domingo, 28 de abril de 2013

Cemitério Maldito ("Pet Sematary", 1989) - Mesmo após tantos anos, este filme perdura como a mais apavorante adaptação cinematográfica de uma obra do mestre Stephen King.


A família Creed muda-se de Chicago para a pequena cidadezinha de Ludlow, Maine. Louis é médico, e aceitou o cargo de diretor do Departamento de Medicina no campus da universidade. Com a sua inteligente e bonita esposa Rachel, Louis faz o melhor para cuidar bem dos filhos, a espevitada menininha Ellie e o bebê Gage. Acompanhando a família, o gato dos Creed, um dócil British Shorthair chamado Church. Depois da mudança, tornam-se amigos do senhor Jud, um velhinho que mora na casa defronte, do outro lado da estrada, e que os leva para passear no “cemitério de animais”, logo atrás da nova propriedade dos Creed, onde as crianças da época de Jud costumavam enterrar os bichinhos mortos. Pelo fato de a autoestrada atravessar a região, o número de mortes de animais de estimação sempre foi muito grande. Para além do cemitério de animais, existe um vasto bosque, e Jud promete a Louis lhe contar mais sobre o lugar que foi terra da extinta tribo dos MicMac.

Um dia, um jovem estudante chamado Victor Pascow é trazido para a emergência do campus após um horroroso acidente automobilístico onde sofreu fratura craniana. O jovem morre, porém antes de partir, avisa ao médico para não se aventurar no bosque. O estudante se dirige a Louis pelo nome e toda a situação parece inverossímil ao médico, vez que jamais haviam se conhecido. Na mesma noite, tem um terrível pesadelo, que parece muito real, onde Victor visita Louis e diz que para além dos bosques existe o solo onde os índios enterravam os mortos, e que jamais deve andar por ali.

Church, o gatinho de Ellie, é morto ao ser atingido por um caminhão na estrada defronte à casa. Isso acontece quando Ellie, Rachel e Gage se encontram em Chicago, visitando os pais de Rachel. Jud pede para que Louis coloque o animal morto em um saco e o acompanhe através do bosque, até a terra dos MicMac, para além do bosque, onde enterram Church. Naquela noite, Church regressa dos mortos, ligeiramente diferente de como se comportava antes do acidente. Parece mais lento e malévolo, como uma paródia de si, e chega a estranhar o dono. Jud conta a Louis sobre o lugar, que foi o mesmo solo que lhe devolveu o cachorro morto, quando criança, e que fez aquilo porque sabia o quanto Ellie amava o gatinho e sofreria com sua morte.

Algum tempo depois, Gage é apanhado em cheio por uma carreta, na mesma traiçoeira estrada. Destroçado pela culpa e dor, Louis pondera desenterrar a criança e levá-la às terras dos MicMac. Jud procura dissuadi-lo, conta-lhe o caso de Timmy Baterman, um rapaz local que morrera durante a Segunda Grande Guerra. Devastado pela dor, o pai de Tim resolveu enterrá-lo no solo indígena para além dos bosques, e o corpo reanimado de Timmy retornou à cidade, aterrorizando os moradores locais. Jud e mais três amigos precisaram atear fogo na casa com Timmy dentro, para acabar com aquela horrorosa situação. O pai, cego de amor pelo filho, correu para dentro da propriedade e morreu ao lado de Timmy no incêndio.

Rachel suplica ao marido que a acompanhe com Ellie para Chicago, mas o ressentimento de Louis pelo sogro Irwin ainda está muito à flor da pele. Com a esposa e a filha distantes, Louis desenterra a criança. A todo instante, enxerga o espírito de Pascow, que suplica para que não cometa tamanha insanidade. Durante a estadia na casa dos avós, Ellie tem um assustador pesadelo, onde Pascow procura alertá-la de que o pai está em vias de fazer algo muito ruim, e que resolveu ajudar o médico porque, no passado, Louis tentou salvar a sua vida. Rachel se assusta com a conversa da filha, porque se recorda do rapaz atropelado, no entanto, não imagina como a filha o conheceria. Ela liga para Jud, atrás de Louis, e o velho imediatamente compreende que o vizinho levará adiante o intento de enterrar Gage na terra MicMac. Rachel resolve retornar imediatamente ao Maine.

Louis carrega o corpo da criança enrolado em um lençol através do fantasmagórico bosque. Durante a travessia, tem a certeza de avistar ao longe as formas do assustador demônio Wendigo, observando-o sorridente. Depois de enterrar a criança no solo MicMac, o médico regressa pela mesma trilha para sua casa. Ao chegar, cai exausto e inconsciente na cama. Horas mais tarde, durante a madrugada fechada, Gage entra no quarto, abre a maleta do médico e apanha o bisturi. O corpo reanimado entra então na casa de Jud e mata o velho. Quando Rachel está para subir o alpendre, depois de ter feito todo o caminho de volta ao Maine, escuta a voz da falecida irmã vindo da propriedade do outro lado da estrada. Zelda, a irmã de Rachel, falecera na infância vitimada por meningite, e Rachel jamais esquecera as terríveis lembranças de como a irmã doente apreciara atormentá-la para descontar a frustração pela saúde debilitada. Rachel entra na casa de Jud e fica chocada ao encontrar o filhinho Gage. Ela o abraça, sem perceber que a criança está munida de um bisturi afiado.

Louis desperta na manhã seguinte, e ao se deparar com as pequeninas pegadas lamacentas no carpete, compreende que o filho retornou da terra dos MicMac e andou pela casa enquanto o pai dormia. Mais preocupante ainda, mexeu na sua maleta e levou o bisturi. É quando o telefone começa a chamar. Do outro lado da linha, o corpo reanimado de Gage avisa ao pai que terminou de brincar com o corpo da mãe, e que agora é a sua vez. Louis prepara várias doses de morfina e segue para a casa do velho. No quintal, dá com Church, o gato reanimado, e sacrifica o animalzinho com uma das doses. Ele então adentra na propriedade, e repentinamente o corpo de Rachel, aberto a golpes de bisturi, despenca sobre o médico. Gage ataca o pai e chega a acertá-lo com alguns golpes, com a lâmina, mas Louis é mais ágil, e penetra o pescoço da criança com a injeção de morfina. Louis banha a casa de gasolina e ateia fogo, levando consigo apenas o corpo de Rachel. O espírito de Pascow observa a cena, e pela última vez implora para que Louis não visite o terreno dos índios. O médico racionaliza que Gage voltou maléfico pois demorou a levar o corpo do filho. Com a mulher, será diferente. Naquela mesma noite, Louis espera pelo regresso da esposa morta jogando cartas no chão da cozinha. À meia-noite, Rachel retorna, o rosto outrora belo ligeiramente diferenciado pelos golpes de bisturi e pela sujeira de terra. Ela sorri ao marido, e os dois se abraçam.

Filme incômodo e aterrorizante, ao mesmo tempo surpreendentemente sensível e humano. Baseado no extraordinário romance de Stephen King, é uma adaptação em sua maior parte fiel à fonte original. A diretora Mary Lambert, que lamentavelmente após a produção jamais voltou a comandar sucesso semelhante, soube como condensar o extenso conteúdo do romance em 100 minutos de duração, sustentando a tensão e o suspense o tempo inteiro. Diferente da maioria dos filmes de mesmo gênero, Lambert também obteve êxito em fortalecê-lo com os momentos de tristeza, doçura e emoção, tão comuns à prosa de King. Quem leu o romance original compreenderá que Stephen King jamais foi simplesmente um “escritor de horror”. Muito embora saiba ambientar os personagens em impressionantes tramas envolvendo o sobrenatural, o seu assertivo olhar sobre a condição humana nos fala a um nível bastante pessoal, em uma intimidade que poucos autores souberam reproduzir na escrita. Normalmente, você seria levado a pensar que tiramos pouco proveito de filmes de horror para nossas vidas individuais. Realmente, um bom filme de horror cumpre sua proposta ao provocar apreensão e medo, no entanto, obras de King são mais ambiciosas e gratificantes, e das mesmas tiramos enorme proveito, pois vão um pouco mais além.

