sábado, 7 de dezembro de 2013

Occult ("Okaruto", Japão, 2008, Koji Shiraishi) - Excelente exemplar do cinema de horror japonês,este suspense contemporâneo reavivará as lembranças de um dos dias mais macabros da Humanidade.

Agosto de 2005. Myogasaki é uma praia muito bonita do Japão, procurada por turistas graças a seus magníficos rochedos, onde as ondas espumam ao quebrar, e a ponte pênsil, de onde se pode enxergar toda a beleza. O lugar fica marcado após um incompreensível caso de homicídio, quando um homem aparentemente ordinário puxou uma faca, matou duas moças e deixou um rapaz bastante ferido. O estranho então escalou os rochedos mais altos e saltou para a morte. Parte da confusão foi capturada por turistas munidos de câmeras, que chegaram a registrá-lo caminhando calmamente pelo local, entre outras pessoas, antes da confusão, até o momento em que salta das rochas. Estranhamente, seu corpo jamais foi recuperado.

3 anos depois. Decidido a rodar um documentário sobre os eventos, um cineasta chamado Koji Shiraishi retorna para Myogasaki e começa a entrevistar sobreviventes e parentes de vítimas. Descobre, então, que há mais ao caso do que a primeira impressão leva a crer. Depois do acontecimento, as pessoas que estiveram direta ou indiretamente envolvidas têm histórias interessantes para contar. A mãe de Satomi, a adolescente de dezessete anos morta no resort, diz que às vésperas de sua viagem, a filha lhe dissera que havia tido um sonho com Myogasaki. Ela escolhera o resort em razão do sonho, pois sentia que algo extraordinário estava para acontecer.Desde o assassinato, a mãe tem tido sonhos recorrentes com Satomi, que seguem a mesma cartilha: ela bate à campainha, e quando a mãe abre a porta, a garota parece querer lhe comunicar algo, uma palavra que não consegue concatenar muito bem. Ela então abre a boca de uma forma incomum e exagerada, e começa a rir. Hideki Taniguchi é outra pessoa duramente traumatizada pelo caso, que custou a vida de sua noiva Migita San. Foi a moça quem primeiro havia visto fotos encantadoras do resort em uma revista de turismo, e convencido o rapaz a levá-la no passeio. Tão excitados tinham ficado com a ideia, os dois alugaram um carro na noite anterior, e partiram para Myogasaki. Na manhã do acontecimento, estavam passeando pela ponte, entretidos com as ondas que batiam contra o quebra-mar, quando Hideki precisou se ausentar momentaneamente para usar o reservado. Os gritos chamaram sua atenção, e quando retornou à ponte, a noiva já tinha sido mortalmente ferida. Hideki entrou em profunda depressão, porém recentemente passou a ser "visitado" por Migita San. Quando a assistente lhe pergunta se Hideki se refere a fantasmas, ele responde que não. O rapaz mostra uma fotografia tirada há cerca de um mês atrás, quando saiu com amigos para uma confraternização. Na foto, nós o vemos entre duas amigas, e ao fundo, olhando de passagem, como que por curiosidade, a noiva morta. O impressionante de tudo é que não se trata de uma imagem fantasmagórica. Se Hideki não tivesse contado sobre Migita san, a foto pareceria absolutamente comum a olhos desavisados. Acontece, porém, que a moça que enxergamos passando discretamente por trás do trio e olhando interessadamente para as lentes é mesmo a noiva, morta há três anos.

Pouco se sabe sobre  Ken Matsuki, o homem responsável pelo ataque. Ele já havia nascido com uma distinta marca nas costas. Costumava dizer ao pai tratar-se da "assinatura de Deus". Um amigo de escola disse que Matsuki sempre lhe tinha parecido uma pessoa acessível e generosa, que apreciava tópicos como fantasmas, habilidades sobrenaturais e OVNI. Os amigos não conseguem compreender como o pacato rapaz foi capaz de cometer o crime. Enquanto oferece suas reminiscências e dá o depoimento à repórter, o amigo de Matsuki começa a sangrar pelo nariz.

Nenhuma das histórias, porém, é tão intrigante quanto a de Shohei Eno, um homem simplório e humilde, de seus trinta e poucos anos, que quando dos eventos ainda morava com os pais em Osaka, e trabalhava transitando entre modestos empregos temporários. Eno conta que uma semana antes da confusão, quando estava à toa na sala de casa, ligou a televisão e escutou uma voz que disse ser idêntica a de "Indiana Jones" (mais sobre isso depois) claramente o instruindo a apanhar o próximo trem para Myogasaki. A assistente do diretor lhe pergunta se é possível que tenha imaginado a "voz", mas Eno conta que logo depois, ao sintonizar um programa de variedades, o mesmo falava justamente sobre o resort em Myogasaki. Eno tomou a coincidência como milagre, e se preparou para fazer a viagem, certo de que ao chegar ao resort passaria por uma transformadora experiência. Ele se aprofunda quanto ao dia da tragédia: distraído, estava a caminhar pelas pontes, esperando pelo "milagre", quando o rapaz da faca apareceu, matou as moças e o atacou por último. Eno diz que sentia tanto medo que nem teve tempo de reagir. Ao se debruçar sobre as suas costas para feri-lo, o estranho explicou a Eno "Agora é a sua vez, OK". Ele deixou uma impressionante cicatriz nas costas de Shohei, cuja forma bizarra parece guardar algum tipo de significado. Depois de sobreviver ao encontro, a vida de Eno mudou. Uma noite, ao despertar no hospital e olhar pela janela, enxergou um enorme OVNI sobre as árvores, uma espaçonave com cerca de quarenta metros de largura. A mãe de Eno estava presente e também viu. O OVNI emanava uma luz alaranjada, e depois de um tempo planando silenciosamente sobre o bosque, ascendeu em um flash. A observação dos OVNI não representa a única coincidência entre o depoimento do amigo de Matsuki e o de Eno. Quando a assistente mostra ao amigo de Matsuki as fotos das costas do sobrevivente Eno, o rapaz explica que a cicatriz assemelha-se à marca de nascença de Matsuki.

Impressionada com a riqueza de narrativas inexplicáveis que giram em torno do caso Myogasaki, a equipe do documentário concorda em rodar um filme sobre o dia a dia de Eno. A ideia é acompanhá-lo por vinte e quatro horas, e registrar o cotidiano do homem que parece dizer menos do que realmente sabe. Ao chegar ao estúdio da equipe de filmagem, Eno é convidado a assistir `as imagens daquele fatídico dia em agosto de 2005. Akira Wakatsuki é o produtor, e durante a exibição das imagens, aponta para o monitor, explicando a Eno as peculiaridades observadas. Quando estava sendo marcado nas costas por Matsuki, por uma fração de segundo, um misterioso ponto escuro cruzou o enquadramento da câmera. À medida que vai conversando com o trio que compõe a equipe técnica - diretor, assistente e produtor - Eno confidencia que sempre acreditou que o ocorrido na ponte em Myogasaki se devesse a alguma "intervenção divina". Ele conta que até então vinha vivendo uma existência medíocre, e que não guarda ressentimentos de Matsuki pelo ocorrido. De uma maneira estranha, Shohei é grato a Matsuki por tê-lo "preparado para algo grandioso". Desde os eventos na ponte, Shohei afirma que a vida tem sido abençoada por "pequenos milagres". Quando o produtor Akira pergunta se pode ser mais específico quanto a natureza dos "milagres", Eno responde que prefere não falar a respeito, mas deixa escapar que se refere a fenômenos paranormais que parecem acontecer ao seu redor de maneira aleatória, todos os dias. Akira interessa-se em "capturar" em filme os tais milagres, e Eno adianta que apesar de os mesmos se sucederem em um piscar de olhos, dependendo da sorte, podem ser filmados, sim. 

O diretor Shiraishi começa a acompanhar Eno no seu cotidiano. Tendo chegado à casa dos trinta anos, Shohei enfrenta dificuldades para se reinserir no mercado de trabalho, e vai sobrevivendo de empregos temporários. Uma vez que se chega a uma certa idade, mesmo as vagas temporárias se tornam mais escassas. Shiraishi o filma ao telefone, contatando uma firma de terceirização de mão de obra. Por um período de 24 horas, ficará em "stand-by", aguardando a ligação, caso apareça alguma oportunidade. Vemos Eno caminhando por Tóquio, entrando em um modesto mercadinho e fazendo compras. Por não ter muito dinheiro, a sua dieta constitui-se de macarrão instantâneo. Eno engrossa a estatística dos Net café refugees, uma classe em franca ascensão, na fase pós recessão econômica do Japão. Os Net café refugees não têm apartamento próprio, e dormem 24 horas em Internet cafés ou manga cafés. Geralmente, os "refugiados" ou estão desempregados, ou empregados em funções que pagam pouco, e ainda não possuem meios de alugar o próprio apartamento. Ali, os "refugiados" têm como usar o endereço dos Internet cafés para preencher as aplicações para cargos, bem como se servir de outras comodidades, tais como cabinas com acesso a internet, uma modesta cama, sanitários, lanches, drinques e mesmo chuveiro. Nós vemos Eno passar a noite em um Internet café. No dia seguinte, Shiraishi o acompanha a uma lanchonete, onde fazem a primeira refeição do dia. Vence o prazo para que a firma de terceirização entre em contato, e lamentavelmente, a ligação não chega. Não foi dessa vez que Eno conseguiu a vaga. Shiraishi lhe compra um lanche para animá-lo. Os dois estão conversando à mesa, quando a embalagem do sanduíche é atirada por uma força invisível: um dos "pequenos milagres" a que Eno se referia. Shiraishi fica encantado com o fenômeno, e Eno conta que aquilo se tornou tão frequente que nem o impressiona mais. Shohei revela que tem visto OVNI desde a confusão em Myogasaki, e que ultimamente os mesmos surgem mais habitualmente. Fantasmas também fazem parte do repertório de bizarrices que assolam o cotidiano de Eno, que por vezes chega a enxergar OVNI e fantasmas ao mesmo tempo!Ademais, a mesma voz de "Indiana Jones" que o recomendou a Myogasaki três anos antes retornou para povoar a sua cabeça com novas instruções. Eno não entra em detalhes quanto ao teor das instruções

De volta ao pequeno estúdio pessoal do cineasta, Shiraishi exibe para o produtor e a assistente a cena do papel atirado. O cineasta pretende entregar uma câmera pequena para Shohei, para que procure documentar os bizarros acontecimentos. O produtor Akira diz que a equipe lhe pagará um determinado valor por cada imagem fantástica que conseguir. Shohei tem mais um pedido: vez que não tem onde ficar, pede para dormir por uma semana no escritório. Shiraishi gosta da ideia. Com Eno por perto, a equipe terá como monitorá-lo melhor, e colher farto material para o documentário. Eles oferecem um quarto para o rapaz, que fica muito feliz pela guarida, e por se ver livre, ao menos temporariamente, das cabinas do Internet café. No esteio da boa sorte, Eno recebe uma ligação da firma de trabalho terceirizado, que lhe consegue uma vaga para um trabalho temporário, previsto a durar por um mês. Já na noite em que dorme no escritório, Eno captura a imagem de uma mancha branca, semelhante a uma névoa, formando-se um pouco acima de sua cabeça, e então, como que movida por inteligência própria, deixando-o.

