculos, que refletiam a luz solar, mesmo o sol ainda por nascer, abaixo da linha do horizonte, pincelando o céu, a tela de um Deus artista, de extravagância e romantismo.
- No meu caso, creio que foi crescer sem o meu pai biológico.
- O que quer dizer, "pai biológico"? - Colby se divertiu com a confusão do amigo.
- É uma longa história. - Deu com os ombros e respirou fundo, a sua alma provavelmente assaltada pelo desgaste que lembranças más traziam. - Meus pais eram separados e viviam distantes. Cresci afastado de meu pai, mas não quero dizer que não o via. Eu o via nas férias, e o meu pai biológico fez o possível para estar o mais presente possível. Por esse motivo, quando o senhor me fala sobre a culpa que sente no que se refere a Charly, compreendo-o muito perfeitamente. Quando o meu pai morreu, foi uma tragédia, pois jamais recuperamos o que se perdeu durante o meu crescimento. Quando o meu outro pai morreu... O meu padrasto... Foi como sobreviver à mesma dor, duas vezes. Entende agora, o uso dos termos "pai biológico", "o outro pai"?
- Que bonito, Colby. Eu lamento pelos seus dois pais.
- Não lamente, senhor Dudley. Poucos podem afirmar que tiveram tamanha sorte, porque se se pode dizer que sobrevivi a grandes perdas consecutivamente, também experimentei o amor, o mesmo número de vezes. Eu e o velho não tínhamos o mesmo sangue e vínhamos de mundos distantes, mas jamais encontrei uma pessoa tão semelhante a mim. A mesma visão de mundo, as mesmas histórias. De muitas formas, éramos a mesma pessoa. Ele era de fora, e apesar de eu não, cresci me sentindo assim, como um forasteiro, porque enquanto todos os outros garotos tinham os pais, eu não. Quando conheceu a minha mãe, fazia dois anos que perdera a esposa num acidente automobilístico. Tinha suas razões para se sentir uma carta fora do baralho, em relação ao restante da família, pois os filhos já estavam crescidos. Era um "outsider", não pertencia. Por isso, eu sentia que de muitas maneiras, éramos a mesma pessoa. Ambos sentíamos o que significava "não pertencer". À medida que os anos foram passando, e ele transformou a minha vida e nos tornamos amigos, chegou o dia em que percebi que "não pertencer" não importava mais. Tínhamos um ao outro, e pela primeira vez em minha vida, fosse o que fosse a que eu tivesse desejado pertencer, não precisava mais da aprovação daquela gente. Se hoje tenho alguma dignidade, o que é possível, e não necessito mais "pertencer", eu devo ao velho. - Uma lágrima rolou pelo rosto de Eric, que exprimiu sua admiração pelo garoto dando-lhe um cúmplice soco no peito. - A vida não foi fácil, porque depois de sua morte, cinco anos mais tarde, a minha mãe também faleceu, e ficamos apenas eu e vovó. Mas temos um ao outro, e não pararei de olhar para frente e esperar grandes coisas dos anos por vir. Senhor Hammond estava correto ao afirmar que o que nos define não é aquilo que fizeram conosco, mas sim o que nós fizemos com o que os outros fizeram conosco.
- Um brinde a não precisar "pertencer". - Mostrou o copo de isopor com o chococino. Colby estendeu o seu, e os dois brindaram. - Ao velho.
- Ao velho. - Colby fez coro. - Espero honrá-lo um dia. Espero fazer algo extraordinário por alguém, do mesmo jeito que fez por mim.
Conversaram tanto que não se aperceberam da chegada do novo dia. Quando se despediram, Colby pediu para que lhe contasse sobre o próximo encontro com Lacy. No trabalho, Eric passou o dia dividido entre ligar para Lacy e simplesmente aparecer na Órbita, onde ela treinava dança. Até a alguns minutos antes de vestir o casaco para frio, ao desfecho da tarde, e deixar a La Fabrique, não sabia como proceder, até que resolveu aparecer no estúdio onde Lacy dizia treinar. Da calçada, Eric procurou enxergar o salão do terceiro andar, o único do pequeno prédio iluminado e ladeado por esquadrias de alumínio por onde as grandes lâminas de vidro corriam. Sem conseguir ver muito, que não a réstia de luz que emanava do estúdio, Eric aproveitou quando um rapaz saiu pela porta da frente do outro prédio que ficava defronte Órbita para entrar. Dudley ganhou as escadas e em um minuto chegou à cobertura, cuja vista para o salão era fantástica. Chuviscava, mas Eric não poderia se importar menos. Encostado ao parapeito, não apenas teve como enxergar Lacy compondo entre as colegas os movimentos graciosos de uma valsa, chegou a escutar a melodia harmoniosa que ditava os passos. Vendo-a tão desenvolta, ficou parado, admirando-a, sem ação. Era como se a alguns metros, a última oportunidade de se redimir de uma vida medíocre que vinha se arrastando há seis anos suplicasse para ser aproveitada.
Lacy despediu-se de duas colegas de turma, todas sorridentes após as confidências de alguma história engraçada, quando Eric se aproximou. Ela não o notou, mas o viúvo a abordou brincando "Oh, olá, senhorita, acho que te conheço". "Não me amole", Lacy contemporizou, sem se deter de seus passos firmes. "Não, não, eu te conheço sim, não é você que saia com aquele bonitão, Eric-não-sei-das-quantas?". Lacy se deteve, como que percorrida por um forte choque. Voltou-se com um sorriso de grata surpresa, a que Eric arrematou: "Olá, querida".
Os dois se sentaram em um bistrô a duas quadras do Órbita, cuja arquitetura inspirava-se nas linhas parisienses. Em dias quentes, a seção ao ar livre ficava cheia de cadeiras, mesas e guarda-sóis, um estilo típico do velho continente. À noite, porém, parecia deserta, e quem se encontrava do lado de dentro bebericando a sua xícara só podia imaginar o frio que devia fazer nas calçadas. Lacy e Eric eram praticamente os únicos clientes, que não por um jovem que mais parecia concentrado em seu notebook, fazendo uso do hotspot do café, do que no prato de fritas. Assim que se sentaram, não demorou a Lacy encostar o bico da bota na canela de Eric. Ele não soube precisar se o fizera propositalmente, mas apreciou, e deixou que o jogo de sedução começasse.
- Sobre "Wings of the Dove". - Eric limpou a garganta, e pareceu encorajar-se a adentrar na questão, algo que visivelmente o entristecia em precisar falar. - Hermione me disse que os produtores têm em mente uma atriz mais conhecida para fechar o triângulo amoroso.
- Tudo bem. - Veio a resposta. Com muita simpatia, Lacy parecia mostrar que o papel era a questão menos importante. - Os nossos encontros se tornaram muito mais sobre nós dois do que sobre o papel.
- Eu lamento, Lacy. Agora, Hermione e o pessoal realmente gostariam de vê-la em um dos papéis secundários, isso se não julgar abaixo de...
- Estaria ótimo assim! - Contente, abriu um sorriso luminoso. - Só a experiência, o envolvimento em algo tão artisticamente relevante, significaria o mundo para mim.
- Ótimo, ótimo. - Eric se sentiu mais aliviado, agora que tinham vencido a parte mais delicada. - Você dança lindamente. Eu fico feliz por não ter parado, mesmo depois de ter ferido o tornozelo. Vendo-a, eu jamais imaginaria seu problema.
- Obrigada, querido, mas até as coreografias mais simples exigem muito esforço por causa da dor.
- E mesmo assim, continua a dançar. Um forte testamento sobre seu comprometimento para com o que ama.
- O termo perdeu o significado. "Amar" se tornou facilmente utilizável, uma cortesia descartável, o objeto do "amor" facilmente substituível pela novidade do momento. As pessoas que mais sofrem são aquelas que o tomaram ao pé da letra.
- Você acredita que amar traduz dor?
- Amar não traduz dor, mas te vincula à dor por mais que afirme o contrário. Se for honesto, concordará que as recordações que mais apertam o seu peito são justamente as das pessoas a quem amou. Pode ser a lembrança de alguém que amou e se foi...Ou a de alguém que ainda está aqui.
Tão certeira Lacy fora, as suas palavras dobraram a Eric como um forte golpe nos rins o faria. Quando fechou os olhos, enxergou o rosto de Kylie, e percebeu que assim como Grattan, Lacy era outra pessoa que o lia como poucos. A convidada obviamente enxergou que o acertara em cheio com as muito pertinentes observações, e em um segundo de arrependimento apanhou as suas mãos. Quando ela as apertou, Eric ergueu-as à altura da boca as beijou. Passeando de mãos dadas pelo walkside, os seus ombros estavam lado a lado, como um casal adolescente ligeiramente bêbado e feliz. Não custou a Eric cercá-la com um dos braços. Tão fascinados se sentiam, alguns casais que passavam por Eric e Lacy tinham que se voltar, impressionados com a sintonia que eles deixavam transparecer pelos mais insignificantes detalhes.
As calçadas encontravam-se quase vazias, mas downtown Toronto sempre parecia muito seguro. Caminhavam por um quarteirão composto de pequenas, estreitas ruas, e comércios de ambos os lados. As calçadas eram enormes, as vias não tanto, o que era fantástico, já que ali não fora mesmo projetado para tráfego de carros. Muito embora as lojas estivessem fechadas, as cortinas e cordões luminosos pisca-pisca avivavam o centro adormecido. Quando passeavam em frente a uma livraria, cuja vitrine parecia deslumbrante, luzes douradas caindo como cascatas sobre cartazes promocionais dos best-sellers de 2010, Eric a apanhou pelos braços e a levou para a frente do espelho.
- O que quer me mostrar?Quer me mostrar um livro?
- Você, quero lhe mostrar você. - Passou a mão sobre sua testa, livrando-a momentaneamente de algumas mechas, da mesma forma que um dia fizera a Kylie. - Olhe esse rostinho lindo seu, a forma como o seu sorriso ilumina a tudo. Faz ideia de quão linda é?
- Oh, bobagens. - Foi enrubescendo, mas Eric continuou a enaltecê-la.
- Você está de tirar o fôlego. - Ela pareceu aceitar os comentários. A presença daquele novo homem na sua vida a remetia a lembranças dos dias em que o mundo fora feito de possibilidades e o destino nao escapara das próprias mãos. Os dois se entreolharam, ela forçando um pouco o pescoço, para encará-lo. Em algum lugar, podia-se escutar a Janno Gibbs entoando a bonita e romântica Fallin, da série de TV "Full House". Quando estavam para se beijar, Eric disse. - Vamos, querida. Vamos apanhar um táxi. Gostaria de levá-la para casa.
Não há momento certo para se afirmar que a partir de agora duas pessoas entraram em um relacionamento. As coisas simplesmente acontecem. No caso de Lacy e Eric, todavia, foi no instante em que o táxi acostou na calçada de um luxuoso shopping do centro, onde Lacy desceria, que Eric soube que ambos haviam se envolvido romanticamente. Antes de descer, Lacy o agradeceu pela memorável noite e o beijou demoradamente na boca. Eles não se incomodaram com o taxista, e o camarada motorista pareceu não se importar. Devia ter visto cenas semelhantes anteriormente!Os dois concordaram em se reencontrar no decorrer da semana. Eric sentia que era apropriado frequentar a noite de Toronto ao lado da nova namorada. Lacy fazia por merecer o respeito de Dudley. Pegou Charly acordado, reescrevendo folhas de rascunho após folhas de rascunho sobre a prancheta de plástico, a gata dormindo ao lado de seu computador desktop, apenas a luz da luminária ligada.
- Eu achei que esse dia não fosse chegar, papai. Só espero que não se machuque.
- Não sou mais garoto, Charly. - Eric o tranquilizou. - Tenho a cabeça no lugar e sei o que quero de uma namorada. Lacy tem sido uma grata surpresa. Ela se porta bem, conversa bem... Parece um pouco ferida. Emocionalmente ferida, eu diria. Creio que eu possa ajudá-la.
- Todas elas têm uma história semelhante, não? - Ele simplificou.
- Todos nós, Charly. Às vezes, a vida nos bate tanto que paramos de acreditar. Mesmo quando alguém maravilhoso se insinua em nossas vidas. Não podemos deixar o passado definir nossas escolhas.
- Tampouco esquecê-lo completamente. Estaríamos condenados a cometer os mesmos erros. - Ele respondeu. Charly folheava o caderno onde anotava ideias para o roteiro. Não parecia prestar real atenção `as notas.
- Penso em passar o fim de semana fora com a Lacy. Levá-la a algum lugar especial, talvez a Niagara Falls. - Eric revelou o plano.
- Você realmente confia em Lacy? - Os olhos repentinamente deixaram o caderno para se focar no rosto contente do pai. - Não acha que pessoas emocionalmente machucadas possam ser perigosas?
- Charly, pensei que estivesse feliz por me ver namorando novamente! - Eric contestou.
- E eu fico, papai. - O menino se sentou na beira da cama, ao seu lado. - É que... Acho que fui crescendo com a esperança de que um dia, você e tia Kylie terminariam juntos.
- Ora, quando pequenininho, dizia ter medo de que a Kylie substituísse o lugar de sua mãe, e agora isso?
- Bem, antes eu tinha dez anos de idade! - Colocou as coisas sob perspectiva. O pai riu e lhe afagou os cabelos.
- Vai dar tudo certo, filho. Tenha fé em seu pai. - Eric apanhou o prato sujo que o filho deixara sobre a mesa. Antes de sair, Charly desabafou.
- Sinto falta de quando você e tia Kylie eram mais unidos. - Eric pôde jurar sentir nos ossos a tristeza vinda do filho. - De muitas maneiras, o que houve entre vocês dois equivaleu a uma separação, pai!
- Eu amo a Kylie, Charly, é algo que separação ou tempo jamais tirarão de mim. Eu apenas precisei me distanciar um pouco para que ela seguisse com sua vida ao lado do homem que escolheu.
- Ela sente a sua falta. - Falou, de maneira misteriosa.
- Como assim, Charly? - Eric devolveu o prato à escrivaninha e se aproximou da cabeceira.
- Trocamos e-mails e nos falamos online. - Charly contou, com os olhos bem abertos e intensos. - Ela sempre me pergunta de você.
- Oh, Charly. - O coração de Eric pareceu se estilhaçar. - E como ela está?
- Bem!Ela se preocupa comigo, como estou me saindo. Expliquei que sinto muita saudade de quando estava sempre aqui, vendo filmes, quando nós três saíamos juntos... Você não?
- Tenho muita, Charly. - Deu um suspiro cansado, o ar lhe deixando como a um exausto soldado. - Não sabe como a situação me divide.
- Ela te ama, pai. - Charly insistiu, como uma súplica. Era como se pedisse para abortar a relação com a Lacy para procurar Kylie novamente.
- Eu a amo também, meu filho. Agora, durma.
Mas Charly ainda tinha mais a dizer. Ele não era mais o menininho incapaz de vocalizar as frustrações, a confusão causada pela morte da mãe e o envolvimento do pai com a melhor amiga. Agora, Charly sabia verbalizar o conjunto de suas confusões, e o drama era que nem mesmo Eric sabia fazer sentido do delicado contexto em que ambos estavam inseridos.
- Como pode ser amor se nos causa tanta dor, pai? - Indagou, deixando a prancheta no criado-mudo, os olhos cheios de confusão. Naquele ínterim, a gata acordou sobre a escrivaninha para investigar o barulho. Ao ver que não era nada, o bichinho bocejou e se acomodou em uma nova posição.
- Amor não é aquilo que vê em filmes estrelados por Rachel McAdams ou lê em romances açucarados. Como tudo na vida, a realidade é mais complicada do que nos levam a crer. Amor é doação e desapego, Charly, e em grande parte jamais é recompensado... E nem deveria, pois uma das condições a que se vincula é a do desapego. O que vê nos filmes, ou mesmo no meio que o cerca, em sua maioria, não é amor. É apenas um momento. E depois que acaba, é cada um por si. Amor não é assim. Amor só pode ser identificado quando lançado ao tempo, pois somente ao longo dos anos nós definitivamente temos como separá-lo do momento.
- Então, se é tão doloroso assim, por que dizem que os poucos que amam são os verdadeiramente sortudos?
- Eu não sei, Charly. Eu gostaria de saber. - Beijou a cabeça do filho, apanhou o prato e o deixou. - Agora, deixe o roteiro de seu filme para depois, porque amanhã tem colégio.
Nos dias que vieram em seguida, Eric e Lacy frequentaram restaurantes e cinemas juntos. Parecia que Eric voltara a ser jovem, reconectando-se `as delícias do primeiro amor – os encontros ligeiramente constrangedores, as mãos dadas, o beijo gelado no rosto que a namorada lhe dava entre lambidas na casquinha comprada no quiosque do McDonalds, as mãos, umas sobre as outras, sobre a mesa, na praça de alimentação, os beijos prolongados no escuro do cinema. Neste resgate, Eric tinha a vantagem da experiência, e desenvoltura para tornar a redescoberta ainda mais especial e perfeita. Não demorou ao relacionamento cair no conhecimento de seu círculo social, e logo Hermione e Alexandra trataram de espalhar que Dudley namorava novamente e parecia muito feliz com a sua Lacy. Na semana seguinte, recebia cumprimentos de colegas, que chegavam para abordá-lo com cumprimentos nas linhas de "soubemos de sua nova namorada, parabéns, boa sorte". Dudley achava tudo muito divertido, e pela primeira vez em anos, não apenas em pensamento, como no coração, Kylie começava a se afastar. Quando pensava em quando entrara na La Fabrique, como estagiária, não era mais atropelado pela culpa. Sentia-se inexplicavelmente bem, e no paradoxo descobria que realmente a amara nos moldes de como hoje identificava o verdadeiro amor: Eric a colocara para a frente, preparara-a para a vida, e parte da mulher elegante e bem sucedida que se tornara era produto do encontro que haviam tido lá atrás. Eles não tinham terminado juntos, mas para quê prova maior de amor? Eric a deixara partir, e a única coisa verdadeiramente importante passara a ser a sua felicidade pessoal. Liberto do remorso e da culpa, Eric renascia para a vida com a força dos amanheceres que ao longo dos últimos anos acompanhara indiferente e psicologicamente congelado do terraço da 211 Bel Air.
Era uma noite de quinta-feira, e Eric e Lacy tinham jantado juntos no exclusivo bar do Hazelton Hotel, no requintado bairro de Yorkville, um dos mais nobres de Toronto. Lacy trajava um vestido vermelho, três dedos acima dos joelhos, costas e ombros em renda, e na frente um flerte com o "tomara que caia". Elegantemente vestido em seu terno branco, Eric escutara os conselhos de Colby, que falara sobre o seu querido pai, e que o velho lhe apresentara a sofisticação de se usar um lenço bem dobrado no bolso da camisa ou blazer, e sinalizava elegância com um preto, contraste ideal ao terno branco. Os dois deixavam o lugar de mãos dadas, quando cruzaram com Kylie e Cary cumprimentando o maitre, enquanto os garçons lhes preparavam a mesa. Sempre regido pela classe, por mais ardente que fosse o calor do momento, Cary imediatamente estendeu a mão a Eric, que a aceitou. Trocaram saudações muito curtas, e então Eric tocou Kylie no ombro e lhe disse que parecia ótima. Ela sorriu sem graça, e lançou um breve olhar para Lacy antes de voltar a encará-lo. Enquanto Cary se apresentava a Lacy, que lhe contava ser atriz, houve um diálogo muito singelo entre Kylie e Eric.
- Como está Charly? - Ela perguntou, emendando. - Nem mais parece o menininho que eu conseguia segurar no tapete.
- Está bem, escrevendo o roteiro para um filme! - Disse, a que Kylie sorriu, arqueando a sobrancelha. - Ele te ama muito, Kylie.
- E eu o amo também. - A resposta saiu pesada, arrastada pelo fardo da frustração. Lacy deu as mãos a Eric. A hora de partir chegara.
- Cuide-se bem, querida. - Beijou-a na face, mas o mais encantador foi quando passou com muita candura as mãos pelas maçãs de seu rosto e como nos velhos tempos livrou parte da testa da mecha de cabelo. - Estou orgulhoso de você.
Eric fez o convite a Lacy no caminho de casa. Reservara um quarto em um bed & breakfast dentro de Niagara on the lake para que o casal passasse o fim de semana em Niagara Falls. Os olhos de Lacy iluminaram. Ela adorou o convite. Ao mesmo tempo, após o pedido, foi tomada por evidente urgência. Dizia ter de resolver algumas pendências antes da sexta-feira. Beijaram-se e trocaram declarações. Na mesma quinta-feira, assim que Dudley voltou para casa, fez uma ligação para Hermione e explicou que não apareceria na La Fabrique na sexta-feira. No dia seguinte, pela manhã, Eric apanhou Lacy e os dois chegaram juntos a Union Station Rail, onde fizeram um frugal café da manhã, para logo embarcarem em um dos trens da VIA Rail. O trem partiu de Toronto rumo às cataratas de Niágara. Foram duas horas de viagem. Abraçados e consequentemente absolvidos do frio, Lacy e Eric desfrutaram as arrebatadoras paisagens naturais entre Toronto e o Lago Ontário, na fronteira com os Estados Unidos, que iam pipocando `a janela. Gradualmente, a linha de edifícios banhada pela Toronto Bay foi ficando cada vez menor, e o frio, maior. Lacy encolheu-se nos braços de Eric, que lhe beijava o pescoço e dizia que tudo ia ficar bem. O céu fechava-se em compacto plúmbeo à medida que o trem avançava às margens do lago a caminho das cataratas; entretanto, um arco-íris desafiava até as mais sombrias nuvens, desenhando com gigantescos lápis de cores quatro rajadas de vermelho, amarelo, azul e anil. Quando o trem aportou, a estação era um novo e pulsante mundo, o ar cheio de eletricidade e descoberta. Apanharam as malas e trataram de caminhar rumo ao bed & breakfast. Em dado momento, Lacy saltou sobre as costas de Dudley, que lhe sustentou ao passar os braços sob as suas coxas, enquanto ela lhe cavalgava.
As circunstâncias em que fizeram amor pela primeira vez foram casuais, mas o momento inesquecível. Ambos molhados de chuva, Lacy foi logo entrando com as malas, enquanto Eric ficou para pagar antecipadamente pela estadia na recepção, e pedir sugestões de passeios turísticos pelos dois dias em que permaneceriam em Niagara by the lake. Quando entrou no quarto, a atmosfera abafada e quente já induzira Lacy a livrar-se das roupas pesadas. Eric a achou na beirada da cama, puxando as botas e tirando as meias. Os seus olhos se encontraram, aparentemente casuais, mas logo maliciosos de mais puro desejo. Pouco precisou ser dito. Lacy tomou-o pelas mãos e o trouxe para si. Deu as costas para Eric e deixou a calça comprida cair aos tornozelos. Eric deslizou uma das mãos para dentro do sutiã preto meia-taça, sentindo os seios muito mornos, e por sob os mesmos, as batidas de seu apaixonado coração. Depois, tudo aconteceu muito rápido, quase instintivamente. O mundo pareceu uma conjunção confusa e deliciosa de sensações, quando Lacy e Eric saíram rolando abraçados sobre o colchão, alternando-se, ora por cima, ora por baixo, Eric embriagado pelo cheiro e o salgado sabor do suor de Lacy. Adormeceram exaustos, Eric nos braços de Lacy. Ao acordar, deu pela escuridão. Estava gelado em Niagara by the lake, e ele ficou ali deitado, voltado para cima, a perna e o braço direitos ligeiramente adormecidos por causa do peso de Lacy, que apagara sobre parte de seu corpo. Fumava um cigarro e deixava que os seus olhos se habituassem à escuridão sem pressa, como sempre fazia, quando o sexo com Allie era gostoso. Quando virou o rosto em direção à porta, encontrou-a com a cara parcialmente metida para dentro, contemplando o leito de amor. Allie lhe deu um sorriso de constatação, sem julgamentos, dizendo-lhe, com tristeza serena "Você fez bem, a vida tem que continuar". Depois, partiu para onde quer que estivesse, e Eric foi arrastado à inconsciência sem sonhos. Novamente, a escuridão.
As cataratas de Niágara ficavam a duas horas de Niagara-by-the-lake, mas o objetivo principal da viagem fora curtir a cidadezinha, notória pelas vinícolas e o festival de teatro anual. O pacote adquirido por Eric incluía visitas guiadas a algumas delas, as menores e mais rústicas, as de preferência de Dudley, preservadoras de um momento distante na linha do tempo, como inseto preso a âmbar. Na manhã seguinte, os dois despertaram bem dispostos e felizes, e namoraram um pouquinho antes de vestirem as suas roupas mais grossas para frio e tomarem café da manhã na cozinha do bed & breakfast. A senhora que tomava conta do lugar era uma figura, conversadora e muito simpática!Quando lhe entregaram a chave para apanhar o ônibus e conhecer as vinícolas, o casal saiu dando gargalhadas, quando Lacy falou sobre uma das fotos que vira em um porta-retratos sobre a chaminé da cozinha. Era uma foto de duas velhinhas e um cavalheiro, porém bem no cantinho, a senhora do bed & breakfast, quase como que "se intrometendo" por acidente!
Caminhar à tarde por Niagara-by-the-lake era toda uma nova, rejuvenescedora aventura. De mãos dadas a Lacy, parecia a Eric que os dois estavam protagonizando o seu próprio "Antes do Amanhecer". Existia um sentimento muito romântico, e por vezes desesperador, de efemeridade, em toda a coisa. Não fosse pela velhinha que viram caminhando calmamente com seu guarda-chuva, pelas ruazinhas regulares, entre as quadras uniformes, sê-lo-ia pelos hotéis e casinhas de tábuas, com ar de período colonial, réstias de fumaça de lenha deixando chaminés, mesclando-se ao ar sempre molhadinho e friorento, enquanto os cafés e as lojinhas de chocolate seduziam turistas a se refugiarem ali dentro. Ao fim da tarde, quando uma noite estupenda de brilhantes estrelas estava para apontar, Eric levou Lacy a um passeio de charretes. Foram parar às margens do entorno de uma pequenina, charmosa vinícola. O cocheiro entregou a Eric um balde com o melhor champanhe, e uma toalha, para que ele cobrisse o chão onde fariam um breve pequenique.
- Venha, você está com muito frio? - Eric indagou, trazendo-a para perto de si. Lacy se abraçou ao seu peito. Eric abriu o champanhe com a ajuda da namorada. Encheu duas taças, a bebida espumando nos cristais, cintilando como as estrelas acima. Eles brindaram ao encontro. Lacy lhe explicou que por sua causa a vida não poderia estar melhor, e lhe era grata por todos os momentos. Eric também deixou claro que vinha sendo fantástico redescobrir o amor nos seus braços, e que esperava que permitisse que seguisse tomando conta dela.
- Eu temo que uma vez que canse de mim, não dure. - Lacy comentou, tentando mascarar a súbita angústia.
- Você quer me contar alguma coisa? - Eric perguntou com o tom de cumplicidade convidativa que lhe era próprio, um dos motivos de Lacy ter se apegado tão rapidamente: Eric sabia como deixá-la à vontade, ser o que era.
- Eu tenho uma filhinha. - Veio a revelação, muito subitamente. - Eu devia ter contado no começo.
- Devia, sim, querida. Devia ter contado, mas não porque fosse me fazer mudar de ideia quanto a como me sinto em relação a ti, e sim porque devemos confiar um no outro a ponto de não permitirmos segredinhos, não concorda?
- Não queria que me visse como uma mãe solteira empenhada em desencalhar. A maioria dos homens pensaria assim, e eu particularmente não me orgulho do passado. - Sacudiu a cabeça em desalento, a atitude defensiva reflexo da amargura.
- Eu vivi mais do que você, imagino de onde venha sua dor. - Com carinho, apertou-lhe o queixo entre o polegar e o indicador, e pediu que prestasse atenção. - Há duas maneiras muito claras de trabalhar o passado, Lacy. Há pessoas que deixam que o passado as defina. Acomodam-se `a crença de serem tão más quanto o que se passou. E há as pessoas que são definidas pelas lições que aprenderam com os erros do passado. Não importa quão mal tenham escolhido, quão péssimas tenham sido tratadas. Pessoas assim tiram lições valiosas uma vez que se vai a parte má, e o mais importante, permitem-se mudar. Elas não se tomam como os piores seres do mundo, apenas vivem confortáveis com o fato de que não foram perfeitas, e portanto estão aqui em um constante processo de melhoramento. Do passado, levam consigo somente os ensinamentos. Eu não sei o que se deu no seu passado, porém acho que aprendeu com a experiência. E, para mim, você é este momento, e não algo que aconteceu há dez anos.
- Eu te amo, Eric. - Lacy anunciou. Se apenas alguém lhe tivesse reservado aquelas palavras quando tivera tempo para mudar o curso da vida. Dudley apertou o seu narizinho e dela conseguiu arrancar um sorriso. - Vamos voltar para o bread & breakfast e nos acabar de fazer amor?
- Ainda tem muito a aprender sobre a vida ao ar livre. - Respondeu, abarcando o seu fino pescoço com as enormes mãos, e a beijando apaixonadamente.
Quando voltaram ao bed & breakfast, disputaram o chuveiro, que seria de quem se despisse primeiro. Correram para o box, Lacy quase tropeçando nas botas no caminho. Foram parar os dois juntos sob o chuveiro, às gargalhadas, ela dando pulinhos, os pés machucando só de encostarem o assoalho gelado. Eric acionou a torneira errada, e foi como se pedras de gelo os apanhassem sem misericórdia. Lacy deu um gritinho, Eric a agarrou forte, morrendo de rir, e então corrigiu girando a chave correta. Sob a ducha quente, Eric novamente a amou, sem pressa ou constrangimentos. Seus corpos enlaçados eram como peças que se não encaixadas não tinham razão de existirem individualmente. Estavam em harmonia, pertenciam ao mesmo frame, à mesma folha. Depois que desligaram o chuveiro, tinham pouco tempo para sair do box, pois logo o quarto lhes pareceria a coisa mais gelada do mundo! Assim, atiraram-se para a cama, desnudos, ela agarrada às costas de Eric, e se enfiaram sob as cobertas. Lacy deslizou a mão para fora, só para desligar o interruptor e deixar que o breu os envolvesse tão eficientemente quanto os lençóis e o frio. Não importava, estavam sob as cobertas, e tinham os seus corpos mornos para se esquentarem. Lacy enlaçou as pernas às de Eric, e não demorou a aquecê-lo, usando seus pés descalços, esfregando-os aos de seu amor. Enquanto se sentia mergulhar com segurança em um mar de satisfação e prazeres desconhecidos, a voz de Kylie chegava aos ouvidos de algum lugar muito distante, trazendo de volta uma amarga recordação "Como alguém que escreve que 'gostaria de dormir nos seus braços todas as noites, e de esquentar os meus pés nos seus, nas noites frias', e coisas semelhantes simplesmente deixa de me procurar, de me ligar ou de me dar notícias?Você escreveu a mesma coisa para outras mulheres, ou foi somente comigo que exercitou pretensões literárias, apenas para dar gargalhadas depois de me deixar?".
Na última noite, Eric e Lacy pegaram o transporte local da WEGO para visitar as cataratas. O casal retornaria a Toronto na manhã seguinte, e sentia que a viagem não seria completa caso não visse as quedas d'água. Era um encantador fim de tarde, o sol deixando uma duma dourada no firmamento, ao partir, quando Eric e Lacy chegaram a Table Rock, o complexo de atrações que revolviam Niágara. Eles embarcaram na "journey behind the falls", os mirantes e passagens a serpentearem ao longo do complexo das cataratas. Permitiam-lhes a impressão de estarem passeando por entre as mesmas, de onde a força maciça das águas se fazia reverberar. Em dado momento, ambos molhados e de cabelos desgrenhados, de pé sobre um dos mirantes, enquato o restante do grupo seguia pelas passagens, Eric tomou as mãos de Lacy, e talvez por algum instante premonitório, a garota pôde antever o que viria. "Case-se comigo", Eric a arrebatou nos braços e insistiu "o passado tem a importância que lhe damos. Não podemos ficar presos, senão não construiremos o futuro. Case-se comigo, eu sei o que eu quero, e o que quero é você". "Sim, sim", ela respondeu, a voz abafada pelas quedas, embargada pela mais pura emoção. Por um momento, a vida de Lacy foi perfeita e tudo o que ocorrera ao longo de sua complicada história não tinha valor algum.
