quinta-feira, 13 de julho de 2017

"Corra!" ("Get Out", 2017, EUA, Jordan Peele) & "The Void" (2016, EUA, Steven Kostanski & Jeremy Gillespie) & "Em Busca de Vingança" ("Aftermath", 2017, EUA, Elliot Lester): "Somos só eu e você agora, amigo".

Um jovem negro caminha solitariamente pelas arborizadas calçadas de um bairro de classe média alta, habitado, em sua maioria, por gente branca. É noite, portanto se nota certa apreensão na voz do rapaz, que pelo diálogo ao celular parece conversar com a namorada. Ele encontra dificuldades para se situar, mas leva a situação na esportiva, e brinca um pouco na tentativa de dissipar a natural apreensão de se ver em um local desconhecido. O rapaz se despede da namorada, e segue na tentativa de se orientar através das placas. Um Porsche branco surge, vindo vagarosamente pela rua deserta no sentido contrário ao de sua caminhada, com as luzes baixas. O rapaz nem chega a prestar atenção, empenhado em achar a avenida principal. O motorista realiza uma meia-volta, e pareia com o jovem, o que definitivamente lhe causa uma má impressão. Receoso, determinado a não se passar de vítima, ele muda o sentido da caminhada e incrementa a marcha, murmurando enraivecido que não se sente no humor para lidar com brigões. Quando se prepara para atravessar a pista e seguir outro caminho, o rapaz nota que o motorista abriu a porta, em uma aparente intenção de descer. Atônito, não vê quando uma segunda pessoa, presente à cena, mas até então escondida atrás das árvores do canteiro, deixa seu esconderijo e o põe para dormir com um pano embebido em clorofórmio. Rendido, o jovem é discretamente abduzido, e desaparece de uma hora para a outra, arrastado para o Porsche. Ninguém mais ouve falar do rapaz, nem a família, nem os amigos.

Meses depois. Chris Washington (Daniel Kaluuya) é um jovem que, não obstante tenha sofrido um evento extremamente traumático do passado, cresceu para se tornar um excelente fotógrafo e uma pessoa feliz, saudável e bem-humorada. Quando o vemos pela primeira vez, ele está cuidando dos últimos preparativos para a viagem. Chris faz a barba diante do espelho, e aguarda a chegada da namorada, Rose Armitage (Allison Williams), que não custa a bater à porta, trazendo croissant e guloseimas para o café da manhã. Chris veste um ar circunspecto enquanto deposita roupas e materiais de higiene pessoal na mala aberta. A namorada percebe o nervosismo, e dá um tempo nas brincadeiras com Sid, cãozinho de Chris, para tranquilizá-lo. Chris é negro, e Rose, branca. Ele teme a reação dos pais da moça quando forem apresentados a sua pessoa. Rose tenta dissuadi-lo de suas preocupações, e insiste que a família não é racista. Dirigindo pela estrada do bosque, Rose mantém os olhos à frente, porém, em uma manifestação de carinho, tem a presença de espírito de atirar o maço de cigarro de Chris pela janela. Os ânimos parecem dos melhores, naquela manhã de sol glorioso. Ele liga para o melhor amigo Rod (LilRel Howery), um simpático servidor aeroportuário a quem Chris incumbiu de cuidar de Sid ao longo do fim de semana. Rod também bate papo com Rose, e brinca ao comentar que, dos dois amigos, ela escolheu o cara errado!


Subitamente, um veado cruza a estrada com espantosa velocidade, não dando ao casal tempo hábil para evitar o impacto. A frente do carro infelizmente apanha o animal. Não há sinais do veado no acostamento, mas então Chris entra um pouco no bosque e, conforme esperado, encontra o animal, agonizante. Cheio de remorso, algo no subconsciente de Chris resgata o traumático evento da infância que até hoje o assombra. Um policial atende a ocorrência, e recomenda que a moça troque a lâmpada frontal, danificada por causa do impacto. O oficial se conduz de maneira preconceituosa ao pedir alguma forma de identificação de Chris, mesmo tendo sido avisado por Rose que não era o namorado ao volante quando do acidente. Superado o entrevero, eles retomam a estrada, e não demoram a chegar à bela casa da família Armitage. Recebidos na porta pelos pais da namorada, Dean & Missy (Bradley Whitford & Catherine Keener), Chris tem seus temores dirimidos quando os hóspedes o tratam calorosamente.