A equipe do filme promove uma modesta festa em restaurante para celebrar o novo emprego de Eno. Apesar de os ânimos iniciais parecerem ótimos, será neste pequeno encontro que a equipe começará a perceber que há algo de errado e malicioso no estranho. Entretidos com o jantar, Eno explica ao produtor Akira que frequentar Internet cafés tem suas vantagens. Pode-se desfrutar de uma cama e de ar condicionado, e tomar banhos, tudo por um custo baixíssimo, além de bebidas quentes, que podem ser consumidas gratuitamente. Enquanto Shohei discorre sobre a vida como Net café refugee, a assistente está distraída com alguma coisa, e Eno chama a sua atenção de forma particularmente incisiva. Começa a reclamar que ela deveria participar mais das conversas, e que com sua atitude reservada parece demonstrar indiferença pelos demais. Ele diz que mesmo nas entrevistas, parece não fazê-las de coração, e que o distanciamento proposital com que se conduz atrapalha até mesmo a vida pessoal. O produtor procura contornar a delicada situação, porém fica muito claro que Eno é uma pessoa inconstante e imprevisível. A assistente se despede e fica de encontrá-los na manhã seguinte, restando somente os três à mesa. Akira parece cochilar, e ficam somente Eno e Shiraishi bebendo e batendo papo. Mais espontâneos por causa do álcool, a conversa flui mais reveladora. Pela primeira vez, Eno se distrai e revela parte do que a voz de "Indiana Jones" lhe pede. "Você tem uma missão a cumprir". Logo depois, contradiz-se que não a entende muito bem, e muda de assunto. Eno acredita que quando Matsuki o feriu nas costas e disse "Agora é a sua vez, OK", não queria dizer "Agora é a sua vez de morrer", mas sim "Estou passando a responsabilidade para as suas mãos". Shohei está convicto de que não encontraram o corpo  de Matsuki pois, no momento em que se lançou dos rochedos para o mar, foi levado para outra dimensão, possivelmente o Paraíso. Shiraishi indaga se pretende fazer a mesma coisa que Matsuki, mas Shohei é prolixo. De volta ao escritório, Shohei dorme profundamente. Akira chama Shiraishi no canto, e diz que, no restaurante, apenas fingiu cochilar, de sorte que escutou a tudo. Akira parece preocupado, e pergunta a Shiraishi se lhe parece que Shohei tem algum plano macabro em mente. Àquela altura, o diretor não tem como responder.

É um novo dia. Eno está a caminho da estação de trem Shinjuku, para seu primeiro dia de trabalho. Shohei carrega consigo uma pequena câmera para registrar todos os momentos. Ao passar em frente a uma cabina policial de Shinjuku, comenta "Oh, uma cabina policial. Se eles imaginassem o que estou para fazer...", e ri. Ao final do dia, enquanto aguarda o trem na companhia dos colegas de trabalho, Shohei filma o céu nublado e diz que está tão feliz que mesmo sob tempo fechado acredita que a vida não poderia estar melhor. Enquanto filma o céu, não chega a se aperceber da mancha escura deslizando pouco acima de um prédio público. Ao retornar para o escritório, Eno conta a Shiraishi que não conseguiu filmar fenômeno algum, e é neste momento em que os livros são atirados da escrivaninha por uma força invisível, em uma clara manifestação de poltergeist.

Aprofundando-se nos detalhes do caso, Shiraishi quer saber se há algum significado para a marca de nascença de Matsuki. Ao pesquisar na internet, encontra um desenho muito semelhante no website de uma designer de mangá chamada Watanabe Peko. Shiraishi encontra a designer em uma lanchonete, e ela lhe diz que o desenho veio de uma ocasião em que, bastante cansada, deixara a mão com o lápis sobre a mesa, e fora rabiscando desatenta. Ali na lanchonete, com o diretor e a sua assistente, ela subitamente parece entrar em transe. A desenhista apanha um diário e começa a riscar o que acaba se assemelhando a uma formação geológica conhecida como Rocha Kutoro, situada no Monte Ohiruyama. Shiraishi fica surpreso, pois há três anos atrás havia subido o monte e encontrado placas misteriosas com indecifráveis inscrições dos Sumérios.

Diretor e assistente visitam o Monte Ohiruyama para investigar a Rocha Kutoro. A subida é muito íngreme, mas de cima a vista é quase mágica e compensa todos os esforços. O frio é tão intenso que a neblina parece "descer" a montanha como véu de noiva, e do topo, parece que se está caminhando sobre nuvens.Shiraishi filma a placa onde estão os hieróglifos dos Sumérios. Um dos símbolos é idêntico à marca de nascença nas costas de Matsuki. Shiraishi conta à assistente que quando tinha escalado a rocha da primeira vez, em 2005, nove sanguessugas haviam aparecido repentinamente em sua canela. Agora, três anos mais tarde, enquanto distrai-se conversando com a amiga, os nove orifícios subitamente voltam a sangrar. Depois que retorna a Tóquio, a assistente contata o departamento de turismo de Ohiru, em busca de informações sobre a história da Rocha Kutoro. Eles lhe dão o número de Kiyoshi Kurosawa, um aclamado cineasta que sempre foi fascinado pelo lugar e conhece seu passado como poucos. Aqui, vale mencionar que não se trata de um ator representando papel. Na vida real, Kiyoshi Kurosawa é mesmo um diretor de filmes de horror, sendo o seu trabalho mais famoso "Kairo", sobre o qual já tratei neste blog. A sua participação especial dá a Occult um ar de autenticidade e elegância.

Kurosawa não tem interesse apenas em filmes, também é um historiador apaixonado por ruínas antigas. Autodidata, Kurosawa estuda o Monte Ohiruyama há mais de vinte anos. Segundo o cineasta, no topo de Ohiruyama, há muitas formações, e vários hieróglifos podem ser observados nas rochas. Ao longo dos anos, Kurosawa tem fotografado e catalogado os símbolos. Ele diz que assim como em outros lugares famosos do Japão, a montanha também foi lugar de adoração para uma divindade da mitologia nipônica chamada "Hiruko". Hiruko é o filho dos deuses que criaram as ilhas japonesas, Izanami e Izanagi. Conforme a lenda, Hiruko nasceu sem pernas e braços, e tinha a forma de "sanguessuga". O monte foi batizado "Ohiruyama" por derivação do termo "Hiru", que significa "sanguessuga". Neste momento, Shiraishi nos remete ao começo do filme, mais especificamente à entrevista com a mãe de Satomi, quando falava sobre sonhos com a filha, e procurava concatenar uma dada palavra. Pois bem, o que o fantasma dizia para a mãe nos sonhos era "Ohiruyama", referindo-se à montanha. A equipe mostra a Kurosawa as fotos das placas encontradas dentro da rocha, e Kiyoshi reage com surpresa. Impressionado, reproduz o desenho no seu quadro negro, e explica o provável significado do hieróglifo.O desenho pode ser repartido em dois menores, cada qual com um determinado sentido. Em linhas simples, o hieróglifo reproduz o oráculo, que significa assuntos divinos, quando Deus dá ordens, bem como outro conceito que significa "matar coisas vivas". De uma maneira bem clara, o hieróglifo pode ser traduzido como iminente presságio de uma incomensurável calamidade, natural ou provocada, que culminará na morte de muitos, "uma grande calamidade ordenada por Deus". 

Depois do revelador encontro com Kurosawa, a equipe de cinema fica muito assustada. Aproveitando-se da ausência de Eno, que se encontra no trabalho, eles retornam ao estúdio pela tarde. A assistente averigua a mochila, e o que encontra os deixa pasmos.Há uma fatura que mostra que Eno tem economizado dinheiro, uma soma que ultrapassa oito mil dólares. Akira comenta que "parece que ele está se preparando para algo", e pela primeira vez o termo "ataque terrorista" é mencionado. Em um outro lugar de Tóquio, na saída do trabalho, Eno é abordado por um outro colega da firma, que lhe dá uma dura e diz que o seu relaxamento está deixando os demais atrasados no cronograma. Depois que o rapaz deixa, Eno o segue, filmando-o discretamente, e comentando para a câmera que sente que o hostil companheiro será atropelado muito em breve. Quando o rapaz está para atravessar a rua, uma orla negra parece bailar sobre sua cabeça. Ele corre para atravessá-la, quando é colhido por uma van. Eno registra tudo com a câmera, e sai correndo.

Caminhando pelas largas, movimentadíssimas calçadas do centro de Tóquio, Shohei captura com a lente da câmera um OVNI pairando sobre os prédios comerciais mais altos, sem que os transeuntes distraídos consigam percebê-lo. Pelas fachadas de outros edifícios, sombras de diferentes formatos parecem deslizar com graciosidade. É uma visão extraordinária, e o mais surpreendente de tudo é que os fenômenos se dão de maneira tão sutil que os ocupados cidadãos de Tóquio mal parecem se aperceber daquela manifestação de um mundo mágico e sobrenatural sobreposta a suas realidades ocupadas e pragmáticas. Depois de mostrar as filmagens do dia ao trio, Eno recebe uma boa soma em dinheiro pelo trabalho. Ainda assim, consegue perceber a inquietação e o constrangimento entre os membros da equipe técnica, que à esta altura têm motivos de sobra para se afastar de toda a incompreensível situação, mais indecifrável a cada dia. Quando Shohei os convida a um jantar para comemorar a qualidade das imagens e o progresso no documentário, o produtor e a assistente de direção inventam desculpas diferentes. Obstinado em conseguir novas informações de Shohei, Shiraishi aceita o convite. Mal pode imaginar as revelações por vir. 

Shiraishi é muito habilidoso ao arrancar a verdade de Eno durante o jantar. Ele afirma que as imagens o deixaram chocado, e que agora sente que há um propósito maior para seu trabalho. Shiraishi promete que mesmo que Shohei tenha em mente algo nos moldes do que Matsuki cometeu três anos antes, não tentaria impedi-lo, pois por trás de todos os fenômenos paranormais, consegue vislumbrar o trabalho do destino. Shiraishi gostaria de contribuir com a missão de Shohei, porque o seu objetivo é o de produzir o documentário para veiculá-lo, de modo que muitas outras pessoas conheçam a mensagem por trás da jornada de Eno. As palavras de camaradagem exercem papel importante na abertura do rapaz, que finalmente discorre sobre seus propósitos."A verdade é que depois do acidente, eu ouvia uma voz. Eu disse que não a entendia, mas não é verdade. A voz que é parecida com a de Indiana Jones repetia 'um massacre suicida a bomba, à estação Shibuya'". Shohei explica que o ataque suicida é a sua ordem, e que acredita que no momento da explosão, assim como aconteceu a Matsuki, não morrerá, mas tão somente será levado a um novo plano de existência, ao Paraíso, a recompensa por ter cumprido os "desígnios de Deus". As milhares de pessoas levadas no instante do atentado também o acompanharão ao Paraíso. Eno está convicto de que é um "escolhido", assim como o foi "Matsuki". Desculpa-se por ter pedido para dormir no estúdio, porém a necessidade de economizar dinheiro para viabilizar o grande atentado o forçou a morar em Internet cafés e viver de favores por um tempo. Com o dinheiro que juntou, Shohei tem mais do que o suficiente para comprar o material e construir a bomba. O seu intento é o de amarrá-la ao corpo, desembarcar na estação Shibuya em horário de rush e explodir o lugar sem dó. 

Shiraishi retruca dizendo que irá denunciá-lo à polícia. Quando se comprometeu a ajudá-lo estava apenas mentindo para descobrir os intentos do rapaz. Eno não perde a compostura, e responde que Shiraishi já se envolveu na missão. Forças maiores o prendem ao compromisso de auxiliá-lo no massacre a bomba a Shibuya. O cineasta não lhe dá crédito, mas descobre o quão certo Shohei está, ao deixarem o restaurante e entrarem por uma via deserta. Shiraishi não se sente bem, e encosta-se a uma cerca para vomitar. Quando levanta o rosto, enxerga um enorme OVNI branco estacionado sobre a quadra. Com o susto, o cineasta tropeça e cai, e das feridas das sanguessugas, oriundas das visitas ao Monte Ohiruyama, o sangue volta a correr.  Eno toma a visão como milagre, a oficialização de um compromisso entre Deus e Shiraishi. Sua tarefa será a de registrar todos os acontecimentos por vir, inclusive o atentado, para depois apresentá-los ao mundo. Sem escolhas, Shiraishi aceita participar desta sombria "jornada". 

Na manhã seguinte, Eno compra o material necessário para a confecção da bomba que deverá pôr a estação abaixo. Para potencializar a letalidade do aparato, adquire caixas de pregos e parafusos. Quando se põem a caminho do escritório, uma cena surreal se sucede: a dupla é abordada por um completo estranho, que age de maneira hostil perante Eno, e chega a tomar de suas mãos a bolsa. O filme jamais nos explica quem é o estranho, mas leva a crer que se trata de um anjo. "E você se diz homem?Sei o que está tramando!", o homem exclama, ao arrancar a bolsa de Shohei. Os dois ficam nessa briga de "toma bolsa, recupera bolsa", até que Eno agarra as coisas e sai em disparada com Shiraishi no encalço, sem que o estranho consega detê-los. A dupla ainda escuta o aviso do estranho "É o inferno!". 