A crise de consciência veio na manhã seguinte, quando preparavam as malas para voltar a Toronto. Eric lhe deu espaço para que desabafasse, sua única condição para que ficassem juntos: a sinceridade. Não existiria mácula alguma no passado de Lacy que Eric não estivesse disposto a relevar, mas se ambos queriam dar o importante passo, precisavam ser honestos um ao outro. Entre soluços, Lacy pôs-se a elucidar os mistérios de sua insegurança. A primeira grande decepção tinha sido com o pai da filha, o relacionamento que parecera dar sinal para os maus tempos, quando experiências ruins, uma após a outra, foram se amontoando sobre seus ombros, desbotando um pouco da exuberância da juventude, quando se acha que se pode transformar o mundo e as pessoas. Eric compreendia o temor de Lacy ao entrar em um novo relacionamento, mas com muito tato foi contornando a reação, até deixá-la assegurada de que entre os dois aconteceria diferente. No fim, as experiências ruins os tinham aperfeiçoado, de modo a hoje se merecerem. Quando chegaram a Toronto, no término da tarde, Lacy parecia confortada e esperançosa. Como nos melhores filmes românticos, Dudley a pôs nos braços e a carregou escada acima. Preparou-lhe um café, e ficou ao seu lado na cama até adormecer.
Girava a chave na fechadura, as malas aos pés, quando conseguiu escutar as gargalhadas que vinham de dentro. Pontuou claramente as vozes de Charly e da amiguinha do condomínio, porém notou uma terceira presença. Ao ranger da porta, Charly e a garota foram recebê-lo, derrubando sem querer um balde de pipocas que fez a gatinha dar um salto e se refugiar detrás do sofá. Eric abraçou os dois, e quando se deu por Kylie assistindo a sua chegada do corredor, com o ombro escorado na parede e os braços cruzados, um sorriso tímido desenhado nos suaves lábios, o publicitário ficou momentaneamente envergonhado, como se a tivesse sido flagrado na traição. De uma incomum maneira, do mesmo jeito que ocorrera na noite do "Not Easily Broken", era como se tivesse sido pego em uma indiscrição. Certamente, Charly contara que o pai tinha ido passar um fim de semana com a nova namorada no lugar onde, numa tarde há seis anos, levara-a com o filho quando ele ainda era criança e os três haviam se divertido bastante.
- Fez uma boa viagem? - Kylie substituiu o "olá" pela indagação, e o abraçou com a familiaridade de uma esposa que aguardara ansiosamente o retorno do marido. - "Niágara Falls", Charly me contou. Com a nova namorada, certo?
- Só um pouco cansado. - O filho apanhou uma das malas do pai, e a senhora Medina não demorou a vir para receber o patrão e auxiliar com o restante. - Estou tão feliz por vê-lo!
- Não faz ideia do quanto também estou. - Semicerrou os olhos, como uma menina a preparar uma peraltice, e anunciou. - Agora, nós podemos jantar. O que acha de irmos comer uma pizza, todos nós?
- E o que acha de em vez de sairmos de casa, alugarmos um filme muito assustador e pedirmos as pizzas para comermos aos pés da lareira, vendo DVD?! - Estalou os dedos e apontou para o filho. - De terror!Topam ou não?!
- Você sempre com as melhores ideias. - Os braços de Kylie deslizaram ao redor do pescoço de Eric até prendê-lo, e ela não deu a entender que queria deixá-lo tão cedo.
Mesmo a senhora Medina interrompeu os serviços de cozinha e se juntou ao restante da família depois que Eric pediu três pizzas grandes e Charly trouxe o DVD de "A Órfã". "Certamente, mais empolgante do que aqueles filmes do Ingmar", Eric definiu, ao pé do ouvido da Kylie, que riu ao se recordar de "Gritos & Sussurros". Era aconchegante comer pizza e assistir ao filme na intimidade do chão, entre almofadas, o fogo reavivando cada vez que Eric o atiçava com a tenaz, exatamente como o fora em épocas mais simples. O filme foi ótimo, as pizzas deliciosas. Todos fartos, a senhora Medina levou as caixas vazias para a cozinha, para depositá-las mais tarde no lixo. Ela foi se deitar. Passaria a noite na casa dos Dudley, vez que era muito tarde para apanhar o ônibus. Charly e a namorada estavam em um canto da sala, conversando amenidades e falando sobre as surpresas do enredo, enquanto Kylie estava deitada com o braço apoiado em uma macia almofada branca com pintas pretas, e Eric alimentava a lareira com mais lascas.
- Deitada no tapete de sua casa, depois de assistir a um filme. - Descreveu, e constatou, nostalgicamente. - Jamais imaginei que voltaríamos a fazer um programa do tipo.
- Fico feliz que esteja aqui, querida. - Eric apertou sua mão, a que Kylie sorriu de um canto somente da boca. - Charly é louco por ti, sentia muita saudade.
- Mas você não. - Ela complementou, e logo se arrependeu. - Desculpe-me, não quero começar uma briga.
- Não, tudo bem. - Eric sentou-se sobre as pernas dobradas e deixou a tenaz encostada à lareira. Estendeu o braço de modo a alcançar a garrafa de vinho no balde. - Mais um pouco?
- Por favor. - Entregou a taça, com um ar de insatisfação, a sombra de contratempo bem visível. - Gostaria de conhecê-la. Lacy, não é?
- Uh-Hum. - Ele disse, e imediatamente se lembrou de quando Kylie respondera a uma pergunta de maneira semelhante, seis anos antes, quando haviam dançado ao sabor de "The Hallway" em sax, da trilha de "The Prince of Tides". Kylie deve ter se lembrando também, porque no mesmo segundo lhe dedicou um olhar familiar e divertido. - Poderíamos jantar juntos.
- Interessa-me que você se sinta melhor. - Uma pausa. Ela precisou respirar fundo para vocalizar o pedido que certamente vinha requentando. - De toda forma, gostaria de voltar a participar de sua vida e que Lacy me compreendesse.
- Ela entenderá. - Eric assegurou, o sorriso de quem prometia convictamente.
- Então, vocês dois estão namorando sério. - Ela disparou, e ao menos para Eric, soou mais como afirmativa do que pergunta. - Ótimo. - Ela murmurou, com os olhos hipnotizados no vermelho forte do vinho, que balançava ritmicamente dentro da taça. - Ótimo...
A semana começou cansativa, mas Eric era mesmo um homem renascido. Levando-se em conta que acabara de chegar de Niagara-by-the-lake e dormira poucas horas, compareceu a La Fabrique cheio de ideias e muito bem-humorado. Antes de chegar, passou no supermercado e comprou sacas de chocolate & avelã, apenas porque lhe dera na cabeça. Conversou com Lacy por duas vezes durante o dia. Ela ligou no horário de almoço, quando estava sentando em um banco de madeira da pracinha defronte a La Fabrique, apenas para observar os passarinhos trinando de alegria ao mergulhar na fonte; na segunda, foi Eric quem a procurou ao fim da tarde, para perguntar como fora o seu dia, e dizer que estava ansioso para um novo encontro, que combinaram de realizar dali a alguns dias, na sexta-feira. Eric guardou o carro na garagem, pagou a diária da senhora Medina e, enquanto ela terminava de preparar o jantar, avisou que atravessaria a rua para comprar o café com leite em lata, no mercadinho. Antes de ir, tomou um banho quente demorado e vestiu um moletom cinza e surrado. A passos tranquilos e fáceis, procurou se recordar de quando se sentira tão bem quanto na última semana.
"Eric Dudley?", a voz feminina e emocionalmente vaga anunciou seu nome. Jordan Harwood era uma mulher bonita que parecia ainda mais elegante sobre os seus 1.80 metros, a que bem servia o corte de cabelo retrô "Joãozinho". Os seus olhos pareciam peculiarmente marcantes, quase como se tivesse usado rímel nos cílios, sem o ter de fato. Ela tinha olhos expressivos e um formato de rosto bonito, maçãs largas, maxilar e têmporas em ângulos muito suaves. O seu queixo era pequeno. Era "pin-up girl" sedutora, escondida por trás da seriedade sugerida pelo blazer feminino preto e a blusa branca. O seu distintivo da Força Policial ficava bastante pronunciado, pendurado no pescoço como um amuleto de orgulho e poder.
- Não me reconhece? - Ela lhe estendeu a mão e o cumprimentou como a um amigo próximo. - "Jordan Harwood"?Nós nos cruzamos em circunstâncias menos felizes em 2004.
- Desculpe, eu... - Os olhos de Eric pareciam perdidos, evidentemente não tinha pistas.
- Compreendo que não se recorde bem, afinal foi uma época atribulada. Provavelmente agora tudo pareça muito nebuloso. - Jordan olhou por sobre os ombros de Eric, e deu pela pequena fila que se formara atrás do viúvo, para o caixa. - O senhor aceitaria tomar um café?Parece mais apropriado.
- Oh... - Eric deu com os ombros e não viu mal algum. - O que a senhorita diz de tomarmos esse café na minha casa?É logo ali na frente. Se não se importar com o meu filho adolescente e a minha secretária falastrona... - Brincou um pouco, aliviando a tensão do encontro.
- Seria ótimo. - O bom humor e a simpatia de Eric não lhe deram alternativas e Jordan teve de concordar, grata pelo convite.
A senhora Medina e o filho lhe dirigiram olhares de confusão quando Eric entrou pela cozinha com a moça. O viúvo os apresentou a Jordan, que disse se tratar de uma amiga do passado, e que tinham se encontrado por acaso no mercado. Eric a convidou a se sentar na sala de estar. Vez ou outra, senhora Medina passava pelo corredor entre cozinha e sala de estar e lançava olhares curiosos em direção ao casal. Antes que Jordan introduzisse as explicações, as expressões mais tensas no rosto de Eric já tinham começado a relaxar, à medida que começou a se lembrar.
- Oh, claro, começo a me recordar. Eu a encontrei no distrito policial, foi na época em que... Hammond... - Sim, Eric se lembrara. Jordan bebericou o café e o pousou momentaneamente sobre um jornal dobrado na mesinha de vidro.
- Sei que foi um capítulo especialmente horroroso de sua vida e que esteve como em transe, por todo o processo, dopado com remédios. - Ela se lembrava melhor, mais do que o próprio Eric. - Eu me recordo da confusão e de como a morte de seu amigo atingiu a todos.
- Sim. - Disse em um sopro. - Meu Deus, eu estive tão por fora de toda a situação. - Esfregou as pontas dos dedos nas têmporas. - Quando comecei a deixar o nevoeiro, o delinquente que havia assaltado o Hammond cometeu suicídio dentro da cadeia.
- Isso. - Mais um gole. - Eu tenho memória fotográfica. Recordei-me de seu rosto do instante em que o vi duvidoso entre uma marca de café e outra.
- Deus, penso em Hammond todos os dias, mas é a primeira vez que percebo que jamais entendi inteiramente as circunstâncias de sua morte. - Constatou, abismado em como deixara passar questionamentos tão fundamentais adormecidos. O que perdurara de Hammond em suas lembranças tinham sido os valorosos conselhos. Surpreendentemente, jamais se perguntara como o amigo os havia deixado.
- Bem, se um dia lhe convier, senhor Dudley, sabe onde me encontrar. - Jordan forneceu-lhe um cartão de visita, elegante e espesso, com gramatura maior do que a dos mais comuns. - Posso ajudá-lo a compreender a dinâmica do que se desenrolou em Dundas Street naquela madrugada.
- Obrigado, senhorita Harwood. - Agradeceu, passando a vista pelo cartão e o guardando na carteira. - Sem dúvida, sinto que é algo que deveria fazer antes de... - Deu conta de que estava começando a falar demais sobre a vida pessoal. Jordan lhe esboçou uma reação confusa, esperando que prosseguisse. Eric foi adiante. - 2004 foi um ano particularmente terrível e os seguintes apenas reciclaram pouco da mesma coisa. Estou para recomeçar a vida, casar... Creio que eu deva, sim, procurar saber sobre o Hammond, antes de seguir definitivamente em frente.
- Parabéns, faço votos de que seja feliz, senhor Dudley. - Ela o parabenizou e novamente fez parecer tudo muito natural, como se falasse a um amigo de longa data. Jordan era muito desenvolta socialmente, uma borboleta social. Ela sabia cativar.
Subitamente, a gata saltou sobre o braço do sofá e começou a exercitar as unhas. Jordan disse que gostava de gatos e trouxe o felino ao seu colo. Uma observação inocente levou à outra, e logo dialogavam sobre coisas rotineiras. Naquela noite, por mais agradável e comum que tivesse sido o encontro, quando Eric pôs a cabeça no travesseiro, deitou-se cheio de pensamentos conflituosos. Era como se em meio à aparência da tranquilidade, existisse algum problema que não conseguia distinguir melhor. Metido em divagações, acabou pegando no sono. Na manhã seguinte, Eric levantou muito cedo, e conseguiu pegar Colby no fim do horário da madrugada. O amigo lhe serviu uma torta de frango deliciosa e crocante que derretia na boca e o mais puro e forte café preto. Entre colheradas e goles, Dudley lhe contou sobre o encontro casual na noite anterior, atento às reações do amigo. Se nada manifestasse, saberia que se portava paranoicamente. Eric se surpreendeu com a intriga do olhar que Colby lançou em resposta à história que o viúvo acabara de contar. "Outro dia, foi o marido da Kylie. Agora, uma policial que participou das investigações da morte do senhor Hammond. Ou coincidência, ou essa turma toda descobriu algo de especial em uma mercearia absolutamente comum que calha de ficar a uma quadra da tua casa. Eu estaria preocupado, no seu lugar".
- Não consigo enxergar a ligação. - Respondeu Eric, perdido à análise.
- Eu tampouco, e por isso a "coincidência" me amedronta. - Colby disse.
À tarde, Hermione apareceu com a planilha extensiva do orçamento de todos os serviços que as filmagens de "Wings of the Dove" exigiriam. O elenco precisava começar a ensaiar na semana seguinte, e Hermione pediu para que Eric avisasse Lacy para procurar o diretor de casting. Depois de passar parte do dia vasculhando a "ligação" a que Colby fizera referência, nada tendo encontrado, a boa nova veio em oportuno momento. Eric deixaria para ligar quando estivesse em casa, pois assim poderia chamá-la para jantar fora, uma pequena comemoração por um bom papel na minissérie.
Quando a apanhou em seu apartamento, encontrou-a muito emocionada e inquieta. Lacy comportou-se, por um momento, como se o tivesse perdido. Eric considerou que a instabilidade fragilizada da namorada se devia à sucessão muito rápida de eventos recentes e as consequências que trariam para o futúro próximo. Quanto mais provava o seu forte sentimento por Lacy, mais a garota parecia temer deixá-lo escorrer entre os dedos. O jantar foi ótimo, uma noite agradabilíssima, música ao vivo, excelente serviço, o passeio pelas calçadas um deleite. Lacy repetia que temia perdê-lo e que gostaria que jamais duvidasse de seu amor. Quando contou sobre "Wings of the Dove", foi o único momento em que Lacy não pareceu interessada em algo que Eric dizia. Ela fez questão de afirmar que não pensava mais na minissérie e que faria melhor deixando a oportunidade para alguma outra atriz. Depois que tinham iniciado o jogo do cortejo, "Wings of the Dove" se tornara um pedacinho de seu passado, o motivo pelo qual aparecera na La Fabrique de Films. Agora, existia algo muito mais importante em jogo: seu amor por Eric.
- Lacy, eu não acho a sua escolha justa. - Eric opinou, envolvendo-a com o braço nas costas. - Hermione e Alexandra assistiram a "The best so far" e gostaram bastante de seu desempenho. Elas têm um bom papel em mente, nos moldes do que fez naquele filme. Eu não quero saturá-la, mas preferiria que também mantivesse a sua carreira artística e não se esquecesse dos seus sonhos. Basta querer. Há espaço e tempo para a carreira e para o nosso relacionamento.
- Preciso pensar. - Dividida, parecia querer ceder, mas a preocupação com detalhes que Eric desconhecia a mantinha cautelosa. - A exposição não servirá à nova proposta de vida que pretendo agarrar, Eric.
- É um papel pequeno, mas te permitirá brilhar bastante. Uma coisa levará à outra, Lacy. Aproveite enquanto há tempo. Você lembra do call sheet para "Wings of the Dove"?
- "Atrizes entre 25 a 35 anos". - Ela citou fidedignamente. Bufou de um modo que Eric achou graça: parecia uma menininha contrariada!Ela prosseguiu. - O tempo está passando e a cada ano aproximo-me mais do limite de seu call sheet. - Balançou a cabeça com os olhos cerrados, mal escondendo o desapontamento com as próprias realizações. - Tenho muito medo de chegar aos quarenta anos sem ter feito nada de minha vida! - Cobriu o rosto com as mãos, chorosa.
- Você está fazendo muito com a sua vida. - Eric respondeu, em um tom bastante assegurado, quase paternal, a voz da razão que mesmo em tão pouco tempo de relacionamento resgatava Lacy da beira do precipício que era o seu atormentado coração cheio de cicatrizes. - Sabe algo extraordinário que já fez?Você reconheceu que desperdiçou parte de sua juventude e sabe o que não quer da vida. Só isso é um passo extraordinário. Muitos persistem no ciclo que os mata. Buscam uma salvação, desesperadamente, mas do primeiro momento estão fadados ao fracasso, porque no fundo não estão dispostos a romper o ciclo, e a tragédia é que a cada vez que são arrastados de volta à sujeira, não conseguem aprender que foram os próprios os seus piores inimigos. Você me contou sobre a sua filhinha. Não é motivo suficiente para repensar toda a vida?Se você se sente tão péssima quanto a forma como se conduziu, precisa de razão melhor para amadurecer?Sua menininha precisa de uma mãe. Ela enxerga em você um exemplo. Crianças nos dão a chance suprema de nos redimir, Lacy. Precisa parar de se martirizar. Sabe o peso nos seus ombros, a dor no seu olhar?É castigo suficiente. Não deixe a amargura tomar conta do seu coração, apenas em razão do que se passou e não volta mais. Por piores que tenham sido, foram os seus erros o instrumento que a trouxe para mim. Eu tenho muita fé em você!Sou grato por todos os instantes ao seu lado!
- E eu tenho fé em nós dois. - Eles se detiveram na caminhada. Lacy afundou o rosto no peito de Eric. - Oh, Eric, como eu temo te perder!
- Não vai. Agora... Vai me contar o que está havendo?
- Você prometeu aceitar-me. Falou sobre como eu sou este momento. - Olhou-o em súplica e Dudley confirmou com a cabeça. - Nós teremos um futuro, mas para deixar o passado, preciso reencontrá-lo neste próximo fim de semana.
- Você não quer me falar a respeito?
- Promete esperar-me? - Perguntou, a expressão em seu rosto aflita pela aprovação. - Retornarei para ti e daí o nosso caminho será a via de um sentido somente.
- Prometo esperar. - Ele a reconfortou, e voltou a arrebatá-la com o abraço que não apenas a protegia de seus piores temores, como também a redimia de um misterioso passado.
Nas vezes em que voltaram a se encontrar no decorrer da semana, Eric sutilmente introduziu a questão sobre o próximo sábado, ocasionalmente perguntando a Lacy se precisava de ajuda, fosse o que fosse o significado de "reencontrar o passado". Ela jurava que não havia nada a temer e mudava de assunto. Foi uma semana arrastada e terrível para ambos. Ligava para Lacy antes de ir se deitar. Existia um senso de tragédia iminente sobre os seus ombros, mas procurava se desvencilhar de pressentimentos ruins, culpando o stress somatizado pelo amontoado de coisas que se propusera a resolver: Charly, a La Fabrique, a minissérie, os novos contratos de publicidade e a adaptação à reinserção de Kylie em seu dia-a-dia. A melhor amiga o rondava com ligações ou visitas à casa sob o pretexto de querer ver Charly. Na sexta-feira, no turno da manhã, Kylie ligou para a La Fabrique e o convidou a jantar fora. Recomendou que estendesse o convite a Lacy e perguntou se haveria problemas se trouxesse Cary junto. Eric brincou e disse que não, não morreria de ciúmes como da última vez, na festa da virada de 2004. Não teve como dizer se Kylie corou com a ousada brincadeira, pois não estavam cara a cara, mas houve uma pausa, e depois de alguns instantes uma risada relaxada. Também não pôde precisar se a ferira ou não com a brincadeira, se a risada fora ou não honesta. Eric fez parecer crível a desculpa de que Lacy viajaria na manhã seguinte e, compreensivelmente, precisava descansar. Pretendia passar a sexta-feira com a namorada. Kylie não se conformou e insistiu que não tomariam muito o seu tempo. Logo após o jantar, ela e Cary poderiam deixá-lo na casa da namorada, se assim o desejasse. Eric aprendera a antever as estratégias de Kylie para conseguir seus intentos, apenas não se fortalecera a ponto de dizer "não" tão facilmente à mulher que um dia amou e a quem talvez ainda amasse. Ele acabou concordando, porém pediu que se encontrassem mais cedo para o jantar, por volta das 18:00.
À mesa com Kylie e Cary, Eric sentia-se um ex-paciente psiquiátrico. O casal comportava-se como uma dupla de analistas intelectuais distantes, a examinar o bem-estar de seu problemático, pouco confiável doente preferido. Por mais que reafirmasse que se sentia muito melhor desde o envolvimento com Lacy, Eric jamais identificava um olhar cúmplice vindo dos dois. Era como se o julgassem por cada palavra emitida pela sua boca. Não demorou a Eric se sentir bastante desconfortável, a cabeça baixa, os olhos nos talheres. `A cada compartilhamento de instantes mais felizes ao lado de Lacy, seguia o comentário cético e demolidor de Kylie, que desmontava a sua autoconfiança, engenhosamente.
- Apenas não queremos que venha a se desapontar. - Kylie justificou, determinada a evocar de Eric alguma reação que entregasse resquícios de apego. - Atrizes mentem com facilidade e a sua cabeça ainda não parece certa.
- Não sei, Kylie. - "Não perca o equilíbrio, não se zangue", o viúvo repetia para si como mantra. Precisava vencer o combate que se daria em um campo exclusivamente psicológico, onde o apego era a mais letal das armadilhas e o autocontrole o único meio de sair vitorioso. - Eu acho que não saberei, se não tentar. Por enquanto, Lacy parece resgatar um velho Eric de quem eu sinto falta. Perdi algo quando a Allie morreu. - Era perceptível que a tranquilidade de Eric decepcionava Kylie. Ao apertar os botões, ela esperara reações previsíveis e emocionais, mas ele estava se saindo muito bem. - Lacy o substituiu por partes de mim que eu nem sabia existir.
- "Partes de mim que não sabia existir"?Vamos comprar clichê, agora? - Kylie girou os olhos com cinismo. Retomou, visivelmente exasperada, demandando. - Não quero que Charly se machuque.
- Eu também não, eu asseguro que ele está feliz por mim. - Eric respondeu. Kylie meneou negativamente com a cabeça, frustrada com sua inesperada segurança.
- Sei. Você também assegurou que ele estava feliz há seis anos, mas os pôsteres de filmes no quarto do garoto mostram quão "ensolarado" é o seu imaginário. - Kylie atacou. - Não vê que o seu filho sofre ou é mesmo tão ingênuo assim? - Eric ia responder, mas ela retomou, o tom um pouquinho mais elevado e agressivo. Olhando de soslaio para Cary, comentou. - Bem, a sua ingenuidade encantadora é um poço sem fundo. O seu "amor" incondicional por sua namorada atriz não exigiu muito que não um fim de semana em Niagara-by-the-lake, não?
- Kylie, amor... - Cary acariciava o braço da parceira. Ela tinha ido longe demais.
- Não, ele vai me ouvir! - Ela respondeu com estupidez. Perdera a calma e agora queria partir para o confronto, mas Eric a venceria pela contenção.
- Eu tenho que ir. Ficará tudo bem, Kylie. Você sabe de meus sentimentos por ti. - Limpou a boca com o guardanapo e começou a se levantar.
- Você vê, ele está fugindo. - Kylie desprezou, com um sorriso malévolo. - Bastante maduro, não diria?
- Eu só quero que fique sempre bem. - Ele insistiu, em um sopro de voz, com tocante devoção, e cumprimentou a Cary com um discreto meneio de cabeça.
- Quando escreveu para a Lacy, usou o mesmo modelo da carta que redigiu para mim? - Kylie perguntou entre os dentes trincados de um sorriso cheio de ódio. - Ao menos, aproveitou aquela parte sobre ela esquentar os pés nos seus?Meu trecho preferido.
- A carta que eu escrevi, eu a fiz somente para ti. - Ele explicou, encarando-a. - Quer queira, quer não, foi a expressão de meu fiel sentimento àquela altura do campeonato. Eu tenho que ir, Kylie, eu não quero brigar. Nós conversaremos depois.
- Vá atrás da Lacy, ainda dá tempo. - Alfinetou, exibindo o relógio de pulso enquanto se desvencilhava das mãos de Cary.
Eric impacientou-se quando as batidas na porta não foram prontamente atendidas. Começou a chamar por Lacy. Os seus dedos tocavam o teclado do celular quando a porta finalmente foi aberta e uma Lacy de olhos sonolentos e sorriso gratuito apontou na soleira. Dudley os correspondeu com outro sorriso, não tão delicado quanto o da namorada. Eles se abraçaram e Lacy pediu para que entrasse. Voltou a insistir em acompanhá-la no sábado, porém nem mesmo no cansaço venceria a batalha. Lacy pediu que ficasse até que dormisse. Eric desligou os interruptores e o apartamento foi banhado pelo sobrenatural anil, cortesia das placas luminosas de neon dos pequenos comércios do quarteirão onde a namorada vivia. Na televisão, um filme de horror mudo em preto-e-branco. "Fantasma da Ópera?", Eric acreditou identificar Lon Chaney, ao ver Christine arrancando a máscara do fantasma ao piano, revelando o monstro de aparência repugnante que contraditoriamente por ela nutria o belo amor como ninguém mais o faria. Depois que Lacy adormeceu, Eric a cobriu e escreveu uma pequena nota pedindo para que retornasse logo para Toronto para que casassem e fizessem do presente o melhor momento de todos.
O grande dia veio e Eric nem chegou a vê-lo: vez que só foi para casa de madrugada, depois de cuidar de Lacy, foi tragado por um sono pesado do qual conseguiu sair somente por volta de meio-dia, e isso só porque o filho veio despertá-lo. A tarde chegou e Eric começou a se preocupar. Passara-se tempo suficiente para que Lacy tivesse resolvido os seus assuntos particulares, ao menos poderia ter deixado uma mensagem de texto avisando que tudo terminara bem. Eric não queria ligar, pois temia atrapalhá-la; entretanto, quando a tarde se foi e finalmente tentou contatar a namorada, cujo celular encontrava-se fora de área, a aflição começou a assumir tonalidades de ainda contido desespero. Charly não se encontrava em casa e a senhora Medina tirara a folga do fim de semana. O seu gabinete gradualmente lhe pareceu menor e sem oxigênio. Chocado e sem apoio, Eric procurou raciocinar um curso de ação, enquanto pela janela os olhos corriam pelos muros com concertinas, procurando ater-se a qualquer coisa ou talvez nada. Ora batia a borracha do lápis contra os dentes, ora ilustrava rabiscos sem significando algum, apenas para consumir o grafite. A gatinha insinuou-se pela porta entreaberta, e Eric se levantou para apanhá-la nos braços. "Lacy, onde você está?", murmurou, algo semelhante a horror no tom aparentemente calculado.
Eric cruzou com o filho na saída. Charly chegava com uma sacola de filmes que havia alugado. Pela aparência soturna do pai, imaginou que Eric tivera o coração partido. O menino tentou conversar com Eric, mas ele pediu que ficasse de sobreaviso, pois dentro em pouco ligaria. As batidas na porta foram infrutíferas. Pelo pequeno espaço entre porta e piso, percebeu que as luzes tinham sido todas desligadas. Ligou para o celular da namorada e a chamada foi parar na caixa postal. Esperou por mais de uma hora, sentado no chão, as costas contra a porta. Até um pouco antes, parte de Eric lhe dissera para manter a calma e a compostura, pois não demoraria a tudo se explicar; todavia agora sentia muito medo e se via tão confuso quanto na época da morte de Allie.
- Não posso procurar pela Polícia, pois faz pouco tempo, mas estou convicto, algo ruim aconteceu a Lacy. - Eric dava passadas muito largas sobre o terraço da 211 Bel Air, desenhando meias-voltas, enquanto Colby assistia com minucioso olhar.
- Fez bem em não deixar o nervosismo enturvar a lógica. - Ele decretou, os dedos sobre os lábios, pensativamente. - Se algo tiver ocorrido à moça, o fato de se jogar contra a porta para pô-la abaixo já te colocaria dentro de um cenário incompreensível.
- O que eu devo fazer, Colby? - Esperava de braços abertos por uma resposta.
- Não há muito, a não ser aguardar. - Colby mordeu os lábios e passou a mão sobre a testa, exasperado. - Deus, que situação fodida...
- Não conseguirei voltar para casa... - Eric protestou, inconsolável, puxando o caixote para se sentar. - Se Lacy apenas tivesse me dito para onde ia... Mas não!
- Esqueça, não se atormente. Pode ficar aqui se quiser, cara. - Colby pousou uma das mãos sobre os ombros do amigo. - Vinte e quatro horas, precisamos esperar vinte e quatro horas. A Polícia somente fará alguma coisa depois das vinte e quatro horas.
- Oh, eu devia ter lembrado antes! - Estalou os dedos ao lhe ocorrer o encontro com Jordan Harwood, o que deflagrou todo um novo curso de ação. - Eu sei a quem procurar. Não custa tentar. - Eric concluiu, angustiado, já teclando os números enquanto com a outra mão segurava o cartão.
- Tá falando da policial que foi tomar café na tua casa? - Colby indagou, a que Eric confirmou, olhando-o de relance, ocupado com os números.
Eric se afastou um pouquinho de Colby para ter com a policial reservadamente, no parapeito do terraço superior. O vento soprava insistentemente, enchendo as suas roupas de ar gelado, girando o biruta do Pearson como se o mesmo fosse uma bússola desorientada. Do térreo, vinha longínqua uma modinha romântica do rádio de pilhas que Rodriquez costumava deixar avivado quando não havia clientes para azucriná-lo e não queria se sentir tão só. Enquanto deixava que Eric gozasse de privacidade para tratar com a policial, Colby teve de rememorar o que o viúvo dissera sobre Jordan Harwood, sobre o encontro casual no mercado do quarteirão. Alguma peça não pertencia ao quebra-cabeça, e como que dotado de sexto sentido, o rapaz presumia a imperfeição da encenação, que prometia ruir a qualquer instante e revelar algo muito mais sinistro, precariamente encerrado por trás de fantasias. Distraiu-se em suas deduções e reviravoltas até Eric chamar pelo seu nome do outro lado do terraço.
- Consegui contatá-la! - Anunciou, fechando o celular e o devolvendo ao bolso do paletó. - Prometeu acionar a força assim que o Sol raiar. Pediu-me que aguardasse até amanhã. Se Lacy não aparecer, Jordan e eu poremos a porta abaixo e a Polícia entrará no caso.
- Procure se acalmar, senhor Dudley. - Colby ensaiou um sorriso conformado, mas não parecia inteiramente satisfeito. Não era o melhor momento para colocar mais pressão sobre a cabeça do viúvo. - Gostaria de ajudá-lo também, mas realmente não sei...
- Você já faz muito ao deixar a demanda para conversar, garoto! - Deu-lhe um abraço e Colby sentiu-se péssimo pelo amigo, que seguia colhendo problemas em razão de sua natureza excessivamente confiável, a ingenuidade sobre a qual Hammond alertara seis anos antes.