O cerne do filme – a influência de um demônio oriundo da mitologia das tribos indígenas da América do Norte sobre o território anteriormente ocupado pelos MicMac – é fantástico e próprio ao gênero horror, todavia os dramas particulares que orbitam o referido núcleo sobrenatural nos parecem familiares e reveladores e, portanto, imprimem à estória incomum e inesperada profundidade psicológica, até mesmo nos convidando à reflexão. Mais acentuadamente no romance original, porém também presente na adaptação cinematográfica, Pet Sematary aborda temas atemporais e importantes, válidos para discussão, questões que nos ajudam a pensar em nossas próprias vidas. A começar pela doença terminal de Zelda e a morte do gatinho Church, King nos estimula a simpatizar com os personagens, até porque suas dificuldades também se assemelham `as nossas. Creio que todos nós conhecemos a dor da perda de um parente amado levado por uma doença terminal. O horror de Rachel ao falar sobre a morte parece justificável, face ao que passou com a irmã doente, e a forma aterrorizante com que se recorda de Zelda talvez se deva muito ao fato de que era uma criança quando toda a confusão aconteceu, quando a morte da irmã deixou uma marca indelével na sua personalidade, trauma que parece mais explícito hoje, já mulher crescida, esposa e mãe de duas crianças. Os sentimentos de Rachel pela irmã parecem contraditórios: ela a ama, pois Zelda é, afinal de contas, sua irmã, apenas uma criança tomada por uma horrorosa e letal moléstia, e nada fez para merecer um destino tão triste; ela a odeia, porque, por causa da doença, Zelda se tornou uma criatura monstruosa, horrorosa, vingativa, maliciosa e assustadora, os olhos cheios de ressentimentos contra Rachel. Zelda não tem como deixar de ressenti-la: Rachel terá toda uma vida pela frente, Zelda jamais terá a oportunidade de começar a própria. Ainda acerca da maneira como lidamos com a morte, a forma como Louis reage à perda de Church parece dolorosamente familiar. Quase todos descobrimos sobre a morte quando crianças, através de bichinhos de estimação. Todos conhecemos a sensação, não é mesmo?Quando criança, cuidamos de um bichinho e lhe devotamos carinho e amor incondicionais, e o animal retribui com ainda mais afeição, até que os fatos da vida nos atingem na cara pela primeira vez quando morrem mais cedo do que esperávamos. É como um “preparatório” para a vida adulta, quando passamos a perder pessoas – não mais animais - que amamos, e, ironicamente, nos sentimos igualmente confusos e perdidos como quando havíamos perdidos os nossos animaizinhos.

No romance de King, a cena em que Louis encontra o gatinho morto é brilhantemente construída, e o talento do escritor nos permite compreender a extensão do amor do médico pelo animalzinho, e a tristeza pela sua morte. King escreve “Pela primeira vez tomava consciência de que amava Church — talvez não com o mesmo fervor de Ellie, mas a seu próprio modo. Nas semanas que se seguiram à castração, Church tinha se modificado, ficara gordo e indolente, caíra num perambular rotineiro entre a cama de Ellie, o sofá e a vasilha de comida. Raramente saía de casa. Agora, morto, olhava para Louis como o velho Church. A boca, pequena e ensangüentada, cheia dos seus dentes de felino, afiados como agulha, parecia congelada num rosnado de ataque. Os olhos sem vida, mesmo assim pareciam furiosos. Era como se depois da curta e estúpida fase de uma existência como eunuco, Church redescobrisse sua verdadeira natureza no momento da morte”.

A dinâmica de casal entre Rachel e Louis é impecável. Parece evidente no filme, mas na fonte original salta aos olhos ainda mais explícita. Você sente que estes dois são reais e aprofundados, complexos como as pessoas que conhecemos e com quem nos relacionamos no dia a dia. Na estória, são jovens pais, aos trinta e poucos anos, superando unidos as pequenas dificuldades diárias. Com dois filhos, a vida do casal pareceu focar-se em criá-los bem, no entanto, ainda assim encontram oportunidades para reacender a chama da paixão. No livro, há tocantes momentos que jovens casais, pais de primeira viagem, ao lê-los, reagirão com sorriso familiar e conhecedor, tais como quando Louis a presenteia com um colar de safiras, e Rachel se emociona, prometendo que vai usá-lo quando fizerem amor naquela noite. No romance, King escreve:

Abriu o presente sentada num degrau, viu a caixa da Tiffany e quase deu um grito de satisfação. Removeu o enchimento de algodão e ficou imóvel, de boca ligeiramente aberta.
Bem? — ele perguntou ansioso. Era a primeira vez que lhe comprava uma verdadeira joia e estava nervoso. — Você gosta?
Ela estendeu a fina corrente de ouro nos dedos e voltou a pequena safira para a luz do corredor. Depois girou-a lentamente e a pedra pareceu atirar frios raios de luz azulada.
Oh, Louis, é tão maravilhoso...
Rachel começou a chorar e Louis se sentiu ao mesmo tempo comovido e alarmado.
Ei, meu bem, não faça isso — disse. — Ponha o cordão no pescoço.
Louis, nós não podemos... Você não pode comprar...
Chiií — disse ele. — Consegui guardar algum dinheiro desde o Natal passado... E não foi assim tão caro...
Quanto custou, Louis?
Nunca vou dizer, Rachei — respondeu solenemente. — Nem um exército de torturadores chineses conseguiria me fazer contar... Dois mil dólares.
Dois mil...!
Ela o abraçou com tanta força e tão de repente que quase o fez rolar pela escada.
Louis, você está louco!
Ponha no pescoço — ele pediu de novo.
Rachel obedeceu. Louis ajudou-a no fecho. Depois ela se virou com um sorriso.
Quero subir e dar uma olhada no espelho — disse. — Quero me curtir um pouco.
Então se curta um pouco — disse ele. — Vou colocar o gato lá fora e apagar as luzes.
Quando fizermos amor — disse Rachel, olhando tristemente nos olhos dele —, vou tirar tudo, menos isto.
Apronte-se, então — disse Louis, e ela riu.

Semelhante ternura também é evocada quando Rachel aproveita que os meninos estão fora de casa e prepara um banho para Louis e os dois terminam fazendo amor. Estes momentos jamais parecem vulgares, e carregam um tipo de delicadeza que casais verdadeiros os invejariam. Apesar da pouca idade, ambos aos trinta e poucos, Rachel e Louis têm uma bela história para contar, onde uma série de percalços teve de ser superada para que ficassem juntos, entre eles o antagonismo que o pai de Rachel, Irwin, sente pelo genro. No romance, as motivações de Irwin parecem originar-se da frustração pelo fato de Louis ter “carregado” a filha para longe da casa dos pais. Rachel sendo a filha sobrevivente, parece natural que os pais tenham se apegado tanto à moça, porém Irwin realmente ressente o genro de uma maneira doentia e, mais tarde, chega ao cúmulo de responsabilizá-lo pela morte do bebê Gage. No livro, Irwin cospe o ódio ao genro com palavras devastadoras, que foram recriadas para o filme Já sabia disso quando ela se casou com você. “Vai comer o pão que o diabo amassou e muito mais”, eu disse. E agora olhe isso... Este caos. Sempre tive certeza de que as coisas acabariam assim... Assim ou de forma parecida. Percebi o tipo de homem que você era desde a primeira vez que o vi. - Goldman se inclinou para a frente, exalando um bafo de scotch. - Você nunca me enganou, seu medicozinho metido a besta... Induziu minha filha a um casamento estúpido, irresponsável, depois a transformou numa lavadora de pratos, depois deixou o filho dela ser atropelado na estrada como um... um animal.

Na versão para o cinema, a diretora Mary Lambert conseguiu reproduzir a magnífica química entre Louis e Rachel graças a seus dois atores principais, absolutamente perfeitos para os papéis e, talvez mais importante, perfeitos um para o outro. O resultado do filme depende diretamente da maneira como os dois atores principais reagem um ao outro, uma escolha equivocada teria funcionado como o beijo da morte para a produção, a estória jamais teria decolado, não teríamos acreditado por um minuto no drama que os protagonistas atravessam. Felizmente, Lambert não poderia ter escolhido pessoas melhores. Estes dois realmente pertencem ao mesmo frame.

As instigantes questões filosóficas propostas tanto pelo livro quanto pelo filme provocariam interessantíssimas discussões e jamais seria possível chegar-se a uma resposta satisfatória. Se por um lado enterrar o gato Church e, depois, o filho Gage no território MicMac vai de encontro à ordem natural da vida, por outro, eu compreendi as escolhas equivocadas de Louis, e devo dizer que somente saberíamos como teríamos agido se passássemos por uma catástrofe familiar semelhante. Certamente, não concordo com suas atitudes, mas compreendo a dor e o desespero que o levaram a tamanha insanidade. Do momento em que chegam à cidadezinha, a família Creed parece condenada a toda a tragédia que vem mais tarde, talvez até mesmo pela influência da energia malévola que perdura na região, que parece se alimentar da curiosidade dos desavisados, ou mesmo da necessidade do ser humano de passar adiante os segredos tão mágicos da terra secular de origem indígena. Por maior que fosse o seu carinho e apego pela família Creed, o vizinho Jud, um senhor bondoso e solícito por natureza, não teve como deixar de contar sobre a magia do território MicMac. Quando o gato aparece morto, atropelado, Jud poderia ter deixado a questão se resolver por si - a garotinha Ellie precisaria mesmo, um dia, aceitar os fatos da vida, a morte de animaizinhos e pessoas queridas um desses duros fatos – porém, a energia do lugar e do Wendigo foi mais forte, e Jud tagarelou sobre o solo. Uma vez que Church retorna à vida, e Louis compreende que o poder da terra é bastante real, parece-me que o Wendigo usa de seu encanto e fascínio sobre o médico como alavanca para arremessar a família em um pesadelo de loucura e morte, o momento definitivo a manhã do piquenique em que o menininho Gage sai correndo atrás de uma pipa, sem que os pais distraídos deem pelo perigo. Sabemos que o menino acaba apanhado em cheio pela carreta na estrada. O Wendigo é um espírito maléfico, e portanto sua razão de existir fundamenta-se em perpetuar o mal. A sua sedutora promessa falsa de devolver um ente querido à vida é a força motriz de seu diabólico apelo. Stephen King escreve:

Ela (Rachel) ergueu o rosto inchado.
O Gage nem estava sendo malcriado, Louis. Pra ele tudo não passava de uma brincadeira... O caminhão veio na hora errada... A Srta. Dandridge telefonou enquanto eu ainda estava chorando. Leu no American de Ellsworth que o motorista tentou se matar.
Quê?!
Tentou se enforcar na garagem da casa dele. Segundo o jornal, está em estado de choque e com uma depressão profunda...
Pena que não conseguiu morrer — disse Louis brutalmente, mas a voz pareceu distante aos seus próprios ouvidos. Sentiu um calafrio tomando conta do corpo. O lugar tem poder, Louis... Foi cheio de força no passado e estou com medo de que esteja voltando a ter pleno poder. — Meu filho está morto e esse motorista foi solto por uma fiança de mil dólares... Vai continuar se sentindo deprimido e com vontade de morrer até que um juiz qualquer casse a carteira dele por noventa dias e na saída lhe aperte o punho dizendo que está tudo bem.
A Srta. Dandridge diz que a mulher pegou as crianças e foi embora —Rachel falou sombriamente. — Não leu isso no jornal, mas soube por alguém que conhece um vizinho dele. Não estava bêbado. Não estava drogado. Nunca teve multas por excesso de velocidade. Mas disse que quando entrou em Ludlow, simplesmente teve vontade de pisar fundo no acelerador. Disse que não sabe como aconteceu. Simplesmente aconteceu.
Simplesmente teve vontade de pisar fundo no acelerador.
O lugar tem poder...

Assim como aconteceu em sua obra The Shining, em que a energia negativa de um hotel isolado nas montanhas do Colorado usa das vulnerabilidades e segredos de um ex-alcoólatra para voltá-lo contra a esposa e o filho sensitivo pequeno, em Pet Sematary, o demônio Wendigo assume a forma dos maiores horrores dos protagonistas. Para Rachel, o Wendigo se manifesta através da aparição da irmã doente – tanto no romance quanto na adaptação para o cinema – e para Jud (no romance), o Wendigo se materializa como a falecida esposa do senhor. Uma das cenas mais arrepiantes envolve Rachel reencontrando Gage, possuído pelo Wendigo, surgindo para a mãe vestido a caráter, de cartola, capa e bengala. Quando o demônio assim o faz, está jogando com a cabeça de Rachel: o vestido usado pela criança corresponde a uma pintura de Zelda, feita quando criancinha, anos antes da meningite. Tudo o que o Wendigo faz parece ardilosamente orquestrado para incutir absoluto horror às pessoas vítimas de sua influência. Outro ponto em comum entre The Shining e Pet Sematary é a natureza amorfa dos males que aterrorizam os personagens. Em Pet Sematary, pouco se sabe sobre o Wendigo. Basicamente, conhecemos apenas que o Wendigo compõe parte da rica mitologia indígena, descrito como um demônio canibal que habita a natureza, e entra na mente de pessoas vulnerabilizadas pela fome, sugerindo-lhes a prática do canibalismo, no entanto jamais chegamos a vê-lo, permanece como uma entidade abstrata e misteriosa. Em The Shining, a energia malévola do hotel Overlook deve-se a dois fatores preponderantes: primeiro, o fato de ter sido erguido sobre terras indígenas, segundo, a natureza pérfida e cruel das pessoas que ao longo dos anos passaram pelo lugar. O homem que o ergueu - um playboy bissexual notório pelos seus excessos, com laços com a máfia, e cujos tentáculos alcançavam uma variedade de investimentos, de hotelaria e cassinos a estúdios de cinema - é só a ponta do iceberg na sinistra história do lugar. Uma série de coisas horrorosas ocorreu no hotel, desde escândalos sexuais, mortes por overdose, assassinatos encomendados pelo crime organizado, a toda sorte de escândalos violentos e revoltantes. É como se a energia reminiscente de todo esse pessoal que ou por ali passou ou morreu em suas dependências seguisse nos corredores do hotel, assombrando-o, como uma força conjunta e impiedosa, que jamais é vista plenamente, mas identificada apenas em sinais, principalmente pelo menininho sensitivo, que tem um encontro aterrorizante com o espírito da mulher morta do quarto 237, vê as duas irmãs gêmeas assassinadas a machadadas pelo pai no corredor, e é assediado por um homem bem aparentado que veste a fantasia de cachorro. A mulher morta do quarto 237 havia sido abandonada pelo companheiro, e veio a se matar com o uso de barbitúricos, em 1975. No filme de Stanley Kubrick, o espírito do quarto 237 assume a forma de uma velha decrépita, mas no romance de Stephen King, é descrita como uma mulher que aparenta seus 35-40 anos, habita o quarto e emerge da banheira sempre que alguém entra no lugar. King refere-se a ela como Senhorita Massey. A sequência em que Danny a encontra é inesquecível, um dos instantes mais apavorantes do livro. King não descreve o desenrolar do encontro, interrompe a narrativa bem no instante em que a mulher sai da banheira, depois que o menino se vê preso dentro do quarto com a estranha. Na cena seguinte, a mãe o encontra no corredor, em estado de choque, chupando o polegar, os olhos vidrados, cheio de marcas no corpo, resultado da surra que levou da mulher. O homem vestido de cachorro representa mais um dos tristes e tétricos personagens que passaram pelo Overlook no passado, e se chama Roger, amante de Horace Derwent, o playboy bilionário dono do hotel com conexões com o crime organizado e a indústria do jogo de Vegas. Aparentemente, os dois tiveram um breve romance homossexual, mas logo Derwent lhe deu um chute no traseiro. Apaixonado, Roger passou o resto da vida tentando reatar com o magnata ex-namorado. A fantasia que veste, de cachorro, é uma alusão a um baile de máscaras que ocorreu por ali, nos idos de 1945, quando esteve no Overlook para procurar se reconciliar com Derwent. Tanto a Senhorita Massey quanto Roger são figuras claramente trágicas e tristes, símbolos do amor não retribuído, não correspondido. São estas as duas manifestações que mais frequentemente atormentam a criança durante sua estadia no hotel. Há ainda os outros espíritos, centenas deles, gente que em vida celebrou o baile de máscaras de 1945 e cujos espíritos vagam pelos corredores encorajando visitantes vulneráveis a cometerem violência contra familiares ou contra si. De muitas maneiras, as pessoas elegantes, refinadas, cruéis e maquiavélicas do baile de máscaras de 1945 parecem ter marchado diretamente de um pesadelo de David Cronenberg, no sentido de que a violência psicológica que impõem aos visitantes chega a se mostrar tão esmagadora que acaba por levá-los primeiro à mais absoluta loucura e então à morte.

Ainda em comum, Pet Sematary e The Shining dependem de flashbacks que nos permitem compreender melhor a natureza do mal. Em Pet Sematary, é Jud quem faz essa ponte entre o presente, quando a família do vizinho Louis se torna alvo do assédio do Wendigo, e o passado, quando Jud, ainda menino, descobriu sobre o lugar pelas mesmas razões que contou o segredo para Louis, depois que o gato do médico morreu: no passado, foi a morte do cachorro que levou um andarilho a lhe explicar que sabia de um lugar que amenizaria sua dor. Em The Shining, por meio de recortes de jornais, Jack Torrance vai montando as peças do quebra-cabeças do passado do Overlook, porém é no extravagante baile de máscaras de 1945 que toda a aura de glamour do mundo dos ricos e privilegiados ganha vida, em descrições vívidas de muitas cores e belas formas. Evidentemente, a riqueza de detalhes é particularmente forte nos romances originais. Os filmes perdem um pouco das ideias de King, de modo que somente a leitura integral dos livros poderá oferecer uma experiência completa.