À vontade no escritório, Shohei cumpre com zelo as várias etapas da preparação da bomba. Tem o cuidado de preencher os canos com pregos e parafusos, de modo que no momento da explosão cause ainda mais danos. Ao final, Eno produz um aparato explosivo que pode ser transportado em mochila de acampamento, o que facilitará sua circulação por entre os transeuntes da movimentada Shibuya, insuspeito até o momento da detonação. O chão está cheio de pólvora e químicos. É quando escutam batidas à porta: a moça assistente de Shiraishi havia se esquecido de sua câmera digital. Para a sorte da dupla, a porta estava chaveada. Shiraishi bola uma desculpa para não abri-la de imediato, o que dá a Eno algum tempo para esconder as coisas. A moça apanha a máquina, e muito embora não encontre nada fora do ordinário, o comportamento enervado da dupla indica que há algo errado. Ela chega a apanhar um saco de salgadinhos da estante, sem se ater à mochila na prateleira acima. Quando ela parte, os dois respiram aliviados e entre risadas comentam o quão perto estiveram de ser pegos.

O dia do grande atentado suicida a Shibuya chega. A dupla passou a noite anterior em um bar, festejando, e se levantou cedo para o longo dia a frente. Shiraishi filma Eno passeando pelas calçadas no centro de Tóquio. A visão daqueles arranha céus de concreto entre vias muito largas nos remete a lembranças terríveis dos ataques de 11 de Setembro. É uma manhã absolutamente pacata e comum, todavia para nós que já imaginamos o que está por vir, as cenas de passeio entre cidadãos inocentes e desatentos, ou mesmo a poética visão de pássaros cruzando o céu entre os monolíticos edifícios só conseguem reforçar o insustentável sentimento da esmagadora força do destino. Faltam cerca de onze horas para o atentado, e o humor de Eno é dos melhores. A dupla toma o café da manhã em um restaurante, e Shohei faz questão de evitar carne bovina. Ele explica que teme pela Doença da Vaca Louca, a que Shiraishi toma como temor infundado. A dupla volta ao escritório para descansar um pouco, e quando são dez e meia da manhã, o despertador os acorda. A dupla apanha um táxi em direção a Shibuya, mais especificamente para a estação de trem. No percurso, batem um papo descompromissado com o taxista, que se queixa da recessão que assola o país. Shiraishi menciona a demanda absurda de gente que passa por Shibuya todos os dias, e emenda que se houvesse um ataque terrorista, o estrago seria imprevisível. O motorista concorda, sem imaginar o que se passa na cabeça dos passageiros.

É preciso ver fotos ou mesmo caminhar pelo lugar, para se guardar a noção perfeita da grandiosidade de Shibuya, uma das paisagens mais espetaculares que há. Telões e imensos letreiros dispostos nas fachadas dos altos edifícios nos remetem a lembranças da Time Square nova-iorquina. As ruas sempre se encontram tomadas por gente, embaladas por sons caóticos e distintos, um mundo à parte, em perene movimentação, em plena ebulição. A região nunca dorme. Mesmo tarde da noite, quando lojas foram fechadas, clubes noturnos e bares mantêm Shibuya despertada e vibrante. Talvez a sua mais notória atração seja mesmo o "Cruzamento", que abre a cada três minutos para a passagem de transeuntes. Do segundo andar da Starbuck da esquina, pode-se bater a foto perfeita. Eno aluga um armário na estação, para acomodar a mochila. Por ora, a dupla esperará. Os dois estão com fome, e encontram um ótimo restaurante. A comida é saborosa, e ambos parecem entretidos com a conversa. Shohei menciona que sempre foi fã do herói de cinema "Indiana Jones", e que talvez não por acaso a voz que o assedia e ordena que mande Shibuya pelos ares seja a do próprio Harrison Ford. Shiraishi conta que o novo filme de "Indiana Jones" está em cartaz, e Shohei pede para que o diretor o leve para assistir. Com algumas horas até o ataque terrorista, a dupla apanha o metrô para Kabukicho, um distrito de Shinjuku que alberga muitos clubes, shoppings e restaurantes, conhecido como "Sleepless Town", cidade que não dorme. Após o filme, os dois fazem um lanche em um McDonalds qualquer. Shohei diz que o filme representa mais do que uma coincidência. Tinha sido a voz de "Indiana Jones" que lhe guiara pela missão de explodir o cruzamento, e agora, justamente algumas horas antes do atentado, descobria a existência de um novo filme sobre o personagem. Eno realmente apreciou a última aventura do herói, e confidencia que adoraria vê-lo novamente. Shiraishi o questiona sobre a possibilidade de adiar o ataque, mas Eno responde que o filme o moveu justamente na direção contrária, a de não hesitar na missão. Através do personagem, sente-se impelido a cumprir o objetivo. A dupla embarca no trem para Shibuya. A tarde aproxima-se do fim, e o movimento do cruzamento intensificando. A hora chegou.

Eno e Shiraishi recuperam a mochila do armário. O diretor o ajuda com os últimos preparativos. Quando Eno deixa o banheiro, não há nada que leve a crer que represente mais do que um turista mochileiro aventurando-se por Tóquio. O movimento do cruzamento escalou ao auge. Eno pendurou uma câmera discreta no pescoço, e a partir daquele instante a deixará gravando até a explosão. Eles precisam aguardar os três minutos até a passagem pelo cruzamento, o tempo que leva para se despedirem. Eno lamenta "Shiraishi, eu nunca te devolvi os 100 yen que me emprestou". É verdade. No começo do filme, vimos que Eno pediu ao cineasta 100 yen emprestado para completar o valor da estadia de uma noite no Internet café. Shohei lhe oferece a moeda de 100 yen, mas Shiraishi diz "Façamos assim: fique com a moeda. Quando chegar ao outro lado, você encontra um jeito de me devolver os 100 yen junto com a câmera, e as imagens do Paraíso". Eno pensa por um momento, sorri e concorda "É um trato". Os dois se despedem, e Shiraishi ainda registra o momento em que Eno junta-se a transeuntes e é absorvido pela multidão que compõe a apoteótica sinfonia de imagens, cores e músicas de uma típica tarde na estação Shibuya. Shiraishi sai correndo, certo do estrago que a explosão causará. A passos rápidos, Shiraishi é subitamente apanhado pelo braço. Quando se vira, vê a assistente. Ela o fuzila com questões "Shiraishi, passei a tarde seguindo-os!O que estão tramando?Vocês vão fazer algo de ruim, não?Vou ligar para a polícia!". Enquanto ela segue o interpelando com cobranças, Shiraishi se alberga atrás de uma cabina policial mais distante do cruzamento, e suplica para que a moça faça o mesmo. A assistente não lhe dá ouvidos. Ela está para fazer a chamada para a polícia, quando um clarão toma conta de Shibuya. Tudo acontece muito rápido. Escutamos a sinfonia da morte, com buzinas, gritos e sirenes sinalizando o holocausto que tomou conta do cruzamento, substituindo a alegria que existira apenas segundos antes pela indiferença maciça da morte. Jamais chegamos a ver diretamente o estrago, mas pelas imagens confusas que Shiraishi registra, o atentado foi mais letal do que o originalmente planejado. Para todos os lados, pedaços de corpos humanos. Ao final, calcula-se a perda de trezentas e cinquenta e três vidas. Assim como ocorreu a Matsuki, três anos antes, os restos mortais de Shohei Eno não são encontrados. Shiraishi é preso como cúmplice, e sentenciado a uma pena de vinte anos pela participação indireta naquele que foi o ataque terrorista mais letal da História do Japão.

21 anos depois. Shiraishi deixa a cadeia, e está muito envelhecido e cansado, um homem de meia idade. Ele é recebido pelo velho amigo, o produtor Akira, e os dois vão comemorar a liberdade no mesmo restaurante onde, no passado, haviam levado Shohei Eno para celebrar o emprego temporário. Akira diz que Shiraishi teve sorte de almoçar por ali uma última vez, já que o restaurante estará fechando as portas nos próximos dias. Alheio ao que se sucedeu com os restaurantes no Japão ao longo de todos aqueles anos, Shiraishi aprende que cerca de cem mil pessoas morreram por causa do Mal da Vaca Louca, causado por carne importada da América (lembram-se lá atrás, no dia do atentado, quando Eno havia ido lanchar, e pedido algo diferente de bife, por temer o Mal da Vaca Louca?). Restaurantes tiveram de deixar de importar carne, e muitos encerraram as atividades. Subitamente, Shiraishi sente a canela doer, e quando puxa a calça, vê os pontos deixados pelas sanguessugas sangrando. Inesperadamente, como que caídas do céu, uma câmera digital e uma moeda de 100 yen se materializam. Akira e Shiraishi ficam chocados. Shiraishi se recorda, então, do último diálogo travado com Shohei às margens do cruzamento de Shibuya. Ele havia finalmente encontrado a maneira de "pagar os 100 yen", bem como de devolver a câmera, de onde quer que estivesse. Nas imagens, talvez Shiraishi encontre o primeiro documento que retrate como o Paraíso realmente parece. O filme conclui com as imagens daquela terrível tarde, 21 anos antes. Eno se despede de Shiraishi, e junta-se à multidão que cruza Shibuya. Ao chegar ao meio do cruzamento, detém-se, olha para os lados, puxa o detonador e aperta o gatilho. Segue-se um clarão, semelhante a um poderoso relâmpago. Depois, as imagens do "paraíso": tudo o que Shohei conseguiu foi o inferno, um meio surreal e sem regras, onde almas desesperadas ficam em suspensão, condenadas a reviver o instante de suas mortes, em uma dimensão gelatinosa de cores e formas inexplicáveis, cruzada perenemente por águas vivas gigantescas e malévolas.

Apresentado como documentário, o novo filme do diretor Koji Shiraishi (isso mesmo, ele não apenas dirige, como também atua com o próprio nome) dá seguimento à tendência de criar "mockumentary", filmes fictícios conduzidos como documentários autênticos. Shiraishi é mais conhecido pelos fãs do gênero por Noroi, mas Occult ainda é o seu trabalho mais extravagante e imaginativo. Sua habilidade em conduzir o estilo "mockumentary" beneficia o filme com uma necessária eletricidade de inexorável tragédia que torna a última meia hora um habilidoso exercício em expectativa e tensão. Como poucos filmes fizeram, Occult não precisa de muito para prender a atenção, e o diretor sabe exatamente como e quando mover a história para a frente. Experimentando com temas tão variados quanto predestinação, OVNI, fantasmas, a noção de Deus e a existência de um plano espiritual, Shiraishi os mantém todos bem amarrados, e sucede onde muitos diretores falham: o filme se faz sentir autêntico, e não custa muito para que nos sintamos cúmplices da trama macabra que se desenrola na tela. Em um mundo dividido após o 11 de Setembro, o foco de Occult reaviva as recordações daquele macabro dia, quando covardes sem honra ou brios agiram à surdina e à traição, assim como todos os covardes o fazem. Talvez não por menos, os últimos momentos de Occult pareçam roubar o nosso fôlego. Há algo na normalidade da manhã pacata, na tranquilidade com que a dupla faz o café da manhã e passeia pelas calçadas do centro de Tóquio que nos remete a aquele sombrio dia quando a superfície da normalidade foi rompida em uma fração de segundo.