Eric telefonou para casa e contou a Charly sobre Lacy. Pediu que o filho recebesse as ligações e anotasse os recados, pois passaria a noite fora. A polícia somente entraria no caso na manhã seguinte, contudo Eric explicou ao filho que se encontrava na delegacia prestando os primeiros depoimentos, a maneira que encontrara para justificar uma noite passada longe de casa. Eric sabia que não conseguiria dormir e francamente tudo o que precisava era atravessar a noite na quietude insone da 211 Bel Air. Às 06:00 de domingo, tentou o número de Lacy pela última vez. Fracasso. Colby testemunhou a decepção que tomou conta do rosto do amigo. Foi como se um fusível tivesse queimado dentro. Jordan prometeu que esperaria sua chegada no saguão do prédio de Lacy. Tendo concluído a jornada da madrugada na 211 Bel Air e entregado a cafeteria ao pessoal do turno da manhã, Colby se prontificou a acompanhá-lo. Quando Eric e Colby entraram com o carro na rua de Lacy, mesmo ainda dobrando a esquina, deram pela presença da Polícia, os giroflex em régua emanando os sinais luminosos intermitentes, as combinações estroboscópicas de azul e vermelho pincelando a fachada do pequeno prédio em cores que não duravam e seguiam se revezando.
- Temos o mandado de busca. - Jordan foi anunciando, assim que Eric se aproximou. Ela exibiu a folha, a que Dudley não poderia ter prestado menos atenção, e os dois trataram de entrar e subir as escadas até ao andar do apartamento de Lacy, Colby e os demais policiais em seu encalço.
Jordan indicou a porta do apartamento com o polegar e abriu espaço para que Dudley a pusesse abaixo a chutes. Eric não sabia o que procurar. Atônito, de pé no meio da sala, procurou particularizar algo fora do ordinário. Em um primeiro momento, tudo parecia igual a quando estivera com Lacy na sexta-feira antes de ela partir. Jordan se aproximou e murmurou baixinho em seu ouvido para que prestasse muita atenção e que não removesse coisa alguma do lugar. Eric se sentou na cama onde cuidara de Lacy até que dormisse. Nos lençóis, resquícios de seu perfume semelhante ao de canela. Ele os abraçou e fechou os olhos, deixando as lágrimas rolarem, discretamente. Jordan assistiu a tudo e baixou o rosto, pesarosa. Colby ajoelhou-se diante do amigo e pediu para que o encarasse, procurando consolá-lo. "Isolem o local", Jordan ordenou, apontando para a porta. "Quero tomar depoimento da staff da recepção. Vocês conhecem a rotina".
Eric venceu a inércia do choque e voltou a se atentar `a posição dos objetos do quarto. Ao examinar as gavetas e armários, encontrou apenas algumas poucas peças de roupa, a maioria carregada, assim como as duas valises também o haviam sido. Não havia sinal da carteira e da bolsa. Eric comentou o fato a Jordan, que nada disse e se limitou a examinar novamente gavetas e armários. O apartamento não estava bagunçado, não podiam ser pontuados sinais de comoção. Era como se Lacy tivesse precisado fazer uma viagem que lhe custaria muitos dias fora, daí a quantidade de roupas levadas. Jordan reconheceu cansaço nos olhos de Eric e pediu, ou melhor, exigiu, que fosse para casa dormir. Tomaria seu depoimento, conversariam a fundo sobre detalhes, anotaria apontamentos, mas por ora a sua confusão apenas os levaria a pistas falsas ou conclusões atrapalhadas. Charly estava na casa da namorada, quando Eric chegou. Ele pediu à senhora Medina que servisse o melhor café da manhã a Colby e depois o conduzisse ao aposento de hóspedes.
- Preciso dormir um pouco. - Explicou-se. - Faça uma boa refeição e depois descanse. Mais tarde, depois que eu acordar, se você quiser, eu posso levá-lo para downtown Toronto, para conversarmos com Jordan.
- Parece ótimo, descanse também. - Colby ficou feliz pelo amigo. Junto à senhora Medina, assistiu-lhe ganhar os degraus como se cada passo fosse um fardo.
- Você não se recorda de alguma informação, mesmo uma que julgue insignificante?Ela não mencionou o lugar? - Jordan encarava-o por cima dos óculos.
- Apenas se referiu a "resolver o passado", o que pode significar um ex-namorado enfurecido, uma inimizade, ou uma porção de outras coisas que nem sei por onde... - Calou-se, as mãos na cabeça, desolado.
- A sua relação com Lacy... - Gesticulou com a mão, sinalizando que desenvolvesse o tema à vontade.
- Sim. Ela apareceu na La Fabrique para concorrer à vaga de atriz em "Wings of the Dove", para um papel secundário. - E, iluminando o semblante, um bonito sorriso, retrato da instantânea e fugidia recordação de um beijo, de uma noite de amor talvez. - Nós nos demos bem e creio que a relação aconteceu naturalmente.
- Seleção para atriz, hum... - Jordan repetiu, como se mantivesse a informação fresca enquanto digitava no teclado. - Se o senhor pudesse me franquear acesso à ficha de Lacy, seria de muita valia...
- Quando a senhora achar conveniente. - Respondeu, a que Jordan devolveu com um cordato sorriso.
- Ainda hoje, eu creio. Não temos tempo a perder.
Eric esforçou-se para prosseguir com a vida. Ele ainda apareceu na La Fabrique na segunda-feira, mas o estado emocional precário o devolveu mais cedo para casa. Não apareceria pelo restante da semana. A vida se tornou uma intermitente espera por telefonemas. De Lacy, que jamais vinham. De Jordan, de quem esperava as respostas para as perguntas que se intrincavam ao sabor dos ponteiros. Dudley recebeu uma ligação de Jordan. Pelo que ela lhe explicou, antes de começarem a pensar em encontrar as respostas, tinham de conhecer as implicações de todas as perguntas.
O contato que fornecera para o Royal Conservatory da universidade de Toronto levava a mais um beco sem saída. Aparentemente, o tal de Pryce Stephens, diretor do departamento onde Lacy treinara por alguns anos antes de machucar o tornozelo, desaparecera no fim de semana anterior em circunstâncias muito semelhantes às do sumiço de Lacy. Jordan conversou com a irmã de Pryce, que esteve em seu apartamento e, de forma parecida ao que ocorreu a Lacy, apontou a falta das roupas e das valises. As pistas começavam a revelar a possibilidade de duas pessoas que vinham planejando há muito "recomeçar", "desaparecer", para começarem vidas novas em um outro lugar. Eric perguntou se podia se encontrar em um lugar menos formal com Jordan e recomendou a 211 Bel Air, para a noite. Quando estava à mesa com Jordan, na solitária cafeteria, Eric convidou Colby a se juntar à discussão.
- Senhor Dudley, compreende que Nova York fica quase ao lado, correto? - Ela começou, com muito esforço, receosa em expor uma hipótese que certamente o magoaria. - Diabo, há várias maneiras de se deixar Toronto para desaparecer em Nova York. O garoto, que praticamente trabalha no aeroporto, poderia lhe dizer melhor. - Mirou Colby para dar ênfase e citou os meios que lhe vieram à cabeça, desafiando-o a contestá-la. - A West Jet, a Air Transat, a Jet Blue... São muitas as companhias que fazem a ponte aérea em menos de meia hora, estou certa? - Colby balançou a cabeça em afirmativo. E ela nem chegara a metade das companhias.
- Mas ainda não consigo... - Eric bracejou, com um olhar incomodado.
- Sei também da linha férrea do Amtrak. Parte de Toronto e vai parar na Penn Station, por Deus! - Lembrou, com a voz um tanto quanto emocional. - A linha te joga diretamente na 34th Street com a 7th Avenue!Senhor Dudley, Toronto é uma cidade famosa pela transitoriedade das pessoas. O que estou tentando te dizer não parece suficientemente claro?
- Vejo onde quer chegar. - Colby fez um aparte e meneou dolorosamente com a cabeça para o amigo Eric, explicitando. - Acho que a senhora Harwood sugere que Lacy e o diretor tenham fugido juntos.
- Não. - A negativa deixou a boca de Eric com um esmagador peso de desapontamento.
- Quão bem conhece a sua namorada? - Jordan insistiu. - Se a garota contou uma história sobre o passado e a existência do tal Pryce Stephens foi mencionada, é uma possibilidade muito verossímil que os dois tivessem um caso. Não temos como diferenciar quais as partes do passado de Lacy que conferem com a verdade daquelas que foram geradas pelas suas fantasias. Temos de assumir todas as possibilidades!
- Qual o interesse dos dois em simplesmente fugir? - Indagou Colby.
- O mesmo interesse de um professor universitário, de um caso prévio, ainda bem no começo de minha carreira, em 2000. - Lacy provou o chococino, passando lentamente a língua no lábio superior, com o pensamento distante, enquanto contava. - Casado com uma bela francesa há mais de trinta anos. Foram passar as férias em uma praia, e enquanto a mulher apanhava sol, resolveu se aventurar no mar para não voltar mais. A mulher ficou louca. Cismou que o cara tinha se afogado. Quando um semestre depois o corpo de uma pessoa apareceu na praia da região, pensamos que finalmente teríamos a prova definitiva da morte. Era uma outra pessoa. O que quero dizer é: nada ficou comprovado, mas até hoje sinto que o sujeito simplesmente deu as costas para a vida anterior e tratou de sumir, de se reinventar com um outro nome, em um outro lugar. - Filou um cigarro do maço. Antes de acendê-lo, murmurou, de forma sombria. - Toronto é um lugar transitório.
A possibilidade de Lacy tê-lo deixado jamais o incomodou. Conhecia-a como poucos, mesmo os familiares mais próximos não a teriam enxergado pela vulnerabilidade que era a característica mais marcante de sua atribulada alma. Não, Lacy não o deixara. Eric temia que Jordan passasse a tratar o caso com o ceticismo de diferenças entre amantes brigados e deixasse de se aprofundar na investigação que, dirigida de maneira correta, poderia levar a terceiros que a aquela altura ele não conseguia enxergar. Eric fez menção ao staff da recepção, porém Jordan imediatamente o desencorajou, afirmando que não tinham sido de grande valia. A policial foi enfática, ao se despedir da dupla, naquela reunião informal na 211 Bel Air.
- Não tome para si um trabalho que não é seu. Ainda que o caso se revele mais complicado do que pareça, a intromissão de familiares angustiados somente atrapalharia. - Jordan fazia as últimas considerações no estacionamento, encostada ao carro. Estava frio e nublado. Logo perto, um caminhão de lixo da prefeitura apitava, enquanto os homens recolhiam os sacos pretos de plástico. - Eu não quero deixar a impressão de que o desaparecimento passará a ser tratado como desentendimento amoroso de casal, senhor Dudley, apenas insisto que pense bem em todas as possibilidades.
Colby e Eric esperaram que Jordan se distanciasse e retornaram ao bancos da 211 Bel Air. Dudley apoiou os braços sobre a mesa de fórmica suavemente bege e descansou a cabeça. Colby passou um pano na placa de aquecimento da cafeteira, encheu o pequeno reservatório, e logo, do tubo de gotejamento, passou a descer o melhor expresso que se poderia desejar. Entregou a xícara em um pires e não precisou que Eric pedisse para acompanhar a bebida com uma fatia da torta de limão.
- Farei as minhas próprias investigações. - Desabafou, comprometido. - Lacy não me deixou.
- Claro que não. - Colby o animou. Eric lhe dirigiu um olhar surpreendido. Então, o garoto seguia a mesma linha de raciocínio. - Algo ocorreu e eu não sei o quê, mas seja lá o que for, não se deu por vontade da própria Lacy.
Na manhã seguinte, Kylie procurou-o na La Fabrique e depois em casa. Conversou brevemente com a senhora Medina, que sabia pouco sobre o ocorrido, mas vinha testemunhando muito proximamente o impacto do sombrio mistério sobre o bem-estar emocional de Eric. Discretamente em um bistrô da calçada boêmia que passava em frente ao prédio de Lacy, Dudley examinava o fluxo circunstancial. Havia duas viaturas estacionadas em dois pontos distintos da quadra, como que preservando o lugar. Enquanto "lia" o jornal, estudava, na verdade, a quadra. Queria traçar um plano que o conduzisse desapercebido à janela do apartamento de Lacy. Kylie ligou para Eric. Apesar de o último encontro ter ficado manchado pelo conflito psicológico à mesa, Dudley ficou feliz ao escutar sua voz. Havia uma frase que saíra de sua própria cabeça e Eric a apreciava. Todas as vezes em que queria ficar triste ou com raiva de Kylie, ele reativava o comando em sua mente, apegando-se ao mesmo como um mantra "Jamais desaprendi a amá-la". Kylie queria conversar com o amigo, mas o telefone não parecia o meio adequado. Ele se comprometeu a aparecer no escritório da Avant!, às 19:00, no mais tardar.
Se apenas os policiais se distraíssem então Eric teria como subir as escadas externas de incêndio que escalavam a fachada do pequeno prédio como trepadeiras prateadas de aço. Eric calculou uma rua distante no máximo a duas quadras dali. Foi a um telefone público e anunciou que um assalto acontecia naquele momento. Em seguida, conforme imaginou, as rádios dos carros, os mais próximos da chamada, realocaram-nos para a "ocorrência". Recriminando-se pela conduta repreensível, ao menos, Eric aproveitou a oportunidade para dar seu máximo. Os pneus dos carros cantaram, borracha queimando asfalto, quando arrancaram `a toda velocidade. Dudley já se via na escada de incêndio exterior do prédio, no andar de Lacy, quando os carros mal haviam atravessado o cruzamento, que, uma vez vencido, levá-los-ia até a duas quadras ao norte, culminando na cena do crime imaginário.
Uma vez vencido o susto inicial dos primeiros dias, o exame minucioso do apartamento provou razoável a intriga de Eric. Ele não precisou de novas informações para reconhecer a cilada por trás da aparência ordinária de mais um caso de desaparecimento. O apartamento apenas "sugeria" a normalidade com que Lacy o deixara, na manhã em que partira. Havia os itens de cozinha, mesa e banho que se encontravam, sim, organizados, porém não da maneira deixada, ou melhor, da forma com que se recordava da posição dos objetos na última noite em que estivera ali. Sentado no chão, com as costas para a cama, procurando se concentrar, Eric fechou os olhos e repassou as observações que julgara pertinentes até o presente momento. Quando os abriu, viu a falecida esposa sentada no sofá da sala de estar, observando-o com um olhar analítico e preocupado. Eric sorriu.
- Definitivamente eu estou ficando louco.
- Eu lamento por tudo, querido. - Allie cruzou a sala de estar e se sentou ao lado do marido no chão.
- O que aconteceu por aqui, Allie?Parece-me um apartamento bem arrumado, as coisas nos seus devidos lugares... Por que não soa natural?
- Simples. Porque o apartamento foi revirado. Alguém fez uma varredura e então tentou arrumá-lo para lhe devolver a aparência de normalidade. - Ela lançou um olhar por sobre a cama e apontou para o banheiro. - Fizeram um péssimo trabalho com o banheiro. Não sabem que mulheres têm um jeito especial de arrumar perfumes e loções?
- Isso! - Eric se levantou em um salto.
- Tentavam encontrar alguma coisa, sem sucesso, eu suponho. - Allie opinou. - Depois, forjaram essa farsa das roupas. Sua namorada não deixou o lugar com as valises, querido. Ela partiu para um encontro muito provavelmente esperando retornar em questão de horas. Ao cair da noite, no mais tardar. Alguém a apanhou, e depois fez uma visita ao apartamento para dar sumiço na mala e nas roupas e criar a ilusão de que ela deixou o lugar voluntatiamente. Teve até mesmo o cuidado de não levar todas as peças.
- E o professor... O professor de música... - Eric dizia a si mesmo, os olhos semicerrados, a cabeça girando.
- O álibi perfeito para a historinha da mocinha fugitiva. O professor é apenas um paspalho que foi arrastado `a loucura.
- Por quê?! - As peças começavam a se pertencer, mas faltavam mais elementos. - Por quem?! - Ao se virar para Allie, não mais a encontrou ao lado.
Quando o viu entrando exasperado em casa, no fim da tarde, Charly cobriu o pai de perguntas. Antes que o filho terminasse de falar, ele lhe deu um abraço, o que o silenciou, e pediu que confiasse em seu julgamento. Tratou com a senhora Medina para que pelos próximos dias dormisse em casa para cuidar do filho e da administração do lar, já que dificilmente pararia. Não imaginava para onde as novidades o levariam. Eric tomou um demorado banho e suspirou aliviado ao verificar que ainda tinha no mínimo uma hora de descanso até o encontro acertado no escritório da Kylie. Deitado para cima, de braços abertos, os seus olhos percorreram o teto vasculhando cada entrância e imperfeição entre os caibros. Absorto em pensamentos muito díspares, não conseguia se ater a apenas um por mais que alguns segundos. Quando a vista começou a pesar, Eric foi enxaguar a face e se vestir. Colocou uma roupa limpa e o paletó e partiu para o encontro com Kylie Grattan.
Ao vencer o átrio do edifício onde Kylie erguera seu império de publicidade, apresentar-se à recepção e ter de esperar no salão para que sua subida fosse comunicada e autorizada, caiu a ficha quanto a envergadura do poder e das conquistas que fizera da estagiária "maluquinha" uma das executivas mais importantes do Canadá. Sentado em uma extremidade do sofá modular escuro que serpenteava através do hall, banhado pelo elegante lustre de cristal de onde efluía as cascatas de luzes que mais se assemelhavam a cachoeiras do champanhe mais caro, Eric se recordava, melancolicamente, das suas conversas com Kylie na época do estágio nos idos dos anos 90. A forma como o escutava com olhinhos bem assustados e interessados enquanto ele ia expondo seus pontos de vista sobre a vida e de como era importante aprender com os erros dos mais velhos para não pisar nas mesmas armadilhas, costumava lhe apertar o coração, pois naquela época temia que Kylie não desse conta da transição para a vida adulta. Hoje, a estagiária era uma mulher sofisticada e ocupada e os seus visitantes tinham que ser devidamente anunciados. "O mundo dá voltas", Eric murmurou consigo mesmo.
A jovem da recepção, uma bela senhorita em um elegante blazer verde, de pele muito alva e lábios vermelhos em semelhante generosidade, anunciou que o publicitário podia se pôr a caminho. Rumo à cobertura, no 25° andar, Eric observava Toronto pelos mais generosos ângulos graças aos privilégios do elevador panorâmico. Quanto as portas se abriram, dando para o largo corredor ladeado por caríssimos quadros, Eric conseguiu escutar o rumor vindo do salão de ginástica de Kylie, no braço oposto a aquele que levava ao escritório. Uma secretária o cumprimentou e o conduziu, mão em um dos ombros, em direção ao salão. Havia um ringue com cordas cujas cores eram as da bandeira norte-americana na seguinte ordem a começar pela superior: vermelho, branco e azul. De seu campo de visão, enquanto percorria o longo corredor, não enxergava a movimentação que ocorria no ringue, pois só podia ver seu centro, pela lateral. O que escutava muito bem eram grunhidos de dor e fragor molhado, em cheio, eco de patadas apanhando as partes de um adversário qualquer. Eric se deteve na entrada da academia particular e assistiu ao desenrolar do treino. Kylie chegara à faixa preta de karatê ainda durante a faculdade, quando levara os principais campeonatos. Ali, tantos anos mais tarde, ao escolher homens para o seu exercício, parecia endereçar inseguranças antigas, equilibrar equações injustas pela violência e seriedade que imprimia ao ritmo do confronto. No corner do ringue, havia um homem prostrado, os braços erguidos em posição de bloqueio, fracassando horrivelmente enquanto os jabs de Kylie sucediam-se em uma sequência que parecia não ter fim. Murros e combinações desferidas com os diferentes braços castigavam o rosto, rasgando o supercílio, cortando e estragando a carne; os chutes, o mesmo trabalho de destruição, só que invisivelmente, no tronco, roubando força e agilidade das pernas de sua vítima. No corner oposto, outro homem, visivelmente muito machucado, parecia ter se restabelecido para tentar alguma novidade, e ensaiava caminhar em direção ao canto onde Kylie se encontrava. Ela pareceu pressentir, pois então largou o adversário em quem investira todo o ataque. Em uma corrida através do ringue, apanhou o outro com o chute por cobertura que esmigalhou o seu nariz, quando o calcanhar desceu com toda a força sobre a face. Sangue espirrou, o adversário foi ao chão instantaneamente, sem reação alguma. O outro ensaiou alguns passos para a frente, procurando vencer o choque da situação, esboçar algo. Ele não pôde pretender muito. Mesmo de costas, quando Kylie se virou para acabar o que começara, ela o golpeou com um chute semicircular, de fora para dentro, a sua patada conectando à face com todo o impacto acumulado pela cinética do movimento. O homem foi lançado para trás, por sobre as cordas e para fora do ringue.
Eric se aproximou com alguma cautela, impressionado com a extensão das consequências. Ele segurou as cordas, e foi quando Kylie finalmente o notou. Ela sorriu à chegada, o rosto salpicado do sangue que não era o seu. Kylie ofereceu a mão e Eric a aceitou, passando por entre as cordas e se juntando à melhor amiga no centro do ringue. Não apenas o rosto, o corpo estava borrado de muito sangue, das luvas às ataduras quase brancas que cobriam os tornozelos e parte dos pés de Kylie. Ela abaixou o rosto e suspirou, evidenciando o desgaste envolvido na sessão. Deixou as luvas caírem, e quando levantou a cara, passou o peito da mão sobre boca e nariz para limpar o sangue. Ao fim, inspirou breve e profundamente, como se o aborrecimento não tivesse valido à pena, apenas um ligeiro contratempo.
- Eles vão ficar bem, querida? - Eric perguntou, abismado com a rapidez com que homens fortes haviam sido tão facilmente silenciados. Agora, eram massas ensanguentadas e imprestáveis aos seus pés.
- Estão muito machucados, mas acredito que sim. - Despiu um dos braços do quimono e seguiu se livrando da peça. E então, para amenizar a gravidade da situação, fez uma gracinha, e com uma careta travessa indagou. - E então, gostou do que viu?
- Sim, mas não quero que se machuque, Kylie. Não é melhor se trocar? - Eric travava o diálogo, que lhe soava absolutamente surreal, ambos conversando enquanto aos pés aquelas duas pessoas pareciam mortas.
- Você pode me esperar no escritório?Tomarei um banho para me vestir. - Os dois deixaram o ringue. Quando passou pela secretária, Kylie a orientou, indicando com o polegar. - Providencie para que os garotos recebam os cuidados necessários.
Eric admirava as fotos emolduradas nas paredes do escritório, em sua maioria do dia que deveria ser o o mais feliz da vida da executiva: o do casamento com Cary. Quando Kylie voltou, parecia refrescada e de tirar o fôlego, metida em um terno feminino preto, releitura do traje masculino que em uma mulher tão linda quanto ela simbolizava poder, classe e distinção. Ela usava lindas botas acamurçadas. Os seus cabelos pingavam um pouquinho, e ela trazia uma toalha para secá-los. Eric sorriu ao vê-la, porém foi apenas um meio-sorriso, e Kylie pôde discernir a sua preocupação no que se referia a Lacy.
- Conheço Jordan desde 2004, por causa da confusão com o Hammond em Dundas Street. - Kylie revelou e Eric achou a introdução perfeitamente razoável. - Nós temos conversado sobre o caso. Você já sabe do tal Pryce?
- O diretor do departamento, sim. - Comentou, desanimado, mas prestes a arrazoar a nova teoria. - Desapareceu. Jordan crê que no mesmo sábado em que Lacy partiu. Eles não simplesmente fugiram juntos, Kylie. Sinto nos meus ossos.
- Você está muito apegado a Lacy. - Propôs, estudando-o com benevolente preocupação. - É natural que a idealize ou não aceite nenhuma outra hipótese que possa manchar sua reputação.
- Retornei ao apartamento da Lacy. Consegui entrar fazendo uso daquelas escadas de incêndio armadas ao longo da fachada. O lugar parecia em ordem, sim, mas organizado por terceiros!Alguém entrou no lugar depois de Lacy partir e mexeu nas coisas. Não imagino o quê, ou a razão, mas acho que Lacy foi vítima da própria ingenuidade.
- Eric, eu lamento que Hammond não esteja mais aqui para aconselhá-lo. Você está se voluntariando excessivamente, o que me parece compreensível, pois sei que é um homem bom, mas pessoas assim acabam feridas. Por que investe tanto nessa menina?
- Lacy tem uma filhinha. - Eric se sentou pesadamente no sofá. Kylie se achegou e ficou no braço do móvel. - Não estou arrasado apenas pelo meu carinho pela Lacy. A criança também precisa da mãe. Penso em ir buscá-la. - Levantou o rosto. - Adotá-la, sabe? Não vou deixar uma criança sem sua mãe. Não posso.
- Oh, querido. - Acariciou as suas costas. - Eu dizia antes, em 2004, e continuo a dizer: você me enche de preocupações. Acompanhe-me ao heliporto. - Tomou-o pela mão, e com a outra, pegou uma pasta que repousava sobre a maciça mesa de mogno.
Eric foi levado por Kylie corredor afora e escada acima ao heliporto elevado. Quando abriram a passagem para a cobertura, a gélida ventania os agraciou como convidados de uma festa de gala. Os dois se dirigiram à área de segurança e Kylie identificou o helicóptero traçando uma curva descendente vários quarteirões ao sul, ainda um pontinho cintilante vermelho. Ela colocou a pasta no chão e a prendeu entre as pernas. A mecha chicoteava o seu rosto, e a cena, de uma forma muito peculiar, enterneceu o coração do viúvo. Depois que Eric inesperadamente a abraçou, até mesmo a suspendendo um pouquinho do chão ao fazê-lo, Kylie perguntou, com um sorriso surpreso, por que fizera aquilo.
- Saudades de abraçar a minha melhor amiga. - Explicou, com os olhos marejados. Emocionalmente, estava um caco.
Kylie não soube o que dizer. Queria demovê-lo da busca por Lacy. Ao longo dos últimos anos em que estivera casada com Cary, sentia que persistia como a exclusividade na vida de Eric até Lacy chegar e subverter a ordem dos papéis. Mesmo em sua ausência, Lacy chegava a influenciar mais energeticamente as decisões de Eric do que seria capaz com a sua presença. Não havia prova melhor da força da rival. O helicóptero completou o giro por sobre a torre e começou a descender sobre a área de toque do heliporto elevado. A ventania era extraordinária. Kylie agarrou-o pelo pulso e o guiou consigo para a área de Take-off.
- Venha comigo, querido! - Ao fazer o convite, o seu rostinho iluminou, mas talvez tenha sido apenas a forma como Eric gostaria de se recordar de Kylie quando se recordasse daquela conversa.
- Oh, Kylie, mas... Onde vai me deixar?! - Ele deu com os ombros e seguiu com uma gargalhada divertida. - O campinho de futebol de meu condomínio não comportaria um helicóptero, exatamente!
- Seu bobo, eu te deixarei no heliponto do Sheraton próximo ao condomínio!Eu já posso preparar um rádio-táxi para apanhá-lo no restaurante. - Ela explicou, mas Eric não se convenceu. Kylie não estava disposta a deixá-lo sozinho. - Por favor, venha comigo.
- Muito bem, sua "maluquinha". - Vacilou quando a porta de correr foi aberta e os dois convidados a entrar para a partida, mas se convenceu a enfrentar o passeio. - Porque, para mim, às vezes você deixa de ser a executiva sofisticada e me lembra a minha estagiária louca, e eu me lembro que não conseguia dizer "não" para ti, naquela época.
- Você não consegue dizer "não" a ninguém, em época alguma, tolo.
Kylie e Eric sentaram-se lado a lado, ele muito próximo à janela. Vestiram os cintos e a aeronave começou a ascender vertical e lentamente, a quadra da lift-off area gradualmente distanciada abaixo. A vista ao leste era encantadora, Toronto como uma placa de circuitos energizada de luzes e vidas que pulsavam, moviam-se, interagiam, saltavam aos olhos. Tamanha beleza acabou por requentar contagiante tristeza dentro de Dudley. Ele não queria evidenciar a dor, vez que Kylie se esforçava tanto para ajudá-lo a se sentir melhor, porém, como aprendera, a melhor amiga o lia, pura e simplesmente. Quando Kylie apertou sua mão, até então absorto com a panorâmica que se estendia em ângulos variados às janelas, Eric voltou-se com um sorriso de gratidão.
- Eu gostaria de convencê-lo a me devolver a abertura que eu tinha em sua vida, e que vem tentando fechar. - Eric quase meneou em negação, querendo se justificar, mas Kylie o impediu. - Não quero discutir, querido, nós apenas nos desgastaríamos. Mesmo certa dos danos que essa menina causou `a sua vida não justifiquem o meu suporte, eu prometo que te ajudarei.
Eric notou que Kylie vestia elegantes luvas escuras de palmas de couro, que acompanhavam muito bem o terno. As costuras eram incrivelmente detalhadas e o fecho com zíper era uma das "coisinhas" que deixavam a peça mais diferente e sensual. Quando Kylie segurou-lhe a mão, Eric pôde escutar a fricção do couro quando movido e apertado contra os nós dos dedos. Kylie ergueu a outra mão pelas costas de Eric e foi subindo até se deter na altura da nuca. Ela o trouxe para si, a cabeça ao ombro, e os dois se abraçaram. Era o típico instante de cumplicidade de que Eric sentia muita falta.
- Não faça justiça com as próprias mãos. Prometa-me que confiará no trabalho da Polícia e se afastará de uma situação mais imprevisível. - Kylie suplicou. - Eu não quero vê-lo ferido. Não acabará bem para você. Por favor.
- Eu prometo. - Eric disse, sem convicção alguma em suas palavras.
A última vez que Eric esteve na La Fabrique foi para entregar a chave do gabinete a Hermione. Pediu que a colega assumisse o comando do escritório. O trabalho não podia esperar até que superasse sua crise, e a bola agora precisava ir para as mãos de alguém mais jovem, enérgica e capacitada. Os colegas o surpreenderam com uma pequena surpresa, com salgadinhos e refrigerante, uma maneira gentil e generosa de dizer "até logo" e transmitir os votos de que logo os maus tempos fossem substituídos por melhores. Charly havia começado a rodar o filme nos muitos espaços da casa e das cercanias. Por algumas manhãs, o pai ficava sentado à janela, bebericando café, admirando o talento do adolescente para dirigir os amiguinhos, sua percepção de posicionamento de câmeras e toda a parte técnica. O projeto era a distração perfeita para que o menino não reparasse no pai em frangalhos. Charly e a mocinha do condomínio seguiam namorando firme, e a Eric sempre pareceria encantador o quão fantástico era enxergar o mundo sob uma ótica tão mais ingênua e bondoso que a dos adultos, mesmo que apenas por uma breve estação, ou por um intervalo entre as mesmas, verão a outono quiçá, quando as árvores ficavam amareladas e liberavam as folhas, antes de virarmos adultos, quando sabemos tão pouco sobre o mundo que nos cerca.
Em uma das noites em que esteve na 211 Bel Air, Eric foi perguntado por Colby se guardara as fotos de Lacy. Na madrugada seguinte, Eric surgiu com a máquina digital com a qual registrara momentos de dias mais felizes em Niagara-by-the-lake. O rapaz apoiou os cotovelos no balcão e ficou a observar os arquivos, examinando-os com muita atenção, sem nada acrescentar. Quando se despediram, Colby pediu para que mandasse no mínimo duas daquelas fotos por e-mail, pois queria fazer uma busca online. À medida que o desaparecimento de Lacy foi se tornando cada vez mais distante e informações novas mais cadenciadas e insignificantes, Eric transigiu o acordado com Kylie e retomou as investigações pelos próprios precários meios. Ele voltou ao prédio de Lacy e se reuniu com as duas pessoas que estiveram na recepção no sábado em que ela partiu. Em um primeiro momento, o casal se mostrou temeroso, porém eventualmente concordou em narrar o acontecido. Lacy deixara o lugar aparentando alguma tensão, porém jamais fizera crer que partia para sempre. As malas, a garota contou, foram levadas depois, na noite do mesmo sábado, quando dois homens subiram ao apartamento e ressurgiram uma hora mais tarde com as valises. A tensão palpável em seus lívidos rostos, Eric poupou-os de novas perguntas e por si começou a ligar os pontos.