Recentemente, foi anunciado pela Paramount que a refilmagem de Pet Sematary encontra-se em concepção. A produção ainda está em fase de elaboração de roteiro, e não há menção a nomes quanto a direção ou a elenco. Acredito que o talentoso James Wan reúna talento e paixão necessários para a cadeira de diretor. Talvez o aspecto mais delicado recaia sobre a escalação de elenco. Dale Midkiff e Denise Crosby fizeram um trabalho tão magnífico nos papéis de Louis e Rachel que mesmo tantos anos após o primeiro filme parece complicado repensar em novos artistas para os personagens. A questão vai além do talento necessário para os papéis, vez que tão importante quanto capacidade individual é a química entre o par, que foi o que tornou o filme de Mary Lambert tão ímpar. O excelente ator Colin Firth parece reunir as qualidades mais importantes para o trabalho, porém, recentemente, ao assistir ao ótimo 5 Dias de Guerra, do diretor Renny Harlin, fiquei impressionado com o artista Rupert Friend, cujo carisma me fez enxergá-lo como um jovem Burt Reynolds. Acho que a difícil escolha deveria se dar entre Colin Firth e Rupert Friend, dois homens sob medida para Louis Creed. Jennifer Connelly faria uma ótima Rachel, até porque traz tristeza no olhar, difícil de se reproduzir – é uma tristeza só sua, evidente em todos os papéis que faz. Rose Byrne também ofereceria algo de refrescante à personagem, pois sempre agrega valor a todos as obras em que atua. Byrne também conhece o gênero horror e já colaborou com Wan, tendo ambos nos brindado com o excepcional Insidious – Sobrenatural. Mesmo em um estágio tão inicial, nós fãs de filmes de horror temos muito o que celebrar!Gostaria de concluir a resenha transcrevendo o inesquecível desfecho do romance Pet Sematary, um momento magistral saído da imaginação de Stephen King que jamais será transposto às telas com o mesmo impacto:

A polícia veio no fim da tarde. Fizeram perguntas, mas não levantaram suspeitas. As cinzas ainda estavam quentes e ainda não tinham sido revolvidas. Louis respondeu às perguntas. Eles pareceram ficar satisfeitos. Conversaram do lado de fora e ele usava um chapéu. Isso era bom. Se tivessem visto seu cabelo branco, poderiam ter feito mais perguntas. O que seria mal. Ele usava luvas de jardinagem, o que também era bom. As mãos estavam ensanguentadas e muito machucadas. Jogou cartas sozinho até bem depois da meia-noite. Estava começando uma nova rodada quando ouviu a porta de trás se abrir. “Você arranjou a coisa, ela é sua, e mais cedo ou mais tarde acaba voltando às suas mãos”, Louis Creed pensou.
Não se virou, continuou olhando as cartas, enquanto os passos lentos, rangentes se aproximaram. Viu a rainha de espadas. Pôs a mão em cima dela.
Os passos cessaram bem nas suas costas.
Silêncio.
A mão fria caiu no ombro de Louis. A voz de Rachel era um chiado que parecia cheio de terra.
Querido — disse a coisa.

quinta-feira, 25 de abril de 2013

O Misterioso Assassinato de uma Família ("Atrocious", Espanha): a mente é um labirinto onde qualquer um pode se perder.


Cristian e July são dois irmãos adolescentes espanhóis que gostam de investigar lendas urbanas e compartilhar o produto das pesquisas em um site que mantêm, sobre o sobrenatural. No feriado da Páscoa, os pais os levam para a casa de veraneio da família em Sitges. Lá, os irmãos pretendem investigar a lenda de Melinda, uma menininha que teria se perdido no bosque da região, nos anos 40, e cujo espírito estaria assombrando a floresta desde então. No curso do fim de semana, uma emergência de trabalho força o pai a retornar a Madri e a deixar a família para trás na casa de veraneio. Depois que o pai parte, acontecimentos inexplicáveis começam a se suceder, deixando os irmãos bastante assustados. O cachorro do irmão menor José desaparece, e pouco depois aparece morto dentro de um poço. Os dois adolescentes passam a acreditar que o ataque foi obra do espírito da garota. Eles começam a registrar com as câmeras os desdobramentos da investigação no bosque. Os acontecimentos esquisitos apenas se agravam, até a última e trágica noite em que Cristian e July são impiedosamente perseguidos por uma figura armada de machado. Cinco dias mais tarde, a Polícia encontra os corpos despedaçados de Cristian, July e José, e os tapes com as imagens do que foi capturado pelas câmeras, que elucidam a natureza da ameaça que vitimou a família.

Este interessante filme espanhol dirigido por Fernando Barreda Luna, exemplar do gênero “found footage”, foi lançado em DVD no Brasil pela PlayArte sem muito alarde, mas é uma excelente pedida para os fãs de filmes de horror. Parte do charme se deve à dupla de artistas principais, que interpreta os adolescentes Cristian e July, e aos mistérios do bosque onde a história foi filmada. Assistir a este filme é tão atmosférico e saboroso quanto escutar a contos de assombrações com os amigos ao redor da fogueira, talvez pelo fato de o filme se descortinar aos olhos (e câmeras) de três crianças. O diretor foge à previsibilidade, concluindo o filme com uma surpresa realmente inesperada: muito embora o enredo sugira alguma presença sobrenatural causadora das perturbações que afligem a família durante o fatídico fim de semana, o segredo acaba por se revelar muito mais aterrorizante do que a presença de espíritos.

A memorável sequência final esclarece o mistério. Depois que Cristian e July são perseguidos à noite pelo labirinto do bosque e conseguem alcançar a casa principal, acabam por se separar: Cristian procura se refugiar no quarto de cima e July é morta no andar de baixo. O garoto permanece trancado por um bom tempo, até que começa a ouvir uma voz vindo da sala de estar. Relutante e apavorado, em dado momento da madrugada, resolve descer as escadas para investigar a origem do rumor. No aparelho de televisão, compreende que a voz que escutava tratava-se da narrativa de um psiquiatra sobre um caso em particular, sobre uma paciente que sofrera um surto esquizofrênico quando do nascimento da terceira filha e matara o bebê. Segundo a explicação, a paciente insistia que quem matara a filha fora uma estranha a quem batizara Elvira. Elvira, na verdade, era a própria paciente, que parecia sofrer de distúrbio dissociativo (múltiplas personalidades). Ao examinar melhor as imagens, o rapaz fica chocado: a paciente em questão é a própria mãe, que no passado sofrera de problemas mentais e com o tempo viera a melhorar a ponto de levar uma vida praticamente comum. De alguma forma, o pai mantivera este trágico capítulo do passado muito bem camuflado e esquecido. O filme conclui com a cena da mãe surgindo desapercebida na sala e despedaçando o filho a golpes de machado. Assistindo ao filme uma segunda vez, as pistas que o diretor colocou aqui e acolá sobre a culpabilidade da mãe parecem mais claras: há uma cena onde a vemos dormindo com a luz do abajur acesa, o que confere com a informação posterior de que a personalidade de Elvira tendia a tomar conta da mente da mulher à noite. Por isso, desenvolvera o hábito de dormir com as luzes acesas - para evitar o "retorno" de Elvira. De uma forma geral, todas as cenas em que aparece com os filhos, antes da revelação, sinalizam a sua vulnerabilidade psíquica. Que o pai tenha deixado os filhos com a mãe, sozinhos, conhecedor do histórico prévio de doenças mentais da esposa, representa o único detalhe incompreensível deste impressionante filme. Talvez caiba ao pai o famoso ditado Quem com fogo brinca...
Todos os direitos autorais reservados a Celluloid Dreams. O uso do trailer é para efeito meramente ilustrativo desta resenha.

sábado, 20 de abril de 2013

A Outra Terra (Another Earth, 2010) - "O que poderia ter sido".


Na noite da descoberta da existência de um planeta idêntico à Terra, uma bonita, extrovertida e inteligente jovem que tem o futuro inteiro pela frente (Brit Marling) causa um terrível acidente automobilístico, deixando um homem, famoso professor de música (William Mapother), gravemente ferido, e a esposa e filhinho mortos. Às vésperas de completar dezoito anos, a identidade da garota é salvaguardada, porém os planos para o futuro cheio de realizações restam sobrestados, quando precisa cumprir pena de quatro anos em uma instituição correcional. Ao longo daqueles quatro anos, o mundo vem a descobrir mais sobre este misterioso planeta em órbita. Fotografias feitas pelas avançadas sondas espaciais da NASA levam a crer que a Terra 2 é uma cópia exata do nosso planeta. Ondas de rádio oriundas da nova Terra também são captadas por nossa tecnologia. Cientistas concluem que a Terra 2 é habitada por versões de nós mesmos, pessoas que vivem as mesmas existências que vivemos aqui, e que, assim como os seres da Terra 1, estão abismadas com a descoberta de um mundo semelhante. Por todos estes anos, a jovem do acidente jamais se esqueceu do professor de música. Devastada pela culpa, depois do cumprimento da pena, procura retomar a própria vida, mas descobre que em quatro anos muita coisa pode mudar. Os amigos seguiram em frente com os projetos, e ela ficou definitivamente para trás, com o tempo perdido e, pior, o horroroso remorso que a impede de encontrar alguma paz. Através de pesquisas na internet, ela colhe dados sobre o professor de música e, um dia, bate à porta da casa do homem, com o objetivo de se identificar como a causadora do acidente e pedir perdão. Face a face com o professor, após a tragédia um irreconhecível homem amargurado e de aparência lamentável, ela não consegue levar adiante o plano, e acaba por se identificar como empregada de uma agência de diaristas. Inicialmente, começa a frequentar a casa do professor para limpar a casa, lavar as roupas, cuidar de tarefas menores da administração do lar. Com o tempo, o gelo entre o homem caladão e amargurado e a garota deixa de existir, e os dois desenvolvem uma bonita relação. A moça jamais pode viver inteiramente o sentimento especial que nutre pelo cavalheiro, pois sabe que esconde o terrível segredo que pode custar a amizade. Quando a garota ganha um concurso de redação e é selecionada para, ao lado de outras poucas pessoas de sorte, fazer uma viagem em um ônibus espacial para a Terra 2, vislumbra uma chance de redenção: os cientistas acreditam que na noite em que Terra 1 descobriu Terra 2, houve a “quebra de sincronia” entre as duas, o que significa que é muito possível que muito embora na Terra 1 a garota tenha se distraído na direção na noite da descoberta e causado o acidente de carro que matou a mulher e o filhinho do professor, na Terra 2 é possível que o tal acidente jamais tenha acontecido, e a mulher e filhinho sigam vivos e felizes.