Após uma descontraída recepção na sala de estar, Dean conduz o genro por um passeio pela ampla propriedade de campo, enquanto discorre sobre a pitoresca história da família. O irmão de Rose, Jeremy, estuda Medicina, e deve chegar naquele mesmo dia, mais tarde. Neurocirurgião, Dean afirma que o rapaz quis seguir seus passos. Missy é uma conceituada psiquiatra, e atende os pacientes no escritório da casa. Ele exibe uma fotografia emoldurada no corredor, em preto-e-branco, e conta uma interessante história sobre seu pai ter ficado em segundo lugar, nas Olimpíadas pela qual Jesse Owens, ao conquistar o ouro na prova da corrida, provara a falácia da tese de superioridade ariana do governo nazista, partido no poder, na Alemanha, à época das provas. Chris é apresentado à Georgina (Betty Gabriel), uma secretária do lar negra, com modos um pouco infantis que parecem indicar algum tipo de retardo mental. Walter (Marcus Henderson), por sua vez, faz as vezes de copeiro, e se ocupa de uma gama de tarefas diárias, desde varrer as folhas amareladas caídas das árvores a consertos e trabalhos de carpintaria. Dean e Chris caminham a um gazebo, quando o rapaz dá conta da total privacidade em torno da propriedade. De fato, cercada pelo bosque, a casa parece apartada do mundo exterior, e a residência mais próxima se encontra após o rio que corre dentro da floresta. Embora o jeitão descontraído do neurocirurgião ponha fim à timidez do visitante, Chris não consegue livrar-se da sensação de que Dean "tenta muito" transparecer a imagem de camaradagem e nobreza espiritual, enriquecendo o discurso com termos joviais e descolados, e insistindo não ser preconceituoso.


Sentados à mesa do lado de fora tomando chá, os quatro se conhecem um pouco melhor. Chris acrescenta algo sobre o próprio passado, em linhas gerais, como o fato de seu pai jamais ter sido uma figura presente, e o de a mãe ter morrido quando ele completara onze anos de idade. Na conversa, surge a informação de que Missy consegue hipnotizar pacientes para livrá-los de traumas ou vícios. A menção aparece quando Chris confidencia a incapacidade em abandonar o vício da nicotina. Dean revela que após quinze anos como fumante, bastou submeter-se à sessão de hipnose da esposa que hoje mal consegue sentir o odor de cigarro sem querer vomitar. Habilmente, Chris agradece a oferta, mas recusa a proposta, afinal de contas, desconsiderada a simplicidade do processo de hipnose, submeter-se ao hipnotista significa permitir que alguém mexa com sua cabeça. Georgina chega com uma jarra cheia para reabastecer os copos. Missy fala sobre a confraternização anual de amigos & familiares realizada naquele fim de semana, uma tradição iniciada pelo falecido pai de Dean, mantida pelos esforços do neurocirurgião. Durante a conversa, Chris, solidário à Georgina, tenta fazer contato visual com a simpática, simplória criada, mas ela não o nota. Em dado momento, certa eletricidade angustiada passa pelo rosto da pobre moça, e ela derrama um pouquinho de chá na camisa do visitante. A criada pede desculpas, e Missy a dispensa, pedindo que se recolha pela tarde para descansar, pois parece exausta. Chris evidencia preocupação pelo bem-estar da moça. Dada a oportunidade, ele verdadeiramente gostaria de conhecer sua história. Quem aparece para o fim de semana é o extrovertido Jeremy (Caleb Landry Jones), o irmão mais novo de Rose.