Para dar maior veracidade ao "documentário", aos personagens não foram concedidos nomes fictícios. Assim, por exemplo, Shohei Eno interpreta "a si mesmo". Evidentemente, ele é apenas um ator muito talentoso que nada tem em comum com o personagem macabro a que dá vida, todavia, interpretar um terrorista como se fosse o próprio na vida real realmente parece uma escolha corajosa e inédita. A performance de Shohei Eno merece todas as láureas. Em filmes do tipo, o lugar comum tende a criar antagonistas extravagantes e desinteressantes. O Eno de Occult, ao contrário, jamais parece perigoso. Em verdade, sai-se como um ordinário, inseguro e carente homem fraco, dobrado pela vida e pelas escolhas estúpidas, um sujeito de pouca estatura econômica ou relevância social, que ao perder em definitivo o contato com a realidade abraça a fantasia que o cerca e leva adiante o atentado terrorista que pode muito bem ser descrito como o 11 de Setembro japonês. A força da performance reside na quietude, nos instantes mais sutis, quando olhares e inflexões revelam que por baixo da superfície plácida e simplória há algo horroroso, sublinhado por problemas mentais e de falta de autoestima, apenas esperando para entrar em ebulição. O seu personagem é o vilão, mas simultaneamente veste o papel da desavisada vítima, ao soltar detalhes que, somados, nos falam de onde veio esse homem patético que jamais se pôs em primeiro plano ou acreditou em si. No início do filme, quando conta para a repórter sobre como foi parar no resort em Myogasaki, Eno, um homem na casa dos trinta anos, solta que até então morava com os pais, em Osaka, e trabalhava em empregos menores. O próprio confidencia que não ressente Matsuki: a sua maneira, ser esfaqueado na ponte deu algum significado à vida medíocre que até então vinha levando. Por todo o filme, nós vemos o desajustado personagem perambular por Internet cafés e subempregos, quase que anestesiado pela ignorância e simplicidade, uma vítima de seu próprio desconhecimento de mundo, atolada ainda mais pelas circunstâncias, na expectativa de "libertação".

O restante do elenco também se sai ótimo. Sentimos que estamos descobrindo ao mesmo tempo que os personagens as revelações absurdas que o caso Myogasaki tem para oferecer. Já na cena da comemoração do restaurante, e mais tarde quando voltam ao estúdio e Shiraishi e Akira conversam sobre a natureza das discretas revelações de Eno, o nosso sexto sentido nos diz a mesma coisa que os personagens vocalizam a baixo tom. Infelizmente, ao invés de se afastarem ao primeiro sinal de instabilidade ou loucura, os três membros da equipe técnica escolhem seguir lhe dando atenção e suporte, quando se torna impossível se desvencilhar de toda a explosiva situação, já que não se trata mais de apenas um homem desequilibrado ocupando o estúdio, mas também de circunstâncias alheias à compreensão humana, toda a questão envolvendo OVNI, fantasmas e entidades da mitologia japonesa.

Quando escreveu a trama, Shiraishi inspirou-se nos trabalhos de H. P. Lovecraft, escritor norte-americano que deixou a marca no gênero terror com um estilo de ficção macabro e ímpar. Shiraishi não adaptou obra alguma de Lovecraft, apenas escreveu sua própria, inspirado nas obsessões do dramaturgo norte-americano: a ideia de que os paradigmas que nos cercam não passam de frágeis acabamentos para uma realidade abstrata e surreal, fora do alcance da compreensão humana, que só de meramente vislumbrada pode levar pessoas comuns à loucura. Ao contrário do usual, o horror de Lovecraft é amorfo e gelatinoso, essencialmente visceral. As obras tendem a mesclar o sobrenatural, elementos extraterrestres, e mistérios dissociados de explicações. Os protagonistas, isolados e introspectivos, exatamente como o Shohei Eno de Occult, não compreendem a natureza dos segredos que os cercam, e mesmo quando chegam perto de revelá-los, desvendar o mistério pode lhes custar a sanidade. Jamais compreendemos os personagens das histórias do dramaturgo. Na verdade, Lovecraft parece mais interessado em explorar a insignificância dos mesmos face a indiferença esmagadora de um estranho universo. Ao escrever o Shohei Eno de Occult, Shiraishi parece ter se esmerado na fórmula do mestre. O pessimismo é o tom preponderante das tramas do escritor. Em Occult, igualmente, não há final feliz à vista.

Em Occult, o cotidiano é a superfície frágil que mascara a natureza caótica e intangível do universo, onde só há angústia e loucura. Shiraishi parece querer passar a mensagem nas cenas mais visualmente inquietantes, como quando Eno filma o OVNI gigante pairando discretamente sobre Tóquio, e os cidadãos abaixo, tão metidos em suas "realidades" que não veem o absurdo sobre as próprias cabeças, "verdadeira natureza" do mundo que pensam conhecer. Os cidadãos também não parecem dar conta das sombras graciosas que deslizam sobre as fachadas dos edifícios, a ponto de o próprio Shohei comentar para a câmera que não entende como aos olhos das pessoas escapa tanta magia. Os amigos podem me perguntar: mas, de que raios trata este filme? Vejam que o roteiro encontrou espaço para acomodar fantasmas (a noiva morta da foto), OVNI (as inúmeras aparições, algumas discretas, outras não tanto),  e entidades divinas. Na verdade, Occult é sobre todas essas coisas, e, ao mesmo tempo, sobre nenhuma delas. Os elementos fantásticos tornam o filme eletrizante, mas não podem ser individualmente compreendidos, ou tomados ao pé da letra. A importância reside na soma de todas as pequenas, bizarras coisinhas, pois o conjunto é mais importante do que os detalhes. Simultaneamente, Shiraishi consegue dosar os delírios "lovecraftianos" com a crítica que faz à direção que a sociedade nipônica vem tomando. O estilo de diretor de "documentários" dá à espinha dorsal do filme o realismo de nossos tempos, ainda que ao fundo os elementos fantásticos ameacem a todo instante corromper a impressão de realidade.

Depois de assistir ao filme, fiquei particularmente interessado pela questão dos Internet café refugees.  Após pesquisar sobre o assunto, aprendi mais sobre o estilo de vida das pessoas que frequentam o lugar, na verdade cidadãos que não tiveram escolhas, e se viram engolidos pela competitividade do feroz mercado de trabalho que deixou muitos - pessoas corretas, esforçadas e batalhadoras, - aquém da realização de seus potenciais. Li em uma matéria uma frase que me deixou uma forte impressão "As pessoas vulneráveis do Japão são assombradas pelo próprio sono". Os Internet cafés do país - Media Café Popeye, Gran Cyber Café Bagus, Maboo! - nasceram inicialmente para atender os trabalhadores que perdiam o último trem para casa, e eventualmente não tinham onde passar a noite. Mais tarde, o lugar virou o último refúgio para as vítimas da recessão. Os Internet cafés se tornaram mundos descomplicados, à parte, compostos por corredores estreitos, máquinas de café, cabinas modestamente guarnecidas por computador, mesinha e cama, onde os vulneráveis preferem experimentar a realidade filtrada pelo monitor, e adormecer abraçados a lençóis que não são os seus, reconfortados pela ilusão da momentânea segurança, enquanto o mundo real, bem maior, segue girando indiferente para aqueles que foram ficando no caminho de seus sonhos.

Para os cinéfilos que não conhecem ainda o estilo dos filmes de horror japoneses, Occult seria uma perfeita introdução. Procurem assistir ao filme com a mente aberta, pois se divertirão mais do que imaginam. Os amigos que estiverem desapontados com o lugar comum das produções em cartaz não imaginam as surpresas que esse pequeno "mockumentary" de baixo orçamento tem a oferecer. Apenas não esperem respostas para as muitas perguntas, afinal de contas, como Clive Barker disse certa feita, "arte não requer perguntas, arte não requer respostas, arte é a sua própria resposta, e se não é a sua própria resposta, então não é arte". Eis o grande desafio dos diretores ocidentais, ao se aventurarem na arriscada empreitada de refilmar tramas orientais. A preocupação excessiva com formato, respostas e justificativas desvirtua o espírito artístico e aventureiro com que os enredos originais foram concebidos. Penso que Occult, por exemplo, é um excelente filme de horror cuja refilmagem não o traduziria muito bem, e o fatídico destino da empreitada restaria selado do instante em que novos roteiristas procurassem explicar este ou aquele ponto, ambíguo no original. A arte não demanda preocupações com fórmulas ou motivos; para que nos arrebate, deve estar primordialmente conectada a recantos pouco acessíveis, até mesmo não inteiramente conhecidos de nossos corações. Os mais inspiradores filmes já feitos, tais como Kes, de Ken Loach, ou Rocky, tornaram-se icônicos justamente pela identificação a um nível todo pessoal que os milhões de pessoas que lhes assistiram e que tiraram dos mesmos lições para seguir em frente encontraram na experiência de vê-los. Ao escrever sobre tais lugares "não inteiramente conhecidos de nossos corações", ocorre-me que talvez esta seja, afinal de contas, a finalidade da arte: permitir-nos conhecê-los - os nossos corações - melhor.

Aos amigos que prestigiam o blog, faço votos de Feliz Natal e Próspero Ano Novo. Desejo-lhes um Natal de reencontro, união e confraternização, uma mesa farta e barulhenta, e talvez mais importante, que permaneça em foco a principal razão da festa: o aniversariante!Na mesma oportunidade, um 2014 de saúde, harmonia, felicidade, dignidade, investimento pessoal e sucesso profissional. Os amigos que amam a Sétima Arte e que são apaixonados pelo gênero têm muito pelo que esperar: no ano que vem, já há dois suspenses bastante promissores no horizonte - You're Next & The Sacrament. Ambos os filmes foram rodados pelo excelente time criativo por trás de V/H/S 1 & 2. You're Next é um suspense sobre uma família assaltada por três estranhos munidos de arco-e-flecha e protegidos por máscaras de ovelha, em uma enorme casa de campo isolada. Em um primeiro momento, os membros da família não sabem por que estão sendo assediados pelos assassinos, porém segredos revelados ao longo da história tornam o filme cada vez mais imprevisível. Fiquei impressionado com a revelação que ocorre a meio caminho de projeção, considerei abordar o assunto por aqui, porém deixemos para a minha resenha, em um futuro próximo!The Sacrament é o novo filme do diretor Ti West, cujo talento já conhecemos pelo seu excelente segmento "Second Honeymoon" da coletânea de horror V/H/S. O seu filme trata de dois jornalistas que documentam a busca de um rapaz, amigos deles, pela irmã desaparecida. A irmã era dependente de drogas e vivia às voltas com problemas. O trio descobre que ela superou a dependência e agora faz parte de uma comunidade religiosa, em algum país da América do Sul. Os jornalistas resolvem acompanhar o rapaz na viagem para reencontrar a irmã, e o que se segue é uma terrível jornada à escuridão, baseada no notório caso "Jonestown", que se deu em 1978, na Guiana. Para os amigos que não conhecem a história, recomendo que façam uma pesquisa online. Se tem um acontecimento que daria um eletrizante filme de horror, seria o do Reverendo Jim Jones, e agora Ti West trará às telas a sua versão dos eventos. Vamos ficar no aguardo!

Todos os Direitos Autorais reservados a Image Ring. O uso do trailer e de algumas imagens é para efeito meramente ilustrativo desta resenha. 

sexta-feira, 8 de novembro de 2013

O Homem das Sombras ("The Tall Man", 2011, Pascal Laugier) Um filme de horror onde a falibilidade de nossos pais os torna os monstros.

Diz o ditado que a realidade é mais interessante do que a ficção, mas os filmes, em sua maioria, sempre privilegiam a fantasia em detrimento da verdade. Acredita-se que um dos melhores filmes de horror de todos os tempos, O Exorcista, influente nos trabalhos dos mestres modernos James Wan & Rob Zombie mesmo quarenta anos após o lançamento, foi baseado na história real de um menino a quem Thomas Allen, autor do livro sobre o caso, chama de Robbie Mannheim. No filme do diretor William Friedkin, uma menina, filha de uma atriz famosa, é implacavelmente assediada por um demônio, após fazer amizade com um tal de "Capitão Howdy", ao mexer com a tábua Quija encontrada no porão. Os fatos reais que inspiraram William Peter Blatty a escrever o aclamado romance são bem distintos do que vimos no filme de 1973. Allen compilou os dados diretamente do diário de um dos padres envolvidos no caso, que começou discretamente em 1949, e escalou para implacável assédio. O livro de Allen, "Possessed", nos conta que Robbie (nome falso, dado pelo autor, para preservar a identidade das pessoas) era um garoto que morava com a família em Maryland, e que, sendo filho único, não tinha muitos amigos para lhe fazer companhia. Assim sendo, a sua tia Harriet ocupava uma lacuna em sua vida. Segundo Allen, foi a tia quem lhe apresentou uma tábua Quija, e o iniciou na brincadeira. Quando o menino completou treze anos, a tia morreu, o que o levou a mexer na tábua para procurar "contactá-la". O garoto começou a se comunicar com um espírito que se identificava como "Harriet", e fenômenos paranormais começaram a ser observados pelos cômodos da casa, quase na mesma época: rumor de marcha de pés, móveis se movendo, e um quadro com a imagem de Jesus sendo atirado da parede. Os eventos pioraram, e logo o fenômeno se concentrou no menino. O drama é revivido detalhadamente na obra de Allen, porém é uma das explicações que o autor dá ao mistério que mais me chama a atenção, e me faz pensar que por trás das hipóteses mais incríveis se esconde a realidade, com o horror que as fantasias apenas sonham reproduzir. A explicação, que rastreia a natureza dos fenômenos a um acontecimento que nada tem de fantástico, que em nada se refere a demônios ou a possessões ou a brincadeiras de copo, foi a resposta que fez os meus cabelos eriçarem, porque talvez a única coisa mais aterrorizante do que a fantasia seja mesmo a capacidade humana para a maldade. Farei menção a essa história mais tarde. Por ora, gostaria de discorrer um pouco sobre "O Homem das Sombras", uma joia rara que faz jus ao ditado: a realidade é mais estranha do que a ficção.