Este filme melancólico e ressoante de intrigante premissa recebeu elogios rasgados da crítica quando de seu lançamento, e revelou o talento da dupla de atores principais e do diretor estreante. Se por um lado é um filme que lança instigantes e sensacionais questionamentos científicos sobre tão extraordinária possibilidade – a existência de uma outra versão da Terra com pessoas exatamente iguais à gente – por outro o diretor explora um espaço ainda maior que o universo: o espaço interior, o valor de nossas almas, as surpresas que encontramos em nossas vidas individuais, questões ainda mais enigmáticas do que a origem do universo. Neste sentido, o intimismo do filme, a abordagem sobre a tragédia e como afeta as vidas das pessoas envolvidas nos faz pensar no excelente 21 Gramas; simultaneamente, o plano de fundo que circunda o drama, envolvendo a descoberta de uma nova Terra onde seria possível resgatarmos erros que julgávamos imperdoáveis, remete-nos a Solaris. A Outra Terra, portanto, reúne o melhor de duas muito distintas tramas, 21 Gramas e Solaris. A fotografia do filme é um encantamento. Enxergar a Terra 2 lá no alto, distante, entre o céu azul, é como observar um belíssimo quadro, causa uma sensação hipnotizante. O diretor jamais nos bombardeira com excesso de efeitos, apenas exibe o suficiente para que saibamos que a Terra 2 está lá. A trilha sonora ajuda a compor a aura de arrependimento e oportunidades perdidas que a estória propõe. Assim como os efeitos, a trilha sonora jamais peca por excessos. O choro dos violinos é sutil, elegante e utilizado de maneira acertada, nos momentos que pedem por sua intromissão. Apesar de uma combinação entre ficção-científica e romance, A Outra Terra traz também cenas de suspense muito impressionantes que perduram em nossa memória mesmo após o fim, cortesia da habilidade do diretor Mike Cahill em instigar, evocar sensações. Um dos melhores momentos se dá na cena do primeiro contato entre Terra 1 e Terra 2, acompanhado ao vivo em rede nacional, quando a Diretora do programa SETI faz uma série de perguntas lançadas ao espaço, esperando por respostas, até que escuta a uma outra versão de si mesma, na Terra 2, fornecendo as respostas esperadas, em um diálogo que pode ser tomado como o primeiro contato. Ao assistir à impressionante cena, a protagonista do filme é tomada por encanto e deslumbramento, e sai correndo de casa, quando encontra, nas calçadas do bairro, muitas outras pessoas no quarteirão comentando assombradas sobre o ocorrido e, ao alto, a Terra 2, tão real e imponente quanto a lua cheia. Ao choro dos violinos, Cahill nos brinda com um dos instantes mais impressionantes de 2010. Sobre a performance dos artistas principais, poucas vezes anteriormente vi uma conexão tão magnífica quanto a que une Brit Marling e William Mapother. Muito raramente, um filme consegue introduzir dois personagens cuja estória de amor nos convida tão gentilmente a investir as nossas expectativas e experiências pessoais na narrativa que se desenrola na tela, mas este é o caso de A Outra Terra. Sempre tive o forte sentimento de que houve o tempo em que Jennifer Connelly e Burt Reynolds, juntos em um mesmo filme, teriam sido magnéticos, e teriam produzido algo igualmente honesto e poderoso. Depois que assisti a A Outra Terra, conclui que se os dois tivessem trabalhado juntos, o mesmo encantamento entre Brit Marling e William Mapother transpareceria do encontro, teriam sido dois artistas que absolutamente pertenceriam à mesma página, ou melhor, ao mesmo frame. Lamentavelmente, o encontro jamais aconteceu. No entanto, ao menos nós temos A Outra Terra para imaginarmos como poderia ter sido.

Hellraiser: Inferno - A descida de um tira corrupto ao seu inferno pessoal.


Ao encontrar o dedo decepado de uma criança em uma macabra cena de homicídio, tira corrupto (Craig Sheffer) fica obcecado em descobrir a identidade e o paradeiro do menininho. À medida que o policial avança nas investigações e se aproxima da lenda de uma criatura chamada Engenheiro, que teria sido responsável pela abdução da criança cuja identidade se desconhece, os seus informantes começam a aparecer mortos, e mais dedos do menino são encontrados em cada uma destas novas cenas. Todo passo somente o leva a mais incertezas e novas revelações, a mais significante delas, o fato de que a existência do Engenheiro está ligada à dos cenobitas, os seres masoquistas invocados através da manipulação da configuração da lamentação, criaturas que prometem novos e sensacionais prazeres, através da aplicação das mais atrozes humilhações e impensáveis sofrimentos. Ao procurar a ajuda do psicólogo da força policial (James Remar), o protagonista descobre que a existência do Engenheiro no submundo remonta há décadas, tendo levado outros policiais que haviam procurado rastrear a fonte deste mito à loucura ou morte. Cace o Engenheiro, e o Engenheiro virá caçar você, um dos informantes avisa ao tira, e não podia estar mais certo. Logo, não apenas o protagonista, como também a família passam a ser assediados por acontecimentos sobrenaturais cada vez mais inexplicáveis e ameaçadores.

Excelente filme de horror psicológico, dirigido por Scott Derrickson, que já aqui chamava a atenção pela habilidade em conduzir suspense, e posteriormente veio a dirigir produções maiores e mais ambiciosas, tais como o recente A Entidade, com Ethan Hawke. Muito embora tido como uma das continuações do filme original de Clive Barker Hellraiser Renascido do Inferno, no que diz respeito à fonte original, este suspense limita-se a reutilizar as criaturas imaginadas por Barker, ambientando-as em toda uma nova trama escrita por um novo autor (Paul Harris Boardman). Em termos de atmosfera e narrativa, muito lembra Alucinações do Passado (Jacob's Ladder), o filme de Adrian Lyne de 1989 com Tim Robbins. Em comum, seus protagonistas são pessoas atormentadas no dia a dia por visões e acontecimentos misteriosos, e quanto mais procuram por razões para as assombrações de que são vítimas, mais profundamente se metem em um beco sem saída. Boas atuações de todo o elenco, em particular do veterano James Remar, que rouba o filme em todas as (poucas) cenas em que surge. É dele, aliás, a melhor e mais arrepiante parte do filme, quando o protagonista procura pelo seu auxílio no consultório, e o personagem de Remar lhe conta que está familiarizado com a lenda do Engenheiro, e que outros policiais da força inclusive já tinham sido levados a suicídio por causa desta misteriosa figura do submundo. Mais tarde em sua filmografia, Derrickson voltou a criar novas cenas igualmente atmosféricas, envolventes apenas pela força do diálogo, como em A Entidade, quando, por telefone, em uma noite de tempestade, o protagonista interpretado por Ethan Hawke enxerga o grande esquema dos homicídios perpetrados por Bagul, ao conversar com um dos tiras do caso original. Os efeitos especiais de Gary Tunnicliffe também são dignos de nota, em uma interessante reinvenção de cenobitas antigos e a introdução de outros novos, tais como as sinistras e sensuais gêmeas.Hellraiser: Inferno é um segmento, um filamento da espinha dorsal bolada por Barker, sacramentada em celuloide nas formas de Hellraiser Renascido do Inferno & Hellraiser 2 Renascido das Trevas. O filme de Derrickson não goza da magia que tornou os dois primeiros obras-primas, mas reúne algum charme e procura caminhar com as próprias pernas. Mesmo atrapalhadamente, Hellraiser: Inferno ensaia seus passos.

quinta-feira, 18 de abril de 2013

Os Filhos do Medo - O filme mais intimista de David Cronenberg.


Mulher neurótica em processo de divórcio submete-se a extravagante tratamento nas mãos de renomado psiquiatra (Oliver Reed, um dos mais brilhantes astros da Grã-Bretanha, imortalizado na Sétima Arte pelas suas contribuições com o cineasta Ken Russell), que encoraja os pacientes a entrarem em contato com rancores e mágoas, para que as extravasem fisicamente. O ex-marido, um homem ponderado que teme pela vida da filha pequena, move desgastante e fracassada batalha pela guarda da criança. No decorrer do tratamento, os rancores da ex-mulher canalizam o desenvolvimento de um útero externo, a partir do qual passa a gerar criaturas de lábios leporinos sem umbigo, produto de seus sentimentos ruins enrustidos. Pessoas do círculo social da mulher doente, alvo de seu desafeto, passam a ser mortas pelas criaturas. Desencorajado por uma Justiça excessivamente benevolente a mulheres, temeroso pela vida da filha pequena, e bastante suspeito da terapia comandada pelo psiquiatra, o ex-marido luta para compreender a natureza de todas as mortes que vêm ocorrendo ao seu redor. As investigações o levam à clínica do psiquiatra, onde uma terrível revelação o aguarda... Os filhos do medo!

Filme tétrico, pesado e difícil, talvez uma das obras mais pessoais do cineasta David Cronenberg, que rodou a produção durante um período muito crítico de sua vida, quando estava em processo de separação de uma companheira que o chantageava emocionalmente através do elo fraco, a filha do casal. Muitas das características da megera do filme – o ódio contra os próprios pais, o ciúme doentio, a suspeita de que foi preterida por uma mulher mais jovem e bonita, a técnica ardilosa de usar a criança para castigar o ex-cônjuge – tiveram como inspiração a personalidade da ex-mulher do cineasta. Talvez não por acaso, a partir de Os Filhos do Medo, Cronenberg tenha revisitado as mais sombrias facetas da personalidade feminina, como em Gêmeos Mórbida Semelhança, através da personagem da atriz decadente altamente manipuladora e psicologicamente forte que usa a paixão desavisada de um homem emocionalmente vulnerável para castigá-lo e atirá-lo à autodestruição.

Diferente dos outros filmes de terror do período, David Cronenberg dá personalidade a Os Filhos do Medo pela maneira como investe o horror de características psicológicas assustadoramente próximas e honestas. O elemento fantástico (monstros gerados em um útero externo, produtos de rancores e de ressentimentos) encontra fundamento em condições essencialmente humanas e verdadeiras (traumas, a influência da somatização de emoções negativas no nosso organismo, o peso do passado nas nossas vidas presentes). Em alguns momentos, aspectos desta obscura incursão pelo horror orgânico me fizeram pensar no tristíssimo Dear Zachary A letter to a son about his father. A combinação de fantasia com os fatos da vida real que não apreciamos visitar ou aceitar foi o que tornou os trabalhos de Cronenberg obras de horror que pertencem a uma classe somente sua, bastante imitadas, jamais igualadas.

Trauma - A decepcionante estreia de Dario Argento nos Estados Unidos ainda consegue ser um suspense interessante.


Única testemunha do assassinato de seus pais, garota anoréxica (Asia Argento) é perseguida por um serial killer conhecido como Headhunter, maníaco que coleciona as cabeças de suas vítimas e somente ataca em noites de chuva. Ao mesmo tempo, a menina conta com a ajuda de um jovem jornalista (Christopher Rydell) que vem a se apaixonar pela garota e unir-se a ela para solucionar o mistério. Investigações os levam a crer que a identidade do Headhunter está diretamente atrelada a um segredo que envolve o passado da mãe da menina, médium que costumava realizar invocação de espíritos na própria casa. A sucessão de mortes acaba por guiá-los a uma horrorosa descoberta, que por fim nos permite compreender os motivos e a identidade do serial killer.

Estreia do habilidoso cineasta italiano Dario Argento nos Estados Unidos, à primeira vista Trauma muito se assemelha a filmes medianos do gênero, no entanto, a habilidade do diretor, a paixão com que arquiteta as cenas, conduz as câmeras através da ação e, principalmente, sua criatividade arrojada alavancam a experiência para acima da média. Se por um lado, Trauma é um filme deslumbrante de se assistir, e o roteiro nos oferece algumas ideias surpreendentes e refrescantes (a tragédia pessoal macabra que explica as razões da mãe homicida), por outro, diante do resultado final, ocorre-nos que a estreia de Argento no mercado americano ficou aquém das suas grandes obras europeias, tais como Phenomena, com a extraordinária Jennifer Connelly, ou Suspiria, estas sim verdadeiras óperas criativas, provas contumazes da genialidade do cineasta italiano. O sentimento de frustração talvez advenha do fato de a espinha dorsal da trama fundamentar-se excessivamente na cansativa rotina de caçada a serial killers; o que enaltece a produção e a torna superior a filmes similares deve-se justamente à habilidade de Argento, `as ideias peculiares que adiciona à já tão explorada receita, nos mesmos moldes de Brian De Palma. Aqui, o diretor filma uma aventura previsível, mas adiciona as suas próprias temáticas bizarras tais como comunicação com os mortos, anorexia, amores extraconjugais, e esmagadores segredos do passado que acabam por motivar a matança lançada pelo Headhunter. O resultado é um suspense acima da média, movido por sacadas interessantes de um talentoso diretor apaixonado pelo que faz, atrasado por um roteiro pífio ancorado excessivamente por coincidências ou circunstâncias.

domingo, 7 de abril de 2013

Dear Zachary: a letter to a son about his father (2008) - As pessoas que partem, e as que ficam para contar a estória.


Olá, pessoal. Antes de apresentar a resenha de hoje, deixem-me reassegurar que este blog, apesar do nome, não se resume exclusivamente a filmes de horror. Aqui, já tratei de todas as espécies de filmes, então o termo “Melhores Filmes de Horror” não deve ser interpretado ao pé da letra. Talvez eu o tenha intitulado desta forma pois, de fato, o horror é meu gênero de preferência, no entanto, o amor pelo cinema não se limita a categorizações. Eu creio que o que todos os filmes sobre os quais falei tiveram em comum foi a capacidade de evocar reações e sentimentos, ousar, arriscar, deixar-me pensativo, acordado à noite sem conseguir adormecer tão fácil, absorvendo o que acabei de testemunhar. E, amigos, foi neste quesito - acordado à noite sem conseguir pegar no sono, absorvendo o significado do que acabei de assistir - que Dear Zachary: A Letter to a Son about his Father causou-me o impacto que poucos filmes foram capazes de infligir. Por poucas vezes, filmes ou livros foram capazes de me deixar metido em introspecção, assombrado por tudo o que vi ou li. Este documentário, contudo, me fez pensar não apenas nos fatos assombrosos apresentados, como também em minha própria vida. Já passando a vista sobre a premissa da fita, este documentário promete fortes emoções: depois que um jovem médico perde a vida tragicamente, o seu melhor amigo empreende uma verdadeira cruzada pelos Estados Unidos, Canadá e Inglaterra, para reunir reminiscências dos amigos e familiares do doutor e registrá-las em filme. O seu objetivo é produzir um documentário sobre o amigo, para que seu filho recém-nascido, que infelizmente jamais poderá conhecer o pai, o faça indiretamente, através deste trabalho cinematográfico.

Parece uma estória já muito bem contada em outros grandes filmes românticos do passado. Neste momento, me vem à lembrança Minha Vida, o filme de 1993 estrelado por Michael Keaton. Há dois diferenciais para Dear Zachary: primeiro, não há atores interpretando diálogos escritos por roteiristas, somos apresentados a um drama da vida real; segundo, há muito mais sobre este caso, sob a superfície das aparências, que os amigos possam imaginar ou antever. O que eu ainda não contei sobre Dear Zachary representa o diferencial devastador que faz deste recente caso um dos mais tristes, trágicos e contundentes de que eu tenha memória. Na execução, o diretor Kurt Kuenne é competentíssimo – ele dirige, edita, conduz as entrevistas, narra e compõe a trilha de Dear Zachary, e o seu domínio e talento sobre todos estes diferentes ofícios de um documentário imprimem ao trabalho a carga emocional e a quentura que faltam aos filmes de grande estúdio. Nenhum outro cineasta ou roteirista seria capaz de bolar uma trama tão imprevisível e assombrosa, pela simples razão de que nada é mais grandioso (ou inesperado) do que a vida real. O trunfo de Kuenne fundamenta-se no fato de que não se comporta como um narrador distante ou impessoal. Como amigo de infância do médico assassinado, os sentimentos pessoais estão fortemente atrelados à forma como revisita o caso, e é pela força de seu enorme coração que nos tornamos igualmente íntimos dos fatos e dos personagens ao longo da jornada.

Gostaria de pedir a quem prefere assistir a filmes sem de coisa alguma saber acerca da trama que deixe de ler a minha resenha a partir deste parágrafo. Para os colegas de quem eu me despeço, reforço a minha recomendação para que procurem por este filme. O DVD pode ser comprado na Amazon. Parte do dinheiro da compra destina-se à Bolsa de Estudos para o curso de Medicina criada a partir dos eventos abordados no disco, voltada a pessoas carentes. Para os colegas que não têm recursos para comprar o disco, sítios de hospedagem de vídeos o oferecem integralmente, acompanhado por legendas em português. O rápido acesso ao filme permite-me assegurar que os amigos guardam a obrigação moral de assistir a Dear Zachary, vocês se beneficiarão da experiência, e carregarão valiosas lições para suas vidas pessoais.