À mesa, no jantar, o clima não podia ser melhor, pois os presentes se comportam alegre e desinibidamente. Jeremy se diverte ao expor os "podres" de Rose, para desespero da irmã, que escuta a tudo com gargalhadas. Ele enumera os pecadilhos dos ex-namorados da juventude de Rose, como um rapaz desajeitado que, em uma festa na casa da família Armitage, tentou furtar um beijo da moça, apenas para ter o lábio mordido. Jeremy conta a história de um modo muito espirituoso. Quando a conversa se volta a preferências esportivas e artes marciais, Jeremy se entusiasma, e ao se levantar para tentar mostrar para Chris um golpe, acaba criando uma situação um pouco desconfortável, pela qual o rapaz prontamente se desculpa. A questão é rapidamente largada, todavia ao subir para o quarto na companhia de Rose para descansar, parece claro que a má impressão ronda a mente do fotógrafo. O rapaz navega pela internet do notebook, enquanto Rose escova os dentes e se prepara a se juntar ao parceiro na cama, rememorando os eventos do dia e se escusando pelo desleixo da família. Compreensivo e bondoso, Chris contorna a tensão com humor e lhe explica que não há nada pelo qual Rose tenha de se desculpar.

Pensativo, ele não consegue adormecer, e após permanecer um tempo metido em reflexões, olhando pela janela, resolve descer para caminhar um pouco ao redor da propriedade, uma maneira de espairecer. Nada parece fora do ordinário, até ele se ater a uma figura surgindo à distância entre as árvores e correndo em sua direção, implacavelmente. Quando a pessoa se aproxima da luz, Chris a identifica como Walter. Após o susto, o rapaz se vê vítima de outro pior, porque ao voltar a atenção para a casa, testemunha Georgina parada diante de uma janela, passando os dedos pelos cabelos, como se os estivesse penteando. Cismado, ele volta para dentro, e é flagrado por Missy. Ela se encontra no consultório onde costuma receber os pacientes, tomando chá. Bastante amigável, o convida a se sentar, para que tenham uma chance de conversar. Como habilidosa psiquiatra, Rose domina artifícios de manipulação psicológica, e um bate-papo sobre hipnose leva o rapaz a pensar sobre a infância. Missy cita a mãe de Chris, o que engendra recordações daquele dia, muitos anos atrás, quando ele a perdeu. O rapaz é conduzido a resgatar detalhes da manhã, como a chuva forte, e agora consegue escutar o rumor da tempestade. A mãe voltava para casa, quando sofreu um atropelamento do outro lado da rua, quase defronte à casa. Chris sentiu tanto medo que não ligou para o socorro, e quando paramédicos finalmente atenderam a ocorrência, ela estava morta. Enquanto revisita o evento, lágrimas jorram de seus olhos. Ele não consegue se mover, e, repentinamente, Missy sentencia "Agora... afunde no chão. Afunde". Em uma sequência visualmente impactante, que eu creio ser a mais perfeita representação gráfica de se franquear a um narcisista maligno acesso a sua mente, Chris afunda no abismo, como se estivesse caindo de costas no silencioso, escuro e gélido espaço sideral, enquanto Missy e a sala se tornam praticamente imagens em uma tela plana, cada vez menor e mais afastada. Com um sorriso macabro, Missy elucida "Agora, você está no lugar profundo". Chris apaga, e quando desperta, eletrizado e coberto de suor, vê-se de volta à cama, como se tudo não tivesse passado de um pesadelo.

O jovem passeia pela propriedade, e tira algumas fotos. Em frente ao gazebo, várias cadeiras foram arrumadas. Amistosamente, Chris se aproxima de Walter, àquela hora cortando lenha para a lareira. Sua gentil tentativa de aproximação é recebida com um banho de água fria, com uma frieza robótica. Walter pede desculpas pelo susto dado a Chris na noite anterior, e ele se dá conta de que, de fato, o encontro não se resumiu a um pesadelo, aconteceu mesmo. Chris se abre com a namorada, confidencia suas impressões de, na noite anterior, ter sido hipnotizado por Missy. Rose minimiza a importância do encontro. Os visitantes para a confraternização anual começam a chegar para o café da manhã. Rose torna as apresentações menos constrangedoras para Chris, porém o jeito tacanho com que as pessoas interagem com o rapaz tendem a exagerar a diferença de cor da pele, como é o exemplo de um casal simpático que, ao se referir ao hobby por golfe, sente-se na obrigação de mencionar o "Tiger" (Tiger Woods), e o caso de uma mulher casada com um senhor idoso, que perde a linha ao ousar com a brincadeira sobre o "tamanho do documento" de homens negros, para evidente surpresa e embaraço de Chris.