Escrito e dirigido pelo francês Pascal Laugier, "O Homem das Sombras" foi o consolo para o cineasta, que depois de ter criado o extremamente feroz "Martyrs", recebeu o convite para rodar o remake de "Hellraiser". Seu talento em alternar beleza de partir o coração com momentos de pura brutalidade o tornava o candidato ideal para interpretar a obra "The Hellbound Heart", uma história diferente de qualquer outra, dificílima de se vender ao grande público. Há uma entrevista de Laugier, na época em que rodou "O Homem das Sombras", onde conta como foi conhecer "Hollywood", após o sucesso de "Martyrs" no circuito de arte europeu. Segundo Laugier, a experiência o fez se sentir péssimo. Ele descobriu que o estúdio queria reformular todos os conceitos de Clive Barker, e transformar "Hellraiser", uma obra gótica e psicologicamente profunda, em uma trama estilo slasher movie. É claro que Laugier preferiu se retirar a destruir um filme que significava tanto para sua formação artística, e o projeto do remake "entrou no limbo". Depois do desentendimento entre a Dimension, detentora dos direitos autorais sobre a obra de Barker, e Laugier, o cineasta francês procurou esquecer o desapontamento escrevendo "O Homem das Sombras", um projeto original que sinalizou uma "mudança de tempos", uma maior maturidade artística. Se Laugier já havia causado forte impressão com o implacável "Martyrs", um espetáculo onde a agressividade física é quase tão irrefreável quanto a psicológica, em "O Homem das Sombras", o diretor exercitou a discrição e a elegância, fugindo da sanguinolência e carnificina, e montando as peças de uma obra onde o horror dá-se em um campo quase estritamente psicológico. Ótima notícia, afinal de contas, sabemos que os grandes filmes de horror, os melhores, jamais precisaram de brutalidade para agregar valor. Em w Delta z, por exemplo, um dos suspenses mais espetaculares da década passada, a Jean Lerner interpretada por Selma Blair raptava os membros da gangue que a haviam estuprado e os metia em armadilhas onde se viam obrigados a escolher entre salvar a própria vida ou a de alguém a quem amavam. Existia alguma violência, mas seu uso era circunstancial, um artifício para mover a trama para frente, porém nunca mais importante que o coração de seus personagens ou do que a jornada. O diretor Tom Shankland preferiu concentrar-se no dilema moral do protagonista, o tira veterano interpretado por Stellan Skarsgard, que apesar de se esforçar para se manter um homem bom, é devorado pelo remorso por ter destruído as provas que envolviam a gangue no estupro da personagem de Selma Blair e na morte da mãe. O personagem de Skarsgard sentia muita pena pelo que acontecera a Jean, e jurara encontrar os estupradores, porém ao descobrir que um dos homens que estivera no local havia sido seu amante, destrói provas para livrá-lo, "salvando por tabela", no processo, os canalhas que haviam cometido a barbaridade sexual. O amante de Skarsgard não tinha participado do estupro - era apenas um desavisado que costumava andar com a turma barra pesada, - e quando as coisas haviam saído do controle, ficara com medo de interferir, tendo escolhido esperar na sala com as mãos nos ouvidos, enquanto os selvagens barbarizavam Jean e a mãe. O tira, por sua vez, passara a vida "dentro do armário", e tinha medo de que a relação com o informante caísse no conhecimento dos colegas da força e expusesse a natureza de sua sexualidade. Quando os membros da gangue começam a aparecer mortos, alguns anos após o caso Jean Lerner, o personagem de Skarsgard sabe que logo chegará sua vez, pois mesmo indiretamente, aceita ser responsável, pelo menos em parte, pela tragédia da moça. A jornada dos personagens nos arrasta junto ao sufocante final, e "O Homem das Sombras" pertence a esta mesma linha de filmes, onde o conflito psicológico dos personagens jamais deixa o primeiro plano. Se sua premissa nos faz imaginar que teremos pela frente um suspense ordinário, sobre abdução de crianças por uma entidade sobrenatural, as reviravoltas da trama nos provam justamente o contrário. Espíritos e demônios passam longe deste filme de Laugier. O que há são monstros, sim, mas em uma apresentação mais incomum: o "monstro" representado pelo ser humano com quem trocamos cumprimentos nas calçadas ou temos uma conversa descompromissada enquanto bebericamos xícaras de café em uma lanchonete. O "monstro" como a pessoa que teve oportunidades de fazer a coisa certa, não o fez, e se vê irremediavelmente presa a circunstâncias que ajudou a criar. Jamais teremos inimigos mais implacáveis e terríveis em nossas vidas do que nós mesmos. Passamos uma vida inteira olhando por sobre os ombros, preocupado com outras pessoas e os males que possam nos desejar ou causar, mas dificilmente compreendemos que os nossos mais dedicados antagonistas nos "olham de volta" sempre quando paramos diante do espelho. Há quem não admita, contudo são as nossas escolhas que nos metem em nossos mais graves dramas. Escolhemos, e pagamos pelas más escolhas. Não são "os outros". Somos "nós". Da mesma forma que podemos (e devemos) ser os nossos maiores aliados - nos pondo sempre em primeiro lugar, prezando pelo investimento pessoal, o crescimento profissional e a evolução enquanto seres humanos - também podemos nos deixar apodrecer.

Cold Rock é uma cidadezinha que fica em Washington, bem depois das serras. Houve o tempo em que Cold Rock prosperou. Todos os homens trabalhavam com muita felicidade nas minas. Quando as minas fecharam, iniciou-se o processo de declínio moral, e com a crise financeira, veio a decadência da cidade. Dentro de alguns anos, Cold Rock estava praticamente varrida do mapa. Quase não existe trabalho, e até mesmo as escolas fecharam as portas. Cercada por serras altas e entrecortada por bonitos rios, a gélida cidadezinha parece existir sob constantes nuvens escuras e chuvosas, tanto literal quanto metaforicamente. Julia Denning (Jessica Biel) é uma das poucas pessoas de valor que persistiu. Ela era a esposa do médico local, um cidadão querido cuja recordação faz os habitantes rememorarem os bons tempos, quando as minas funcionavam a pleno vapor e as pessoas ainda tinham sua dignidade. Depois que o médico morreu, a enfermeira acabou assumindo seu papel, a primeira pessoa a quem os habitantes procuram quando sofrem de problemas de saúde. Os cidadãos que perduraram em Cold Rock parecem resignadas com seu destino. Enquanto os adultos afogam as mágoas na bebida, as crianças crescem sem a menor atenção dos pais irresponsáveis. Tracy é um ótimo exemplo de falência materna: uma manhã, ela procura por Julia, com as filhas Carol e Jenny a tiracolo. Carol está em trabalho de parto, e Julia consegue salvar o bebê. A adolescente Jenny (Jodelle Ferland) vive trancada no mutismo, e alivia as amarguras e desilusões em um diário, pelo qual se comunica com as pessoas. Julia fica furiosa com Tracy quando esta lhe conta que o pai do bebê de Carol é justamente o padrasto, um alcoólatra incompetente e abusivo que vivia "cantando" as meninas. Tracy diz que não vai deixá-lo, pois apesar de imprestável, o namorado é tudo o que tem. Para evitar o escândalo, Tracy despacha filha e bebê para viver com a irmã em Seattle. 

O filme é narrado por Jenny, mais especificamente pelos seus pensamentos, pontuados por amarguradas observações sobre a vida e os familiares que deviam inspirá-la, mas só a fazem pensar em deixar aquele lugar esquecido o quanto antes. Ainda no começo da vida, Jenny sonha com voos mais altos e uma existência longe de tanta dor. Tracy, Carol e Jenny estão voltando para casa com o bebê, e o carro passa ao lado de um outdoor de beira de estrada, onde vemos cartazes com fotos de muitas crianças, dezenas delas. O filme corta para uma série de segmentos jornalísticos, onde assistimos a moradores locais desesperados, falando sobre as crianças desaparecidas. As pessoas atribuem os sumiços a um homem muito alto que afirmam ter visto apenas de relance. O fato é que não foi apenas o fechamento da mina que fulminou o ânimo local, mas talvez principalmente o desaparecimento das crianças. Quem tem filho morre de medo de "quando o homem alto voltar a atacar", e quando ele visita a cidade, aqueles sortudos cujos filhos escapam à passagem do monstro agradecem a Deus. No restaurante do posto de gasolina, onde os cidadãos ainda se encontram, um dos rapazes sugere ao xerife que "Homem Alto" deve ser algum pedófilo. Naquela manhã, os habitantes de Cold Rock dão pela presença do Tenente Dodd (Stephen McHattie), virando inquieto xícaras após xícaras de café. Ele é o tira da cidade grande destacado para "derrubar" o "Homem Alto" e desvendar o mistério do sumiço das crianças, mas lamentavelmente não há pistas. Julia e os demais veem a Senhora Johnson, encostada `a vitrine, agasalhada, do lado de fora. As pessoas têm pena da Senhora Johnson: dizem que ficou louca, desde que o filho foi sequestrado pelo "Homem Alto" alguns anos antes. Julia oferece uma xícara de café para a solitária andarilha, mas ela não aceita e se apressa a deixar a estação.

Naquela manhã, Julia presta uma visita à casa de Tracy para ver como andam as coisas. Ela encontra Steve, o namorado de Tracy, que a trata de maneira hostil e a aconselha a cuidar da própria vida. Julia chama a atenção de Tracy quanto a sua permissividade, mas esta lhe responde que Carol e o bebê estão bem. Tracy expressa gratidão, mas conta que resolveu perdoá-lo. Julia se sente incrivelmente frustrada, e ao sair, topa com Jenny. As duas se sentam em um sofá abandonado, à beira das rochas, às margens do rio. Julia lhe dá um novo diário de presente, e Jenny escreve "obrigado" em uma das folhas. Aprendemos que Jenny não é muda, apenas teve um infância muito dolorosa, e por escolha deixou de falar. Julia insiste para que ela retome a terapia de fala. Em uma das páginas do diário velho, Jenny lhe mostra um desenho, um homem muito alto riscado de preto. No desenho, ela escreve "Eu o vi". Depois da visita, antes de pegar a estrada para descer a serra, os olhos da enfermeira absorvem o desânimo local, com pessoas muito humildes vivendo mal acomodadas, e crianças pequenas brincando do lado de fora de suas dilapidadas casas, sem nenhuma assistência dos adultos.

Julia mora em uma casa muito grande, deixada pelo marido. Ela tem um filhinho, David, um garotinho saudável, extrovertido e inteligente. Para ajudá-la com a criança, conta com a ajuda da secretária pessoal Christine (Eve Harlow, que dá a performance excepcional do filme). Apesar de crescer em um lar sem a presença do pai, o menino parece feliz, cercado pelos cuidados e as brincadeiras da mãe e babá. À mesa para o jantar, o barulho é de gargalhadas, os três contando o que fizeram no dia. David mostra uma mágica que aprendeu (e que funciona, podem testar!) e desafia a mãe: pense em um número, dobre-o, some a seis, divida por dois, menos o primeiro número que você pensou, e o resultado será sempre três!Lá fora, o rumor dos trovões distantes indica que uma noite de muita chuva e frio se aproxima das serras. Christine vai tirar as roupas do varal. Ao levar David para cama, Julia tem um momento de doçura com o filho, quando ele se queixa de que a mãe está sempre trabalhando muito, e queria que brincassem mais. Ela avisa que voltarão a brincar no dia seguinte, e lhe dá o beijo de boa noite.