Kurt Kuenne e Andrew Bagby cresceram como melhores amigos em San José, California. Desde garoto, Kuenne amava filmes e queria se tornar diretor de cinema. Bagby aparecia como ator em todas as suas produções amadoras!À medida que foram crescendo, e os filmes se tornaram mais polidos e bem acabados, Bagby chegou a investir dinheiro da poupança reservada para o curso de Medicina nas produções do amigo Kurt. Os pais de Andrew, David & Kate, cheios de vida e jovens de espírito, são vistos pelos amigos do filho como queridas figuras paternas. David & Kate chegam a participar dos filmes caseiros de Kurt, ao lado de Andrew, em papéis menores e hilários. Não há dúvidas de que Andrew é um ser humano muito especial de invejável sensibilidade, abençoado por pais de caráter e amigos verdadeiros. Quando chega o tempo para a faculdade de Medicina, depois do traumático término de uma relação amorosa, Bagby vai fazer residência em Newfoundland, Canadá, onde conhece a Doutora Shirley Turner, treze anos mais velha que Andrew, duas vezes divorciada e mãe de três filhos de pais diferentes. David, Kate e os amigos não têm uma boa primeira impressão da nova namorada do jovem médico. Algo em seu comportamento possessivo – e o rancor de Shirley pela primeira namorada do rapaz – chama a atenção das pessoas mais próximas, que lhe transmitem as suas preocupações. O médico não dá muita atenção aos conselhos. Turner muda-se para Council Bluffs, Iowa, enquanto Bagby começa a trabalhar com Medicina familiar na pacata cidadezinha de Latrobe, na Pennsylvania. O seu sonho é se tornar o Doutor da Cidade, conhecer a todos, e viver uma existência pacata e feliz. Por volta de novembro de 2001, a relação entre Andrew e Shirley começa a efetivamente desmoronar. Depois de terminar o namoro com Shirley no restaurante do aeroporto, e colocá-la no voo de volta a Iowa, Bagby é despertado na manhã seguinte pelos chamados da campainha – depois de chegar a Iowa, Shirley alugou um carro e dirigiu o caminho inteiro de volta para Latrobe, obstinada em se reconciliar com o rapaz. Andrew conversa com o amigo Clark sobre a situação, e lhe diz que Turner quer encontrá-lo no parque para discutir a relação. Clark pede a Andrew que não compareça ao encontro, ou ao menos não aceite encontrá-la em um lugar ermo. Andrew não dá muita importância aos conselhos do colega, e vai ao encontro da médica. Clark e Andrew haviam combinado de se encontrar mais tarde na casa de Clark. Andrew ficou de levar cervejas e contar sobre o encontro com Shirley. As horas se passam, e o médico não aparece conforme combinado. Na manhã seguinte, Bagby também não comparece ao Hospital, e Clark imediatamente tem a forte impressão de que algo muito ruim aconteceu no parque. Não demora à polícia aparecer no hospital para reportar que o corpo do médico foi encontrado com cinco tiros em uma estrada abandonada do parque. Clark declara aos oficiais “E vocês não precisam procurar muito por suspeitos. A ex-namorada esteve na cidade, ontem à noite, e encontrou-se com o Andrew”. Quando a investigação policial se volta sobre Shirley, a médica foge para o Canadá, para Newfoundland. Em meio a toda a confusão, Kuenne revisita os filmes que fez com os companheiros, na adolescência, e lhe ocorre a ideia de rodar um documentário sobre a vida do médico assassinado.

Em Newfoundland, Shirley revela que está grávida do bebê de Andrew. O burocrático processo de extradição tem seu trâmite iniciado, e na mesma época ela dá à luz um bebê a quem chama de Zachary. Os pais de Andrew usam todas as economias e se mudam para o Canadá para se aproximar do nenê – a última parte viva do filho assassinado – e lutar pela custódia, enquanto esperam que Shirley seja extraditada para os Estados Unidos, para julgamento e cumprimento da pena. Os advogados de Shirley, fazendo ardiloso uso do sistema judiciário canadense falho e retrógrado, conseguem seguidamente entravar o avanço das discussões sobre a extradição. Quando no curso do processo a corte julga que há evidências muito fortes que ligam Shirley ao assassinato de Andrew, ela é encarcerada, e ao casal é garantida a custódia do bebê. As motivações de Kuenne, como cineasta, sofrem uma transformação. Inicialmente, pensara rodar o filme como homenagem ao amigo morto, porém compreende que o material representa a única maneira de a criança conhecer quem foi o pai, e todas as vidas que tocou com sua personalidade generosa, extrovertida e bondosa. Kuenne viaja pelos Estados Unidos reencontrando amigos da época do colégio, filmando entrevistas. A jornada o leva à Inglaterra, onde roda os depoimentos de familiares do rapaz (Kate é britânica, então Andrew cresceu entre tios e primos na Inglaterra, por parte de mãe, e nos Estados Unidos por parte de pai). Kuenne chega a visitar Newfoundland, Canadá, em julho de 2003, e conhece o bebê, que está sob os cuidados dos avós.

Encarcerada, Shirley redige uma carta para o Juiz da corte, que a orienta a fazer o apelo para deixar o cárcere, o que vai de encontro a todas as recomendações éticas. Turner é posteriormente posta em liberdade pela canetada de uma juíza de Newfoundland, que - contrária a todas as recomendações face a personalidade agressiva da ré, que inclusive tem um histórico de ameaças a ex-namorados – acredita que a mesma não impõe risco algum à sociedade, vez que o crime, embora violentíssimo, foi “específico em natureza”. Turner retoma a vida e recupera a custódia de Zachary. Devastados, os avós precisam aceitar os termos da assassina para continuarem a ver o neto. Em nome do amor incondicional pelo bebezinho, os velhos se sujeitam a humilhações e até mesmo a conviver com a assassina na esperança de que quando da extradição e julgamento final de Shirley nos Estados Unidos ganharão a guarda definitiva do bebê. Lamentavelmente, as esperanças são rechaçadas, quando, em agosto de 2003, Turner comete suicídio, saltando de um píer abraçada ao bebê. Os familiares e amigos dos Bagby saem chocados de toda a situação, destroçados pela tragédia. A lerdeza da Justiça canadense e a falta de discernimento de seus julgadores coadjuvaram Shirley em sua missão de arruinar a vida de David & Kate por duas imperdoáveis vezes; a primeira, assassinando Andrew, a segunda, cometendo suicídio e levando o bebê inocente junto.

Revoltados com o sistema legal canadense, David & Kate encontram a inspiração para continuar lutando, arregimentando uma campanha voltada à conscientização dos cidadãos sobre a necessidade de reforma das leis sobre fiança do Canadá, a que os avós culpam, em última análise, pela morte do bebezinho. Sensibilizado pelo caso, o Ministro da Justiça aprofunda-se nos eventos do caso Bagby, e posteriormente produz um relatório onde declina que a morte de Zachary poderia ter sido plenamente evitada, não fossem as leis excessivamente lenientes a criminosos e o senso de julgamento inadequado dos principais magistrados envolvidos no caso. O psiquiatra de Shirley Turner é levado a julgamento pelo conselho de ética e condenado por conduta imprópria (ele recomendara que a paciente fosse posta em liberdade, tendo inclusive depositado o valor da fiança), enquanto que a diretora da agência do bem-estar infantil de Newfoundland renuncia ao cargo. David Bagby escreve um livro sobre a experiência, e logo se torna best-seller.

Profundamente transtornado pelos acontecimentos, Kuenne considera abandonar a ideia de terminar o documentário. Pensara em produzir o documentário para que o bebê conhecesse o pai, agora não lhe parece existir motivo para prosseguir, não com Zachary morto. Até que as suas motivações mudam por uma última vez, quando Kurt entende que agora que não há mais criança, a razão para não desistir de seu trabalho reside justamente nas duas pessoas mais corajosas e incríveis que conheceu, David & Kate Bagby. O amor ao netinho - posto à prova de fogo da luta pela guarda da criança e a escolha de seguirem enfrentando o sistema judiciário para a mudança das leis excessivamente benevolentes a criminosos – o inspira de tal maneira que o cineasta encontra fôlego extra para retomar o material, terminá-lo e dedicá-lo aos pais de Andrew. O filme conclui com os amigos e familiares dos Bagby, reunidos, agradecendo pelo rapaz extraordinário que haviam colocado no mundo, falando sobre o quanto haviam aprendido e mesmo levado parte de todo aquele marcante caso para as suas vidas pessoais.

Após a experiência do filme, procurei por pessoas que o haviam visto. Queria saber o que tinham a dizer, e se Dear Zachary os havia tocado da mesma maneira devastadora que me fizera repensar a vida. Muito apreciei a opinião de um rapaz que disse algo nas linhas de que Dear Zachary trouxe para fora muitas emoções, algumas que até mesmo desconhecia. O filme o pôs em contato com sua melhor parte, com sensibilidades que até então julgou não possuir. Achei uma forma extraordinária de colocar o filme em palavras, porque foi exatamente desta maneira que o documentário me moveu. Há mais reviravoltas e suspense neste documentário que um diretor como Brian De Palma poderia imaginar. A força ímpar dos extraordinários eventos aqui descritos, potencializada por eficaz edição e memorável trilha sonora, torna Dear Zachary um dos filmes mais emocionalmente exaustivos já vistos. Apesar de documentário, Dear Zachary funciona a nível de montanha russa sentimental. Todas as emoções concebíveis que existam bem guardadas dentro de vocês encontrarão vazão, uma vez que confiram a saga dos Bagby: felicidade ao acompanhar trechos dos filmes caseiros de Kurt, os amigos se formando e celebrando, no ápice de suas vidas, com tudo pela frente, raiva pela maneira como Shirley usa da boa fé de Andrew para atrai-lo ao parque para matá-lo, tristeza pela dor que veio depois, os sonhos que os pais tinham alimentado para o futuro do filho médico arruinados, descrença no sistema judiciário canadense que parece desencorajador para as pessoas decentes, com toda a leniência exacerbada para com criminosos, esperança renovada, quando do nascimento de Zachary, o doce bebezinho que também significa a última parte viva do Doutor Andrew, a tábua de salvação a que os avós se apegam para sublimar a dor, e finalmente, otimismo pelo ser humano, ao final, onde os Bagby compreendem que em razão de seu caráter e dignidade acabaram por se tornar figuras paternas aos olhos dos amigos do filho assassinado, todos terminando como uma grande família.