O rapaz se sente melhor ao enxergar um cavalheiro negro, de chapéu, de costas, diante da mesa do ponche. Chris se aproxima, repousa amistosamente a mão sobre seu ombro e se apresenta: "Bom encontrar um irmão por aqui". O cavalheiro se vira, e, para a nossa surpresa, trata-se do mesmo homem visto no começo do filme, abduzido enquanto procurava direções em um bairro afastado. Algo na doçura exagerada e quase infantil do cavalheiro destoa completamente da energia exibida no início do filme, quando parecia um sujeito comum, inteligente e articulado. Em vez de cumprimentá-lo com a liberdade fraternal de duas pessoas vindas da mesma realidade, o homem parece tolhido de qualquer senso de autoconfiança, e se apresenta como "Logan King". Chris sente-se péssimo, e fica particularmente alarmado quando uma mulher branca, no mínimo trinta anos mais velha, se aproxima e se apresenta como a esposa do rapaz. Eles se escusam, e Chris observa o casal se afastar, sem conseguir dissipar o sabor da suspeita.


Caminhando sem destino certo, Chris vai parar nas cadeiras servidas à margem da casa do coreto, onde há um senhor maduro (Stephen Root) sentado solitariamente. O estranho inicia a conversa, solidarizando-se com o constrangimento experimentado pelo fotógrafo. Ele tenta contemporizar, "Eles (as pessoas na festa) são ignorantes. Têm boas intenções, mas não sabem lidar com gente real". O homem se apresenta como Jim Hudson, e Chris imediatamente o reconhece pelo nome, pois é dono da conceituada Hudson Galleries. Jim o surpreende ao mencionar a familiaridade com o trabalho de Chris. Embora cego graças a uma doença hereditária, sua assistente costuma descrever obras de arte para o curador, e as fotografias que Chris tira para jornais e revistas sempre tiveram um jeito de encantá-la pela melancolia. Os dois conversam sobre a vida, e Chris, por fim, se sente um pouco mais à vontade. O senhor filosofa sobre como a vida, às vezes, parece destituída de qualquer critério de justiça. Ao retornar à casa, ocorre uma cena curiosa. Há muitos convidados socializando na sala de estar, confraternizando com seus drinques. Chris sobe as escadas enquanto as pessoas se comportam normalmente. Depois que se encontra no segundo piso, os convidados silenciam e tratam de olhar para cima, como se quisessem escutar o próximo movimento do fotógrafo. A partir desta cena, resta patente que existe algum tipo de cilada orquestrada para "pegar" o rapaz mais à frente.


Chris encontra o celular desconectado do carregador, e forma dentro de si a impressão de que a traquinagem foi obra de Georgina, quiçá hostil a sua pessoa pelo fato de ele namorar uma mulher branca. Ele expõe suas impressões à Rose, que sentiu sua falta durante a parte final da festa. Chris desabafa ao ligar para o amigo Rod, e ao tocar na questão da noite anterior, quando foi hipnotizado contra a vontade, recebe uma brutalmente honesta dose de realidade. Rod evita rodeios e vai direto ao ponto, perguntando-lhe como após tamanha manipulação ainda não reúne medo o suficiente para deixar o lugar. Não obstante dito de uma maneira ligeiramente cômica graças ao tom dramático de Rod, o alerta levanta um ponto importante, ao sugerir que aquelas pessoas possam desejá-lo como escravo sexual. Para fazer um ponto, Rod cita o caso de Jeffrey Dahmer, o psicopata responsável pela morte de dezessete homens/garotos. O serial killer costumava convidar homens para aventuras sexuais no apartamento, mas as pessoas seduzidas pelas promessas de Dahmer acabavam sofrendo mortes terríveis demais para se descrever. Chris tem a presença de espírito para explicar como as pessoas negras naquele lugar agem muito diferente, quase infantilizadas. Rod traz de volta ao bate-papo a manipulação da hipnose. Ao desligar, Chris parece desconfiado. Repentinamente, Georgina surge à porta, causando um grande susto. Ela pede desculpas por ter desconectado acidentalmente o celular do carregador. Mesmo ao se expressar para dizer algo tão simples, exibe uma confusão mental entre estranha euforia e palpitante desespero. Enquanto abre um largo sorriso, lágrimas chegam a escorrer de seus olhos. Chris tem pena da moça, contudo sempre se vê intimidado pelo comportamento quase esquizofrênico da criada, e, francamente, respira aliviado depois que ela se vai.