Enquanto escutava a Colby falar sobre o que achava da natureza das pessoas que haviam aparecido no mesmo sábado para carregar as valises com as roupas de Lacy, Eric mordiscava um fósforo, no canto da boca, e com olhos perdidos na placa de neon com a xícara e a fumacinha a deixar pelas bordas, construía a própria tese, para apenas posteriormente verificar se a estrutura resistia. Quando Eric comentou casualmente que pensara em procurar Jordan Harwood para falar sobre os estranhos que haviam estado no apartamento, Colby nem esperou que concluísse, mesmo sabendo que Dudley não cometeria tamanha estupidez.
- Não me diga uma coisa dessas! - Exclamou. - Provavelmente, os homens são policiais, senhor Dudley.
- Jordan está metida no desaparecimento, é isso? - Não parecia inteiramente improvável e Colby tendia `a mesma conjectura.
- É possível, embora eu não enxergue o contexto. Se for o caso, você tem entregado a Jordan todos os seus movimentos. Ela sempre estará um passo a frente. Ademais... - Colby apontou para lugar algum, apenas para explicitar a súbita constatação, complementando. - Vocês dois "se encontraram por acaso" no mercado da quadra poucos dias antes de Lacy sumir. A hipótese é assustadora. Jordan estava "rondando" tua vida antes de dar o golpe. Afaste-se dessa mulher!
- Preciso saber... Preciso saber o que aconteceu a Lacy! - Protestou, o rosto uma máscara de confusão e angústia.
- Qual a ligação dessa Jordan com teu passado?
- Ela cuidou do inquérito do assassinato do Hammond em 2004. A questão não gira em torno de minha "história" com Jordan, mas da história de Jordan com Lacy, se houver. Elas se conheciam?
No rosto de Colby, como resposta `a hipótese levantada, uma expressão vazia e ilegível. Eric coçou a barba por fazer e tomou alguns segundos para concatenar melhor o que tinha a dizer ao rapaz.
- A filhinha dela, eu temo pela garotinha. Vive com uma colega da Lacy, a quem dava dinheiro todos os meses para as necessidades da criança. Eu estive pensando...
- Faça isso. - Colby adiantou-se e Eric gostou da maneira como o amigo o interpretou antes que precisasse falar. - Você tem um grande coração, senhor Dudley. Tanto é verdade, posso prevê-lo com facilidade. O tipo de cara para quem torcemos nos filmes, sabe?Acontece que na vida real, finais felizes são para poucos, pois uma vez que seu código moral é também o maior inimigo, também te engessa e te torna mais suscetível aos outros inimigos. Mesmo assim, penso que deva procurar a menininha, sim, e cuidar de sua segurança, ao menos até que a confusão passe. Priorize aqueles que lhe são caros, amigo, não deixe que te acertem tão fácil.
- Primeiro, procurarei compreender em que terreno estou pisando. Se os eventos se encaminharem para revelações mais sombrias, pedirei para que a irmã de Allie fique com Charly e a criança. Não sei, Colby. Acho que estou correndo riscos.
- Acha?Pois eu estou certo disso.
Uma vez que a possibilidade de Jordan vir jogando com a sua cabeça pareceu muito verossímil, Eric concluiu que precisava visitar o apartamento de Lacy por uma última vez antes que a policial desconfiasse que o viúvo enxergava agora as peças sobre o tabuleiro. Ele não precisou se preocupar em subir as escadas de incêndio. A recepcionista compreendia seus motivos e prometeu não falar a respeito para ninguém. Ali dentro do apartamento de Lacy, a devastadora solidão golpeou-o como os chutes e socos que vira Kylie desferindo. Eric imaginou que tantos dias após o desaparecimento de Lacy, familiares teriam comparecido para recuperar a menininha, encaixotar suas coisinhas, enfim, tratar das demandas que restavam agora que Lacy não estava mais presente. Diferente do imaginado, tudo seguia no mesmo lugar e ninguém chorara seu desaparecimento – provável assassinato – que não a criança e Eric Dudley. Entre todas as coisas simples que haviam feito parte da vida da atriz por alguns anos, havia um item que escapara aos olhos de Eric: um quadro, na parede, uma foto com a filha dentro de um carrinho num parque de diversões. Um pouco mais atrás da dupla, um vendedor de algodão doce, caracterizado como palhaço, fazendo graça para a câmera. Eric se recordou da velhinha dona do bed & breakfast em que tinham se hospedado em Niagara-by-the-lake, o mesmo jeito hilariante de involuntariamente acabar em um registro para o qual não fora convidado! Sorrindo, Eric retirou o quadro da parede, para examiná-lo melhor, quando reparou que estivera acobertando uma lâmina de gesso que dava para um fundo falso.
Eric bateu de leve com os nós dos dedos em cima da lâmina. Ao redor, as batidas soavam cheias, mas o quadro fora colocado estrategicamente sobre aquela parte oca para mascarar um esconderijo, ou melhor, o lugar provavelmente projetado como caixa de ar-condicionado. Ele precisou apenas de dois murros fáceis para romper o gesso. Havia um saco plástico zip lock com um objeto dentro. Eric rasgou-o e examinou os pedaços de um aparelho celular, quebrado pela metade. O chip fora preservado. Eric havia pinçado o fio da meada. Guardou o celular no bolso interno do paletó e deixou o prédio o mais rápido possível. Eram 21:30 quando estacionou o carro na garagem e entrou às pressas em casa. Dudley trancou-se no gabinete e apanhou um celular que não usava mais, para o experimento. Adaptou o chip do aparelho encontrado no fundo falso do apartamento de Lacy ao celular antigo. Assaltado pelo horror, descobriu que o chip encontrado pertencia ao amigo morto Hammond. Eric passou a traçar em uma folha de papel tudo o que sabia, a diagramar o que as suas investigações tinham produzido de concreto para que assim capturasse o máximo de ângulos. A análise provou-se produtiva.
Jordan, Hammond e Lacy estavam ligados por algo, que só podia ser o assassinato do publicitário. Ao revisitar a ficha de Lacy, Eric não encontrou informações que a conectassem a Jordan ou Hammond, que o levasse a um mesmo interesse, a um mesmo lugar onde um dia poderiam ter se conhecido. Lacy falara muito por cima que trabalhara uma época em Dundas Street, mas a via era um mundo de tão grande. Os três só podiam estar conectados circunstancial e exclusivamente pela noite em que Hammond fora assassinado. Em péssimo estado à época dos eventos, em 2004, Eric havia deixado as circunstâncias do homicídio passarem batidas e agora se via diante da missão de completar as lacunas de um crime que mesmo em linhas muito amplas não compreendia e que havia se dado há seis anos. Naquela noite, Eric dormiu prevendo estratégias, ligando pontos, imaginando pistas para lacunas, por mais fantasiosas que as premissas parecessem. Quando os homens estiveram no apartamento para revirar as coisas, procuravam o celular de Hammond. Acreditou que não conseguiria dormir, porém estranhamente apagou ao menos esperar.
Ele teve um pesadelo horroroso, um sonho que o desestruturou de forma que mesmo a realidade não teria conseguido. Enxergava a si durante os estágios muito iniciais do namoro, a doce paquera, o inocente joguinho do flerte, os encontros nos bares, olhares e sorrisos a se interpretar, a bota de Lacy encostada `a sua canela, e sentia-se um espectador de uma comédia romântica, ao que Hammond chamaria de "um filme de Rachel McAdams". O mistério então o envolvia como lençóis molhados. Não tinha como identificar o instante em que a comédia romântica virara terror, mas agora se flagrava sufocado e não conseguia se desvencilhar dos lençóis. No pesadelo, enxergava a si considerando ligar para a Lacy, e então conseguia ver a namorada sentada no vão da sala, ao lado do aparelho, a cabeça baixa e deprimida, e um saco grosso e grande de lona, como que cheio de batatas, esquecido no mesmo vão que dava para a cozinha. Quando o apego vencia a prudência, Eric ligava e o telefone começava a trinar. Lacy esboçava um tétrico sorriso, a única coisa que ele conseguia realmente enxergar, por causa dos cabelos compridos. O saco se mexia bruscamente, revelando que havia uma coisa dentro. A coisa se insinuava para fora do saco, grunhindo como um bicho agonizante, e então Eric percebia que não era Lacy ali sentada esperando sua ligação, mas a Kylie. As imagens se misturavam a recordações de Allie, e enquanto de um lado havia o monstro do saco e Kylie lhe dando um receptivo, faminto e cruel sorriso, do outro, a falecida esposa emergia da cama, pálida como a neve, aflorando entre lençóis muito brancos, com o braço estendido em sua direção prometendo apanhá-lo, murmurando "Viver é se aproximar da morte gradualmente". Eric acordou sem fôlego e resvalou para fora da cama, batendo a testa no criado-mudo.
Nem cogitou se levantar. Exausto, permaneceu prostrado aos pés da cama, os cabelos desgrenhados, o coração saindo pela boca, a recordação do pesadelo ainda muito fresca na mente. Somente depois de um par de minutos, os ouvidos capturaram o barulho da televisão ligada na sala de estar. Eric se assustou. Tentou imaginar se seria o filho ou a senhora Medina, mas nenhum dos dois tinha razão para tanto. Do fundo falso do armário, pegou da caixa o revólver .38 de seis tiros. Alimentou as câmaras e encerrou o tambor. Engatilhou o cão e partiu para a varredura. A porta do quarto do menino encontrava-se fechada, então não era Charly quem assistia à televisão ali embaixo. Foi descendo, degrau a degrau, o revólver apontado para cima, o dedo sobre o arco. A janela da sala encontrava-se aberta, a ventania silvando ao sacudir as cortinas brancas de seda, as esquadrias em um vai-e-vem incessante. Ele encontrou a televisão ligada, mas não enxergou muito bem as imagens exibidas. Parecia um filme pornô.
Ao chegar à sala, Eric ligou os interruptores. A senhora Medina surgiu às pressas, cobrindo-se melhor com o roupão, ajeitando os óculos, o rosto uma máscara de expectativa. Eric pediu para que checasse o menino e permanecesse com Charly, ambos trancados no quarto. Depois de averiguar os cômodos, Eric voltou `a sala para assistir ao vídeo. As imagens tinham péssima qualidade, assim como o som, essencialmente uma cacofonia de gemidos de prazer e palavrões imundos. O conteúdo da fita de vídeo deixada no aparelho era repugnante e desprezível, um filme pornô rasteiro e malicioso de última qualidade, o tipo de lixo que ocupava as prateleiras sujas de locadoras de quinta, ainda especializadas em fitas VHS. Os olhos de Eric preencheram-se de dor quando descobriu que a moça devorada pelos atores sobre uma palafita era Lacy Morel. Talvez dez anos mais jovem, o que lhe colocaria aos vinte anos de idade quando das filmagens, Lacy vestia essa expressão gélida e indiferente, uma pessoa que desistira da própria dignidade em troca de algum dinheiro que custeasse a próxima dose de heroína. Eric começou a chocar. Tentara ajudá-la e finalmente compreendia a dor e a tristeza que não conseguira sarar por completo.
"Não somos o passado, somos a soma do que aprendemos com o passado", Eric recordou-se de ter dito. Agora que concluíra que Lacy fora assassinada, ao considerar o carinho e a compreensão que tinham dado o tom à relação, sentia-se reconfortado por ao menos ter apaziguado parte da amargura de sua trágica vida. Eric ejetou a fita do aparelho. O VHS não trazia adesivo identificador, apenas uma fita virgem, gravação de algum lixo pornográfico dos anos 90. Apareceu no quarto do filho, abraçou o menino e a secretária simultaneamente. "Ficará tudo bem", Dudley declarou, escondendo o revólver por sob o pijama. Até mesmo a gatinha assistia a tudo de cima do armário, assustada. Eric a apanhou e a devolveu ao colo de Charly. "Venha, Pernetinha, você está segura", o garoto a abraçou.
Antes de partir para o ataque, Eric resolveu que o filho precisava passar um tempo na casa da tia. Charly não iria sozinho para a casa de praia. Eric decidiu que agora a vida da filhinha de Lacy cabia à sua responsabilidade. Guardara em um caderninho de notas o endereço que a namorada fornecera. A menininha se chamava Terri e seu rostinho já exibia os sinais de tristeza e tragédia que aos olhos de Dudley tornara Lacy tão marcante. A amiga de Lacy era uma ex-stripper de meia idade e acima do peso que vivia de pensão e das mesadas que os pais das outras crianças de quem cuidava – isso mesmo, ela cuidava de doze crianças – pagavam ao fim do mês. Terri tinha três anos, e quando Eric a visitou, em um condomínio barato e pobre que mais lembrava aqueles típicos Days Inn, a colega de Lacy, Consuelo, teve dificuldades para encontrá-la em meio à bagunça de crianças e brinquedos quebrados. Eric se ajoelhou e abriu os braços para recebê-la, e por motivos que jamais compreenderia, a criança correu para dentro dos mesmos, aceitando-o sem vergonha ou constrangimentos. Era como um bichinho desconhecedor, sujo, ignorante e puro, sem chances contra um mundo de gente narcisista e perversa. "Não vou te abandonar, lindinha. Não vou te abandonar jamais. Sou o seu pai agora". Eric entregou um envelope com mil dólares para Consuelo, que ao examinar o conteúdo não quis saber do destino da criança. Ele estava salvando Terri de uma vida de silente e indescritível horror.
Eric guardou o conteúdo do zip lock no cofre. O chip do celular de Hammond teria muito a revelar se apenas conseguisse coletar as informações e ler os segredos que sua carta coringa guardava. A senhora Medina afeiçoou-se à criança do instante em que Eric voltou para casa com Terri nos braços. Depois que a senhora Medina deu um banho na menininha, alimentou-a com chocolate quente e pastéis de carne e a colocou para dormir na cama de Charly. Eric reuniu os dois na sala para uma imprescindível conversa.
- Dentro de alguns dias eu terei de mandá-los para passar uma temporada com tia Virgínia. - Charly e a senhora Medina se entreolharam, não realmente surpresos. - Senhora Medina, se preferir, eu a dispensarei por algumas semanas. Continuarei pagando seu salário mesmo durante o afastamento. Se puder acompanhar as crianças, porém, ficaria grato.
- Oh, papai, eu não compreendo. - Charly foi em direção à janela e então indagou ao pai. - Por que invadiram a nossa casa?
- Não sei por quê, mas o fato é que entraram enquanto dormíamos. Não precisamos de uma nova invasão para agirmos. Amanhã, conversarei com tia Virgínia. - Eric se levantou em um salto e suspirou, exasperado. - Bem, pessoal, é isso. Considerando os horrores da noite passada, procurem recuperar o sono. Permanecerei mais um pouquinho por aqui. Senhora Medina, durma com a menininha, combinado?
Eric inspecionou todas as janelas e portas. A esquadria pela qual o visitante entrara não tinha sido rompida a culpa fora inteiramente de Dudley, que passara a confiar incondicionalmente na segurança do condomínio a ponto de abandonar as preocupações mais elementares. Quando conversou com o serviço de segurança, os homens não encontraram explicação para a entrada do misterioso visitante que nada levara, apenas deixara a fita rodando no aparelho. Passando o VHS de mão a mão, Dudley procurava reunir ânimo e frieza para assistir ao conteúdo integralmente, porém a revelação ainda estava por demais fresca. Antes das conversas com Colby, teria procurado por Jordan Harwood, mas depois do que o rapaz dissera, sobre a policial estar um passo a frente a cada curva, enxergou a cilada em que se meteria caso agisse conforme o primeiro instinto.
Quando a residência dos Dudley imergiu em breu e silêncio, Eric cuidou para não fazer barulhos e ligou o computador desktop para acessar a internet. Pesquisou o nome "Jordan Harwood" e a maioria das respostas o levou a sítios com resultados de distintos concursos públicos entre 2002 e 2003 e `a página do distrito policial onde hoje Jordan servia como tenente, atualizada diariamente. Harwood não aparecia em redes sociais. No entanto, foi o último endereço na lista de resultados que interessou o viúvo. Era uma coluna social eletrônica cujas matérias giravam em torno da vida dos ricos e privilegiados de Toronto. Datada de julho de 2002, a matéria abordava as "baladeiras" da formatura da Universidade de Toronto daquele semestre em particular. Não havia nada de profundo ou revelador naquelas linhas – Patricinhas comportando-se como Patricinhas – mas a foto que encabeçava o texto funcionou como um estridente chamado de despertar para o publicitário. Havia uma foto, quatro moças muito bonitas, visivelmente alegres e apenas "um pouco" alcoolizadas, caminhando ombro a ombro com enormes sorrisos ao longo do caminho de pilares de pedra do Bennet Gates. Ao fundo, um montão de outros formandos fora de si, exibindo garrafas de champanhe e vinho. Dizia a legenda, nominando as privilegiadas enquadradas, da esquerda para a direita, nessa ordem: Megan Larkin, Marion Lambèrt, Jordan Harwood e Kylie Grattan. Jordan e Kylie estavam de braços dados e à vontade, uma ao lado da outra. Elas se conheciam, mas não por causa da morte de Hammond em 2004. O envolvimento remontava a bem antes da confusão em Dundas Street, pelo menos dois anos antes, isso se tivessem se conhecido somente no último semestre, o que era improvável.
A possibilidade de Lacy tê-lo deixado jamais o incomodou. Conhecia-a como poucos, mesmo os familiares mais próximos não a teriam enxergado pela vulnerabilidade que era a característica mais marcante de sua atribulada alma. Não, Lacy não o deixara. Eric temia que Jordan passasse a tratar o caso com o ceticismo de diferenças entre amantes brigados e deixasse de se aprofundar na investigação que, dirigida de maneira correta, poderia levar a terceiros que a aquela altura ele não conseguia enxergar. Eric fez menção ao staff da recepção, porém Jordan imediatamente o desencorajou, afirmando que não tinham sido de grande valia. A policial foi enfática, ao se despedir da dupla, naquela reunião informal na 211 Bel Air.
- Não tome para si um trabalho que não é seu. Ainda que o caso se revele mais complicado do que pareça, a intromissão de familiares angustiados somente atrapalharia. - Jordan fazia as últimas considerações no estacionamento, encostada ao carro. Estava frio e nublado. Logo perto, um caminhão de lixo da prefeitura apitava, enquanto os homens recolhiam os sacos pretos de plástico. - Eu não quero deixar a impressão de que o desaparecimento passará a ser tratado como desentendimento amoroso de casal, senhor Dudley, apenas insisto que pense bem em todas as possibilidades.
Colby e Eric esperaram que Jordan se distanciasse e retornaram ao bancos da 211 Bel Air. Dudley apoiou os braços sobre a mesa de fórmica suavemente bege e descansou a cabeça. Colby passou um pano na placa de aquecimento da cafeteira, encheu o pequeno reservatório, e logo, do tubo de gotejamento, passou a descer o melhor expresso que se poderia desejar. Entregou a xícara em um pires e não precisou que Eric pedisse para acompanhar a bebida com uma fatia da torta de limão.
- Farei as minhas próprias investigações. - Desabafou, comprometido. - Lacy não me deixou.
- Claro que não. - Colby o animou. Eric lhe dirigiu um olhar surpreendido. Então, o garoto seguia a mesma linha de raciocínio. - Algo ocorreu e eu não sei o quê, mas seja lá o que for, não se deu por vontade da própria Lacy.
Na manhã seguinte, Kylie procurou-o na La Fabrique e depois em casa. Conversou brevemente com a senhora Medina, que sabia pouco sobre o ocorrido, mas vinha testemunhando muito proximamente o impacto do sombrio mistério sobre o bem-estar emocional de Eric. Discretamente em um bistrô da calçada boêmia que passava em frente ao prédio de Lacy, Dudley examinava o fluxo circunstancial. Havia duas viaturas estacionadas em dois pontos distintos da quadra, como que preservando o lugar. Enquanto "lia" o jornal, estudava, na verdade, a quadra. Queria traçar um plano que o conduzisse desapercebido à janela do apartamento de Lacy. Kylie ligou para Eric. Apesar de o último encontro ter ficado manchado pelo conflito psicológico à mesa, Dudley ficou feliz ao escutar sua voz. Havia uma frase que saíra de sua própria cabeça e Eric a apreciava. Todas as vezes em que queria ficar triste ou com raiva de Kylie, ele reativava o comando em sua mente, apegando-se ao mesmo como um mantra "Jamais desaprendi a amá-la". Kylie queria conversar com o amigo, mas o telefone não parecia o meio adequado. Ele se comprometeu a aparecer no escritório da Avant!, às 19:00, no mais tardar.
- Eu lamento por tudo, querido. - Allie cruzou a sala de estar e se sentou ao lado do marido no chão.
- O que aconteceu por aqui, Allie?Parece-me um apartamento bem arrumado, as coisas nos seus devidos lugares... Por que não soa natural?
- Simples. Porque o apartamento foi revirado. Alguém fez uma varredura e então tentou arrumá-lo para lhe devolver a aparência de normalidade. - Ela lançou um olhar por sobre a cama e apontou para o banheiro. - Fizeram um péssimo trabalho com o banheiro. Não sabem que mulheres têm um jeito especial de arrumar perfumes e loções?
- Isso! - Eric se levantou em um salto.
- Tentavam encontrar alguma coisa, sem sucesso, eu suponho. - Allie opinou. - Depois, forjaram essa farsa das roupas. Sua namorada não deixou o lugar com as valises, querido. Ela partiu para um encontro muito provavelmente esperando retornar em questão de horas. Ao cair da noite, no mais tardar. Alguém a apanhou, e depois fez uma visita ao apartamento para dar sumiço na mala e nas roupas e criar a ilusão de que ela deixou o lugar voluntatiamente. Teve até mesmo o cuidado de não levar todas as peças.
- E o professor... O professor de música... - Eric dizia a si mesmo, os olhos semicerrados, a cabeça girando.
- O álibi perfeito para a historinha da mocinha fugitiva. O professor é apenas um paspalho que foi arrastado `a loucura.
- Por quê?! - As peças começavam a se pertencer, mas faltavam mais elementos. - Por quem?! - Ao se virar para Allie, não mais a encontrou ao lado.
Quando o viu entrando exasperado em casa, no fim da tarde, Charly cobriu o pai de perguntas. Antes que o filho terminasse de falar, ele lhe deu um abraço, o que o silenciou, e pediu que confiasse em seu julgamento. Tratou com a senhora Medina para que pelos próximos dias dormisse em casa para cuidar do filho e da administração do lar, já que dificilmente pararia. Não imaginava para onde as novidades o levariam. Eric tomou um demorado banho e suspirou aliviado ao verificar que ainda tinha no mínimo uma hora de descanso até o encontro acertado no escritório da Kylie. Deitado para cima, de braços abertos, os seus olhos percorreram o teto vasculhando cada entrância e imperfeição entre os caibros. Absorto em pensamentos muito díspares, não conseguia se ater a apenas um por mais que alguns segundos. Quando a vista começou a pesar, Eric foi enxaguar a face e se vestir. Colocou uma roupa limpa e o paletó e partiu para o encontro com Kylie Grattan.
Ao vencer o átrio do edifício onde Kylie erguera seu império de publicidade, apresentar-se à recepção e ter de esperar no salão para que sua subida fosse comunicada e autorizada, caiu a ficha quanto a envergadura do poder e das conquistas que fizera da estagiária "maluquinha" uma das executivas mais importantes do Canadá. Sentado em uma extremidade do sofá modular escuro que serpenteava através do hall, banhado pelo elegante lustre de cristal de onde efluía as cascatas de luzes que mais se assemelhavam a cachoeiras do champanhe mais caro, Eric se recordava, melancolicamente, das suas conversas com Kylie na época do estágio nos idos dos anos 90. A forma como o escutava com olhinhos bem assustados e interessados enquanto ele ia expondo seus pontos de vista sobre a vida e de como era importante aprender com os erros dos mais velhos para não pisar nas mesmas armadilhas, costumava lhe apertar o coração, pois naquela época temia que Kylie não desse conta da transição para a vida adulta. Hoje, a estagiária era uma mulher sofisticada e ocupada e os seus visitantes tinham que ser devidamente anunciados. "O mundo dá voltas", Eric murmurou consigo mesmo.
A jovem da recepção, uma bela senhorita em um elegante blazer verde, de pele muito alva e lábios vermelhos em semelhante generosidade, anunciou que o publicitário podia se pôr a caminho. Rumo à cobertura, no 25° andar, Eric observava Toronto pelos mais generosos ângulos graças aos privilégios do elevador panorâmico. Quanto as portas se abriram, dando para o largo corredor ladeado por caríssimos quadros, Eric conseguiu escutar o rumor vindo do salão de ginástica de Kylie, no braço oposto a aquele que levava ao escritório. Uma secretária o cumprimentou e o conduziu, mão em um dos ombros, em direção ao salão. Havia um ringue com cordas cujas cores eram as da bandeira norte-americana na seguinte ordem a começar pela superior: vermelho, branco e azul. De seu campo de visão, enquanto percorria o longo corredor, não enxergava a movimentação que ocorria no ringue, pois só podia ver seu centro, pela lateral. O que escutava muito bem eram grunhidos de dor e fragor molhado, em cheio, eco de patadas apanhando as partes de um adversário qualquer. Eric se deteve na entrada da academia particular e assistiu ao desenrolar do treino. Kylie chegara à faixa preta de karatê ainda durante a faculdade, quando levara os principais campeonatos. Ali, tantos anos mais tarde, ao escolher homens para o seu exercício, parecia endereçar inseguranças antigas, equilibrar equações injustas pela violência e seriedade que imprimia ao ritmo do confronto. No corner do ringue, havia um homem prostrado, os braços erguidos em posição de bloqueio, fracassando horrivelmente enquanto os jabs de Kylie sucediam-se em uma sequência que parecia não ter fim. Murros e combinações desferidas com os diferentes braços castigavam o rosto, rasgando o supercílio, cortando e estragando a carne; os chutes, o mesmo trabalho de destruição, só que invisivelmente, no tronco, roubando força e agilidade das pernas de sua vítima. No corner oposto, outro homem, visivelmente muito machucado, parecia ter se restabelecido para tentar alguma novidade, e ensaiava caminhar em direção ao canto onde Kylie se encontrava. Ela pareceu pressentir, pois então largou o adversário em quem investira todo o ataque. Em uma corrida através do ringue, apanhou o outro com o chute por cobertura que esmigalhou o seu nariz, quando o calcanhar desceu com toda a força sobre a face. Sangue espirrou, o adversário foi ao chão instantaneamente, sem reação alguma. O outro ensaiou alguns passos para a frente, procurando vencer o choque da situação, esboçar algo. Ele não pôde pretender muito. Mesmo de costas, quando Kylie se virou para acabar o que começara, ela o golpeou com um chute semicircular, de fora para dentro, a sua patada conectando à face com todo o impacto acumulado pela cinética do movimento. O homem foi lançado para trás, por sobre as cordas e para fora do ringue.
Eric se aproximou com alguma cautela, impressionado com a extensão das consequências. Ele segurou as cordas, e foi quando Kylie finalmente o notou. Ela sorriu à chegada, o rosto salpicado do sangue que não era o seu. Kylie ofereceu a mão e Eric a aceitou, passando por entre as cordas e se juntando à melhor amiga no centro do ringue. Não apenas o rosto, o corpo estava borrado de muito sangue, das luvas às ataduras quase brancas que cobriam os tornozelos e parte dos pés de Kylie. Ela abaixou o rosto e suspirou, evidenciando o desgaste envolvido na sessão. Deixou as luvas caírem, e quando levantou a cara, passou o peito da mão sobre boca e nariz para limpar o sangue. Ao fim, inspirou breve e profundamente, como se o aborrecimento não tivesse valido à pena, apenas um ligeiro contratempo.
- Estão muito machucados, mas acredito que sim. - Despiu um dos braços do quimono e seguiu se livrando da peça. E então, para amenizar a gravidade da situação, fez uma gracinha, e com uma careta travessa indagou. - E então, gostou do que viu?
- Sim, mas não quero que se machuque, Kylie. Não é melhor se trocar? - Eric travava o diálogo, que lhe soava absolutamente surreal, ambos conversando enquanto aos pés aquelas duas pessoas pareciam mortas.
- Você pode me esperar no escritório?Tomarei um banho para me vestir. - Os dois deixaram o ringue. Quando passou pela secretária, Kylie a orientou, indicando com o polegar. - Providencie para que os garotos recebam os cuidados necessários.
- O diretor do departamento, sim. - Comentou, desanimado, mas prestes a arrazoar a nova teoria. - Desapareceu. Jordan crê que no mesmo sábado em que Lacy partiu. Eles não simplesmente fugiram juntos, Kylie. Sinto nos meus ossos.
- Você está muito apegado a Lacy. - Propôs, estudando-o com benevolente preocupação. - É natural que a idealize ou não aceite nenhuma outra hipótese que possa manchar sua reputação.
- Retornei ao apartamento da Lacy. Consegui entrar fazendo uso daquelas escadas de incêndio armadas ao longo da fachada. O lugar parecia em ordem, sim, mas organizado por terceiros!Alguém entrou no lugar depois de Lacy partir e mexeu nas coisas. Não imagino o quê, ou a razão, mas acho que Lacy foi vítima da própria ingenuidade.
- Eric, eu lamento que Hammond não esteja mais aqui para aconselhá-lo. Você está se voluntariando excessivamente, o que me parece compreensível, pois sei que é um homem bom, mas pessoas assim acabam feridas. Por que investe tanto nessa menina?
- Lacy tem uma filhinha. - Eric se sentou pesadamente no sofá. Kylie se achegou e ficou no braço do móvel. - Não estou arrasado apenas pelo meu carinho pela Lacy. A criança também precisa da mãe. Penso em ir buscá-la. - Levantou o rosto. - Adotá-la, sabe? Não vou deixar uma criança sem sua mãe. Não posso.
- Oh, querido. - Acariciou as suas costas. - Eu dizia antes, em 2004, e continuo a dizer: você me enche de preocupações. Acompanhe-me ao heliporto. - Tomou-o pela mão, e com a outra, pegou uma pasta que repousava sobre a maciça mesa de mogno.
- Oh, Kylie, mas... Onde vai me deixar?! - Ele deu com os ombros e seguiu com uma gargalhada divertida. - O campinho de futebol de meu condomínio não comportaria um helicóptero, exatamente!
- Seu bobo, eu te deixarei no heliponto do Sheraton próximo ao condomínio!Eu já posso preparar um rádio-táxi para apanhá-lo no restaurante. - Ela explicou, mas Eric não se convenceu. Kylie não estava disposta a deixá-lo sozinho. - Por favor, venha comigo.
- Muito bem, sua "maluquinha". - Vacilou quando a porta de correr foi aberta e os dois convidados a entrar para a partida, mas se convenceu a enfrentar o passeio. - Porque, para mim, às vezes você deixa de ser a executiva sofisticada e me lembra a minha estagiária louca, e eu me lembro que não conseguia dizer "não" para ti, naquela época.
- Você não consegue dizer "não" a ninguém, em época alguma, tolo.
- Eu prometo. - Eric disse, sem convicção alguma em suas palavras.
- Jordan está metida no desaparecimento, é isso? - Não parecia inteiramente improvável e Colby tendia `a mesma conjectura.
- É possível, embora eu não enxergue o contexto. Se for o caso, você tem entregado a Jordan todos os seus movimentos. Ela sempre estará um passo a frente. Ademais... - Colby apontou para lugar algum, apenas para explicitar a súbita constatação, complementando. - Vocês dois "se encontraram por acaso" no mercado da quadra poucos dias antes de Lacy sumir. A hipótese é assustadora. Jordan estava "rondando" tua vida antes de dar o golpe. Afaste-se dessa mulher!
- Preciso saber... Preciso saber o que aconteceu a Lacy! - Protestou, o rosto uma máscara de confusão e angústia.
- Qual a ligação dessa Jordan com teu passado?
- Ela cuidou do inquérito do assassinato do Hammond em 2004. A questão não gira em torno de minha "história" com Jordan, mas da história de Jordan com Lacy, se houver. Elas se conheciam?
- Faça isso. - Colby adiantou-se e Eric gostou da maneira como o amigo o interpretou antes que precisasse falar. - Você tem um grande coração, senhor Dudley. Tanto é verdade, posso prevê-lo com facilidade. O tipo de cara para quem torcemos nos filmes, sabe?Acontece que na vida real, finais felizes são para poucos, pois uma vez que seu código moral é também o maior inimigo, também te engessa e te torna mais suscetível aos outros inimigos. Mesmo assim, penso que deva procurar a menininha, sim, e cuidar de sua segurança, ao menos até que a confusão passe. Priorize aqueles que lhe são caros, amigo, não deixe que te acertem tão fácil.
- Primeiro, procurarei compreender em que terreno estou pisando. Se os eventos se encaminharem para revelações mais sombrias, pedirei para que a irmã de Allie fique com Charly e a criança. Não sei, Colby. Acho que estou correndo riscos.
- Acha?Pois eu estou certo disso.
- Oh, papai, eu não compreendo. - Charly foi em direção à janela e então indagou ao pai. - Por que invadiram a nossa casa?
- Não sei por quê, mas o fato é que entraram enquanto dormíamos. Não precisamos de uma nova invasão para agirmos. Amanhã, conversarei com tia Virgínia. - Eric se levantou em um salto e suspirou, exasperado. - Bem, pessoal, é isso. Considerando os horrores da noite passada, procurem recuperar o sono. Permanecerei mais um pouquinho por aqui. Senhora Medina, durma com a menininha, combinado?
Quando a residência dos Dudley imergiu em breu e silêncio, Eric cuidou para não fazer barulhos e ligou o computador desktop para acessar a internet. Pesquisou o nome "Jordan Harwood" e a maioria das respostas o levou a sítios com resultados de distintos concursos públicos entre 2002 e 2003 e `a página do distrito policial onde hoje Jordan servia como tenente, atualizada diariamente. Harwood não aparecia em redes sociais. No entanto, foi o último endereço na lista de resultados que interessou o viúvo. Era uma coluna social eletrônica cujas matérias giravam em torno da vida dos ricos e privilegiados de Toronto. Datada de julho de 2002, a matéria abordava as "baladeiras" da formatura da Universidade de Toronto daquele semestre em particular. Não havia nada de profundo ou revelador naquelas linhas – Patricinhas comportando-se como Patricinhas – mas a foto que encabeçava o texto funcionou como um estridente chamado de despertar para o publicitário. Havia uma foto, quatro moças muito bonitas, visivelmente alegres e apenas "um pouco" alcoolizadas, caminhando ombro a ombro com enormes sorrisos ao longo do caminho de pilares de pedra do Bennet Gates. Ao fundo, um montão de outros formandos fora de si, exibindo garrafas de champanhe e vinho. Dizia a legenda, nominando as privilegiadas enquadradas, da esquerda para a direita, nessa ordem: Megan Larkin, Marion Lambèrt, Jordan Harwood e Kylie Grattan. Jordan e Kylie estavam de braços dados e à vontade, uma ao lado da outra. Elas se conheciam, mas não por causa da morte de Hammond em 2004. O envolvimento remontava a bem antes da confusão em Dundas Street, pelo menos dois anos antes, isso se tivessem se conhecido somente no último semestre, o que era improvável.
Eric digitou "Dundas Street, 2004, Hammond" e o motor de busca listou várias páginas policiais da época. Ele as abriu e imprimiu para lê-las com mais calma e fazer as anotações interessantes. Separou os textos e começou a analisá-los ao sabor da luminária da escrivaninha. Com variações pouco significantes, o cerne do caso obedecia o mesmo parâmetro: assalto seguido de morte. O carro fora achado parado no meio-fio com a porta aberta, o corpo à beira de um cruzamento que, durante o dia, era movimentadíssimo. Pelas fotos, Eric não imaginava o que levara Hammond a estacionar o carro e descer com tanta pressa. Na hora do assalto, não havia bares abertos e o comércio trazia suas portas abaixadas. Sabia-se que o delinquente o pegara depois que Hammond descera do automóvel. A poucos metros do corpo crivado de balas, notou um telefone público com o fone oscilando pelo cordão reforçado.
- Não percebe? - Uma voz feminina pronunciou-se baixinho e Eric se acalmou quando viu que se tratava do fantasma de Allie, debruçada sobre sua cadeira, examinando o material impresso com o mesmo interesse. - Hammond tinha algo muito sério para falar a alguém, tão importante que não pôde esperar. Ele não teve como usar o celular. Como sabe, alguém, por um motivo qualquer, quebrou-o ao meio, possivelmente para evitar que Hammond tivesse a conversa em questão.
- Sim. - Eric aquiesceu, intrigado.
- Enxerga a dinâmica?O que sabemos até o momento, querido?
- Sabemos isto: Hammond testemunhou uma cena que colocaria pessoas respeitadas em maus lençóis. Os flagrados o abordaram, dando sequência a uma briga que foi ficando mais calorosa, quando apanharam o celular e o quebraram ao meio para impedi-lo de falar.
- Hammond assustou-se. - Allie complementou, servindo-se do whisky no bar do gabinete. - Entrou no carro e pisou fundo. Morria de medo e queria conversar. Como não podia esperar, freou o automóvel no primeiro telefone público que encontrou às margens da interseção entre Dundas e Yonge Street. Lembre-se que tudo ocorreu na calada da madrugada.
- Mas, veja, Allie, a sua tese soa ótima, porém não explica o delinquente que efetuou os disparos!Ele não teria motivos para... - Eric se deteve, quando Allie respondeu com risadas. - Por Deus, amor, não ria alto senão acordará Charly!
- Eric, baby, eu sou apenas um segmento da sua imaginação. Eu já morri, esqueceu?Charly não tem como me ouvir, só você. - Retrucou, provando o gosto da bebida, fazendo os gelos tilintarem. - Agora, escute-me... Está preparado? - Eric fez que sim, às cegas sobre como Allie refutaria sua observação. - O marginalzinho de Dundas com Yonge era um palhaço. Ele não teria os motivos ou a capacidade intelectual para armar o assassinato. Apenas um desavisado que passou a juventude entrando e saindo de reformatórios, manipulado psicologicamente por uma mente mais ardilosa e maquiavélica. Alguém como uma tira jovem e bonita, por exemplo, com livre acesso a lugares cheios de desavisados semelhantes, como reformatórios, e que deve ter fodido com o idiota até fritar seus neurônios a ponto de subverter o juízo para que seguisse qualquer comando sem contestar.
- Muito bem. - Fez um triângulo com as mãos e as pousou sobre a face. - Então, eis o nosso cenário: Hammond deixa Colby no Pearson, depois segue com o carro para casa. Tá subindo a Dundas Street, quando uma cena lhe chama a atenção. Onde se deu a cena?Provavelmente em uma boate. Às altas horas da madrugada as casas de show fervilham. Ele estaciona o carro, confronta o problema, a discussão esquenta, Jordan toma o celular... - Allie ergueu uma mão silenciadora e o corrigiu.
- Jordan ou alguém que a acompanhava. Tenha em mente que Jordan e Hammond não se conheciam, então um terceiro elemento precisa ligá-los.
- Vamos enriquecer o cenário: Hammond confronta duas pessoas, uma das pessoas ele conhece, a outra, Jordan Harwood, não. Um novo problema: essa versão não põe o celular de Hammond nas mãos de Lacy.
- Não põe? - Perguntou, incrédula por Eric não enxergar o óbvio. - Eric, acorde!Hammond confronta as duas antagonistas. No calor da discussão, acusações são trocadas. Uma das duas toma o celular de Hammond e o atira longe. Você encontrou o celular quebrado de Hammond no apartamento de Lacy pois foi sua namorada quem esteve presente e testemunhou o drama seis anos atrás!
- Por que teria testemunhado?Coloque-a na cena! - Eric desafiou.
- Ela era uma sobrevivente. Usava a beleza para batalhar pela vida. Entre filmes pornôs, enquanto sonhava com a redenção de um grande papel, ganhava trocados como dançarina ou garçonete de boates. Por que não?Lacy testemunhou a cena porque a discussão entre os três, Hammond, Jordan e a terceira misteriosa, deu-se nas calçadas de alguma grande casa noturna onde sua namorada trabalhava. Acompanhe a cena comigo. Hammond fica furioso, entra no carro e antes de fazer os pneus cantarem, avisa que irá entregar para ti seja qual for a sujeira que testemunhou. O carro parte a toda por Dundas Street. Jordan e o estranho se desesperam e a tira decide usar o "Romeu apaixonado" para fazer o trabalho sujo, ou seja, esperar por Hammond no primeiro orelhão ao longo de Dundas, justamente na cafeteria sobre as calçadas da Yonge, para tirá-lo de cena. Lacy se deu conta de que mesmo indiretamente, assistira `a conspiração para homicídio. Para se precaver, recolheu o celular do chão para guardá-lo e usar como trunfo caso Jordan batesse a sua porta para coagi-la ou ameaçá-la de morte.
- Quem foi a terceira pessoa na discussão com Hammond e o que Jordan e o estranho teriam feito para deixar Hammond tão transtornado? Para quem Hammond tentou ligar?
- Está arranhando a superfície, mas ainda não chegou lá. - Virou o copo e terminou sua dose. - Faça um levantamento das chamadas realizadas com a linha do Hammond. Seria possível traçar a localização por GPS que te colocaria no lugar onde o celular foi quebrado. Se for uma casa de show, pode apostar a vida que se apresentar fotos da Lacy e perguntar se a staff a conhece, confirmarão que sua namorada trabalhou ali seis anos atrás.
Muitos detalhes. Quando Eric terminou de rascunhar as ideias, viu que Allie havia regressado para a parte de sua alma que jamais a esqueceria. Dudley teria de esperar até a manhã seguinte para ligar para a operadora e solicitar o registro das chamadas feitas com o chip de Hammond. Não sabia como fazer para descobrir de quais números teriam vindo ligações para seu número residencial na madrugada do assassinato, porém supôs que a logística de coleta dos dados seria muito semelhante. Manteve em mente que a estratégia poderia ou não funcionar, a operadora impor dificuldades, ou mesmo demandar ordem judicial para tanto. Precisava de um plano reserva. Quando o dia chuvoso finalmente apontou, Eric ainda estava acordado e estudando papéis. Encontrou a senhora Medina deixando cuidadosamente o quarto de Charly.
- Deixe-os dormir. Depois do que aconteceu nestes dois últimos dias é provável que acordem somente mais tarde.
- Senhor Dudley, pensei sobre o seu pedido. Eu gostaria de acompanhar os meninos. - Contou, enrolando o cachecol no pescoço sem tirar os olhos urgentes do viúvo.
- Obrigado, senhora Medina. - Eric a abraçou. - Telefonarei para Virgínia amanhã no mais tardar. Em breve, teremos um plano mais bem delineado.
Depois de tomar o café da manhã, Eric passou silenciosamente no quarto de Charly. Pelo vão da porta entreaberta, assistiu-lhes dormirem, com ternura. A menininha pegara no sono com o polegar na boca e Pernetinha se aninhara ao lado da cabeceira. Quando Eric telefonou para a cunhada e pediu que tomasse conta da família, esperava que Virgínia fosse mostrar preocupação, mas ela reagiu ainda mais contundentemente. Virgínia aceitou no mesmo segundo que Charly, Terri e senhora Medina deixassem Toronto para as águas calmas da praia, porém ficou emocionada ao perguntar se Eric atravessava algum problema mais grave. O cunhado atenuou a seriedade, e, esforçando-se para evidenciar bom humor, avisou que haveria um "quarto convidado, de quatro patas": a gatinha, que a família levaria junto. Eric considerou levar todos para a casa de praia no fim de semana seguinte. A solícita e preocupada Virgínia sugeriu que a própria pegasse o carro e os visitasse em Toronto, dentro de dois dias, o tempo necessário para que Eric conversasse com o diretor do colégio de Charly, e a senhora Medina com as filhas e os netos.
Eric insistiu para que Charly fosse para o colégio: era importante resgatar algum senso de normalidade pelos próximos dois dias. Deixou para lhe contar as últimas informações sobre as "férias improvisadas" durante o jantar. Depois que Charly seguiu no ônibus escolar com os amigos do condomínio e que a senhora Medina levou Terri para brincar no playground, Eric revisitou a fita de vídeo. Ele carregou o aparelho para o gabinete, de modo a assistir ao filme sem temor de que a senhora Medina ou os filhos passassem para ver as imagens. A produção era um zero artístico, uma sequência repugnante de cenas imorais explícitas, um lixo feito sob medida para cinemas especializados, um dólar o ingresso. Uma das moças humilhadas para as câmeras era definitivamente Lacy Morel; entretanto, nos créditos daquela porcaria, aparecia com um nome falso, expediente comum a atores seduzidos a participar de coisas semelhantes.
Ao meio-dia, Eric pegou o carro se dirigiu a downtown Toronto. Guardou o carro em um estacionamento pago, vestiu a capa de chuva e partiu para colher informações que o levassem ao profissional indicado ao serviço desejado. Ao procurar guarida da chuva em uma lojinha de eletrônica tão estreita quanto a porta frouxa que dava acesso ao interior, Eric encontrou o que buscava. O coreano dono do lugar disse que Dudley precisava de um leitor espião de chip de celular, cujo manuseio revelava-se bastante simples. Mesmo um leigo conseguiria operá-lo sem dificuldades. O charmoso aparelhinho de cor azul translucida, que se assemelhava a um pendrive, tinha um cartucho onde o chip era deslizado e conectado. Bastava inserir o chip do celular no pendrive e o software fazia o resto, verificando o registro de ligações e as mensagens SMS armazenadas no cartão SIM. Eric comprou o pacote do pendrive e CD-ROM com driver e softwares por duzentos dólares.
A mesa ainda estava posta, mas a senhora Medina, Terri e Charly já tinham almoçado. A menininha assistia à televisão com a secretária na sala. Eric chegou, beijou-a na cabecinha e avisou à senhora Medina que almoçaria mais tarde, mas que não se preocupasse, pois requentaria a comida. Abriu o notebook no centro da mesa, no escritório, e esperou o sistema inicializar, em uma espera que pareceu dolorosa, tamanha a expectativa. Previsivelmente, os derradeiros registros que constavam do chip remetiam à madrugada do assassinato. O último número discado fora para a casa de Eric, que calculou que se encontrava na cama no horário declinado. Inicialmente, não fazia sentido, pois Dudley ponderou que a secretária eletrônica teria registrado a chamada. Veio à mente a manhã em que acordara com a comoção da morte de Hammond, Kylie e Eric conversando no quarto e a melhor amiga determinando que cuidara de apagar as mensagens na máquina, vez que na maioria referiam-se a telefonemas de colegas da La Fabrique avisando sobre o crime. A duração da chamada de celular registrou um intervalo curtíssimo, de nove a dez segundos, o tempo que o aparelho chamara, antes que a briga que culminara com o celular arremessado e partido em pedaços frustrasse a tentativa.
Com a chegada da tarde, o tempo fechou e a chuva virou tempestade. Eric esquentava feijão, arroz e bife acebolado, quando a campainha soou. O publicitário teve o cuidado de procurar enxergar pelas cortinas seu alpendre para verificar quem era e ficou feliz ao ver Kylie. Ela estava fechando o guarda-chuva, os cabelos pareciam salpicados. Eric se sentiu dividido. A foto em que aparecia ao lado de Jordan, quase dez anos atrás, o deixara muito confuso. Ao mesmo tempo, existia uma ligação muito forte entre os dois, uma conexão que não tinha como romper. Parecia prudente esperar o desfecho da investigação até concluir com clareza o papel de Kylie na história, isso se tivesse um papel. Ele abriu a porta de supetão e já foi dando um abraço na amiga, convidando-a a entrar. Kylie se livrou do casaco molhado, resmungando. Sentou-se com Eric, à mesa, e o viúvo achou graça quando assoprou para tirar a mecha molhada que descia até a ponta de seu narizinho arrebitado.
- Posso tomar um banho? - Perguntou com um sorrisinho.
- Vou separar uma bermuda e uma blusa para você. Venha comigo. Charly ficará feliz em te ver!
O casal seguiu escada acima, o friozinho delicioso, a brisa consistente acariciando as esquadrias das janelas. Charly deu um salto da escrivaninha e correu para abraçar sua tia preferida. A menininha, que folheava uma revista em cima da cama, lançou um olhar surpreso e um pouquinho envergonhado para a moça bonita que acabara de chegar. Eric a apresentou à criança e Kylie foi até à cama para abraçá-la. Depois de separar blusa e bermuda, Eric a deixou à vontade para usar o banheiro da suíte. Encontrou a senhora Medina na cozinha, que lhe perguntou se Kylie ficaria para almoçar. Eric respondeu que se positivo, poderia pedir uma pizza. Enquanto Kylie se refrescava, Eric terminou de almoçar e preparou a mesa para que conversassem sem pratos sujos por perto. A senhora Medina tratou de coar o café fresquinho. Kylie deixou pegadas de seus pés descalços nos degraus da escada e quando apareceu à porta da cozinha, seu ânimo parecia revigorado. Ela usava uma bermuda bege e uma camisa branca com listras de botão. Eric telefonou para a Pizza Hut de sempre e pediu uma média só para Kylie. Ela se sentou ao lado de Eric, apoiou os pés na borda da cadeira e abraçou os joelhos, morrendo de frio. Enquanto repunha o café, Eric distraía-se assistindo a Kylie comer. Vários pensamentos passaram pela mente, naquela tarde, e teve um momento em que considerou quão diferente teriam sido os últimos seis anos se Kylie o tivesse escolhido naquela noite distante no passado, quando "Not Easily Broken" estreou. Depois que ela terminou, Eric a convidou à cadeira de balanço no alpendre. Toronto resfriara. Kylie agarrou-se ao braço de Eric, enquanto o casal admirava a resiliência das rosas e lírios do jardim, que a todos os rigores resistiam.
- Sinto-me terrível pelas coisas que falei sobre a Lacy. - Kylie disse. - Ela tem uma filhinha linda. Você é o melhor homem que eu conheci em minha vida, Eric.
- Kylie, não... - Quis minimizar, mas Kylie insistiu.
- Você é, sim. Enxerga as coisas de uma forma tão peculiar, bonita. Quando te conheci aos vinte e poucos, te achei tão sério e fechado, mas então começamos a conversar e me surpreendeu com atitudes a que ninguém mais se voluntariava. Agora, cuida da menininha. Reconforta-me saber que há alguém como você no mundo.
- Não é para isso que veio me visitar. - Eric opinou e Kylie ficou quieta. - Não precisa se preocupar, querida, apenas diga o que quiser. - Apertou-a mais forte e Kylie encolheu as pernas sobre o balanço.
- Eu quero que desista. - Ela falou, exprimindo o que o viúvo já esperava. - Você tem muito pelo que viver, e agora, dois filhos para criar. Eu tenho acompanhado os seus movimentos. Prometeu-me que não agiria como detetive, mas mentiu.
- Eu preciso saber. - Murmurou, a voz hesitante. - Eu devo isso a Terri. Ela precisa saber o que houve com...
- Terri precisa de um pai e um lugar seguro para crescer e se desenvolver. Ela não precisa saber dos detalhes sórdidos que giraram em torno do desaparecimento da mãe.
- Eu não quero que fale da Lacy assim! - Eric se zangou, porém Kylie não o deixou sair do balanço, e com os olhos cheios de lágrima tentou evitar nova discussão.
- Eric, eu odeio continuar me incompatibilizando contigo! - Suplicou, com doçura. - Eu me sinto arrebentada por dentro, todas as vezes que começamos a conversar sobre Lacy e terminamos brigados!Eu não quero virar a vilã da sua vida!Não quero que pense em mim de uma forma diferente daquela com que pensou na noite da estreia do "Not Easily Broken", quando consegui sentir a dor no seu olhar!Não desejo lutar com o meu melhor amigo! - Chorando, Kylie explicitou melhor a natureza de seus temores. - Não quero que mude a opinião a meu respeito!
Eric pareceu ter sido atravessado por uma lança. Acatando que perdera o controle muito facilmente, levou as mãos ao rosto e sacudiu a cabeça em desalento. Por vezes, sentia-se mais próximo da verdade; já em outras, indagava-se se realmente precisava saber da verdade, quando podia se ferir ou prejudicar outras pessoas a quem amava com a sua busca. Ele voltou a pôr os braços ao redor dos ombros de Kylie e pediu desculpas pela breve centelha de animosidade.
- Não é sua culpa, eu compreendo. Sei que está muito nervoso e não estou conseguindo te abordar de uma maneira menos intrusiva. - Ela o consolou, passando a mão pelos seus cabelos como uma irmã o faria.
Dudley não pôde adiantar os planos, pois Kylie permaneceu a tarde inteira na sua casa. Seu jeito com as crianças era admirável. A desenvoltura lhe valera o ganho instantâneo da confiança de Terri, que logo ocupava o colo de Kylie, os três jogando videogame no quarto de Charly. Mais tarde, Charly fez questão de exibir para a tia as imagens que já tinha realizado do projeto de curta-metragem. Todos na casa tiveram um dia agradável e suave, que fluiu com a facilidade com que a brisa trazia o friozinho de Toronto para dentro. Eric escondeu papéis, apagou o histórico de navegação do desktop e se manteve alerta para não soltar, de maneira alguma, dados que pudessem levar Kylie a crer que ele suspeitava de Jordan.
Depois do jantar, Kylie vestiu o terno executivo, calçou os saltos, beijou as crianças e prometeu retornar. "Em breve", avisou. Então, Charly fez o que Eric temia, e contou, inocentemente, que visitariam a tia Virgínia na casa de praia por algumas semanas, menos o pai. Kylie fingiu grata surpresa, parabenizando-os pelas férias bem no meio de uma semana de aulas, mas Eric notou que ela ficou pensativa. Quando foi deixá-la na porta do táxi, Kylie o convidou a entrar e pediu que o motorista não partisse de imediato.
- Está mandando os meninos para longe, então? Para dispor de maior amplitude de ação. - Perguntou, forçando um sorriso com os lábios bem apertados. - Não sabia que agora consegue mentir tão bem para mim.
- Preciso saber. - Reiterou, determinado a honrar a memória de Lacy.
- Por favor, não faça isso. - Ela devolveu, sucintamente. - Você tem tudo a perder, os meninos te amam e eu também. Não jogue sua vida fora. Dê as costas para a situação, com as crianças, e retome a vida. - Kylie aproximou o rosto e lhe deu um beijo na testa. Eric desceu do carro e o táxi partiu. Ele ficou ali, na calçada, próximo à cancela do condomínio, cheio de dúvidas torturantes.
Naquela noite, Eric visitou a 211 Bel Air, para a habitual conversa pontuada a goles de café, porém foi surpreendido por uma novata, uma mocinha de cabelos ruivos, parecida com aquelas enfermeiras elegantes em filmes de guerra. Ela lhe avisou que Colby não aparecia na cafeteria há dois dias. Em seis anos de amizade, Colby jamais faltara a uma jornada de trabalho, e agora isso. Deduziu que um problema sério o impedira de sair, e pediu seu endereço. A garçonete o apresentou ao gerente, que lhe forneceu os dados. Eric perguntou se sabia de alguma coisa e o gerente mencionou problemas com a namorada. A história não colou, não fazia sentido algum. Colby jamais mencionara namorada. Sim, costumava ficar com uma menina do bairro, mas jamais revelara a existência de uma namorada, tampouco se abrira quanto a eventuais problemas com a mesma.
Era tarde, quando Eric guiou até o bairro de Colby. À baixa luz, foi conduzindo o carro em baixa marcha até encontrar o número da residência. A rua era agradável e arborizada, existia uma energia diferenciada naquele lugar, tipicamente latina. Moradores mais velhos levavam as cadeiras para as calçadas, para jogar cartas ou conversar, e os mais jovens andavam em grupo e pareciam sempre ocupados. Dudley ia acionar a campainha, quando ao olhar por uma das janelas enxergou Colby ali parado, assustado. O rapaz chegou para abrir a porta e o convidou a entrar. Da televisão da sala, cômodo contíguo ao pequeno jardim, chegava a discussão acalorada de um pai mais severo que descobria a gravidez da filha na trama de uma novela mexicana. Colby pediu para que Eric se sentasse. Pela primeira vez em seis anos, o café que serviria naquela noite seria trabalho somente seu, e não das máquinas da 211 Bel Air. O rapaz trouxe a xícara sobre o pires e Eric a recebeu cuidadosamente. Ele diminuiu o volume do aparelho, explicando que a avó estava dormindo. Rodriquez foi direto ao ponto.
Era tarde, quando Eric guiou até o bairro de Colby. À baixa luz, foi conduzindo o carro em baixa marcha até encontrar o número da residência. A rua era agradável e arborizada, existia uma energia diferenciada naquele lugar, tipicamente latina. Moradores mais velhos levavam as cadeiras para as calçadas, para jogar cartas ou conversar, e os mais jovens andavam em grupo e pareciam sempre ocupados. Dudley ia acionar a campainha, quando ao olhar por uma das janelas enxergou Colby ali parado, assustado. O rapaz chegou para abrir a porta e o convidou a entrar. Da televisão da sala, cômodo contíguo ao pequeno jardim, chegava a discussão acalorada de um pai mais severo que descobria a gravidez da filha na trama de uma novela mexicana. Colby pediu para que Eric se sentasse. Pela primeira vez em seis anos, o café que serviria naquela noite seria trabalho somente seu, e não das máquinas da 211 Bel Air. O rapaz trouxe a xícara sobre o pires e Eric a recebeu cuidadosamente. Ele diminuiu o volume do aparelho, explicando que a avó estava dormindo. Rodriquez foi direto ao ponto.
- Eu entrei pela janela de sua casa e deixei a fita no aparelho. - Foi como se tivesse paralisado Eric com a verdade. Dudley deteve até mesmo o ato de erguer a xícara do pires. Seus olhos viraram a imagem do puro desapontamento. - Queria que assistisse ao filme. Faltei os últimos dias pois a garota com quem eu saia, no bairro, calhou de procurar a delegacia para me acusar de agressão.
- Não entendo. - Eric inclinou um pouco a cabeça, ansioso para que Colby "puxasse a cortina" e revelasse o Mágico de Oz.
- Entenderá. - Enquadrou-o, com um olhar duro. - Quando Lacy apareceu na La Fabrique para a audição, ocorreu-me a impressão de já tê-la visto em algum lugar. Você sabe que trabalhei como projecionista na Cinemax em downtown Toronto, antes da 211 Bel Air. Quando me enviou uma mensagem do correio eletrônico com algumas fotos suas ao lado da Lacy, imprimi-as e as levei a um colega que hoje está concluindo o curso de cinema. Ele a reconheceu de imediato, mas não pelo nome "Lacy Morel". Na trilogia de pornôs softcore em que atuou, ela está creditada como Cheryl-alguma-coisa. Não lembro o sobrenome, pouco importa. Custei a acreditar, até o Seth me trazer as fitas desse lixo, e não duvidei de que Cheryl e Lacy são a mesma pessoa.
- Por que não chegou até a mim e me contou diretamente? - Questionou-o, magoado.
- Porque assim como ocorre a você, a minha vida corre riscos. Ao dar o meu jeito para que visse a fita, não pretendi jogar a honra de Lacy na lama. O meu objetivo foi provar de uma vez por todas que as pessoas não são quem parecem ser e todo esse caso parece apenas a fachada para coisas muito mais sinistras que estamos para descobrir... E que não deveríamos!
- Também me sinto inquieto. Uma armadilha está sendo urdida. - Eric lutou contra a vontade, antes de admitir, em um sopro. - Eu acho que isso foi uma queima de arquivo. Jordan mandou matar Hammond, Lacy sabia da parada e, mais tarde, tendo como provar seu envolvimento no assassinato, despertou a preocupação de Jordan. Quando eu e Lacy nos apaixonamos Jordan temeu que Lacy vazasse informações e tramou um cenário para a "fuga" com o diretor do departamento de dança.
- Como pôs três pessoas tão díspares no mesmo cenário? - Colby franziu a testa.
Eric deu voz à teoria que "escutara de Allie". Quando acabou de defendê-la, ele e Colby tinham deixado a casa da avó e chegado ao fim da rua de restaurantes típicos do quarteirão. Procuraram descansar em uma pracinha localizada entre as duas calçadas de passeio defronte a uma loja de artigos religiosos. Uma Nossa Senhora de olhos tristíssimos era alumiada pelo terço de pisca-pisca azul que a envolvia pelo pescoço. Os amigos se sentaram no banco de madeira da pracinha.
- Agora, tenho uma ótima explicação para a acusação daquela vadia contra mim. - Colby grunhiu. - Ela deve estar metida nessa treta.
- Nós vamos apertá-la. - Eric recomendou. - Um pouco de pressão e ela dirá a verdade.
- O que fará agora?
- Amanhã, Charly, Terri e a senhora Medina deixarão Toronto, o que me traz certo alívio. - Eric emitiu um murmúrio desafogado e esfregou as mãos geladas. - Preciso de alguém que a partir do chip do celular coloque-me no lugar exato onde Hammond tentou fazer a ligação para minha casa.
- Amanhã, apareça para almoçar conosco. - Colby deu a dica, levantando-se do encosto e estalando a espinha, com certa dor. - Traga o chip. Acho que a sorte finalmente virou a seu favor.
Antes de amanhecer, Eric acordou as crianças para conversarem e prometeu que logo se reencontrariam. Charly estava muito feliz pois já conversara com a tia Virgínia e ela achara ótimo que o menino quisesse levar a Pernetinha para passar férias na praia! Por seu turno, a vida difícil de até então fizera da menininha Terri uma sobrevivente, e ela lidava muito bem com tantas novidades. Na hora da despedida, foram os adultos que criaram uma cena, não as crianças. A senhora Medina e Virgínia pressentiam que Eric estava para dar um passo maior do que as pernas, em nome de seu severo código de honra, porém nada podiam fazer, a não ser rezar.
Eric compareceu ao almoço e apreciou a oportunidade de conhecer a avó de Colby, uma velhinha muito simpática que tinha no neto a grande razão de viver. `A mesa, Eric e Colby falaram sobre momentos felizes, tais como as conversas na 211 Bel Air. Dudley perguntou se a velhinha se sentia realizada agora que em menos de um semestre o neto estaria se formando, e já o olhar que a idosa dirigiu ao rapaz disse tudo! Eric foi convidado a permanecer para o café, e antes que dissesse sim, Colby respondeu pelo mesmo, afirmando que Eric ficaria para a sobremesa, porém que gostaria de levá-lo para conhecer o bairro, uma breve caminhada pela comunidade para que conhecesse a essência alegre e latina daquela gente. A velhinha pediu que fossem sossegadamente, pois assim daria tempo para preparar algo especial. Os dois amigos deixaram a casa pelo caminho do pequeno jardim, Colby fechando a precária portinhola de ferro ao passar por último. Os dois seguiram caminho pelas calçadas.
- Não há outra escolha para o seu problema do chip. – Colby justificou-se. – Nem todos do bairro vivem honestamente, contudo prefiro não julgá-los. Alguns escolhem o caminho mais fácil e sabem que terão de prestar contas mais adiante. De toda sorte, há um amigo meu que terá como decifrar os mistérios do chip do Hammond.
- Olhe, não se preocupe, ninguém saberá como descobri. Apenas preciso de informações que me coloquem no lugar da última ligação.
Antes de amanhecer, Eric acordou as crianças para conversarem e prometeu que logo se reencontrariam. Charly estava muito feliz pois já conversara com a tia Virgínia e ela achara ótimo que o menino quisesse levar a Pernetinha para passar férias na praia! Por seu turno, a vida difícil de até então fizera da menininha Terri uma sobrevivente, e ela lidava muito bem com tantas novidades. Na hora da despedida, foram os adultos que criaram uma cena, não as crianças. A senhora Medina e Virgínia pressentiam que Eric estava para dar um passo maior do que as pernas, em nome de seu severo código de honra, porém nada podiam fazer, a não ser rezar.
Eric compareceu ao almoço e apreciou a oportunidade de conhecer a avó de Colby, uma velhinha muito simpática que tinha no neto a grande razão de viver. `A mesa, Eric e Colby falaram sobre momentos felizes, tais como as conversas na 211 Bel Air. Dudley perguntou se a velhinha se sentia realizada agora que em menos de um semestre o neto estaria se formando, e já o olhar que a idosa dirigiu ao rapaz disse tudo! Eric foi convidado a permanecer para o café, e antes que dissesse sim, Colby respondeu pelo mesmo, afirmando que Eric ficaria para a sobremesa, porém que gostaria de levá-lo para conhecer o bairro, uma breve caminhada pela comunidade para que conhecesse a essência alegre e latina daquela gente. A velhinha pediu que fossem sossegadamente, pois assim daria tempo para preparar algo especial. Os dois amigos deixaram a casa pelo caminho do pequeno jardim, Colby fechando a precária portinhola de ferro ao passar por último. Os dois seguiram caminho pelas calçadas.
- Não há outra escolha para o seu problema do chip. – Colby justificou-se. – Nem todos do bairro vivem honestamente, contudo prefiro não julgá-los. Alguns escolhem o caminho mais fácil e sabem que terão de prestar contas mais adiante. De toda sorte, há um amigo meu que terá como decifrar os mistérios do chip do Hammond.
- Olhe, não se preocupe, ninguém saberá como descobri. Apenas preciso de informações que me coloquem no lugar da última ligação.
- Você as terá agora. – Colby se comprometeu.
O amigo de Colby se chamava Lou, e apesar de inicialmente reticente em ajudar um estranho, a consideração por Colby foi mais forte do que a natural desconfiança, Os dois foram levados corredor adentro até a uma salinha onde Lou administrava as operações ilícitas que lhe rendiam muito dinheiro, tais como clonagem de cartão e por aí afora. Ele puxou a cadeira de uma escrivaninha de verniz gasto, ocupada por cacarecos eletrônicos desmontados a revelar placas de chips e parafernálias que nenhum dos dois leigos tinha como entender. A "mágica" era feita por um software desenvolvido clandestinamente, que não apenas guardava a propriedade de ler dados de chip como também vincular cada chamada `as estações de Toronto encarregadas da conexão original. A análise do chip de Hammond comprovava que estivera em algum ponto de um determinado quarteirão da Dundas Street, cuja casa mais notória e fervilhante era a do "Hard Rock Café". Agora, Colby e Eric sabiam onde procurar. Triunfantes, tomaram o caminho de volta para a casa, para o café e a sobremesa.
Antes de regressar para o condomínio, Eric contou a Colby que imprimiria algumas fotos de Lacy em casa e as levaria ao "Hard Rock Café". Se ela tivesse assistido a seja lá o que fosse que tinha ocorrido a Hammond e Jordan, as pessoas da casa, pelo menos as veteranas, se recordariam. Considerando a difícil história de vida de Lacy, não estava ali a passeio, mas trabalhando, provavelmente como garçonete. O rapaz aconselhou que guardasse bem o celular de Hammond, seu único verdadeiro trunfo contra ameaças que sequer conseguiam compreender. "Aparecerei na 211 Bel Air depois de conseguir as respostas na Dundas", Eric prometeu. "Quanto `a sua namorada, a problemática passa pelo mistério de quem a teria convencido a te...".
- Eu cuidarei dela, Eric. Não lhe farei mal algum, mas precisamos conversar e só me satisfarei quando ela me disser o nome de quem armou essa treta para cima de mim!
- Conversaremos na 211! – Acertou, e entrou no carro, ao passo que Colby deu uma breve corrida para baixo do alpendre de casa antes que a chuva engrossasse.
Por volta das 18:00, Eric tomou banho e se vestiu. Preparava alguma bobagem para comer antes de sair, quando Charly ligou de Ward’s Island para dizer que tinham todos chegado bem. Sentiu-se muito melhor ao escutar a voz do filho falando com um tipo de entusiasmo a deixar claro que mesmo que estivesse crescendo muito rapidamente, ainda conservava traços da infância. Virgínia pediu para que Eric se juntasse `a família, e foi o primeiro momento desde o sumiço de Lacy quando verdadeiramente considerou pôr termo `a volátil situação, talvez retomar a simplicidade da vida que conhecia até antes de esbarrar em Lacy na seleção para "Wings of the Dove". Tinha se afastado da La Fabrique, esquecera os cuidados mais primários com a saúde e a higiene, a barba por fazer representava muito bem seu péssimo estado. Com os olhos fechados e em dura reflexão, percebeu que subestimara a tranquilidade da época em que passara madrugadas virando xícaras de café na 211 Bel Air, jogando conversa fora com Colby. Depois de desligar o telefone, porém, percebeu que estava definitivamente aprisionado `a própria obsessão e tinha de descobrir o que acontecera a Lacy, quem armara a cilada e por quê. Enquanto parte de si o incitava a jogar celular, chip, fotos e artigos no lixo, a outra parte que o amarrava ao passado já o tinha conduzido meio caminho a Dundas Street.
Forjando seu caminho entre baladeiros em direção ao bar do "Hard Rock Café", Eric recordou-se da razão pela qual odiava festas. A música alta, os gritos, as pessoas se esbarrando até para caminhar, a soma de todos os elementos que o faziam se sentir datado traduzia a constatação de que Eric não pertencia ao meio. O solícito bartender que enxugava copos com uma pequena toalha aproximou-se do balcão para atendê-lo. Eric explicou que procurava uma amiga que trabalhara no lugar há muitos anos, datando de 2004. O rapaz explicou que prestava serviços há apenas um semestre no "Hard Rock Café", porém o apresentou a uma garçonete veterana que trabalhava na casa desde a inauguração, em meados dos anos 90.
Por volta das 18:00, Eric tomou banho e se vestiu. Preparava alguma bobagem para comer antes de sair, quando Charly ligou de Ward’s Island para dizer que tinham todos chegado bem. Sentiu-se muito melhor ao escutar a voz do filho falando com um tipo de entusiasmo a deixar claro que mesmo que estivesse crescendo muito rapidamente, ainda conservava traços da infância. Virgínia pediu para que Eric se juntasse `a família, e foi o primeiro momento desde o sumiço de Lacy quando verdadeiramente considerou pôr termo `a volátil situação, talvez retomar a simplicidade da vida que conhecia até antes de esbarrar em Lacy na seleção para "Wings of the Dove". Tinha se afastado da La Fabrique, esquecera os cuidados mais primários com a saúde e a higiene, a barba por fazer representava muito bem seu péssimo estado. Com os olhos fechados e em dura reflexão, percebeu que subestimara a tranquilidade da época em que passara madrugadas virando xícaras de café na 211 Bel Air, jogando conversa fora com Colby. Depois de desligar o telefone, porém, percebeu que estava definitivamente aprisionado `a própria obsessão e tinha de descobrir o que acontecera a Lacy, quem armara a cilada e por quê. Enquanto parte de si o incitava a jogar celular, chip, fotos e artigos no lixo, a outra parte que o amarrava ao passado já o tinha conduzido meio caminho a Dundas Street.
Forjando seu caminho entre baladeiros em direção ao bar do "Hard Rock Café", Eric recordou-se da razão pela qual odiava festas. A música alta, os gritos, as pessoas se esbarrando até para caminhar, a soma de todos os elementos que o faziam se sentir datado traduzia a constatação de que Eric não pertencia ao meio. O solícito bartender que enxugava copos com uma pequena toalha aproximou-se do balcão para atendê-lo. Eric explicou que procurava uma amiga que trabalhara no lugar há muitos anos, datando de 2004. O rapaz explicou que prestava serviços há apenas um semestre no "Hard Rock Café", porém o apresentou a uma garçonete veterana que trabalhava na casa desde a inauguração, em meados dos anos 90.
Eric a convidou a se sentar, e os dois foram conversar em um lugar do mezanino de onde podiam enxergar a pista de dança. O viúvo apresentou as impressões das fotos de Lacy e o reconhecimento restou patente no olhar da mulher. Conhecera Lacy e sabia de sua vida. Não sabia o que tinha acontecido `a amiga, pois ela deixara o "Hard Rock Café" no início de 2005.
- Sou o namorado de Lacy, senhorita. Ela desapareceu há algumas semanas sem deixar pistas. A polícia não tem sido de muita valia e estou lutando para descobrir a verdade sobre o que aconteceu. Acredito que Lacy tenha sido assassinada como queima de arquivo, mas nada posso provar ainda. Acho que Lacy esteja indiretamente ligada a um homicídio relativamente notório que se deu em Toronto, seis anos atrás. "Jason Hammond". O nome lhe é familiar?
- Eu me recordo de tudo. – Respondeu, a voz deixando-a pesarosa e preocupada ao morder a isca.
- Por favor, ajude-me. – Eric suplicou, segurando-a pela mão. Algo no contato os aproximou e a garçonete o respondeu com um olhar cúmplice. – Eu tenho uma ideia, mas necessito de alguém que me coloque na cena que se desenrolou naquela madrugada em 2004.
- O caso envolve gente muito poderosa. Acompanhe-me.
Os dois atravessavam o túnel que levava `a saída, quando a moça se deteve e explicou que fora ali onde tudo começara. Hammond apontava o dedo para duas mulheres que haviam saído da festa e a discussão foi se tornando cada vez mais alta. Lacy voltava do bar quando se deparou com a cena. Provavelmente constrangido, Hammond começou a deixar o "Hard Rock Café", mas foi perseguido por uma das moças, a de cabelos compridos, enquanto a outra, de cabelos curtos, tentava contemporizar, sem sucesso. Lacy e a garçonete veterana permaneceram no túnel assistindo `a briga que agora fora parar na calçada. Contrariando o conselho da amiga para que deixassem o trio resolver as próprias diferenças, Lacy lentamente foi atravessando o túnel, aproximando-se da delicada situação, sem ser percebida, ao menos inicialmente. Em dado momento, Hammond exibiu o celular, furioso, e disse "vou contar tudo para ele". A garota de cabelos compridos tomou-o de suas mãos, partiu-o ao meio e arremessou os pedaços no meio-fio. O rapaz perdeu a paciência e já foi entrando no carro, enquanto a moça ficou dando murros no vidro, ordenando que a escutasse.
Os dois atravessavam o túnel que levava `a saída, quando a moça se deteve e explicou que fora ali onde tudo começara. Hammond apontava o dedo para duas mulheres que haviam saído da festa e a discussão foi se tornando cada vez mais alta. Lacy voltava do bar quando se deparou com a cena. Provavelmente constrangido, Hammond começou a deixar o "Hard Rock Café", mas foi perseguido por uma das moças, a de cabelos compridos, enquanto a outra, de cabelos curtos, tentava contemporizar, sem sucesso. Lacy e a garçonete veterana permaneceram no túnel assistindo `a briga que agora fora parar na calçada. Contrariando o conselho da amiga para que deixassem o trio resolver as próprias diferenças, Lacy lentamente foi atravessando o túnel, aproximando-se da delicada situação, sem ser percebida, ao menos inicialmente. Em dado momento, Hammond exibiu o celular, furioso, e disse "vou contar tudo para ele". A garota de cabelos compridos tomou-o de suas mãos, partiu-o ao meio e arremessou os pedaços no meio-fio. O rapaz perdeu a paciência e já foi entrando no carro, enquanto a moça ficou dando murros no vidro, ordenando que a escutasse.
Eric e a garçonete encontravam-se agora na calçada onde tudo se desdobrara. Tanto na história quanto naquele exato momento, seis anos após o homicídio, apesar do glamour e do festival de sinais gigantescos e vivos em neon em Dundas Street, o cenário possuía uma qualidade quase irreal a respeito, pois não havia transeuntes ou carros nas ruas. Toda a agitação e a festa concentravam-se dentro das boates, e o lado de fora ficava apenas com uma elegância nostálgica e melancólica. Depois que Hammond arrancou com o carro, highway afora, as duas garotas começaram a discutir feio e a de cabelo curto pareceu ligar para alguém, enquanto a outra começou a chorar. A garçonete que agora contava a história não soube precisar com quem a moça conversara, o teor da discussão, todavia viu claramente que uma vez que percebera que Lacy tinha assistido a tudo, a amiga fora enquadrada no canto e ameaçada. Somente depois que as duas partiram, Lacy deu conta do celular e teve a ideia de guardá-lo consigo, para depois devolver ao dono. Na manhã seguinte, quando o assassinato ganhou destaque em todos os canais, Lacy decidiu escondê-lo, caso fosse ameaçada pela mesma mulher.
- A senhora pode me fazer mais um favor? – Eric perguntou em um tom ainda mais imperativo, sem esperar concordância. – A senhora vê algo que lhe chama a atenção nesta foto aqui? – Tirou do bolso do paletó a impressão da coluna social, do artigo de 2002, a foto das meninas celebrando em Bennet Gates.
A mulher apontou para a dupla `a direita no quadro, Jordan e Kylie, e sentenciou, sem hesitação: "Essas duas, correto. Elas eram namoradas, costumavam frequentar a casa. Não sabíamos muito sobre as duas, só que eram de famílias muito ricas. Elas sempre foram muito discretas, mas tinham um caso, ao menos `a época, pois depois da confusão, deixaram de vir. Em janeiro de 2005, sem dar explicações, a Lacy me agradeceu por tudo e pediu demissão ao dono. E foi a última vez que a vi". Parecia tão simples que Eric se sentiu estúpido por não ter somado as pistas antes. Hammond o aconselhara a se afastar de Kylie, então já existia animosidade entre os dois. Hammond confrontara Kylie e Jordan no "Hard Rock Café" e ameaçara contar a verdade a Dudley. A última ligação fora uma tentativa desesperada de avisá-lo de Kylie.
Mesmo profundamente abalado e cheio de horror, Eric não se imiscuiu do dever de visitar Colby na 211 Bel Air. O rapaz parecia esperar a sua chegada, pois aguardava na área dos cestos de lixo reciclável, esfregando as mãos, indo de lá para cá, impaciente. Eric estacionou o carro do jeito que entrou na 211 Bel Air e foi saindo do carro com as novas e devastadoras informações. Colby também foi muito rápido e conseguiu atropelá-lo para começar na dianteira.
- Aquela mulher policial, ela está tramando algo terrível! Armou para cima de nós dois! Consegui arrancar a verdade da Aparecida! – Colby foi arrastando o amigo cafeteria adentro pelo braço. – O irmão da Cida sempre teve problemas com arruaças de gangue e brigas. A tira, Jordan, tinha toda a ficha do moleque. Ela a chantageou. Avisou que faria a ficha do moleque desaparecer, caso pudesse lhe prestar um "favor". Ela ameaçou a Cida, que caiu como pata e fez aquela acusação mentirosa. Jordan está nos alertando, "Parem por aqui, posso fazer pior". Não temos como enfrentar a Polícia, senhor Dudley!
- Ela matou o Hammond. – Declarou, secamente, com a convicção de quem apostaria a própria vida na afirmação. O segundo trecho exigiu mais a Eric, que ainda custava a acreditar, ou talvez apenas não quisesse. – Talvez Kylie esteja envolvida. Hammond viu as duas juntas no "Hard Rock Café", elas tinham um romance na época.
- Se ela voltar ao apartamento de Lacy, e vir o rombo que ficou na parede, vai deduzir que descobriu a localização do celular, a única coisa que ligava Lacy `a madrugada da morte de Hammond e fazia da tua namorada a testemunha-chave. – Colby concatenou, pondo e comprimindo o pó de café no grupo de extração da cafeteira. – E agora?
- Agora? – Repetiu, incrédulo. – Preciso confrontar a Kylie a respeito. – Ao imaginar as terríveis implicações do assassinato para a vida de Kylie, se deu conta de que ainda lhe reservava o mesmo cuidado que na noite da estreia do "Not Easily Broken" permitira que a parabenizasse mesmo que não a tivesse ganhado, apenas porque sabia que se sentiria melhor ao lado de Cary, o homem que preferira. Novamente, Eric recebia um duro golpe. Desejava que os temores não vingassem, para o próprio bem da Kylie, não propriamente para o seu. – Estou com medo, Colby.
Os dois se entreolharam em silêncio. Uma família composta pelos pais e um casal de filhos fez o sino tilintar ao entrar na 211 Bel Air. Eric sinalizou com um discreto movimento de cabeça para que fosse atendê-los e não se preocupasse com sua pessoa. Na televisão, um filme de horror estava para começar e parecia promissor. "Baseado na obra de Patrícia Highsmith", afirmava a legenda. Da cozinha, vinha o rumor de Colby trabalhando, fritando ovos e tiras de bacon, e do restaurante a conversa animada de uma família unida e feliz.
Quando tomou o caminho de casa, a chuva adquirira uma agressividade torrencial. Mesmo dirigir parecia complicado, e enquanto esperou a cancela subir, na entrada do condomínio, arrepiou-se ao considerar que se Colby já conseguira entrar para deixar uma fita de vídeo na sala, alguém que desejasse lhe fazer mal encontraria uma maneira ainda mais sutil. A casa encontrava-se mergulhada na escuridão, abrasiva de tão fria. Eric acendeu as luzes da cozinha e corredor. Pousou as chaves do carro e casa sobre a mesa, produzindo um barulho que soou reconfortante. Ele foi trabalhar no gabinete. Sentado `a mesa, não soube exatamente o que fazer, muito embora sentisse nos ossos que precisava agir rapidamente. Ele ligou o aparelho de televisão e o filme baseado na obra de Patrícia Highsmith havia acabado. No jornal da madrugada, uma matéria sobre uma carreta que transportava troncos e tombara logo na principal highway no sentido de Ontário. As cenas de engarrafamento eram épicas, enormes, como que tiradas de um filme de horror onde havia a evacuação de uma cidade após uma grande catástrofe, talvez um vírus potencializado da Raiva transformando pessoas comuns em monstros assassinos. Eric sorriu e considerou que passara tempo demais cercado pelos cartazes dos filmes prediletos de Charly. A reportagem a seguir, entretanto, lançou-o novamente `a escuridão das dúvidas e incertezas, quando Dudley identificou claramente a foto de Lacy Morel. Assim que viu o rosto de Lacy, soube que o pior ocorrera. Em um grande esforço, levou o volume ao máximo. Suas pernas pareciam não obedecer mais ao comando.
"... Lacy Morel, trinta e dois anos de idade, e Pryce Stephens, cinquenta e três, encontrados mortos em um motel em Hell’s Kitchen, no que parece ter sido um caso de homicídio seguido de suicídio. A jovem havia estudado sob a tutela de Stephens, até que uma torção no tornozelo a obrigara a parar. Não se sabe ainda quando o romance entre professor e aluna desabrochou, mas...". E foi tudo o que Eric conseguiu ouvir. Inconsolável, as mãos foram ao rosto molhado e o corpo deslizou lentamente ao chão, a mente gradualmente obscurecendo e fechando. A pior parte de despertar foi dar conta de que o horror não fora produto do pesadelo. Enquanto ocupara o misterioso limiar entre inconsciência e despertar, Dudley esteve em dúvida se o pior de fato acontecera ou se ao acordar encontraria Lacy feliz e sorridente ao lado na cama.
Quando tomou o caminho de casa, a chuva adquirira uma agressividade torrencial. Mesmo dirigir parecia complicado, e enquanto esperou a cancela subir, na entrada do condomínio, arrepiou-se ao considerar que se Colby já conseguira entrar para deixar uma fita de vídeo na sala, alguém que desejasse lhe fazer mal encontraria uma maneira ainda mais sutil. A casa encontrava-se mergulhada na escuridão, abrasiva de tão fria. Eric acendeu as luzes da cozinha e corredor. Pousou as chaves do carro e casa sobre a mesa, produzindo um barulho que soou reconfortante. Ele foi trabalhar no gabinete. Sentado `a mesa, não soube exatamente o que fazer, muito embora sentisse nos ossos que precisava agir rapidamente. Ele ligou o aparelho de televisão e o filme baseado na obra de Patrícia Highsmith havia acabado. No jornal da madrugada, uma matéria sobre uma carreta que transportava troncos e tombara logo na principal highway no sentido de Ontário. As cenas de engarrafamento eram épicas, enormes, como que tiradas de um filme de horror onde havia a evacuação de uma cidade após uma grande catástrofe, talvez um vírus potencializado da Raiva transformando pessoas comuns em monstros assassinos. Eric sorriu e considerou que passara tempo demais cercado pelos cartazes dos filmes prediletos de Charly. A reportagem a seguir, entretanto, lançou-o novamente `a escuridão das dúvidas e incertezas, quando Dudley identificou claramente a foto de Lacy Morel. Assim que viu o rosto de Lacy, soube que o pior ocorrera. Em um grande esforço, levou o volume ao máximo. Suas pernas pareciam não obedecer mais ao comando.
"... Lacy Morel, trinta e dois anos de idade, e Pryce Stephens, cinquenta e três, encontrados mortos em um motel em Hell’s Kitchen, no que parece ter sido um caso de homicídio seguido de suicídio. A jovem havia estudado sob a tutela de Stephens, até que uma torção no tornozelo a obrigara a parar. Não se sabe ainda quando o romance entre professor e aluna desabrochou, mas...". E foi tudo o que Eric conseguiu ouvir. Inconsolável, as mãos foram ao rosto molhado e o corpo deslizou lentamente ao chão, a mente gradualmente obscurecendo e fechando. A pior parte de despertar foi dar conta de que o horror não fora produto do pesadelo. Enquanto ocupara o misterioso limiar entre inconsciência e despertar, Dudley esteve em dúvida se o pior de fato acontecera ou se ao acordar encontraria Lacy feliz e sorridente ao lado na cama.
Era uma manhã cinzenta e hostil, as lâminas de vidro das janelas trepidando ao castigo da chuva incessante. Quando acordou, Eric tomou conta de se encontrar no chão, o rosto banhado de lágrimas. Mesmo no limbo entre inconsciência e despertar, parte de si sabia que Lacy morrera e toda esperança, inexpressiva que fosse, jamais seria validada por uma boa notícia. Ele não se levantou de imediato. Ficou ali, as costas contra a parede, pensativo. Pesquisou na internet, e pelas últimas horas, novas informações haviam chegado sobre a morte da aluna e professor em Hell’s Kitchen. Ele previu astuciosamente que os culpados buscariam simular uma fuga entre dois amantes – uma jovem e um sujeito mais velho – todavia não anteviu o fim que lhes dariam. Mesmo na conclusão da cilada, a pessoa que armara o plano tinha sido maquiavelicamente estratégica. Parecia sensacionalista e contemporâneo: o professor mais velho, inseguro e ciumento atirando no rosto da namorada e se matando com uma overdose de barbitúricos.
Havia uma porção de ligações de Colby na secretaria eletrônica, todas solicitando que correspondesse ao telefonema assim que possível, pois tinham surgido fatos novos. Admirou o cuidado e a compaixão do amigo, que se esmerou para não simplesmente deixar tão horrorosa notícia sem conversar pessoalmente com Dudley. Havia outras mensagens da turma da La Fabrique. Eric contatou um dos advogados do setor jurídico do escritório e pediu que acompanhasse o caso pessoalmente em Nova York e a qualquer custo resolvesse os entraves da polícia e da Justiça para trazer o corpo de Lacy de volta a Toronto. Depois, a ligação seguinte foi para Ward’s Island. Virgínia soou assustada e inconsolável. Eric sentiu que parte de si morreu ao conversar com a pura e inocente Terri. A menininha perguntou quando se veriam novamente.
- Não conversem sobre o assunto, não abram televisão esta semana. – Enfatizou, e a senhora Medina, sempre seu braço direito, assumiu o compromisso.
- A menina jamais saberá, senhor Dudley. Não se preocupe. Apenas venha para cá!
- Breve! – Jurou.
Sabendo que os colegas insistiriam em conversar sobre Lacy, Eric desligou o celular e se trancou no gabinete para conseguir raciocinar. Dispusera-se a juntar as evidências mais palpitantes e levá-las a Nova York, onde o tratamento `as provas seria imparcial e Jordan acabaria tendo muito a explicar. Depois que a verdade começara a aparecer, Eric vinha se sentindo cada vez mais isolado. Não podia confiar na Polícia e não sabia o quanto Jordan temia que ele falasse. A posse do celular de Hammond poderia derivar para duas situações: Jordan proporia um acordo para deixá-lo em paz desde que entregasse o chip; Jordan viria para cima com tudo, para consegui-lo sem acordos, através da força. Conhecia pouco sobre Harwood para tentar imaginar seu próximo movimento de peças, todavia se convencera de que não custaria a procurá-lo. Embora fossem muitas as possibilidades, seu código de honra não lhe permitiria outra saída que não lutar para que Jordan pagasse pelo crime. Revisitava as hipóteses, mentalmente. Sua estratégia parecia sólida, forte. Quando pensava em Kylie, contudo, a segurança caía por terra e ele hesitava. A solução obrigatoriamente passava por Kylie e, portanto, Eric precisava conversar com a amiga antes de deixar Toronto. Tinha de saber que ela não participara diretamente do homicídio.
As horas demoravam a passar, Eric preso ao dilema moral a envolver Kylie. Vestiu uma boa roupa para frio e apanhou o táxi para downtown Toronto. Não quis usar o próprio carro, focava-se em passar desapercebido. O anonimato lhe serviria tão bem quanto a coberta quente nas noites mais geladas. Sob anonimato, os pensamentos lhe ocorriam com mais clareza. Desceu do táxi uma quadra antes do destino original pois não tolerou o engarrafamento. Entregou uma nota de 50 dólares ao motorista e não fez questão de esperar o troco. Eric precisou se sentar em uma das mesas exteriores de uma lanchonete, quase defronte `a agência de viagem, apenas para examinar melhor as pessoas e o ambiente, assegurar-se de que não fora seguido. Depois de esperar bastante, quando o semáforo fechou, atravessou a avenida, entrando discretamente na agência, de cabeça baixa.
O voo deixaria o Pearson `as 23:00 do dia seguinte. Eric guardou o bilhete e voltou a se diluir na multidão, esperando que as horas se passassem mais rapidamente. Houve um momento em que ligou o celular apenas para ver se Colby o tinha procurado. Não havia chamadas do rapaz, um alívio, já que nada de diferente acontecera desde a última vez a ponto de meritar a chamada; no entanto, encontrou mais de 20 ligações variadas, entre os números o de Kylie, que aparecia num total de 7 chamadas ignoradas. Naquele mesmo fim de tarde, foi de última hora que Eric resolveu arrumar a bolsa com as roupas e as coisas, fechar a casa e aguardar a hora do voo em algum hotel mais próximo ao aeroporto. Caminhava apressadamente para o terminal do ônibus do shopping-center, quando ao passar próximo a um bistrô da praça de alimentação pôde sentir quando uma figura deixou a mesa, de imediato, apenas para abordá-lo. Em um segundo, a pessoa tinha as mãos sobre seus ombros. Era Cary St.Pierre.
Pensou em quase todos os ângulos, não em todos, porque, curiosamente, acabou por se esquecer de elementos muito simples, tais como o fato de que a cobertura de uma das torres comerciais que compunham o shopping sediava o endereço profissional de Cary St. Pierre. O advogado o abordou com um olhar preocupado e um sorriso vago, quase desconfiado. Eric forçou a simpatia, apertando-lhe a mão e fingindo pressa, mas Cary voltou a detê-lo. Mencionou o celular desligado e que tanto ele quanto Kylie tinham passado o dia procurando entrar em contato em razão do acontecido a Lacy. Eric explicou que precisava voltar para casa, pois temia deixar as crianças a sós, principalmente por causa da filha de Lacy, que de nada sabia. Cary fez questão de lhe mostrar que sabia que Eric mentia. "Kylie me contou que mandou as crianças para ficar com a tia", ele retrucou. Eric começou a gaguejar, realmente atordoado pelo flagra, mas Cary foi mais rápido. "Por favor, venha comigo", disse, e praticamente o pôs dentro do elevador panorâmico.
Sabendo que os colegas insistiriam em conversar sobre Lacy, Eric desligou o celular e se trancou no gabinete para conseguir raciocinar. Dispusera-se a juntar as evidências mais palpitantes e levá-las a Nova York, onde o tratamento `as provas seria imparcial e Jordan acabaria tendo muito a explicar. Depois que a verdade começara a aparecer, Eric vinha se sentindo cada vez mais isolado. Não podia confiar na Polícia e não sabia o quanto Jordan temia que ele falasse. A posse do celular de Hammond poderia derivar para duas situações: Jordan proporia um acordo para deixá-lo em paz desde que entregasse o chip; Jordan viria para cima com tudo, para consegui-lo sem acordos, através da força. Conhecia pouco sobre Harwood para tentar imaginar seu próximo movimento de peças, todavia se convencera de que não custaria a procurá-lo. Embora fossem muitas as possibilidades, seu código de honra não lhe permitiria outra saída que não lutar para que Jordan pagasse pelo crime. Revisitava as hipóteses, mentalmente. Sua estratégia parecia sólida, forte. Quando pensava em Kylie, contudo, a segurança caía por terra e ele hesitava. A solução obrigatoriamente passava por Kylie e, portanto, Eric precisava conversar com a amiga antes de deixar Toronto. Tinha de saber que ela não participara diretamente do homicídio.
As horas demoravam a passar, Eric preso ao dilema moral a envolver Kylie. Vestiu uma boa roupa para frio e apanhou o táxi para downtown Toronto. Não quis usar o próprio carro, focava-se em passar desapercebido. O anonimato lhe serviria tão bem quanto a coberta quente nas noites mais geladas. Sob anonimato, os pensamentos lhe ocorriam com mais clareza. Desceu do táxi uma quadra antes do destino original pois não tolerou o engarrafamento. Entregou uma nota de 50 dólares ao motorista e não fez questão de esperar o troco. Eric precisou se sentar em uma das mesas exteriores de uma lanchonete, quase defronte `a agência de viagem, apenas para examinar melhor as pessoas e o ambiente, assegurar-se de que não fora seguido. Depois de esperar bastante, quando o semáforo fechou, atravessou a avenida, entrando discretamente na agência, de cabeça baixa.
O voo deixaria o Pearson `as 23:00 do dia seguinte. Eric guardou o bilhete e voltou a se diluir na multidão, esperando que as horas se passassem mais rapidamente. Houve um momento em que ligou o celular apenas para ver se Colby o tinha procurado. Não havia chamadas do rapaz, um alívio, já que nada de diferente acontecera desde a última vez a ponto de meritar a chamada; no entanto, encontrou mais de 20 ligações variadas, entre os números o de Kylie, que aparecia num total de 7 chamadas ignoradas. Naquele mesmo fim de tarde, foi de última hora que Eric resolveu arrumar a bolsa com as roupas e as coisas, fechar a casa e aguardar a hora do voo em algum hotel mais próximo ao aeroporto. Caminhava apressadamente para o terminal do ônibus do shopping-center, quando ao passar próximo a um bistrô da praça de alimentação pôde sentir quando uma figura deixou a mesa, de imediato, apenas para abordá-lo. Em um segundo, a pessoa tinha as mãos sobre seus ombros. Era Cary St.Pierre.
Pensou em quase todos os ângulos, não em todos, porque, curiosamente, acabou por se esquecer de elementos muito simples, tais como o fato de que a cobertura de uma das torres comerciais que compunham o shopping sediava o endereço profissional de Cary St. Pierre. O advogado o abordou com um olhar preocupado e um sorriso vago, quase desconfiado. Eric forçou a simpatia, apertando-lhe a mão e fingindo pressa, mas Cary voltou a detê-lo. Mencionou o celular desligado e que tanto ele quanto Kylie tinham passado o dia procurando entrar em contato em razão do acontecido a Lacy. Eric explicou que precisava voltar para casa, pois temia deixar as crianças a sós, principalmente por causa da filha de Lacy, que de nada sabia. Cary fez questão de lhe mostrar que sabia que Eric mentia. "Kylie me contou que mandou as crianças para ficar com a tia", ele retrucou. Eric começou a gaguejar, realmente atordoado pelo flagra, mas Cary foi mais rápido. "Por favor, venha comigo", disse, e praticamente o pôs dentro do elevador panorâmico.
Confuso, Eric foi conduzido ao escritório do advogado. Ele não adiantou praticamente nada do que havia a tratar. As mãos de Eric suavam. Imaginou se o rapaz conseguia enxergar sua ansiedade. Cary ocupou seu lugar `a mesa e fez um gesto com a mão, convidando-o a fazer o mesmo na cadeira diante de si. Repentinamente, os saltos altos golpeando o mármore reverberaram corredor adentro, e quando Eric se voltou para trás, encontrou Kylie entrando no escritório. Ele deveria ter sabido melhor, mas a morte de Lacy embaralhara a cabeça. Agiu desastradamente ao procurar pela saída. Vendo que Eric tentava fugir, Kylie imediatamente se trancou com os dois e encostou-se com força `a porta para não deixá-lo passar.
- Sinto muito. – Kylie introduziu, sem que Eric soubesse precisar se sentia muito por Lacy ou por ter de trancá-lo ali. De qualquer modo, bastante emocionado, Eric não se importou. - Não vai a lugar algum.
- Tudo bem. – Eric respondeu, em um fiapo de voz. Kylie e Cary se entreolharam, compreendendo-se sem a precisão de palavras.
- Queríamos conversar contigo. Lamentamos por Lacy. Nós ligamos, mas você deixou o celular irresponsível. Foi uma cretinice da sua parte, mas nós entendemos. – Cary passou a mão sobre a boca, analítico.
- Por quê tentou fugir de mim? – Kylie indagou, puxando outra cadeira e se sentando ao lado.
- Eu não estou... – Gaguejou, porém Kylie imediatamente rechaçou a mentira.
- Sim, está. Não é apenas da gente que fugiu. – Ela se levantou e deixou que uma convidada especial fizesse as honras. Jordan saiu da sala de reuniões adjacente, um pouco tensa, e entrou no escritório.
- Está fugindo da cidade. – Jordan sumarizou com um olhar muito sossegado. – Não acreditou que nós não estivéssemos acompanhando os seus passos, certo? O que pretende fazer em Nova York?
Eric estava perdido. Não enxergava estratégias imediatas que o ajudassem a antecipar o que se observaria naquele encontro. Ele tinha cometido um terrível engano ao não fugir quando tivera tempo. Apoiou-se com as mãos e começou a se levantar. Kylie segurou-o pelo ombro em uma tentativa inútil e enérgica de acalmá-lo, porém Eric continuou a se erguer. Ao perceber que ele poderia tentar qualquer coisa, Kylie se levantou também e o segurou pelos dois pulsos.
- Vocês mataram o Hammond. – Acusou, sem acreditar que vocalizara o horror preso na garganta. – E depois mataram a Lacy porque ela assistiu a parte da trama naquela madrugada em 2004. – Eric esperava causar um grande impacto, mas Kylie e Cary pareceram absolutamente tranquilos, como se já esperassem a acusação. – O Hammond queria me avisar...
- Eric, eu sei de tudo. – Cary sacudiu lentamente a cabeça com uma expressão despreocupada. – Até mesmo da coluna social que encontrou na internet, da foto que o ajudou a concluir que a Jordan e a Kylie se conheciam desde aquele tempo. O que parece não ter percebido é que eu também apareço na foto, bem atrás. – Eric olhava para os lados, lívido. – Eu, a Kylie e a Jordan somos amigos desde a faculdade. Viemos da mesma turma, frequentávamos as mesmas rodas sociais, tínhamos as mesmas histórias. Não pense que eu não sabia que a Kylie e a Jordan namoraram.
- Hammond não gostava de mim pois sabia de seus sentimentos por mim. – Kylie denunciou, a voz suave, sempre sob controle. Ela não se intimidava e persistia segurando o amigo pelos pulsos. – Ele queria destruir a imagem que você nutria a meu respeito. Quando me encontrou nos braços da Jordan, naquela maldita noite, achou que finalmente a oportunidade perfeita para me arruinar aos seus olhos se apresentara.
- Quando você ainda montava as peças do quebra cabeça, já estávamos lá na frente assistindo a tudo de cima. – Jordan emendou. Tendo passado o choque inicial, Eric teve a lucidez de procurar enxergar se a policial portava uma arma. Não tinha como saber.
- Foi um acidente. – Cary minimizou. – Kylie ficou desesperada, quando ele puxou o celular e avisou que contaria a história inteira. Ela tomou o celular e o quebrou, mas no calor da confusão não percebeu que a sua namorada, a Lacy, pegou o que sobrou e escondeu.
- O plano era dar uma boa surra no Jason para que pensasse duas vezes antes de se intrometer entre nós dois. – Kylie atacou.
- Não esperava que o garoto fosse atirar no seu amigo, Eric. – Jordan anunciou, encostando-se `a mesa e, com o movimento, revelando o volume sob a blusa. Sim, ela portava uma pistola. – As coisas aconteceram. Kylie estava furiosa e eu sugeri que lhe déssemos o susto. Talvez eu tenha o sangue de Hammond nas mãos, afinal o garoto a quem incumbi de realizar o serviço era um pouco desestabilizado. Ao contrário do que pensa, também não "queimei arquivo". Ele tinha problemas emocionais e sabia que jamais aguentaria puxar tantos anos de cadeia. Não foi assassinado. Ele se pendurou do chuveiro com a calça porque entre a vida na cadeia e a simplicidade da morte, escolheu a saída fácil.
- Vocês mataram a Lacy! – Exclamou, fazendo um movimento muito brusco que finalmente o desvencilhou das mãos de Kylie. – Temiam que nos relacionássemos a ponto de um dia me contar sobre Hammond!
- Não tínhamos como saber se Lacy contaria ou não, Eric. – Kylie retrucou, novamente procurando controlá-lo pelos pulsos. Eric avançava com as costas para a porta. Kylie fazia o possível para atrasá-lo. Quando ele estava para pôr as mãos na maçaneta, Kylie conseguiu abraçá-lo de frente e, com muita habilidade, manter o abraço até se colocar inteiramente `as suas costas. – Não tínhamos pelo que nos preocupar, pois ainda que Lacy falasse, seria a palavra dela contra a nossa. Lacy era uma mulher muito confusa e atrapalhada. Eu sei que reencontrou o amor em sua vida quando a conheceu, mas ela era uma sobrevivente, uma mulher ferida. Jamais se pode antecipar as reações de uma pessoa psicologicamente ferida. Aceite que Lacy fugiu com o professor e a sua própria conduta de risco acabou por lhe dar o fim que encontrou!
- Você não vê que não teríamos como armar uma farsa do tipo? – Jordan se aproximou dos dois e Cary também já se levantava. – Lacy e o professor foram encontrados em Nova York. Ele era um velho amante, de quem Lacy provavelmente jamais se esquecera. Até acreditemos que Lacy fosse voltar para você, como havia prometido. A viagem seria uma espécie de... – Jordan pensou no melhor termo. Cary o tinha na ponta da língua.
- De despedida. Quando quis definitivamente a associação com o professor para voltar para ti, para reconstruir a própria vida, o homem não aceitou. Mais um caso de homicídio passional. Duas pessoas desavisadas que deveriam saber melhor, mas cujos próprios apetites apontavam o desajuste.
- Você não vê que não teríamos como armar uma farsa do tipo? – Jordan se aproximou dos dois e Cary também já se levantava. – Lacy e o professor foram encontrados em Nova York. Ele era um velho amante, de quem Lacy provavelmente jamais se esquecera. Até acreditemos que Lacy fosse voltar para você, como havia prometido. A viagem seria uma espécie de... – Jordan pensou no melhor termo. Cary o tinha na ponta da língua.
- De despedida. Quando quis definitivamente a associação com o professor para voltar para ti, para reconstruir a própria vida, o homem não aceitou. Mais um caso de homicídio passional. Duas pessoas desavisadas que deveriam saber melhor, mas cujos próprios apetites apontavam o desajuste.
- Não estamos julgando a Lacy, Eric. – Kylie reforçou. – Não queremos destruir a imagem que fazia dela. Acontece que está se voltando contra mim. Precisa escutar a verdade, mesmo que não te agrade.
- Entende agora, Eric? – Cary estava de frente ao viúvo, analisando-o com olhos alarmados. – Não conseguiu esconder muita coisa da gente. A Kylie não é a sua inimiga e não vamos machucá-lo. Não traga uma tragédia que aconteceu há seis anos `a tona. Acabou!
- Não. – Disse, em um lamento.
- O que pensa que vai fazer? – Kylie perquiriu, apertando-o mais forte, sussurrando em seu ouvido. – Ir para Nova York com uma porção de fantasias? Eu não posso deixar!
Eric foi indo ao chão. Por causa da gravidade, Kylie não teve como segurá-lo melhor. Quando ela acabou por se atrapalhar, Eric se desvencilhou dos braços e, em uma rápida, atrapalhada corrida, atirou-se para fora do escritório e saiu em disparada rumo ao hall dos elevadores. Kylie ainda tentou correr e possivelmente em outras circunstâncias o teria pego, mas graças aos saltos perdia a velocidade necessária para detê-lo. O elevador panorâmico descia com Dudley dentro, encolhido em um canto, a vertigem fazendo a cabeça girar. Considerou que Cary estaria orientando o suporte de segurança a barrar as entradas e saídas das torres e do shopping. Quando o elevador estacionou no nível do shopping-center, Eric pôs os pés no hall e ficou encantado com a decoração de um mundo luxuoso e iluminado, `a parte de uma Toronto chuvosa e cinzenta. Luzes brancas e douradas emanavam do grande centro, cores diferenciadas em neon para cada loja, um fluxo interminável de pessoas. Na praça de alimentação, gargalhadas e conversas por todas as mesas e mesmo entre as mesmas, garçons circulando com alguma dificuldade, levando pedidos. Aos pés da escada rolante, uma mãe procurava convencer o filho de que a escada não era um monstro e o punha acima dos ombros. O shopping era um novo mundo em gestação. Próximo `as grandes portas de saída para o estacionamento, Eric pontuou dois homens com uniforme de segurança. Depois de toda a confusão emocional, teve a presença de espírito para saber o que fazer. Ao fingir procurar o toalete, passou ao lado do botão de emergência de incêndio. Desferiu um golpe com o cotovelo e o acionou. Quando a enorme confusão generalizada se formou dentro de um minuto, evacuou a torre absorvido pela horda de rostos desconhecidos. Por ora, estava a salvo.
Eric precisava deixar Toronto naquela mesma noite. Como os três sabiam que tinha comprado o bilhete para o dia seguinte, o esperariam no portão de embarque no Pearson para evitar que entrasse no avião. Caminhando ao longo do passeio público, devia se sentir como mais um rosto anônimo em downtown Toronto, porém se eles tinham encontrado os meios de afirmar que comprara o bilhete, algo que não compreendia como fora possível, não conseguia se sentir mais seguro, mesmo protegido pelo anonimato de uma cidade enorme e transitória, como a própria Jordan adjetivara a cidade. O encontro com o trio acabou por encorajá-lo, pois agora acreditavam que ele teria mais vinte e quatro horas em downtown Toronto, quando na verdade pretendia deixar a cidade naquela mesma noite. Eric entrou e saiu de bares decadentes, comprou blusa e calça jeans em um brechó e trocou de roupa ali mesmo. Ele foi se "mimetizando" até adquirir a confiança necessária para entrar na primeira agência que apareceu no caminho e torcer para que tivessem um tícket para a mesma data. Eric precisou desembolsar a última quantia em espécie que trazia consigo para custear o ágio e levar o bilhete "premiado" que o tiraria de Toronto em um novo voo a se dar às 21:00. Tudo acertado, Eric sacou algum dinheiro de um caixa rápido e buscou um motel qualquer, o mais próximo possível do Pearson. Pagou por uma diária, embora pretendesse descansar por apenas algumas horas, e subiu ao apartamento simplório, guarnecido por cama, escrivaninha, banheiro e pequena cozinha. Semicerrou as cortinas e deixou a sacola com o celular de Hammond sobre o móvel da televisão de quatorze polegadas. Quando se sentou na poltrona que puxara até a frente da janela, depois de apoiar os pés na sacada, concedeu-se trégua para observar, sem pensar em coisa alguma, o movimento modorrento a tomar conta das vias periféricas do centro. Vidas que iam e vinham, trabalhadores voltando para casa com expressões cansadas, mulheres de mãos dadas a crianças travessas, sacolas de compras no outro braço, jovens sempre apressados, usualmente em um ritmo mais frenético que o das mães ou trabalhadores, talvez por ainda creditarem aos sonhos a energia que os mantinha tão frescos enquanto corriam atrás dos mesmos. As cortinas puídas bailavam ao toque do vento frio. O resquício da tarde estava a rasgar, esticado, uma peça magnífica e gigantesca de seda a esconder muito mal a noite magnífica e estrelada. Em um rádio de pilhas ligado em algum ponto do corredor, uma melodia romântica forçava Dudley a vasculhar as recordações. Escutara a música na época em que dias pareciam mais longos, noites menos atribuladas, vida mais inocente. Não se recordava do título, mas jamais esquecera dos meses, do semestre, em que não se ouvia outra coisa nas rádios. A balada romântica alcançara o terceiro lugar na lista da Billboard naquele ano, 1988, e mesmo alguns anos após o estrondo, Eric eventualmente voltava à doce melodia de Rhythm & Blues, revisitando a faixa número 03 ou 4, não se recordava ao certo, do álbum Tell it to my Heart, a coletânea da fase mais romântica da Taylor Dayne. As pálpebras de Eric pesaram. Não queria baixar a guarda, adormecer, porém foi o que aconteceu.
Preso à consciência por um fio, insistia na meta de não se deixar levar pelo cansaço. O voo deixaria o terminal 02 às 21:00, porém deveria chegar com antecedência. Precisava conversar com Colby, recomendar pessoalmente que se afastasse da questão, agradecê-lo enquanto tinha a chance, vez que assim que chegasse a Nova York não haveria como prever como a sorte se desenlaçaria. Se Lacy fora queimada por Jordan e seu pessoal, nada a impediria de tentar tirá-lo do jogo. Uma infeliz tragédia nos moldes do homicídio passional, talvez freios soltos e o seu carro em chamas, ou um trágico assalto dentro do qual ele terminaria fuzilado tal como acontecera a Hammond. As análises e conclusões racionais foram ficando turvas, e recordações gradualmente surgindo para substituí-las com a mesma delicadeza da deslumbrante noite estrelada a nascer bem diante de seu corpo adormecido e afugentar a tarde. Eric teve um breve sonho que curiosamente em um momento bastante atribulado de sua vida não poderia ser mais bonito ou feliz. No sonho, revivia a noite em 2004 quando "Not Easily Broken" estreava, mas em vez de ali estar para assistir ao primeiro episódio, era ele o objeto da homenagem.
No sonho, Eric achava que tinha sido indicado a um prêmio publicitário, em uma noite de gala no JW Marriott de Toronto, o belíssimo hotel de luxo localizado no centro da cidade, com suítes integradas ao melhor shopping, o Eaton Centre, via escadas elegantes e curvilíneas oriundas de uma outra época. O JW Marriott era dividido em conjuntos temáticos integrados pelo excelente serviço de conexões. A turma do "Not Easily Broken" preparara uma fantasia delirante para o conjunto "Cinema", o pavilhão de mais de trinta e seis mil metros quadrados de vários níveis e pavimentos, sendo o térreo um amplo anfiteatro central a toda a envergadura da construção, rodeado por rampas de circulação que corriam pelos muitos níveis. Halls revestidos pelo mais fino e caro mármore, a refletir as luzes dos holofotes como espelhos, tamanho o esmero com que haviam sido polidos, atraiam os convidados ao átrio, ao Grand Ball Room para além das esquadrias de lâminas de vidro que corriam, um espaço de magia, classe, romance e mistérios, onde lustres caríssimos deitavam a incandescência que jorrava em profusão, onde damas flertavam com cavalheiros entre tragadas nas piteiras, às mesas do bar, e homens ainda se portavam como gentlemen. O lugar era o sonho de arquitetos e designers que ambicionavam produzir uma fantasia sem limites. Em vermelho iluminado, "Marriott" fora grafado na fachada da torre do edifício. Eric sentava-se em uma das mesas e, no momento do brinde, havia uma inesperada brincadeira, a coreografia exaustivamente treinada pela equipe de criação artística do "Not Easily Broken", quando o Grand Ball Room se tornava o palco para o festival de luzes, fogos e encantos preparados unicamente para o protagonista. Era Kylie Grattan quem emergia do alto das escadas, enquanto as esquadrias vibravam ao som dos aplausos e ao sabor de Peabo Brysson com "By the Time this Night is Over". Quando se alcançavam, o Grand Ball Room mergulhava no silêncio. Kylie lhe dizia o quanto o amava e Eric respondia com o abraço que selava o seu destino, a deixa para que fogos de artifício fossem atirados ao céu estrelado, o caleidoscópio de luzes em elipse o rasgasse e os aplausos catapultassem o momento a uma noite única e imortal.
Eric acordou assustado. Consultou o relógio de pulso. 18:30. Tomou um banho rápido, vestiu-se, separou as coisas na mochila e ligou o celular para contatar Colby. Não explicou coisa alguma, apenas avisou que passaria para visitá-lo mais cedo do que de costume, naquela noite. Quando o rapaz lhe perguntou se tudo se encontrava em ordem, Eric respondeu que conversariam melhor pessoalmente. Ainda permaneceu por quase meia hora assistindo à televisão, não realmente prestando atenção, apenas navegando pelos canais. Eric desceu com a mochila e avisou que não passaria a noite. Despediu-se da moça da recepção, que foi gentil em lhe chamar um táxi e servir café enquanto aguardava pela chegada do motorista no lobby. A televisão do escritório do motel estava sintonizada no jornal do fim da tarde, alguma reportagem desinteressante sobre um surto de gripe que irrompera no campus da universidade de Toronto deixando os médicos mais atarefados do que de costume. O táxi aguardava que os carros passassem, do outro lado da rua, para fazer a conversão que o levaria `a entrada. Eric apertou as mãos da moça, agradeceu por tudo e partiu a caminho do Pearson.
Colby deduziu que Eric partiria naquela mesma noite quando o enxergou do outro lado da avenida, no ponto de ônibus onde o táxi o deixara, esperando o momento certo para atravessar a highway. Correu solitariamente sob o neon vermelho dos anúncios, a luz dourada mais acima, até alcançar o canteiro da 211 Bel Air. Cada passo que dava em direção ao aeroporto internacional o fazia se sentir mais distante, comum a quem não vê a hora de partir. Como era cedo, havia alguns gatos pingados por lá, mas as garçonetes da tarde ainda não tinham deixado, o que dava a Colby a liberdade para conversar. Sendo muito cedo, teriam folga de uma hora até que Eric precisasse subir no link train que o levaria ao terminal 02. Daquela vez, Eric foi surpreendido quando Colby lhe deu um abraço camarada. Existia o sentimento de urgência no ar e o rapaz antevia a gravidade da situação. Colby podia notar que vez ou outra Eric dirigia uma consulta nervosa ao relógio, voltava a vista para o link train e então para o amigo. Quando os ponteiros apontavam 20:00, Eric soube que chegara o momento da despedida. A eletricidade na atmosfera podia ser cortada com uma faca. Ambos se sentiam tensos, era difícil mesmo respirar. Apesar do ar condicionado, estavam empapados de suor.
- Cuide-se bem, amigo. - Eric o abraçou e deu dois murros contra as suas costas. - Obrigado por tudo o que fez por mim. Quando tudo estiver acabado, procure-me na La Fabrique, pois terá um emprego garantido!
- Obrigado, coroa. - E fazendo uma brincadeira, mitigou um pouco a tensão. - Não está esquecendo alguma coisa?Ficou de me arrumar uma namorada bonita, oriunda do processo de audição, não se recorda?
- Quando eu voltar de Nova York, apresentarei para você uma estagiária nova do escritório que tem tudo a ver contigo!
- Você, me apresentar uma mulher?Com o seu gosto por mulheres, o gosto que te meteu nessa cilada? - Perguntou, fingindo inconformismo. Eric já começou a rir. - Dane-se, coroa. Agora sou eu quem não vou te procurar na La Fabrique mesmo!
Não havia mais gente por ali. Colby ofereceu-se a acompanhá-lo até a passarela, quando a sombra de Jordan projetou-se para dentro depois que os sinos tilintaram e a porta foi aberta. Dois outros homens a acompanhavam. Com os olhos galvanizados na entrada, Eric pôde ver de relance a vitrine que dava para o canteiro do estacionamento e calculou que seria a única rota de fuga viável. Procurando mascarar a insegurança, deu um jeito de muito vagarosamente posicionar-se ao lado da janela. Colby deixou o balcão e foi ficar com o amigo. Os dois observavam atônitos os visitantes à espera de quem faria o primeiro movimento. "Você não tem nada com isso, garoto, saia daqui, vá embora", Eric sussurrou e Jordan pareceu não se opor. Colby tinha a chance de sair livre da arriscada e volátil situação, porém escolheu permanecer com o amigo.
- Então, Eric. - Jordan limpou a garganta, balançando a cabeça, como quem não tivesse escolha, e iniciou. - Não posso deixar que embarque para Nova York. Será que não podemos ambos dar um passo para trás e desarmar uma situação tão perigosa?
- Eu preciso saber se a Kylie sabia sobre Hammond. - Ele respondeu, o tom monocórdio e frio.
- Eu sabia. - Veio a voz que a seu ouvido sempre o inspirara ao melhor. Era Kylie quem entrava pela outra porta da 211 Bel Air. - Eu concordei com Jordan, quando propôs dar um susto em Hammond. Nenhuma de nós duas esperávamos que fosse terminar do jeito que acabou. - Os olhos de Kylie estavam brilhantes, lágrimas de dor prestes a serem vertidas.
- Eu acredito em você. - Eric disse, aflito só de vê-la a um passo de chorar. - Eu lamento por tudo o que aconteceu. Eu preciso saber de Lacy...
- Eric, eu jamais faria mal a Lacy, por mais que ela estivesse te tirando das minhas mãos! - Foi como se Kylie tivesse sido atravessada por uma lâmina. A dor desenhada nos lábios tornava inegável que acreditava na própria afirmação. - Eu te amo, mas não consegui lidar com o peso do sentimento da mesma maneira que conseguiu ao me deixar ir para os braços de outra pessoa. Da carta que me escreveu, as coisas que disse, à maneira como me olha até hoje... Você é... Incorruptível. - Terminou, e as lágrimas rolaram sem desculpas.
Jordan parecia mais retesada. Agora que o amor de Kylie por Eric não podia ser negado, sentia-se preterida e enganada. Sabia conviver com a ideia de que Kylie vivesse como esposa de Cary St. Pierre, mas não que nutrisse sentimentos tão incomuns por alguém que não a própria Jordan.
- Eu matei a Lacy. - Jordan confessou, como quem admitisse uma pequena indiscrição. Colby, Kylie e Eric voltaram-se para a policial. Ela tirou uma pistola automática do coldre peitoral. - E o fiz por você. - Jordan fulminou Kylie com o olhar magoado.
- Jamais pedi para... - Kylie não quis acreditar. Estava perdendo a segurança, o terror se assentando sobre seu tom e gestos.
- Não me pediu, mas estou convicta de que não se importou quando a Lacy desapareceu. - Jordan deu alguns passos apressados em direção à ex-namorada e suplicou. - Fiz por você!
- Não. - Kylie não aceitou as desculpas.
- Eu te amo!Tudo o que fiz foi em nome de nosso amor, Kylie! - Pela primeira vez desde que a conhecera, Eric via Jordan perder a frieza que inicialmente o fizera temê-la. Ela era uma menina assustada, dispensada por um grande amor. Jordan esperava aceitação, mas tudo o que recebeu foi o tapa que apanhou o rosto em cheio e a fez dobrar os joelhos e cair no chão, as mãos no rosto avermelhado e ardente.
- Se você a matou, pagará pelo que fez. - Kylie sentenciou.
No momento seguinte, o trem descarrilou muito rapidamente. Jordan não aceitou o descarte e as duas deram início a uma violenta discussão. Houve um momento em que Kylie procurou consolá-la, mas antes que Eric pensasse em alguma coisa para ajudar a colocar panos mornos na imprevisível briga, Jordan levou a pistola à altura da cintura de Kylie e disparou. Ela caiu com as mãos no canto e Jordan dirigiu ao rival o olhar assassino de quem se decidira a pôr tudo a perder, principalmente agora quando a morte parecia mais atraente do que a ideia de terminar os seus anos na cadeia. Jordan e os dois outros homens, ambos policiais do mesmo distrito, metidos em toda a imundice, ergueram as armas, porém Colby investiu a tempo como um expresso fumegante na linha de fogo. "Não!", Eric gritou, quando o amigo se pôs a sua frente para receber os disparos, vários deles. Eric se arremessou contra a lâmina de vidro, fazendo-a ruir como chuva de estilhaços com o impacto de seu corpo pesado, resvalando para o canteiro e escapando ileso.
Com os tiros, a parte elétrica restou danificada e a 211 Bel Air foi tomado por sombras, ocasionalmente desafiadas pelo fulgor emanado da máquina da jukebox ao alternar discos. Eric conseguiu conversar um pouco com Colby. "Pegue-os por mim, coroa", o rapaz pediu, a voz embargada pela dor. Eric meneou com a cabeça e deixou-se ser novamente engolido pela escuridão protetora. Jordan e os dois comparsas estavam à procura de Eric no canteiro, quando um deles o avistou correndo pela transversal que dava para as escadas em rampa a culminar na estação do link train. "Ali está, vamos!", Jordan exclamou. A uma certa distância dos inimigos, Eric desafiava os limites de seu precário preparo físico e mantinha bom ritmo, downtown Toronto a prostrar-se ao horizonte, o plano de fundo da caçada. Eric atingiu a rampa de embarque, lançando olhares preocupados em direção aos trilhos, esperando avistar o trem. Havia colunas, várias delas, que acompanhavam a plataforma, cadenciadas por jardas de aproximadamente dez metros. A faixa de embarque era ladeada por lanternas vermelhas que imprimiam ao lugar uma tonalidade fantasmagórica, principalmente quando o frio sobre downtown Toronto descia acompanhado pela cerração que atrapalhava a visão a mais de uma dezena de metros. Havia muitas pessoas a espera do transporte sobre trilhos que os levaria ao terminal 02 e Eric temia que os três tentassem algo em meio aos inocentes. Compreendia que se tratava de uma feroz luta de vida ou morte. Jordan não tinha mais nada a perder e esperava morrer naquela mesma noite, levando-o consigo, claro. Os faróis do trem atravessaram a cerração e quando o link train estava para estacionar, um dos homens passou bem ao lado sem se aperceber que Eric se encontrava albergado atrás da coluna. Eric investiu contra suas costas, desequilibrando-o. Agarrou-o pelo casaco e o jogou de volta à coluna, nocauteando-o com o impacto. Tomou-lhe a pistola e quando estava para guardá-la na cintura, chegaram os dois guardas da estação. "Esse homem é um criminoso!Estão tentando me matar!", Eric exclamou. Confusos, os guardas não perceberam quando Jordan e o aliado chegaram a cerca de dez passos atrás, sacando as armas e disparando em direção a Eric e aos seguranças. Os guardas responderam ao fogo. Quando as portas do link train foram abertas, Eric entrou no vagão mais à frente, Jordan e o colega cinco vagões para trás. Antes que os guardas tivessem como render a policial, o link train seguiu sobre os trilhos.
Quando as pessoas entraram no trem, elas o fizeram por medo. Agora, viam-se encurraladas nos vagões em movimento. Certo de que Jordan vinha a caminho de seu carro, Eric disparou contra uma das janelas laterais e terminou de quebrá-la a cotoveladas. Depois de guardar a arma na cintura, procurou sair pela janela e alcançar o topo do link train. Os cacos de vidro cortaram as palmas das mãos, mas não perdeu a firmeza. Apoiando um dos pés no assento rente à janela, projetou todo o corpo para fora do trem e começou a escalar até o topo. O vento chicoteava o corpo e Eric ameaçava perder o equilíbrio a qualquer curva mais pronunciada. Tinha de se firmar o quanto antes. Enxergava ainda distante uma parte da pista onde enormes Boeings taxiavam em aproximação ao terminal 02. Subir ao teto provou-se a parte mais difícil. Caminhando com as pernas bem afastadas para não perder o equilíbrio, Eric inclinava a cabeça `a beira do vagão para ver de cima através das janelas se Jordan surgia em seu campo de visão. Ela podia não ter aparecido, mas sem dúvida vinha logo abaixo. Os tiros vieram seguidos e inesperados. Passaram rentes aos braços de Eric, não o apanhando por pouco, porém lhe tirando o equilíbrio. Ao cair pesadamente, o colega de Jordan acreditou que o tinha pego e usou o mesmo artifício de Eric. Arrebentou a janela a chutes e saiu para cima. Quando pôs o rosto sobre o vagão para investigar, recebeu um chute bem desferido na cara, o que o tirou de ação. Jordan o arrastou para dentro do vagão, nocauteado, e voltou a disparar para cima, Eric correndo para escapar da trajetória inclinada e ascendente das balas. Não podia responder fogo, por causa de todos os inocentes presos ali embaixo.
A duração do passeio não ultrapassou três minutos. O trem parou no terminal 02 e os passageiros se atropelaram ao evacuar os carros, apavorados. Jordan esperou que desembarcassem. Ela saiu do trem e subiu o vagão pelo lado da cabine do maquinista, que era menos íngrime e portanto possibilitava uma escalada mais simples. Eric não se encontrava mais no teto. "Ande, venha me pegar", ele gritou, saltando as catracas mais à frente. Jordan fez mira e efetuou dois disparos. Um tiro pôs abaixo o vidro de uma lojinha de conveniências, o outro raspou o ombro de Eric. Ele perdeu o equilíbrio e caiu. Escutou as botas de Jordan avançando em corrida, em direção à conexão ao aeroporto. Procurou fazer mira, e quando Jordan se insinuou em seu campo de visão, tentou acertá-la com dois tiros. Ela foi mais rápida e se jogou ao chão, deslizando sobre o assoalho, as balas perfurando cabines de ticket e um telefone público. Não demoraria à Polícia do Pearson chegar e Jordan estaria liquidada. Ela sabia disso. Determinara-se a derrubar Eric antes de ser eliminada pelas mãos dos colegas que chegariam à cena, atraídos pelo barulho do tiroteio. Eric apontou a automática para as lâmpadas fluorescentes do corredor e as pôs abaixo com o restante das balas. Agora, tirara a visibilidade de ambos.
- Belo tiro. - Jordan elogiou, a voz regida pelo distanciamento emocional que incomodara Eric desde a primeira vez que a conhecera.
- Impressão minha ou está começando a ficar com medo? - Eric provocou e Jordan respondeu de imediato ao apontar para a direção de onde viera a voz e disparar. - Não desperdice os tiros do pente, Jordan. Quando os seus colegas aparecerem, precisará de uma extra para se matar. Lembre-se que já desperdiçou parte dos dez disparos.
- Tenho no mínimo mais um para você e outro para mim. - Ela disse, esforçando-se para enxergar algo na escuridão que se alastrava `a frente. Luzes, somente as do fulgor muito longínquo do Pearson.
- Mesmo que me acerte, ainda conseguirei pôr as mãos em ti. - Um quase silêncio, desrespeitado apenas pela maneira como a ventania sibilava ao rasgar as arestas da estação e a sola das botas de Jordan esmigalhando pedacinhos de vidro. - Tem certeza de que está disposta a morrer aqui? Pois algo me diz que trepidará no último minuto.
Sirenes até então vagas tornavam-se progressivamente urgentes. Jordan sabia que logo a encurralariam. Até então convicta da disposição de sacrificar a própria vida, hesitou. Enquanto tinha balas no pente, arriscaria suas chances. Jordan saiu correndo para dentro do Pearson. Eric assistiu a ela deixar as sombras da estação para ganhar o hall principal de ingresso no aeroporto internacional e saiu em seu encalço, preocupado com o que pretendia fazer. "Saiam da frente, saiam da frente!", Eric gritava, mostrando a pistola levantada "Parem essa mulher, ela está armada". Jordan interrompeu a corrida, detendo-se de uma forma tão brusca que chegou a escorregar. Fez mira e jogou um tiro em direção a Eric. A bala explodiu as bolas de enfeite de uma árvore de Natal em um balcão para check-in, bem atrás de onde Eric estava. Jordan exibiu a arma para os agentes federais que guardavam o portão de embarque e os dois homens reflexivamente levantaram os braços e a deixaram passar. Agora, uma pessoa perigosa com uma arma de fogo gozava de livre acesso a qualquer avião conectado aos fingers de embarque.
O detector de metal vibrou quando Eric adentrou no salão de embarque, derrubando as cabines do portão de arma em riste. As poucas pessoas que não tinham corrido viam-se encurraladas no chão com as mãos nas cabeças. A vista do salão era misteriosa e incomum, as lojinhas e cafés abertos, porém vazios, assim como as salas de espera, as poltronas todas deserdadas. Ao fundo, a pista do Pearson a perder de vista alastrando-se pelo horizonte contemplado através de painéis em esquadrias retangulares que ladeavam os terminais. "Para onde ela foi?", Eric indagou a uma senhora, que apontou para o fim do corredor. O corredor desaguava no portão 10. Correndo a um ritmo mais reservado, Eric mantinha a cabeça baixa e a pistola pronta para disparo. Quando estava para chegar ao salão da porta 10, percebeu, ao longo do finger de entrada na aeronave do pátio, a comoção de tripulantes e passageiros gritando e se atropelando, uma manada enfurecida que em um primeiro momento impediu Eric de enxergar as melhores vias de acesso para dentro da aeronave ou de perseguir Jordan até ali dentro. Escutou um tiro e as luzes da aeronave foram encerradas. Os únicos elementos que proviam alguma orientação espacial eram as pastilhas de Led de brilho alto, a levar ao caminho à porta do avião e, uma vez dentro, os anúncios luminosos de "Não Fumar" e "Apertar os Cintos". Arrastando-se no corredor do finger que conectava o salão de embarque à aeronave, Eric procurava distinguir algum som que acusasse a localização de Jordan no Boeing. Examinou o pente da pistola antes de prosseguir e constatou que, para a sua sorte, havia mais uma bala. Se quisesse derrubá-la, agora que engatinhava para dentro da aeronave em direção ao longo corredor da cabine pincelada por sombras falhas, não podia dar NENHUM PASSO EM FALSO.
- Oh, o que houve, querida? - Eric indagou, preocupado, o polegar deslizando sobre a mancha roxa de sangue pisado que Kylie exibia no canto do olho direito. O seu narizinho arrebitado também parecia ligeiramente inchado. Kylie deu uma risadinha.
De Brian De Palma, diretor de Vestida para Matar e Dublê de Corpo, chega uma nova razão para se temer a noite.
O detector de metal vibrou quando Eric adentrou no salão de embarque, derrubando as cabines do portão de arma em riste. As poucas pessoas que não tinham corrido viam-se encurraladas no chão com as mãos nas cabeças. A vista do salão era misteriosa e incomum, as lojinhas e cafés abertos, porém vazios, assim como as salas de espera, as poltronas todas deserdadas. Ao fundo, a pista do Pearson a perder de vista alastrando-se pelo horizonte contemplado através de painéis em esquadrias retangulares que ladeavam os terminais. "Para onde ela foi?", Eric indagou a uma senhora, que apontou para o fim do corredor. O corredor desaguava no portão 10. Correndo a um ritmo mais reservado, Eric mantinha a cabeça baixa e a pistola pronta para disparo. Quando estava para chegar ao salão da porta 10, percebeu, ao longo do finger de entrada na aeronave do pátio, a comoção de tripulantes e passageiros gritando e se atropelando, uma manada enfurecida que em um primeiro momento impediu Eric de enxergar as melhores vias de acesso para dentro da aeronave ou de perseguir Jordan até ali dentro. Escutou um tiro e as luzes da aeronave foram encerradas. Os únicos elementos que proviam alguma orientação espacial eram as pastilhas de Led de brilho alto, a levar ao caminho à porta do avião e, uma vez dentro, os anúncios luminosos de "Não Fumar" e "Apertar os Cintos". Arrastando-se no corredor do finger que conectava o salão de embarque à aeronave, Eric procurava distinguir algum som que acusasse a localização de Jordan no Boeing. Examinou o pente da pistola antes de prosseguir e constatou que, para a sua sorte, havia mais uma bala. Se quisesse derrubá-la, agora que engatinhava para dentro da aeronave em direção ao longo corredor da cabine pincelada por sombras falhas, não podia dar NENHUM PASSO EM FALSO.
Dudley tinha a pistola apontada para sua frente, para o fundo do avião, a atenção centrada nas cortinas da cozinha, a qualquer movimentação que apontasse a localização da inimiga. Não viu Jordan emergir da cabine semiaberta dos pilotos. O tiro apanhou-o no braço. Com o impacto, ele girou e caiu sentado no corredor, a arma voando de suas mãos, engolida pela escuridão. Arrastando-se pelo carpete, Eric afastava-se de Jordan, que se aproximava lentamente, até mesmo com cautela. Mesmo certa de que o pegara, não menosprezava a possibilidade de que Eric lhe reservasse algum tipo de carta na manga. O interior era varrido por clarões aquosos verdes e vermelhos produzidos pelos giroflexes dos carros da Polícia que ganhavam a pista em direção ao terminal. Jordan apontou a pistola. Quando estava para apertar o gatilho, uma sombra irrompeu o fulgor que chegava através das janelas, apanhando-a por trás. Eric não teve como distinguir o invasor, mas então Jordan o golpeou com o cotovelo para tentar se livrar de seu abraço. Quando a pancada conectou ao rosto e o seu salvador teve a cara atirada para trás, Eric viu que se tratava da Kylie. O golpe fez as duas cambalearem, mas não caírem. Em vez de conseguir se soltar, tudo o que Jordan fez foi deixar Kylie mais diligente na sua obstinação de segurá-la, sem que a adversária surgisse com uma reação `a altura.
Kylie tinha prendido um dos braços de Jordan para trás, desarmado-a e tirado completamente sua liberdade de movimento. Com o antebraço, apertava o pescoço dela, tentando desesperadamente estrangulá-la o mais rápido possível. Com a mão livre, Jordan apertava o braço de Kylie, procurando arrancá-lo de seu pescoço, aflita para sair antes de ter suas forças esgotadas. Jordan lançava-se para trás, chutava e esperneava, acertava pontapés nos braços das poltronas e nas cadeiras, golpes em tudo, menos em quem verdadeiramente desejava atingir. Xingava e amaldiçoava, seus olhos abrasados de puro ódio, enquanto Kylie mantinha-se quieta e não lhe fazia concessões, com o olhar sereno e concentrado. Sentia-se péssima por sacrificá-la, porém não existia outra maneira. Jordan perdia fôlego rapidamente, e logo não lutava para se soltar com a mesma paixão de amante vingativa disposta a destruir a parceira que ousara romper com sua história de amor. Kylie cingiu ainda mais o aperto, o rosto resignado sobre o ombro esquerdo de Jordan. Ela grunhia e gemia, perdida, movida por alguma esperança de que tudo ficaria certo, como se em um piscar de olhos pudessem ambas ser devolvidas aos finais de tarde de clima ameno quando namoravam embaladas pelo segredo e o silêncio do dormitório da residência College na Universidade de Toronto, enquanto do piso abaixo vinham gritos e uivos de uma festa qualquer. Tudo o que veio de Kylie foi apenas ao fim, quando ela deu um suspiro exausto, de alguém que não suportava mais segurar a rival por um segundo a mais. Quando Kylie a soltou, Jordan tombou como um saco de batatas, o peso do corpo morto produzindo duas pancadas cheias e consecutivas, a primeira ao desabar sobre os joelhos, a segunda quando a gravidade trouxe o corpo à frente, o cadáver repousando de bruços aos pés de Kylie em uma posição patética e lamentável. Kylie a estudou, cheia de dor, visivelmente devastada pela forma como o dilema terminara.
- Você está bem, querida? - Eric não acreditava, comovido. Passou a mão em seu quadril ensanguentado e teve o peso do mundo retirado da consciência ao constatar que o tiro fora de pele, nada mais. Kylie precisaria de assepsia na ferida, talvez alguns pontos para fechar o corte, mas era só. Enquanto a checava, Kylie fazia o mesmo a Eric. A bala atravessara o ombro de Dudley, apanhara apenas tecido mole e saíra do outro lado. Eric passou o polegar sobre o lábio superior de Kylie, revelando o seu sinal, sorrindo ao vê-la tão linda e radiante como sempre. O nariz de Kylie parecia quebrado e ela punha sangue pelo canto da boca e pelas narinas, mas jamais parecera melhor. Quando Eric esfregou a mão para limpar o sangue, Kylie passou a língua sobre os lábios de um jeitinho tão meigo que Eric teve de abraçá-la.
- Então não sabe? - Perguntou, o nariz correndo, lágrimas escorrendo dos olhos por causa da emoção e da cotovelada de Jordan. Sorrindo docemente, ela completou. - Eu "não me quebro facilmente".
Eles ficaram se olhando por um tempo, as sirenes dos carros de polícia e bombeiros cada vez mais emergenciais e escandalosas. Kylie levou as mãos ao pescoço e ombros de Eric. Vestia a mesma luva de couro em detalhes que ele achara tão interessante quando a vira pela primeira vez no heliporto. Não precisavam dizer coisa alguma. Por mais que lutasse contra os sentimentos, Eric jamais venceria o fato muito natural de que a amava mais do que a qualquer outra coisa no mundo e jamais conseguiria se desvencilhar de seus olhos tristes e misteriosos. Kylie o puxou para si em um beijo com a tensão e o desejo acumulados ao longo de todos aqueles anos de silente sofrimento, de paixões não vocalizadas, de feridas jamais completamente saradas, de sentimentos impossíveis. As noites que Eric passara em claro contorcendo-se de dor aos pés do balcão da 211 Bel Air de repente não valiam mais nada. Kylie trabalhava a boca de Eric em seu beijo, movendo rítmica e sinuosamente a cabeça como se não houvesse amanhã, mas apenas um instante em toda a vida. Perderam a ideia de espaço, e jamais deram conta de quanto tempo ficaram se beijando. Ao terminar, Kylie pôs a mão em seu peito e lhe sorriu. O sangue na boca e no nariz de Kylie agora parecia mais seco e parte dele ficara no rosto de Eric. Sujos e exaustos, todo o amor que os mantinha ligados parecia bem explicitado pela dor de seus olhos e coragem de seus sorrisos.
- Eu sempre te amei. - Ela desabafou. - Eu jamais conseguiria machucá-lo propositalmente. - Ela sacudiu a cabeça. Com lágrimas correndo como riscos pela face, por causa da maquiagem borrada, lamentou. - Apenas jamais esperava me apaixonar pelo meu melhor amigo.
- Tudo bem, querida. - Estavam abraçados. Eric sussurrou ao ouvido: - Ninguém precisa saber sobre Hammond. Darei fim ao celular quebrado. Deixemos que acabe por aqui. Eu gostaria que você seguisse com sua vida e também preciso permitir que Lacy descanse em paz.
- Obrigada, Eric. - Kylie murmurou. Dudley a apertou contra o peito, sua força sinalizando que o pior definitivamente passara. - Obrigada.
- Lamento pela sua amiga. Eu não queria que tivesse acabado assim.
- Ela não quis me dar alternativas. - Chorou, inconformada. - Imagino a dor e o transtorno que a levaram a agir tão enlouquecida.
- Agora, Jordan não está mais sofrendo. - Apoiando-a com o ombro bom, Eric colocou as coisas sob nova perspectiva, restaurando-a emocionalmente. - Você não foi culpada, querida. Venha, vamos embora. Precisamos cuidar dessas feridas. Preciso saber de Colby.
Eric e Kylie se separaram quando os médicos os levaram. Ele se sentia melhor, mas quando aplicaram a anestesia para suturar o ombro, foi envolvido pela escuridão de uma inconsciência sem sonhos. Quando despertou, era a manhã do dia seguinte, um céu muito chuvoso e frio sobre downtown Toronto. Kylie surgiu aos seus olhos de calça jeans, blusa branca e chinelas, sentada no sofá do quarto, lendo jornal, esperando que acordasse. Ela o recebeu com um deslumbrante sorriso que fez pouco importar quão zangado parecia o tempo. Eric procurou se sentar, porém Kylie não deixou. Acomodou-o melhor com almofadas na cabeceira para que ficasse um pouquinho mais elevado. Eric recebia soro intravenosamente. Em uma das cadeiras vazias da escrivaninha, repousavam as roupas, botas e mochilas. Ao se sentar, Kylie fez uma careta de dor ao sentir o lado do quadril, levando a mão ao curativo sob a blusa. Na televisão, um programa de atrações, com o quadro sobre culinária, uma simpática senhorinha muito parecida com a querida senhora Medina mostrando como preparar o delicioso filé à milanesa com a mais seca das crostas. Eric fechou os olhos e lhe ocorreu o rosto de Lacy, tão distante quanto aquela noite em que a levara para jantar fora.
Eric conseguiu convencer Kylie e os médicos de que se sentia melhor e arrancou do braço o gotejador. Vestiu a roupa e avisou aos médicos que precisava passar rapidamente em casa, mas que retornaria para "virar a noite". Deu uma piscadela para Kylie, como quem dissesse "Não imaginam o quanto vão esperar!". Antes de deixar o hospital, conversou com a amiga e lhe explicou que daria fim ao celular, de sorte a pôr logo um ponto final no mistério. Antes de apanhar o táxi na pracinha em frente à lanchonete do hospital, Eric foi convidado pelo cirurgião-geral a visitar o teimoso hóspede da sala de convalescença.
- Esqueça o lugar na banca de advogados da La Fabrique, coroa. Eu quero a diretoria inteira! - Colby resmungou, fuzilando-o com o olhar. Eric e o médico entreolharam-se, o publicitário visivelmente comovido. Eric correu para abraçar o jovem na cama. Sentada em um canto, segurando um rosário, estava a velhinha avó de Colby. - Fico feliz que tudo tenha terminado bem, senhor Dudley.
- Lembra-se o que disse sobre o velho, teu padrasto?Que um dia esperava fazer algo igualmente grandioso por um completo estranho da mesma maneira que ele fez por ti?Você o fez. Não deve mais nada a ninguém. - Puxou-o a um abraço de pai e agradeceu. - Obrigado, meu filho. Eu te amo muito, cara.
Eric cumprimentou a velhinha, e insistiu que tudo ficaria bem. "Quero estar andando sem muletas para a formatura!", Colby avisou ao médico, energeticamente. "Vamos ver", veio a resposta. "Volto para te visitar durante a semana", Eric se comprometeu, estalando os dedos e apontando para o amigo. "Vai estar na formatura?", Colby indagou, cheio de expectativa. Dudley sorriu e, com muito orgulho, meneou afirmativamente com a cabeça. "Cuide-se bem, filho. Tem a vida inteira pela frente!".
Ao sair pela entrada do hospital e receber a brisa glacial de um novo dia cheio de eletricidade em Toronto, sentiu-se de uma maneira como jamais anteriormente. Era um homem renascido e contente e não havia absolutamente mais nada de que precisasse para que se sentisse satisfeito. Dudley estava em paz com as derrotas e as vitórias, e aprendia que devia se empenhar para ser um homem melhor. Se não por si, por Charly e Terri, que precisavam de um pai e teriam a oportunidade de se desenvolverem e se tornarem adultos maravilhosos. Apertando o casaco e fechando os braços contra si, Eric se juntou à maré das vidas que fluiam pelas calçadas e vias de downtown Toronto, satisfeito em saber que assim como ocorria para a sua pessoa, cada indivíduo carregava consigo um fardo a suportar, uma montanha a transpor, e era o desejo de acertar que os deixava conectados, por mais que não se dessem conta. O desejo de acertar, e a garoa da manhã, a descender sem pressa consoante a mesma placidez com que estações se sucediam, com que anos chegavam e iam embora sem que nos déssemos conta de como o tempo escorria entre nossos dedos.
Quando chegou a casa, ainda no ato de girar a chave e abrir a porta, foi acolhido pelo refrescante e familiar rumor de vida vindo da cozinha logo ao lado da sala de estar. Eric já imaginou do que se tratava, mas fez questão de fingir surpresa, pois sabia que assim Charly ficaria mais feliz. Ao abrir, encontrou o interior decorado por balões coloridos, Charly, Terri e a senhora Medina esperando pela sua entrada logo ao pé da porta, e os amigos do filho, que de quebra também eram os seus, mais ao fundo, distribuídos entre degraus da escada, cozinha e a bancada do bar. Saudado por aplausos e assovios, Eric brincou, erguendo os braços em vitória e logo soltando um lamento de dor ao sentir o ombro. Claro que a senhora Medina o segurou e o obrigou a se sentar. Mais à vontade em uma cadeira na cozinha, cumprimentou a todos. À mesa, servida com guloseimas preparadas especialmente para a ocasião, contou, com a menininha ao colo (e a gatinha nos braços da criança!), o que se sucedera no aeroporto. A galera o convidou a assistir ao projeto cinematográfico acabado de Charly, e Eric achou uma ótima ideia, mas os deixou momentaneamente para comprar refrigerantes no mercado da quadra. Ele apanhou o carro, mas em vez de ir comprar refrigerantes no mercado, deixou para o segmento final do itinerário. Dirigiu até ao estuário do rio Humber, no lago Ontário, e arremessou o celular quebrado e o chip de Hammond. "Agora pode descansar em paz, Jason. Eu e Kylie pegamos a cretina ontem". Permaneceu por um tempo ali, o silente lago a seus pés, a resolução de uma história de mistério submersa sob toda a água e o gelo que se podia esperar da mais cinzenta estação do ano.
E então, uma manhã, as nuvens escuras foram embora, abrindo espaço para que raios de sol voltassem a banhar downtown Toronto. Antes de retomar a vida com força total, havia algo mais a fazer. Vez que parentes não haviam reclamado os restos de Lacy, Eric tomou o voo para Nova York para trazê-la de volta para casa. Lacy foi cremada e Dudley fez questão de regressar a Niagara-by-the-lake. Ficou no mesmo bed & breakfast onde se hospedara com a namorada naquele inesquecível fim de semana, que para sempre resistiria intocado à passagem do tempo em seu coração. Foi corajoso quando a senhora perguntou sobre a noiva e por que não o acompanhara, e então lhe contou que na verdade viera com Lacy, sim, ao exibir a urna com as cinzas. Ela compreendeu, abaixando o rosto envergonhada e entristecida. Eric lhe deu um abraço, assegurando-a de que ficaria tudo bem. O passeio de charrete o levou à mesma curva onde namorara com Lacy. As tochas haviam sido inflamadas ao longo do caminho que dava para as videiras esbranquiçadas pela geada e preenchidas pela cerração. Eric retirou a tampa e disse baixinho, como se ainda falasse a seu amor:
- Nós não somos os erros do passado, mas o produto das lições que tiramos de nossos erros. As humilhações, as dores, as decepções não nos definem... Somos este momento. - E finalmente erguendo a urna para que a brisa carregasse as cinzas encosta abaixo, despediu-se. - Não somos tão ruins quanto nossos erros. Somos tão bons quanto o que aprendemos com nossos erros. Eu te amo, Lacy.
Foi depois de retornar a Toronto que Eric disse "adeus" a um outro grande amor. Voltava a pé para casa após uma tarde na La Fabrique com um sorriso largo, óculos escuros, o paletó pendurado sobre um dos ombros, uma das mãos dentro do bolso da calça cáqui, o sol se pondo às costas, a abóbada celeste que convidava dia e noite a bailarem uma breve valsa antes da despedida das 19:00 envolvendo-o como uma duma. Os cafés da ruazinha já dispunham as lousas com o cardápio para a noite, rascunhado a giz em sofisticado hábito parisiense importado, e lampiões fluorescentes avivados davam o tom elegante. Quando Eric parou no caminho a fim de aguardar o momento certo para atravessar a rua e olhou ao lado, deparou-se com Allie, sentada garbosamente, as pernas cruzadas, em uma das mesinhas de madeira da calçada onde o movimento de apaixonados jamais refreava, ora escrutinando uma xícara de café quente, ora levantando a vista para paquerar o companheiro à mesa. Allie deu pela chegada de Eric. Com seu marido vivo, ela trocou olhares e, logo mais, sorrisos. O viúvo resolveu que seria a última vez que enxergaria seu fantasma e preparou para se despedir efetivamente de suas lembranças. Fechou os olhos, desejou que Allie ficasse em paz e abriu os olhos... Mas Allie seguia estudando-o com um olhar divertido e curioso. Mesmo o convidado à mesa interessara-se e fitava a mesma direção, intrigado com o que raios chamara a atenção da parceira. Eric meneou um cumprimento respeitoso com a cabeça e atravessou a rua serenada. Em algum lugar naquele cantinho de cafés de estilo europeu e hábitos requintados, a voz belíssima de Regina Belle cantava "If I could". Eric fingiu alguns passos ao sabor da fabulosamente triste melodia sem jamais se deter para olhar para trás. Conseguia escutar risadas que se afastavam, possivelmente as de Allie, satisfeita por vê-lo em paz. Agora, sabia que vida e morte eram a mesma coisa desde que se acreditasse piamente na magia e no romantismo datados de tardes como aquela. A morte jamais separava verdadeiros amantes. Apenas precisava-se aceitar os desencontros causados pela mudança de horários, conformar-se a reencontros aparentemente casuais, aprender a ler os sinais. A qualquer momento, o rosto de alguém a quem você amou mais do que a própria vida seria visto de relance à mesa de uma praça de alimentação no shopping ou descendo o trem na estação em horário de grande movimento, quem sabe erguendo-lhe uma xícara de café em um elegante bistrô, discreto cumprimento com sabor de coisa proibida. A morte era uma ilusão, pois mesmo nos mínimos detalhes a vida sugeria que a mágica era a sua própria matéria e a morte não passava da outra face da mesma moeda. À mágica, nada era impossível.
Os meses escoaram suavemente. Logo se estava às portas de 2011. Kylie e Eric conversavam regularmente, mas não havia sinal do enorme investimento psicológico de outrora, quando existira a questão de sentimentos reprimidos, remorsos, declarações a serem ditas, sensações de oportunidades perdidas, de resgates a honrar. Ao ser lançado de volta à vida, Eric encontrava aquilo que Hammond ressaltara por tantas vezes. Passara a vasculhar dentro de si para encontrar a verdadeira felicidade, utilizando como ferramentas as coisas que compunham o cotidiano, as criações artísticas geradas pela sua imaginação, ou mesmo a maneira carinhosa e dedicada com que cuidava da educação de Charly e Terri. Kylie foi perdendo parte do encanto e agora Eric se sentia mais à vontade, pois podia apreciar sua companhia de igual para igual, liberto da ideia de que para tê-la precisava machucar-se. Ao reencontrar o próprio valor, passou a acreditar que não apenas aprendera com a presença de Kylie na sua vida como também fora uma via de mão dupla. Dudley conseguia repensar a vida sob um olhar mais calibrado e enxergar que servira como o porto seguro para a amiga, algo com que pouquíssimas pessoas contam em suas vidas, o suporte que tantas vezes faz a diferença e emblematiza o empurrão para a mudança radical de rota que a maioria desperdiça. Depois de servir como o porto para o qual Kylie pudera retornar sempre que a vida batia nela como mar revolto no barquinho, havia chegado o momento de deixar de olhar para os outros em busca de salvação, para encontrá-la dentro de si. Com Terri e Charly, aprendia coisas maravilhosas a cada dia, nuances de um novo mundo, ou talvez o mesmo, apenas diferente, pois filtrado pelas lentes da infância. No trabalho, a produção criativa alcançara o ápice e quando Hermione chegou com o papo de que estava preocupada em arrumar-lhe uma nova namorada, respondeu que "o melhor da festa era esperar por ela". Sim, uma companheira atenciosa, agradável e carinhosa adicionaria muito – adicionaria a algo que já precisava existir dentro de si: o senso de valor inerente a cada um e que dependia somente de Eric e mais ninguém.
"Os muito ricos são diferentes de você e de mim", escrevera F. Scott Fiztgerald, e Kylie Grattan fora a princesinha fascinante que ilustrara a máxima, ao menos no imaginário impressionável do Eric do passado, a "Daisy Buchanan" na medida para seu "Jay Gatsby". À medida que a personalidade de Dudley foi mudando, a maneira com que Kylie o enxergava passou pela sua própria transformação e todo o mundo dos ricos e privilegiados tornou-se uma grande bobagem, principalmente levando-se em conta o que existia para além das fantasias, algo muito mais deslumbrante, humano e real. Kylie sentia saudades de sua presença e voz. Ao telefone, quando se despediam, ela não gostava quando tinham de desligar. Quando se encontravam nas mesmas rodas sociais, após as cordialidades e os cumprimentos, ao lhe assistir deixá-la ao bar com Cary para conversar com os outros colegas de publicidade no salão, a desenvoltura de Eric a levava a crer que finalmente poderia vir a perdê-lo. Ela tentava não demonstrar tristeza, mas Cary aprendera a ler nas entrelinhas. Importava-se bastante com Kylie para vê-la definhar apenas por causa da miséria das aparências.
- Você o ama, Kylie? - Ele perguntou, aos pés de um opulento bar de hotel, em uma noite fria e cheia de luzes, mais uma festa de ostentação qualquer que compunha a semana corrida dos St. Pierre-Grattan. Kylie fez que sim, os olhos marejados. Cary sorriu com compreensão e calor. Abraçou-a e abreviou o dilema: - Então corra atrás dele.
Eric encontrava-se em downtown Toronto, no dia da grande virada, para resolver assuntos de última hora. Não estava ali para pegar as comidas e bebidas para a festa da contagem, a senhora Medina já cuidara do buffet com a antecedência pertinente à costumeira cautela. Pernetinha amanhecera pela segunda manhã espirrando e a veterinária explicou a Eric que a tinha levado no momento certo, pois sem os cuidados, qualquer gripe poderia evoluir para um quadro mais sério. Ela já tinha tomado as doses de antibiótico e agora Eric tentava segurá-la com um braço enquanto abria a porta do carro com o outro. Uma voz familiar chamou seu nome. Kylie descia a escada rolante de uma bem frequentada livraria das redondezas. Usava óculos escuros, vestida de maneira muito casual: chinelas de dedo, calça jeans de um azul claro muito desbotado e blusão branco. Sorridente, ela tirou os óculos e lhe deu um abraço cheio de saudades.
Eric encontrava-se em downtown Toronto, no dia da grande virada, para resolver assuntos de última hora. Não estava ali para pegar as comidas e bebidas para a festa da contagem, a senhora Medina já cuidara do buffet com a antecedência pertinente à costumeira cautela. Pernetinha amanhecera pela segunda manhã espirrando e a veterinária explicou a Eric que a tinha levado no momento certo, pois sem os cuidados, qualquer gripe poderia evoluir para um quadro mais sério. Ela já tinha tomado as doses de antibiótico e agora Eric tentava segurá-la com um braço enquanto abria a porta do carro com o outro. Uma voz familiar chamou seu nome. Kylie descia a escada rolante de uma bem frequentada livraria das redondezas. Usava óculos escuros, vestida de maneira muito casual: chinelas de dedo, calça jeans de um azul claro muito desbotado e blusão branco. Sorridente, ela tirou os óculos e lhe deu um abraço cheio de saudades.
- Oh, o que houve, querida? - Eric indagou, preocupado, o polegar deslizando sobre a mancha roxa de sangue pisado que Kylie exibia no canto do olho direito. O seu narizinho arrebitado também parecia ligeiramente inchado. Kylie deu uma risadinha.
- Não vá tirar satisfações com o Cary, não foi ele! - Eric também riu. - Não, querido. Lembra-se daqueles dois caras que me viu bater...
- Sei, os dois caras que você derrotou no ringue? - Dudley fez ar de quem havia compreendido. - Quer dizer que um deles conseguiu fazer mais do que apanhar?
- Mais ou menos. Eu o derrotei novamente, mas ele conseguiu conectar um soco antes que eu o derrubasse. - Kylie deu com os ombros e com um sorrisinho sapeca justificou. - Acho que eu esqueci de me esquivar, não?
Mais risos, e então o silêncio constrangedor. Sem os óculos, Kylie permitia a Eric não apenas ver a sua coleção de machucados. Ela, que sempre tivera olhos muito tristes, parecia particularmente arrasada. Eric levou uma das mãos aos seus ombros, uma pequena iniciativa que sinalizou que não existia nada sobre o que não pudessem conversar. A gatinha nos braços foi o ponto de partida para que Kylie retomasse o diálogo. Alisando a cabecinha, elogiou os pelos cinza muito macios e Eric contou as circunstâncias que haviam trazido o animalzinho a sua casa, muitos anos atrás.
- Daqui a pouco, completará sete anos. - Eric comentou.
- Eric, eu não estou mais com Cary. - Por fim, anunciou, levando as mãos delicadas ao peito do publicitário. - Ele é o meu querido amigo desde a época da faculdade. Compreende-me em uma mera troca de olhares. Procurei fazer de conta... - Ela vacilou, mas ao fechar os olhos e respirar profundamente, encontrou coragem para terminar. -... Que eu não sentia a sua falta. É mais do que eu consiga suportar.
- Mas... Nós continuamos nos falando e...
- Não é disso que eu estou falando. - Kylie não queria mais se enganar, tampouco deixaria que Eric desperdiçasse um único minuto. - Disse que completará sete anos que Charly trouxe a gatinha? Pois se atentou que faz mais de dez anos que eu e você estamos neste jogo de gostar um do outro e fingir que não? Precisamos de mais dez anos para perceber que esse orgulho bobo não nos levou a lugar algum? - Eric abaixou a cabeça, mas Kylie não aceitou. Forçou-o a encará-la. - Por favor, Eric. Eu não quero ficar sozinha, perguntando-me como teria sido. - Inclinou levemente a cabeça ao lado, cheia de dor, e soltou em um lamento. - Eu te amo, mas não mais pela ideia de você. Amo-o aqui neste instante, em todos os momentos ao meu lado. Não estamos ficando mais jovens, porém os anos se passam sem que consigamos enxergá-los indo embora, e não esperarão pela gente.
- Eu fico feliz que tenha passado a se sentir assim quanto a mim. - Cercou-a com o braço e a deixou apoiar-se ao seu peito e ombros. Pernetinha não custou a protestar com um miado que os lembrou do bichano apertado entre seus corpos. Rindo, Eric passou o polegar sobre o olho roxo de Kylie, removendo as lágrimas, e assinalou. - Eu cuidarei bem da gente. Venha, vamos para casa. A nossa casa. Já se passou tempo suficiente.
"Os muito ricos são diferentes de você e de mim", Fitzgerald não apenas escrevera para seu conto "The Rich Boy", como também, acredita-se, dissera a Hemingway, que teria retrucado: "Sim. Eles apenas têm mais dinheiro". Apesar de todo o mise-en-scène, Kylie e Eric sempre tinham se sentido de maneira muito semelhante a respeito do outro, e no ar dos ambientes em que haviam circulado e eventualmente se cruzado, perdurara a promessa de que se esbarrariam quantas vezes fossem necessárias até que aprendessem. A vida guardava seu modo especial de surpreender, e muito embora todas as outras ocasiões em que haviam se encontrado tivessem vestido a aparência do extraordinário e grandioso, fora apenas naquela aprazível e ordinária manhã de sexta-feira, quando tinham se visto livres dos padrões elevadíssimos exigidos pelo glamour de melhores hotéis ou de elegantes Ball rooms, que puderam ser exclusivamente eles próprios – Kylie e Eric – livres das versões que terceiros, ou os próprios, faziam de suas próprias pessoas, preparados para descobrirem juntos quem de fato eram. Não demorou aos eventos no aeroporto perderem o impacto sobre Eric. Inicialmente com as lembranças de toda a ação muito frescas na memória, logo o link train deixou o seu sistema e sua eletricidade passou a correr exclusivamente pelos trilhos suspensos nos contornos das torres e terminais do aeroporto internacional. O neon da 211 Bel Air passou a acompanhar novas almas torturadas por amores impossíveis, os tubos das máquinas de café a esquentar xícaras para outros heróis que preferiam enganar-se pelo espaço de uma madrugada, por todas as madrugadas, a acatar o amor com suas contradições, dores e recompensas. Havia um novo funcionário do outro lado do balcão para servir bebidas quentes e dar conselhos de cautela. Ali pela 211, costuma-se cochichar que o mundo é um lugar mágico, e vida e morte são a mesma coisa.
JENNIFER CONNELLY SELMA BLAIR e BURT REYNOLDS
NENHUM PASSO EM FALSO
ANDREW JACOBS RICK HOFFMAN
com SCOTT SPEEDMAN e CAROLINE DHAVERNAS como LACY.
FIM
com SCOTT SPEEDMAN e CAROLINE DHAVERNAS como LACY.
FIM