Na cozinha, Christine conta a Julia que David perguntou por que não podiam ter uma televisão em casa. Aprendemos que Julia procura criar o menininho longe de influências externas, e o máximo que permite é a rádio. A enfermeira toma um copo de vinho antes de se acomodar no sofá para ler um livro, e não custa a cochilar. Quando desperta, escuta o rumor de conversas vindo da cozinha, mas então se dá conta de que se trata da rádio local. A casa está mergulhada no breu. Julia abre a geladeira para apanhar alguma coisa, quando se assusta ao se deparar com Christine ao chão. Ela parece levemente machucada, e foi amarrada e amordaçada. Ela solta a amiga, que está aos prantos, e ao procurar por David no quarto, não o encontra. A enfermeira então enxerga, parada na soleira e com o garotinho no colo, uma figura alta, metida em casaco escuro. Julia não identifica o rosto, mas assim que o invasor é flagrado, corre para fora, carregando o menino. Julia parte no encalço. A saída do canteiro para a estrada foi previamente bloqueada pelo invasor, para que Julia não tivesse como apanhar o carro para segui-los. O estranho coloca o menino em uma RV e acelera. Correndo como se a sua vida dependesse disso, Julia ainda consegue se segurar à porta traseira da RV, e o veículo segue à toda velocidade com a desesperada enfermeira dependurada do lado de fora. Em dado momento, o estranho parece se aperceber da presença de Julia, pois momentaneamente freia a RV para investigar. A enfermeira se alberga sob o veículo, e sem fazer barulhos, chega à porta lateral. Ao abri-la para pegar o menino, um cachorro feroz salta sobre Julia. Com a comoção e os latidos do cachorro, o estranho chega à cena e a tira de combate com um golpe que momentaneamente lhe rouba a consciência.

Quando Julia acorda, ela se vê com as mãos amarradas, e o cachorro ameaçador a vigiando, mostrando os dentes. Julia consegue se livrar das amarras, cortando-a contra uma superfície enferrujada do bagageiro. David encontra-se na cabine do motorista, ao lado do estranho, dormindo sossegadamente no banco do carona. A enfermeira consegue surpreender o "Homem Alto" e repentinamente saltar do bagageiro para segurá-lo por trás, para tentar controlar a direção. Enquanto a luta na cabine deixa a RV oscilando à toda velocidade pela sinuosa pista, o cachorro torna tudo ainda mais caótico, mordendo as pernas e as costas de Julia. A RV acaba colhendo um tronco caído no meio da estrada, e vira no ar. Com a batida, o enorme veículo sai rasgando o asfalto, até parar muitos metros de onde ocorreu o choque. O primeiro a deixar o veículo é o garotinho, que sai ileso. Em seguida, é o "Homem Alto" quem emerge e recupera a criança. O estranho deixa a estrada correndo. Mais abaixo na rodovia, quem testemunha a tudo é a adolescente Jenny, que por um acaso do destino passeava de bicicleta naquelas redondezas. 

Julia acorda e passa a perambular. Ao redor da pista deserta, só há serras e bosques, e o tempo esfriou bastante. O seu esgotamento é tamanho, ela volta a desmaiar, bem no meio da estrada. É quando surgem os faróis de um carro, que se aproxima vagarosamente. Um homem desce para socorrê-la, e vemos que se trata do Tenente Dodd. Julia conta a história, e não custa a Dodd acionar toda a força policial. Os agentes são destacados para fazer as buscas pelas principais rodovias. Dodd a leva ao restaurante do posto de gasolina, que permaneceu aberto pela madrugada. Algumas pessoas de Cold Rock estão reunidas nas mesas e cadeiras do balcão. Eles a ajudam a se sentar, e Trish, a senhora dona do lugar, a consola. Ela a aconselha a ir tomar um banho e se limpar no seu banheiro particular, para depois lhe contar o que aconteceu. Depois de se enxugar, da sala do escritório, Julia escuta ao xerife, muito por cima, conversando com um cidadão local. Eles estão discutindo, e alguém menciona que deviam "procurar primeiro na mina". A conversa chama a atenção de Julia. Outro fato que a deixa cismada é quando se depara com um pequeno oratório, onde Trish colocara as fotos de todas as crianças misteriosamente abduzidas pelo "Homem Alto", como que rezando pelo retorno dos meninos. A mais nova foto é a de David, o filho de Julia. A enfermeira reage com horror. Enquanto ela vai passando a vista pelo oratório, um cidadão assiste a tudo pela janela, do lado de fora, e ao retornar ao restaurante, avisa aos demais que Julia viu o altar e a foto do menino. Um deles, Steve, se oferece para ir buscá-la, mas um outro cidadão, mais comedido, pede para que esperem. Os habitantes ficam um tempo aguardando para que a enfermeira volte ao bar, e quando não aparece, se dão conta de que Julia fugiu pela janela do escritório. A turma se revolta, e após uma breve preleção no estacionamento do posto, separa-se em grupos para encontrá-la.

Acontece que Julia foi mais perspicaz. Ela pegou uma "carona" escondida no carro do xerife, que dirigiu à antiga mina fechada. Quando ele sai para fazer uma ligação do prédio abandonado onde funcionava o administrativo, Julia salta do carro e se esconde. O xerife eventualmente parte, só restando Julia no lugar. Ela entra no prédio, cujos corredores e salas encontram-se abandonados. Luzes muito precárias iluminam o interior, e à noite o lugar parece particularmente assustador. Há sinal de gente morando por ali, pois Julia é atraída pelo barulho a uma sala onde há uma televisão ligada. De relance, vê o filho, caminhando em direção ao antigo refeitório. Ela chama pelo garotinho, que não se detém. Pela vitrine, guarda-se uma excelente panorâmica da vastidão que rodeia a fábrica. O céu está platinado graças à chuva, e as árvores dos bosques parecem ter vida, por causa da brisa gelada que ao descer das serras as toca bem nas copas. Julia está para recuperar o filho, quando é derrubada pelo "Homem Alto", que a esperava rente à porta. O maior choque vem a seguir, pois quando "Homem Alto" tira o capuz, vemos que se trata de uma mulher, a Senhora Johnson. O "Homem Alto" abre os braços e David corre para o seu colo. "Mamãe", diz o garotinho, e a Senhora Johnson o consola.

A verdade sobre "Homem Alto" finalmente começa a aparecer. Julia está amarrada à cadeira, e a Senhora Johnson recapitula os eventos que a levaram a reencontrar o filho sequestrado. Tudo começou em uma noite tão ordinária quanto as outras, em sua sofrida vida. Desde o desaparecimento do filho, ela desenvolvera o hábito de sair à noite para perambular pelos bosques e as rodovias, para encontrar o homem responsável. Vez que uma das mulheres de Cold Rock dissera que tinha visto o "Homem Alto" à noite por duas oportunidades, a Senhora Johnson tinha passado a caminhar somente mais tarde, porque esperava cruzar o caminho do algoz, abduzindo o filho de outra pessoa. Quis o destino que fosse parar justamente nas cercanias da residência da enfermeira, erguida em uma região distante das casas dos demais cidadãos de Cold Rock. Foi quando o menino pôs casualmente a cara na janela que a Senhora Johnson o reconheceu, e foi tomada pela certeza de que não apenas havia reencontrado o filho, como também revelado a identidade do "Homem Alto": Julia Denning.

Depois da chocante descoberta, a Senhora Johnson procurou por Trish e relatou o ocorrido. Inicialmente, Trish não acreditou que a gentil e simpática enfermeira pudesse ser responsável pelo sequestro de crianças, mas a Senhora Johnson pareceu tão determinada que acabou por colocar dúvidas na cabeça da amiga. Foi por essa razão que Trish deixou o restaurante aberto: a Senhora Johnson disse que naquela noite iria retornar ao posto com o filho no colo, e provar que o "monstro sobrenatural" que trouxera tanta dor às suas vidas era justamente a suave e doce enfermeira, esposa do falecido médico local. Quando Julia apareceu com Dodd, todos já estavam de sobreaviso, aguardando pela chegada da Senhora Johnson. Foi por essa razão que ao dar pela fuga da enfermeira que os moradores se revoltaram. Eles não eram os vilões, mas apenas pais sofridos convencidos de que Julia estava metida no desaparecimento das crianças, e queriam saber  a verdade sobre o paradeiro das mesmas, a qualquer preço.

Depois de recapitular os acontecimentos do dia, a Senhora Johnson exige que Julia se abra e comece a contar para onde levou as outras crianças. A enfermeira responde que foi o "Homem Alto", eximindo-se de responsabilidade e não assumindo a culpa que obviamente lhe cabe, o que deixa a mãe furiosa. A Senhora Johnson lhe dá um forte tapa, e a acusa de ter feito uma verdadeira lavagem cerebral no filho. Ela a obriga a assumir perante David todo o mal que causou e admitir que não é a sua mãe. Em um momento de distração da Senhora Johnson, Julia acerta um murro que a deixa momentaneamente inconsciente. Ela se solta, e começa a perseguir o garotinho pelos corredores do prédio abandonado. Em razão de ferimentos Julia não tem como correr mais rápido. Quando acha que vai perdê-lo no labirinto de corredores, é Jenny quem subitamente aparece para segurá-lo. A enfermeira recupera o garotinho, e as duas se põem a fugir. Jenny aponta para um dos carros velhos abandonados da mina, e fazendo a ignição através dos fios, consegue dar partida.

Ao retornar para casa com o garoto a tiracolo, Julia é recebida à porta pela assustada Christine. Jenny fica aguardando por instruções, sentada nos degraus do alpendre. Este é o mais eletrizante momento de suspense. A evocativa melodia de duas notas evoca mistério, e permanece na sua cabeça até bem depois que o filme acaba. Julia diz a Christine que está tudo acabado, que logo a cidade inteira vai estar ali para linchá-las. Na cozinha, o garotinho tenta fugir,mas Christine o detém. Ela o encurrala em um canto, e o distrai enquanto prepara um injeção para fazê-lo dormir. Esta cena excepcional permite que a atriz Eve Harlow roube o filme das mãos de Stephen McHattie e Jessica Biel, os astros principais, e dê a melhor performance de todas. Enquanto distrai o menino para preparar a injeção, ela menciona o truque com os números, e pede para que a ensine novamente, porque não sabe como funciona. A combinação de desempenho afiado mais a melodia de duas notas de piano produz um momento mágico, onde você não sabe por quê, mas definitivamente se torna a cena pela qual passa a se recordar de um filme. No início de minha resenha, a montagem que os amigos podem ver no começo do parágrafo remete justamente a tal cena. É um pequeno instante que parece encapsular os temas do filme: infâncias perdidas, adultos incapazes de cuidar de seus filhos, pessoas vítimas de suas escolhas estúpidas, falta de perspectiva, boas intenções levando apenas a becos sem saída.

No alpendre, Julia ordena que Jenny trate de voltar para casa e não fale nada a ninguém. A adolescente escreve algo no diário e o levanta sobre a cabeça. "Leve-me a Ele". Julia diz que a adolescente não sabe o que diz, mas Jenny realmente parece resoluta em "encontrar" o "Homem Alto", talvez em razão de seu profundo desconforto com a própria vida, com a falta de perspectiva em Cold Rock e, mais importante, dentro da própria casa, onde é criada por uma mãe incompetente e um padrasto alcoólatra. Julia insiste que vá para casa e fique calada, pois um dia, pode ser que o "Homem Alto" lhe preste uma visita. A adolescente fica esperançosa, e obedece a Julia. Christine lhe diz que agora só lhes resta fugir, mas Julia deixa a entender que alguém precisa ficar para assumir a culpa. Ela "desce" o garotinho para o porão, na verdade uma passagem secreta servida pelo intrincado sistema de túneis oriundos da época das minas. Julia emerge sozinha, e não sabemos o que ela fez com o menino. Exausta, sobe as escadas para o escritório do falecido marido, para aguardar a chegada da população e a polícia.  A câmera passeia pelo interior do escritório, mostrando-nos uma porção de retratos de Julia ao lado do marido, atendendo a crianças da comunidade. Eles eram realmente queridos, especialmente pelos pequenos. A manhã chega, e Tenente Dodd a orienta a como proceder para deixar a casa. Pede para permanecer de cabeça baixa, não encarar os populares, e entrar imediatamente no carro da polícia. Antes de ser escoltada, Julia tem a dolorosa visão de Christine, que se enforcou por ali, o corpo balançando na ponta da corda. Por muito pouco, Julia não é linchada pelos habitantes, que finalmente a tomam como o terrível monstro que tanta tristeza trouxe a suas vidas. Ainda persiste, porém, o mistério. Onde estão as crianças?

Dodd e os homens descem ao porão, e descobrem a passagem que dá para os túneis das minas. Os túneis confluem em vários pontos distintos da floresta. Impressionado com a extensão dos caminhos, Dodd diz que Julia pode ter usado a passagem para enterrar desapercebida os corpos por porções diferentes do bosque. Dodd ordena que toda a região seja isolada, para que comecem o trabalho de varredura. A esta altura, Julia recebeu atendimento para os ferimentos, e Dodd começa a questioná-la. Ele diz que é inaceitável deixar os pais sem respostas.  Em uma sala de interrogatório, o tenente procura deixá-la à vontade, para que finalmente diga a verdade. Menciona o falecido marido, médico de Cold Rock de 1992 até a morte. Como médico, manteve a comunidade unida. O seu falecimento foi como o sinal para os maus tempos. Julia diz que quem mais sofreu com o fechamento das minas foram as crianças, nas mãos de pais que se tornaram alcoólatras e violentos. Dodd pergunta se Julia as levou para a "pequena cidade" que descobriu sob a propriedade, e Julia disse que sim, pois lá havia livros, brinquedos e músicas, e as crianças podiam ser felizes. Christine era quem cuidava delas, quando saia. Dodd retruca, afirmando que Julia teria dito `a Senhora Johnson que entregara as crianças ao "Homem Alto". Ele pergunta se existe algum homem a quem teria entregado os meninos, mas Julia diz que não, e que agiu sozinha. Assistindo ao desenrolar do interrogatório, muitos outros policiais ficam chocados com as revelações. Dodd pergunta se as crianças estão mortas, e se foi ela quem as matou. 

São dezoito crianças desaparecidas, e a polícia nem sabe onde começar a procurar. Não quando a área a ser varrida envolve túneis com quilômetros de extensão, e bosques tão extensos acima, com terras a perder de vista. Até onde a polícia sabe, David foi mesmo a vítima final. A última esperança de Dodd para conseguir pistas que os levem ao paradeiro das crianças ou de seus corpos pode vir pela intervenção da Senhora Johnson. Julia é levada sob custódia para um presídio federal, e Dodd pede para que a Senhora Johnson aproveite a oportunidade de conversar com a enfermeira para convencê-la a dizer tudo o que sabe. Em um encontro cheio de emoção, a Senhora Johnson diz a Julia que não consegue mais viver, que fica remoendo coisas em sua mente, cheia de saudades do filho. Julia responde que pode imaginar, pois se sentiu como mãe para cada uma das crianças que carregou. A Senhora Johnson afirma que o banco pode ter tomado a sua casa, morar no velho prédio da administração das minas por não ter lugar melhor, e estar desempregada, mas ainda assim morreria pelo filho e como mãe tem direito a reavê-lo. Julia menciona que o sistema faliu, que as crianças crescem desencorajadas e sem esperança. Ao contrário dos adultos, crianças vivem cheias de potencial e esperança. Os adultos deviam abraçar e nutrir esse potencial, mas continuam a deixá-las crescerem carentes e abandonadas, até se tornarem adultos igualmente problemáticos. Julia diz que foi por essa razão que se voltou contra o sistema burocrata, que impõe entraves a adoções, e apenas permite que o ciclo se repita. A Senhora Johnson escuta a tudo com muita dor, e ao término da fala de Julia, faz uma pergunta bem direta: as crianças estão mortas?Julia assente com a cabeça, e diz que os seus corpos estão enterrados nas florestas e nos túneis. Até mesmo no presídio, Julia é implacavelmente hostilizada. As outras presas prometem pôr as mãos na enfermeira para matá-la, tamanha a revolta causada pelos crimes.

Em Cold Rock, Jenny continua aprisionada a sua realidade de enormes tristezas e pequenas alegrias. Uma noite, ela é acordada pela confusão típica da mãe brigando com o namorado Steve. Desta vez, a briga fica particularmente séria, pois os dois estão trocando acusações do lado de fora. Steve quer que Tracy ligue para a irmã e trate de trazer Carol de volta. Quando Tracy se nega, o homem lhe dá um tapa, e nisso Jenny pula nas costas do padrasto. Steve consegue se desvencilhar e jogá-la de lado. Ao dar as costas, é apanhado em cheio por uma garrafada de Tracy, que lhe diz para nunca mais tocar na filha. Estatelado no chão, Steve passa a mão na cabeça e começa  rir ao constatar a que ponto chegaram. Tracy diz que ele não vale mesmo nada, e se junta às risadas. Jenny assiste a toda a banal degradação, abismada. Por muito tempo, achou que a mãe era a vítima de um canalha alcoólatra, mas agora, diante de suas risadas cúmplices, compreende que foi Tracy quem se permitiu degradar, e afinal de contas é tão ou talvez mais reprovável do que Steve. Ao ver os olhos da filha, Tracy compreende que a filha percebeu as suas contradições, e que fracassou como mãe. Cheia de dor, Jenny sai correndo, e Tracy abaixa a cabeça, envergonhada pela hipocrisia e cumplicidade com o algoz. Jenny caminha por um campo muito deserto e vazio, o rosto banhado de lágrimas, esperando ser finalmente "resgatada" pelo "Homem Alto". O visitante aparece, e a arrebata com muita rapidez, carregando-a por sobre os ombros bosque adentro. Ele a leva ao carro, deixado numa pedreira próxima, e pede para que se esconda sob o banco detrás.

Aprendemos que o "Homem Alto" é o marido de Julia. Na verdade, ele forjara a própria morte anos antes, para atuar como "Homem Alto". Nenhuma das dezoito crianças foi morta. O que Julia e o marido fizeram foi atuar em um intrincado esquema que viabilizava a adoção de crianças, livres dos entraves de um Estado burocrático, ineficiente e atrasado. Supõe-se que a organização tenha tentáculos por todos os lugares do mundo, e envolva o trabalho coordenado de centenas de milhares. Julia e o marido não passavam de um braço, facilmente substituível na grande ordem das coisas. Uma vez levadas, as crianças de Cold Rock receberam novas identidades, e foram adotadas por pessoas comuns que queriam ter filhos, mas biologicamente eram incapazes de os conceber. Julia assumiu a culpa por mortes que não existiram, para que a polícia jamais investigasse a fundo os sumiços, a ponto de conhecer o esquema. Com Julia assumindo a culpa, a Polícia presume a morte das dezoito crianças, cujos corpos jamais serão encontrados (até porque não morreram), e ela figura como a única vilã responsável por todo o sofrimento dos habitantes de Cold Rock. Mesmo sob  perspectiva da execução por injeção letal, Julia heroicamente sustenta a versão. Jenny é levada pelo "Homem Alto" para Washington, onde é apresentada a sua nova mãe, uma mulher rica, elegante e mais velha que jamais pôde ter filhos. O "Homem Alto" entrega à mulher rica o passaporte com a identidade de uma moça chamada "Vera Parker", que deverá ocupar o lugar deixado por Julia Denning e portanto receber todo o suporte da organização.

Intrigante filme de suspense lançado com pouco alarde em 2012, "O Homem Alto" simboliza a evolução artística de seu diretor, Pascal Laugier, que criou um nome para si após o filme de horror francês "Martyrs". Enquanto que em seu polêmico filme de 2008 Laugier criou algumas das imagens mais horrorosas e brutais já vistas no cinema, em "O Homem das Sombras" felizmente procura entrar em contato com a humanidade de seus personagens, e como um habilidoso artesão, nas linhas de um Brian De Palma, subsidia a excelente história com execução técnica perfeita. Visualmente, o filme é um espetáculo à parte, maravilhoso de se contemplar, tal qual um belíssimo quadro. Filmado em British Columbia, a terceira maior província do Canadá, as câmeras capturam em ângulos amplos a generosidade com que Deus tratou a região: rios, lagos e montanhas a perder de vista parecem criar o cenário perfeito para uma trama onde a desesperança é muito bem representada pela gelidez e o céu lúgubre que perdura sobre os personagens. Enquanto o seu filme anterior dependia demasiadamente de estilo, em "O Homem das Sombras" Laugier pôde relaxar e deixar que o seu maravilhoso elenco fizesse a maior parte do trabalho. De muitas maneiras, "O Homem das Sombras" obedece o mesmo formato de "Retratos de uma Obsessão", a obra prima de Mark Romanek e o melhor filme da carreira de Robin Williams. Em ambos os filmes, estudos de personagens, o espetáculo cabe a palavras, à interação entre os seus protagonistas, ao significado de instantes sutis, de reações, de olhares. Prova disso é uma brilhante cena em "Retratos de uma Obsessão" em que o personagem de Robin Williams vai prestigiar o garotinho Jake, e após o jogo de basebol, os dois saem caminhando vagarosamente pelo gramado, com as folhas amareladas caindo preguiçosamente, marcando a passagem das estações, outono à primavera, e Williams discorre um pouco sobre a sua própria sofrida infância e sobre o quanto os pais de Jake o amam e procuram fazer o melhor, mesmo que por vocês o menino ache que não: Romanek deixa a sua câmera sobre o tripé, parada, sem movimentos, sem inovações, deixando que o diálogo e as performances nos contem a história, sem distrações. Um grande cineasta sabe imprimir às lentes o seu ritmo e cortar as cenas na hora certa, porém também percebe quando deve deixar que performances e diálogos assumam o comando. Com um belíssimo roteiro a seu serviço, Laugier teve parte de seu trabalho abreviada por maravilhosos desempenhos e contundente história. Tudo o que teve a fazer foi posicionar bem as suas câmeras, e deixar que o seu talentoso elenco fizesse o resto.

Jessica Biel protagoniza o filme no papel da trágica heroína, e tem a oportunidade de dar um tour de force por uma montanha russa de emoções. O desafio foi muito arriscado, pois a atriz precisou "mudar" de nuances à medida que a trama se destrinchava. À primeira vista, começa como mãe dedicada e enfermeira socialmente engajada quanto aos problemas da comunidade; então se torna o "monstro" tão temido pelos moradores de Cold Rock, sob seus ombros o peso da responsabilidade pela morte das dezoito crianças; ao final, a vemos como uma mártir atirada à fogueira em nome de uma causa que até ao final julga nobre. Jessica Biel torna essa "jornada" muito verossímil e interessante, e jamais soa falsa em sua performance. Apesar do excelente trabalho, compreendo que o papel reclamava uma atriz mais madura. Sendo muito jovem, Jessica Biel não pinta a complicada personagem com a riqueza de tonalidades que um rosto mais maduro conseguiria, não traz a gravidade de uma Jennifer Connelly, por exemplo. "Julia Denning" é uma personagem cuja partitura oferece todas as notas que Jennifer Connelly aperfeiçoou muito bem. Assim que veio a grande revelação - Julia como a mentora do esquema secreto de adoção das crianças - Jennifer foi o primeiro nome que me veio à mente. Aos 43 anos, o seu olhar triste dá a sua persona uma tonalidade muito sombria e ilegível, que a torna suave, mas ambígua; doce, mas imprevisível. Ela é todas as virtudes e todos os segredos, encapsulados em um mesmo instante. Nenhuma outra atriz se mostrou tão eletrizante, intrigante, tal qual uma típica personagem feminina escrita por Clive Barker para os seus contos de horror noir. Ela é a mulher misteriosa sem nome, exibindo a piteira entre os dedos, mãos vestidas em compridas e justas luvas brancas de seda que sobem até um pouco acima dos cotovelos, as únicas peças que não tira mesmo para fazer amor, e que faz qualquer homem, mesmo os mais seguros, se desconcertar pela mera força de seu sorriso. Ela é uma fantasia de carne e osso, em forma de mulher, que pode virar uma borboleta gigante e colorida, e sair golpeando o ar com as asas, bailando entre flores, vivendo intensamente pelo prazo de vinte e quatro horas, o tempo que vivem borboletas, uma vez que deixam seus casulos. Jennifer é uma mágica de Clive Barker, e os dois nem devem se conhecer!Enquanto Kristen Bell devolve o Sol ao alto, e ilumina o dia com o seu sorriso aberto e o narizinho arrebitado, Jennifer Connelly faz o movimento inverso, expulsa-o, atrai as nuvens mais negras e pesadas, e substitui qualquer calor pela brisa gélida da proverbial madrugada. Ainda assim, que espetacular madrugada ela traz!Stephen McHattie interpreta Tenente Dodd, e há momentos que nos fazem pensar que ele será o "Homem Alto". Este talentoso ator, veterano de muitos filmes, vem colhendo o respeito e o reconhecimento por uma extensa carreira no cinema, e é uma importantíssima adição ao elenco. McHattie é um desses grandes veteranos, como Lance Henriksen ou Tobin Bell, que vimos em muitos filmes, e mesmo que eventualmente os seus nomes não nos ocorram de imediato, sempre nos deixam fortes impressões. McHattie recentemente protagonizou um outro magistral suspense rodado no Canadá, um artístico filme de zumbi com muita atmosfera chamado "Pontypool". Agora, é esperar para vê-lo voltar a brilhar em "Pontypool Changes", a sequência, que ainda está em fase de concepção. Jodelle Ferland interpreta Jenny, símbolo da inocência perdida, e pelos seus olhos pidões enxergamos que mesmo tão jovem já conhece as agruras do mundo: solidão, alienação, e carência compõem a sua realidade em uma base diária. A sua força, todavia, parece vir da adversidade, pois apesar de suas frustrações, ela dá um jeito de manter a chama da esperança viva, e ao final, os seus sonhos são atendidos, pelos caminhos mais inesperados.

Depois dessa extensa análise, acho que os amigos vão querer me perguntar: e quanto ao fato de se tratar de um filme de horror, "O Homem das Sombras" funciona?Sim, o filme funciona, talvez não pelas razões que inicialmente leve a crer. Apesar de brincar com a mitologia de uma entidade muito alta e sempre envolvida pela escuridão, atacando uma cidadezinha de tempos em tempos, e levando as crianças consigo a cada passagem, "O Homem das Sombras" é um filme de horror sem extraterrestres, monstros, assassinos, ou coisas do gênero. Quando chegamos ao final, não houve quase morte alguma, a não ser se considerarmos o suicídio da personagem Christine. Então, o que o torna tão evocativo?Bem, eu poderia citar a aura de mistério bem sustentada pelo diretor Pascal Laugier até o momento da grande revelação, ou a performance superior de Eve Harlow como Christine, em uma cena pivotal pela qual eu passei a me recordar do filme, ou a melodia triste de duas notas no piano, mas acredito que eventualmente a razão pela qual "O Homem das Sombras" seja um filme de horror tão sui generis não se deva exclusivamente a nenhum dos pontos anteriores. Eu acredito que "O Homem das Sombras" funciona pela natureza crível e contemporânea de seu horror. Os "monstros" não vestem as fantasias sadomasoquistas justíssimas de couro dos cenobitas, por exemplo, não foram invocados pela montagem da configuração do lamento, não são espetaculares ou fantásticos em suas bizarrices. Em "O Homem das Sombras", o rosto do "monstro" é surpreendentemente amável, e ele sempre se aproxima com sorrisos, intencionando o melhor. "Eles" são os pais, as mães, ou mesmo as pessoas que buscaram ajudar, mas parecem ter se esquecido da natureza do material que pavimenta o caminho à perdição: as boas intenções. Se o suspense que move a trama para uma conclusão chocante advém das pistas falsas que o roteiro joga no caminho, o horror somente nos acerta em cheio quando "O Homem das Sombras" chega ao terço final, e nos deparamos com a que ponto pessoas comuns com motivos superiores são capazes de chegar para fazer aquilo que julgam correto. Temos uma personagem principal que genuinamente se preocupou com as crianças de uma cidade em declínio, crianças que estavam crescendo em lares desfeitos. O seu marido era uma espécie de pilar da comunidade, e manteve os cidadãos unidos até a "morte". A zona limítrofe se situa em algum ponto entre a "morte" do marido e o fim das atividades nas minas, quando Julia rompeu com os parâmetros da vida anterior, e se transformou no "monstro", através da criação do mito do "Homem das Sombras", quando as crianças começaram a ser raptadas e os cidadãos a perder tempo buscando em razões sobrenaturais a resposta para as muitas perguntas. Que ela tenha raptado David, criado-o como filho ao longo de todos aqueles anos e mantido as aparências é de eriçar os cabelos. Como a personagem da Senhora Johnson coloca muito bem para Julia, ela pode ser uma mulher humilde ou não ter feito as melhores escolhas, mas o menininho ainda é seu filho, e o vínculo entre filhos e pais é indissociável e deve ser respeitado, acima de qualquer senso pessoal de justiça que mova a enfermeira.

Enquanto os nossos sentimentos pelos adultos da história jamais são uma constante, pelas crianças nós só lamentamos. As maiores vítimas circunstanciais de eventos incompreensíveis, elas veem as suas vidas transformadas em uma sequência de reviravoltas protagonizada por adultos, enquanto as suas cabecinhas tentam processar o significado de tudo aquilo. O diretor Laugier faz uma interessante montagem, no começo do filme, quando assistimos às pessoas de Cold Rock falando sobre o "Homem Alto", e entrecortadas entre as entrevistas de cidadãos, imagens de uma menininha, com uma boneca de pano, e um molequinho puxando o carrinho, passeando do lado de fora de suas casas, em lugares muito humildes, e desaparecendo no próximo segundo. A montagem é muito contundente, pois expressa a transição de espaços anteriormente ocupados para vielas vazias. Nós as vemos ali, tão ingênuas, puras, metidas em seus mundinhos mágicos onde só acham que existe o Bem, arrebatadas de um momento a outro, pagando caro pela ausência dos pais. É por este viés que "O Homem das Sombras" procura encaixar-se ao gênero, uma espécie de horror mais humano e possível. Ao substituir uma figura sobrenatural por uma jovem mulher bem intencionada porém sem freios morais, a história toca em medos que a fantasia jamais seria capaz de acessar. Em minha introdução, mencionei O Exorcista porque muito embora o filme de William Friedkin seja um dos melhores que há, a fonte literária de Thomas Allen, sobre os eventos que inspiraram William Peter Blatty a escrever o romance, contrapõe o horror fantasioso do filme ao terror da vida real, reforçando tudo o que escrevi sobre o estilo de "O Homem das Sombras". Falei que o poder do filme de Pascal Laugier se devia ao fato de se apresentar como um suspense bem executado mas formulaico, e então, a dois terços do final, apanhar-nos com uma reviravolta atordoante que nada tem de sobrenatural, porém muito fala sobre a falibilidade humana, certo?Não há dúvidas de que se vocês assistirem a O Exorcista, se divertirão e se assustarão e ao final poderão enxergar a mensagem de esperança com que Friedkin o encerra. Mesmo quarenta anos após o lançamento, O Exorcista conserva a sua crueza e os afiados momentos de terror, todavia uma vez que se conhece a história original, algo parece perdido quando da transição do romance para as telas. Imaginem só, lendo o livro de Thomas Allen, entre tantas hipóteses ventiladas, o autor sugere uma que nada tem de extraordinária, mas que me parece a explicação mais horrorosa para os eventos.Segundo Allen, a natureza do problema que assolou o garoto após a morte da tia parece psicossomática, dever-se ao que hoje os médicos conhecem como Síndrome de Tourette, uma desordem psiquiátrica que pode muito bem ter causado as manifestações observadas. Bastante revelador que todo o problema tenha se iniciado após a morte da tia. Para Allen, também é possível que a mulher o tenha maltratado, e o trauma tenha sido suficientemente maciço para que o menino automaticamente bloqueasse as lembranças e as substituísse pelo sentimento de culpa, o que pode ter gerado o gatilho que transbordou em todas as manifestações psíquicas, nada mais do que energia emocional. A possibilidade de uma criança inocente, ocasionalmente maltratada por uma tia a quem ama, sublimando os eventos de sua mente e pagando o preço da culpa é mais perturbadora do que qualquer fantasia imaginada, e aqui volto ao ponto de "O Homem das Sombras": o seu horror é mais próximo, e portanto mais familiar do que "extraterrestres" ou "cenobitas". Não há resoluções absolutas, mas sobreviventes que precisam fazer o melhor possível para prosseguir com as suas vidas. Depois de tanto investimento psicológico, de discussões sobre temas difíceis e pesados, "O Homem das Sombras" surpreendentemente termina em uma nota positiva e esperançosa. Como mencionei anteriormente, Jenny tem o desejo de se afastar de sua realidade atendido, e o diretor Laugier nos deixa um epílogo que parece reforçar que mesmo quando a vida lança coisas muito ruins sobre nossos colos, há outras muito boas a não se perder de vista, e não podemos nos concentrar apenas na parte ruim, pois assim a tornamos (a vida) toda ruim, e sabemos que não é o caso. Em parte, a vida é boa, ou melhor, muito boa.

Uma manhã, Dodd sobe a serra para fazer uma visita à casa de Tracy. Não traz boas novas. As buscas por Jenny não os levaram a pista alguma, é como se ela tivesse caído da face da Terra. Quanto a Julia, Dodd conta que a promotoria pretende entrar com uma moção pela pena de morte. Dodd compromete-se a encontrar Jenny e a encoraja: "aguente firme". A desiludida e maltratada Tracy responde "Venho aguentando firme há vinte e cinco anos". Muito longe do frio de Cold Rock, Jenny é uma nova adolescente, em uma excitante metrópole. Ela está tendo oportunidades de desenvolver o seu potencial em uma cidade cheia de possibilidades. Jenny parece mais madura, focada e inteligente, e pela primeira vez consegue sorrir à vontade. Ela trabalhou o trauma que a aprisionava no mutismo, e agora consegue se comunicar normalmente. Em sua narração final, diz que compreende e perdoa os erros de sua primeira mãe, que é grata pelo sacrifício de sua segunda (Julia), e que está se esforçando para ser uma excelente filha para a terceira, a senhora que a adotou, está lhe mostrando um mundo cheio de horizontes, e lhe diz que conhecimento abre todas as portas. Durante uma de suas caminhadas para a aula de artes, ao passear pelo Central Park, ela reencontra David, o filho da Senhora Johnson. Hoje, o menininho está sob os cuidados de uma nova mãe, que parece ser amorosa e doce, e o chama de Jeff. Há um instante muito breve, quando Jenny e David trocam olhares, e muito embora ela o reconheça no ato, apenas uma distante recordação passa pelos olhos do garoto. Crianças têm a impressionante capacidade de esquecer todas as confusões em que os adultos as meteram, ou as dores que lhes causaram. Os terríveis eventos pelos quais os seus personagens passaram parecem lhes resgatar a espiritualidade: os adultos, representados por Tracy, aceitam parte da responsabilidade pelos destinos infelizes de que tanto se queixam, e compreendem que de certa forma foi pelas suas escolhas pobres de julgamento que se viram metidos em suas desfavoráveis circunstâncias; as crianças, representadas por Jenny, conseguem perdoar os pais, amá-los mesmo levando em conta todas as suas falibilidades humanas, e seguir em frente, ainda que muitas vezes se sintam emocionalmente aleijadas. É a perspectiva de um novo dia que estimula pais e filhos a superarem as suas limitações e crescerem para se tornar pessoas melhores, convictos de que cada desafio deve ser visto meramente como mais um obstáculo a vencer, um novo passo em direção à luz.

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