Ao se empenhar para evocar algum bom-humor, Chris volta à festa no jardim. Um senhor japonês indaga ao fotógrafo se ele crê que afro-americanos gozam de um número maior de privilégios do que os brancos. Chris Logan circular pela área social, e, tentando integrá-lo à roda, repassa-lhe a questão, vez que o rapaz também é negro. Muito polidamente, porventura excessivo na expressão de afeto à mulher branca com quem se casou, Logan tece considerações inofensivas sobre como a experiência tem sido fantástica, e que jamais poderia dar uma opinião sobre a vida social, já que a desconhece, pois aprecia a simplicidade caseira do matrimônio. Chris aproveita a distração do homem, e saca o celular para, discretamente, tentar conseguir uma foto, de forma a mandá-la a Rod para que ele tente reconhecê-lo. Quando o flash é acidentalmente acionado durante o registro, e a luz atinge os olhos de Logan, ele sofre uma terrível transformação, como uma pobre vítima a deixar, por alguns segundos, a hipnose. Ele suplica, aos gritos, para que Chris "corra". Os convidados o contêm. Jeremy o segura por trás, e o leva para dentro, para prestar assistência.

Dean e Missy custam a tranquilizar o preocupado Chris, mas Logan ressurge, após algum tempo apartado no escritório da psiquiatra. Agora, parece ótimo. Levando o susto na brincadeira, ele pede desculpas aos presentes pela "cena", enquanto Dean defende que tudo não passou de um episódio de epilepsia engatilhado pelo flash. Logan se dirige a Chris e diz sentir muito por qualquer constrangimento a que o tenha submetido. Mesmo aliviado pela melhora do rapaz, Chris ainda sustenta um olhar intrigado, entristecido. Com muita habilidade, Dean devolve a festa aos trilhos, e Rose resolve levar o namorado para passear em uma porção mais afastada da casa de campo, para o lado do lago, um lugar realmente quieto e reservado, principalmente ao entardecer. O fotógrafo põe as cartas na mesa. Ele crê que a mãe da namorada conseguiu "entrar na sua cabeça", pois desde o evento da hipnose, tem pensado em coisas horrorosas, as quais há muito tempo não revisita. Ele cita a confusão com Logan. Não obstante não se recorde de conhecê-lo de outros tempos, quando o rapaz sofreu o "ataque" e partiu para cima, aconselhando-o a correr, por um breve instante, foi tomado por uma estranha convicção de já o ter conhecido, em outra época, talvez na adolescência. Comovido, Chris rememora a morte da mãe, e fala sobre a culpa que o consome por não a ter ajudado. Se tivesse agido prontamente, a teria salvo da morte por atropelamento. Quando Chris confessa que deseja ir embora, a namorada o questiona se ele seria capaz de deixá-la para trás. O namorado explica que jamais faria o mesmo `a moça, nunca a abandonaria. Com os rostos banhados de lágrimas, os dois se abraçam, e ao retornarem à casa, uma noite fechada já se deita sobre o campo.


Tendo retornado para seu quarto, Chris encaminha a foto de Logan para o amigo Rod, e quase imediatamente recebe uma ligação do rapaz. Ele traz informações que reforçam a cilada em andamento. A pessoa na foto, o tal "Logan", chama-se Dre Hayworth, um rapaz com quem ambos tinham crescido no bairro. Rod vai dando as coordenadas. De repente, as peças se encaixam e revelam o contexto no qual a figura do rapaz se insere. