Neste
impressionante e atmosférico filme de horror japonês, espíritos estão "transbordando" para o nosso mundo pela mais inesperada via: a internet. Mais do que um filme de horror, "Kairo" (termo que significa Circuito)
explora diversos temas bastante atuais, e a cada
nova exibição, detalhes desapercebidos surgem para nos convidar a profundas reflexões. Para contar a sua história, o cineasta Kiyoshi Kurosawa
fez uso do recurso de tramas paralelas. Uma
vez somadas as suas diferentes perspectivas, as tramas compõem um rico painel sobre a solidão e a alienação preponderantes na virada do século. "Kairo" inicia com a imagem de uma mulher encostada ao deck de um navio, os olhos perdidos na
linha do horizonte, um céu sombrio, cor de chumbo logo
acima. Aprendemos que a mulher, assim como as demais pessoas a bordo,
é sobrevivente de uma misteriosa catástrofe que se abateu sobre o
mundo e dizimou mais da metade da população. O filme, então, volta no tempo para nos
contar como os sobreviventes foram parar naquele navio e para onde estão indo.
O
primeiro drama envolve Michi, Junco, Yabe e Taguchi, quatro jovens
amigos que trabalham em uma floricultura de Tóquio. Faz algum
tempo, Taguchi não se apresenta ao trabalho. Ele tinha dito que estaria
ocupado com um trabalho de informática, todavia quando uma
semana se passa sem que dê sinal, os amigos decidem procurá-lo. É
Michi quem presta uma visita ao apartamento de Taguchi, e o encontra
ocupado com afazeres, no gabinete. Ele parece distraído, mas bem
humorado. Ao ser perguntado se se sente bem, Taguchi responde laconicamente que sim, e
conta que tem estado ocupado com o programa de computador. Ele diz
que concluiu o trabalho, e que Michi pode pegá-lo da pilha de discos, logo sobre a mesa. Michi começa a arrumar o quarto bagunçado, porém ao ir se despedir de
Taguchi, depara-se com o amigo enforcado. Enquanto Michi esteve arrumando o escritório, Taguchi discretamente deu cabo da própria vida, em plena sala de estar.
Em um café, os amigos
trocam impressões sobre o ocorrido. Nenhum dos três pode
se recordar de Taguchi deprimido, e até onde sabem, não havia razão
aparente para tão tresloucada atitude. Só o disquete em que trabalhou pode oferecer alguma pista, e
portanto o trio escolhe investigar o conteúdo. Quando o
abrem, encontram uma imagem misteriosa, basicamente uma foto de Taguchi de
costas, de pé diante do monitor. O zoom revela que, no
monitor, a mesma imagem é reproduzida infinitamente. Os três também
conseguem enxergar muito bem o que parece ser o rosto fantasmagórico
de uma outra pessoa refletido. Produto da cultura que o concebeu, "Kairo" traz uma trama pontuada por momentos aparentemente aleatórios, peças que parecem não se encaixar,
mas que dão ao filme um perturbador ar de impenetrável mistério.
Naquela noite, uma das meninas se encontra a sós no apartamento,
preparando o jantar e assistindo ao telejornal, quando entra uma matéria sobre uma mensagem na garrafa, jogada ao mar dez anos antes por um
garotinho de uma ilha japonesa, que finalmente havia sido descoberta
em uma praia da Malásia, mais de quatro mil quilômetros de onde a
garrafa fora arremessada. Enquanto escuta a tudo, a moça prepara um café. Ao fundo, na televisão, o rapaz que
tinha atirado a garrafa quando criança aparece dizendo que jamais
imaginou que a mensagem alcançaria outro país, tampouco que
receberia resposta. O sinal da televisão começa a
sofrer interferência, até congelar na imagem do
repórter. Algo nesta cena parece prenunciar toda a confusão por vir - fantasmas transbordando em nosso mundo através da
internet - e a maneira incomodada e tensa com que a mulher reage ao
incidente dá à cena um ar de antecipação, algo que se provará uma constante ao longo do filme.
A segunda
trama oferece como referencial Ryosuke, um estudante de Economia que recentemente resolveu plugar no mundo da internet. Ele
compra o pacote de um provedor, e do momento em que loga na rede, passa a acessar involuntariamente um website onde lhe são
exibidas imagens ao vivo de pessoas solitárias, enclausuradas em
quartos muito escuros. Elas ou não estão fazendo nada, ou caminham lentamente dentro de seus cômodos, em silêncio. Ao final da exibição, a tela escurece e
o texto "Você gostaria de conhecer um fantasma?" surge.
Ryosuke fica extremamente perturbado e imediatamente desliga o
PC. Mais tarde, já adormecido, o computador se inicia sozinho e o modem conecta novamente a internet, retornando ao website. Ryosuke toma
um susto ao ver as imagens de uma mulher com um
saco preto na cabeça, sentada de frente para a câmera, como que
esperando comunicar-se. Ryosuke arranca o fio do computador. Na manhã seguinte, no laboratório de informática, conta
o ocorrido a um colega, que sugere que aquilo parece coisa de
"hacker". Uma moça chamada Harue
escuta a conversa, e se oferece para ajudar. Ela lhe dá instruções
para que, da próxima vez que o incidente ocorrer, imprima a
página, ou mesmo a adicione à pasta Favoritos, para que possam
investigar a origem do website.
Voltando
à primeira história, Yabe recebe um telefonema, cujo número identifica como
o do apartamento do falecido Taguchi. Do outro lado da linha, uma
voz metálica e sem emoção limita-se a repetir "Ajude-me, ajude-me". Yabe decide visitar o apartamento do amigo e verificar se seu computador foi deixado ligado. Aqui, cabe registrar que mesmo os momentos de quietude de "Kairo" são extremamente eficientes na propriedade de incomodar. O diretor Kiyoshi Kurosawa consegue perfilar o trabalho com sacadas sutilmente arrepiantes, fazendo uso para máximo efeito de elementos que potencializam a expectativa: fotografia e trilha são seus pontos altos, os maiores aliados. Assim como Tom Shankland fez com w Delta z, onde a fotografia melancólica do talentoso Morten Soborg, a esbanjar borrados neon verdes e vermelhos, literalmente se torna um personagem a parte de seu maravilhoso filme, Kurosawa soube fortalecer "Kairo" em tecnicidades e criatividade narrativa, sustentando a proposta de mistério. Os filmes de horror japoneses funcionam muito bem porque parece perdurar em suas atmosferas a sensação de convívio entre velhas lendas e novos valores. Enquanto o Japão é uma das potências econômicas mais modernas, os mitos e valores milenares convivem em uma base diária com a correria e a impessoalidade de Tóquio, onde suas enormes vias, atravessadas por milhares, transmitem uma poderosíssima sensação de transitoriedade e energia. Na estação de Shibuya, a rodoviária que suporta uma das maiores demandas de tráfego diário do mundo, a arquitetura de terminais moderníssimos é pontuada por ícones seculares de épocas distantes, tais como o cachorro Hachiko, imortalizado em uma estátua erguida em uma das cinco entradas. Bem em meio à agitação do século XXI, cidadãos encontram tempo para se encontrar e conversar neste ponto, símbolo de amizade e fidelidade incondicionais. O Japão parece um lugar especial, um mundo a parte, onde o que há de mágico, belo e milenar encontra a maneira de perdurar, tanto em espaços grandes quanto pequenos. Kurosawa soube fazer bom uso desta característica essencialmente nipônica.
Yabe está investigando os computadores no apartamento do amigo, quando ao ir buscar alguma coisa na sala, depara-se com Taguchi de pé, observando-o silenciosamente, bem no lugar onde foi encontrado morto por Michi. Yabe procura se comunicar, mas o amigo desaparece e tudo o que resta na parede é uma mancha com a forma de silhueta humana, semelhante a borrão de café. Entre os papéis de Taguchi, encontra uma folha com a palavra "O Quarto Proibido", o que não faz sentido. Yabe regressa para casa, caminhando solitariamente pelas calçadas do bloco, quando a porta de um apartamento lhe chama a atenção. A porta teve as bordas cobertas por fitas adesivas vermelhas, como que o autor da arte tivesse procurado isolar o espaço, manter "algo" dentro. Yabe rompe as fitas vermelhas e entra, quando encontra o fantasma de uma moça, que assim como ocorreu com Taguchi, materializa-se inicialmente como um borrão na parede e então adquire mais nítida forma. O fantasma começa a caminhar em sua direção, sem pressa alguma, marchando decisiva e vagarosamente, quase como um sinal de TV mal sintonizado. No dia seguinte, Yabe vai trabalhar, deprimido e calado, e quando as meninas perguntam como foi a sua visita ao apartamento, ele as ignora. Por todos os cantos de Tóquio, coisas parecidas começam a acontecer com frequência.




Yabe está investigando os computadores no apartamento do amigo, quando ao ir buscar alguma coisa na sala, depara-se com Taguchi de pé, observando-o silenciosamente, bem no lugar onde foi encontrado morto por Michi. Yabe procura se comunicar, mas o amigo desaparece e tudo o que resta na parede é uma mancha com a forma de silhueta humana, semelhante a borrão de café. Entre os papéis de Taguchi, encontra uma folha com a palavra "O Quarto Proibido", o que não faz sentido. Yabe regressa para casa, caminhando solitariamente pelas calçadas do bloco, quando a porta de um apartamento lhe chama a atenção. A porta teve as bordas cobertas por fitas adesivas vermelhas, como que o autor da arte tivesse procurado isolar o espaço, manter "algo" dentro. Yabe rompe as fitas vermelhas e entra, quando encontra o fantasma de uma moça, que assim como ocorreu com Taguchi, materializa-se inicialmente como um borrão na parede e então adquire mais nítida forma. O fantasma começa a caminhar em sua direção, sem pressa alguma, marchando decisiva e vagarosamente, quase como um sinal de TV mal sintonizado. No dia seguinte, Yabe vai trabalhar, deprimido e calado, e quando as meninas perguntam como foi a sua visita ao apartamento, ele as ignora. Por todos os cantos de Tóquio, coisas parecidas começam a acontecer com frequência.
No trabalho, Yabe continua introspectivo. Michi insiste em descobrir o que está acontecendo com o amigo. Ela o encontra sentado no chão, no depósito das caixas, e insiste para que conversem. Yabe murmura que viu um fantasma, e balbucia qualquer coisa sobre "O Quarto Proibido". Pede para que Michi não entre nos quartos proibidos. Voltando para casa, em um distrito de fábricas, Michi vê uma moça subir as escadas de uma torre, e saltar para a morte, sem hesitar.


Ryosuke dá pela presença de uma menina observando-o de um dos corredores da biblioteca. Um colega chamado Yoshizaki senta-se à mesa de Ryosuke e lhe diz que também enxerga a menina. Ryosuke acha que estão pregando uma peça, porém ao correr em direção à visitante, a mesma parece deslizar por entre os corredores, e desaparece. Ryosuke pergunta a Yoshizaki se sabe o que está acontecendo, e o colega o convida a tomar um chá. Yoshizaki conta que o que Ryosuke viu foi realmente um fantasma, e que agora os visitantes estão por todas as partes de Tóquio. Ele crê que quando morremos, nossos espíritos vão para "outro lugar". Ocorre que mesmo esse "outro lugar" tem espaço limitado, e que aparentemente atingiu a sua capacidade. Por não existir mais espaço para acomodar o volume de almas, elas encontraram o jeito de "transbordar" para o nosso mundo, através da tecnologia, das conexões da rede. Aparentemente, tudo começou de forma muito discreta, quando o primeiro fantasma apareceu em um cômodo de um prédio qualquer. Alguém deve ter dado pela sua presença, e selado o apartamento com fitas adesivas vermelhas nas portas e janelas, porém quando as obras de uma construção puseram o lugar abaixo, libertando o espírito, o efeito avalanche começou, e várias aparições passaram a "transbordar" por todos os lugares de Tóquio onde existem circuitos de internet. Segundo Yoshizaki, a passagem foi aberta, e não há como fechá-la.
Michi e Junco estão assustadas, atônitas com o sumiço de amigos e familiares. A situação parece apocalíptica, mas surpreendentemente discreta, é como se o fim do mundo tivesse chegado sem muito alarde, mas com as suas consequências expostas por todos os lados. Michi atende uma ligação telefônica, e do outro lado uma voz metálica e monótona insiste "Ajude-me, ajude-me". Ali no trabalho, ela reencontra Yabe, mas para a sua surpresa o mesmo não passa de um fantasma, que se reduz `a mancha preta na parede. Junco faz a má escolha de abrir uma das portas seladas por tape vermelho, e Michi a encontra bem a tempo de salvá-la. Ambas enxergam muito claramente um fantasma, uma silhueta sombria muito alta e que se move vagarosa e espalhafatosamente. Junco é quem tem maior contato com o espírito, quem o encara, mas Michi consegue arrancá-la da sala, e as duas fogem.