Eu lamentei profundamente pelos destinos de Andrew e o filho Zachary, ambos vítimas da própria doçura e inocência, desconhecedores das maldades do mundo. Andrew parecia o tipo de cara que poucos têm a oportunidade de conhecer: generoso, bem humorado, atencioso, humano e caloroso para com os pacientes, e fiel aos amigos. Havia tantas coisas que queria fazer com a vida, mas então, por ignorância, pela desavisada e excessiva confiança, cometeu o erro de se envolver com uma pessoa perigosa, alheio às consequências. Foi o otimismo incondicional pelo ser humano que representou a morte prematura. Não faltaram amigos para tentar abrir os olhos de Andrew. Quando o amigo Clark diz ao médico que se uma ex-namorada aparecesse sem sobreaviso na porta de sua casa de madrugada chamaria imediatamente a Polícia e jamais a encontraria a sós, aos olhos de Bagby, soa exagerado, mas eis a diferença entre Andrew e Clark: este é atento à realidade e protegido contra as malícias de terceiros, aquele confiava cegamente em todas as pessoas e pagou um preço caríssimo. Já Zachary sequer teve a oportunidade de compreender as contradições da vida. Em sua mente inocente, talvez nem tenha contemplado o fim da própria vida. A mãe deveria representar segurança e amor, porém tudo acabou na noite gelada em que saltou do píer contra os rochedos à beira do Atlântico. Disso, extraímos a lição – é importante esforçar-se para enxergar o mundo sob a ótica otimista, e tomar as pessoas pelo que têm de melhor, no entanto, uma pequena dose de cautela quanto a aqueles que permitimos entrar em nossas vidas parece imprescindível.

O filme não acrescenta muito sobre Shirley. A natureza de seus problemas psiquiátricos jamais é abordada. Apenas resta claro que Andrew Bagby não foi a primeira vítima de suas obsessões. Existia um histórico de queixas por parte de ex-parceiros da médica, que davam conta de seu desequilíbrio e possessividade. Este histórico torna a escolha da juíza de assinar a libertação temporária da ré ainda mais incompreensível e absurda. Tenho lido algumas opiniões de pessoas que criticam o filme pela abordagem quanto à Shirley, sem empatia alguma para com a assassina e sua condição psiquiátrica, a questão de o diretor não vasculhar o passado para buscar respostas para suas inomináveis ações no presente. Respeitando a opinião dos colegas, discordo veementemente deste tipo de posicionamento, por duas razões: primeiro, o próprio nome do filme e a identidade do diretor – amigo íntimo de longa data do médico assassinado – bastam para que compreendamos que o trabalho goza de um cunho pessoal, realizado por um rapaz devastado pela saudade, que tinha muito carinho pela vítima, e que queria deixar ao bebê reminiscências sobre a extraordinária pessoa que o pai fora, é lógico que jamais evocaria empatia pela assassina; segundo, em que pese o horror das adversidades psiquiátricas de Shirley, toda a solidariedade que eu poderia nutrir pela mulher foi por água abaixo a partir do momento em que ela descarregou o revólver contra o ex-namorado em um parque assustadoramente deserto, em uma noite gelada.

Talvez, a maneira mais imparcial de se recontar os eventos do caso Bagby consista em um filme com artistas representando os papéis, e um tempo de duração maior, a ponto de comportar as mais importantes reviravoltas do caso, e, se possível, abordar as origens da assassina. Até porque o documentário é tão perfeitamente executado, parece infinitamente mais apavorante e comovente do que os suspenses produzidos em estúdio. Cinematograficamente, a linguagem guarda certas semelhanças aos grandes filmes. A trilha sonora, um dos pontos fortes, evoca, por exemplo, os melhores momentos do maestro Ennio Morricone. A triste, nostálgica melodia de Dear Zachary sugere profunda semelhança com uma inesquecível composição de Morricone chamada All the Friends da trilha sonora do filme Mission to Mars. Acredito que um novo filme com atores jamais traria a mesma força que o documentário, contudo poderia ter um brilho próprio e mérito, permitiria que mais pessoas conhecessem o caso, e proporia fundamental discussão sobre o desserviço que o sistema judiciário presta aos cidadãos de bem, que se veem de mãos atadas. Um cineasta como Brian De Palma me pareceria a escolha mais acertada para o material. Ao conhecer Dave & Kate, não tive como deixar de pensar em Clint Eastwood, com toda a dignidade e autoridade, no papel de Dave, o cidadão de bem, simples, humilde e valente, em sua luta quixotesca contra uma Justiça obtusa que se presta primordialmente a inflamar a vaidade de juízes prepotentes, orgulhosos e dissociados do meio em que vivem.

Embora parte deste documentário debruce-se sobre os últimos anos da residência de Andrew, o relacionamento conturbado com Shirley e o homicídio, é inevitável que com o decorrer da trama, o foco recaia sobre David & Kate Bagby. A vida deste casal é uma inspiração por si. A forma como se conheceram – ela, uma jovem enfermeira britânica de férias nos Estados Unidos, e ele, um oficial norte-americano da Marinha de licença - a aventura que foram os primeiros anos de casamento, a maneira como tentaram inicialmente sem sucesso conceber um filho, e quase chegaram a desistir, até Kate finalmente engravidar, todos estes elementos mágicos compõem um lindo caso de amor da vida real, atualmente cada vez mais raro, encontrado quase que unicamente em produções de cinema fantasiosas tais como Diário de uma Paixão ou Para Sempre. Como é refrescante assistir a um amor tão incondicional, e, melhor ainda, real!Pequenos detalhes sobre o casal, como por exemplo o fato de aparecerem nos filmes caseiros que Kurt fazia quando garoto, dizem-me tanto sobre que tipo de pessoa são!Parece fácil compreender por que mesmo após a morte de Andrew, o filho único, David & Kate não se sentem sozinhos. Os velhos assumiram autoridade paterna aos olhos do restante da turma de Andrew. Quando os vejo em pequenos papéis nos filmes caseiros de Kurt, o detalhe me revela o quanto o casal participava não apenas da vida do filho, como também da dos outros meninos. Algo na maneira com que os dois se conduziram ao longo dos anos, talvez a dignidade, a classe, fez com que eu me sentisse muito pequeno, ao final da fita. Quando vejo o bom humor e a coragem de ambos, e compreendo o quanto são tão melhores do que eu jamais poderia imaginar, sinto que é por causa de gente como Dave & Kate que eu deveria me esmerar para me aperfeiçoar enquanto ser humano. São tantas as pessoas que os enaltecem, nos últimos cinco minutos de filme, os mais comoventes, que eu me perguntei como seria possível que alguém tivesse tantos amigos verdadeiros assim, mas então me lembrei de algo que os dois reúnem, e eu ainda não alcancei: a dignidade a toda prova, a honra, a coragem com que lutam pelo que acreditam e a maneira como por toda a vida se portaram de forma gentil e digna para com os semelhantes, o cuidado com que protegeram os aliados. Foi o melhor proveito que tirei do filme: a vontade de melhorar, de ao menos me aproximar de um ideal alcançado pelos Bagby, por mais que o mundo desencoraje altruísmo, por mais que varra para sob o tapete os valores verdadeiramente importantes da vida. Mais importante que a estória que deixamos para trás, são as valorosas pessoas que ficam para contá-la.

Para finalizar, eu gostaria de recomendar um filme similar a Dear Zachary, igualmente impactante e memorável, chamado O Segredo do Lago Mungo. A grande diferença entre os dois é que Dear Zachary é um documentário autêntico, real, enquanto O Segredo do Lago Mungo, apesar do formato documental, cujo estilo muito lembra os episódios especiais do extinto Linha Direta, é de mentirinha, ou melhor, pode ser rotulado como o que as pessoas costumaram chamar de mockumentary (criado no formato documentário, todavia, na verdade, uma obra fictícia, com artistas interpretando papéis). Em comum, o impacto psicológico das duas obras é devastador. O Segredo do Lago Mungo versa sobre o drama de uma família australiana lutando para sobreviver ao luto, depois da morte da filha, afogada na represa da cidade. Ocorre que o irmão começa a deixar câmeras ligadas pela casa, capturando estranhas manifestações de poltergeist que parecem sinalizar que o espírito da menina não encontrou paz. A forma como O Segredo do Lago Mungo é contado (entrevistas & reconstituições) torna a experiência tão assustadoramente real que não se pode assistir ao filme sem que os cabelos da nuca deixem de eriçar. Ainda em comum, por sob a superfície dos eventos tétricos e pavorosos, a quentura humana eventualmente emerge mesmo em meio à dor, ensinando-nos muito sobre a frágil condição humana e a tenuidade da vida.
Todos os direitos autorais pertencentes a Oscilloscope Laboratories. O uso do trailer é para efeito meramente ilustrativo da resenha.