As pessoas que entram em contato com as aparições perdem toda a energia vital. É como se os espíritos lhes passassem uma doença terminal, na verdade uma profunda angústia existencial, que as impede de seguir vivendo, e as arrasta a um poço de solidão e amargura, do qual a única salvação parece ser a própria morte. Da mesma maneira que parecem condenadas à eterna solidão, as aparições também forçam as pessoas a enxergar o terrível vazio de suas vidas, e com isso aleijá-las de qualquer vontade de continuar existindo. Junco é transformada pelo encontro, e por mais que Michi tente resgatar a amiga, nada consegue fazer de significante para salvá-la do profundo desespero. Junco literalmente se transforma em um borrão escuro bem diante dos olhos de Michi, e quando o vento bate, as cinzas são carregadas como se nada fossem.


Um dos grandes filmes de horror do criativo cinema japonês, "Kairo" ainda é desconhecido pelo grande público, muito embora tenha ganhado até mesmo uma refilmagem americana em 2006, chamada "Pulse". Oriundo do profícuo período em que o gênero floresceu, está entre os mais memoráveis exemplares, ao lado de "Audition" e "Ringu". Consequência da cultura que o gerou, quando do lançamento, "Kairo" dividiu opiniões, e enquanto parte da crítica foi extremamente severa, outra o enalteceu pelo que representa, por mais que suas surpresas pareçam impenetráveis para o grande público ocidental. Revisitando o filme, ainda saltam aos olhos os pequenos elementos que soam inexplicáveis e aleatórios, mas que funcionam surpreendentemente muito bem, criando um tipo de expectativa eletrizante, alheia aos filmes ocidentais modernos. "Nada em suas duas longas horas faz o menor sentido", foi o que disse a Entertainment Weekly, a que fez coro o Village Voice, ao escrever "Ao menos, meia hora longo demais". Tempo de duração e muitas pontas soltas representam a fraqueza pela qual parte da crítica o repudiou, mas, ironicamente, também a força pela qual aqueles que o amam o enalteceram.


"Kairo" agradará a pessoas abertas a novas experiências, que mais do que um sentido para a arte, buscam as emoções mais primitivas que um filme, um quadro, um romance conseguem evocar. Para aqueles que gostam de ter todas as suas perguntas esclarecidas, que fique claro: "Kairo" mais incitará o debate do que propriamente explicará o que se passou diante de seus olhos. Pessoalmente, compreendo que o filme funciona como uma meditação pessimista sobre a era das conexões e redes sociais, quando talvez ao invés de estarmos nos aproximando, estejamos projetando a imagem pela qual gostaríamos de ser vistos. Neste sentido, diferente de aproximar, a internet só estaria segregando, ou no mínimo criando a ilusão de uma "vida perfeita" que mascara a realidade, mais complicada do que perfis sociais possam levar a crer. Evidentemente, a internet é uma ferramenta importantíssima que permitiu que velhos amigos se reconectassem, e que compartilhassem com pessoas queridas miscelâneas de suas vidas, todavia também nos deixou acomodados à existência virtual, quando substituímos a convivência e o afeto humano por postagens e mensagens instantâneas. Sabemos que há mais envolvido em verdadeiras amizades do que meramente pertencer ou não à lista de contato uns dos outros, e de alguma forma, as redes sociais nos anestesiaram para o essencial. Talvez seja preciso tempo para enxergarmos a questão sob esta ótica, mas me parece que eventualmente temos que cair na real.
Claro que a interpretação acima é particular, e as pessoas poderão vislumbrar diferentes mensagens, ou mesmo mensagem alguma. Um colega me disse, "rapaz, li a sua resenha sobre Hellraiser, e nunca mais pensei sobre o filme da mesma maneira". Disse que eu devo ter "uma imaginação e tanto". Eu gosto de filmes que me movem a ponto de enxergar algo além do que meramente se passa na tela. Por outro lado, se vocês não querem pensar muito, mas apenas roer as unhas e curtir um filme de horror lento mas bastante enriquecido, sem sustos inesperados, porém permeado de imagens surreais e memoráveis, sem violência, contudo psicologicamente devastador, nas mesmas linhas de "Lords of Salem", por exemplo, "Kairo" é o seu filme. Agora que já me aprofundei o suficiente em "Kairo", deixem-me concluir a resenha com uma afirmação mais clara e direta, para os amigos que apreciam a praticidade: se vocês acham que conhece horror e não viram "Kairo", não sabem de nada ainda.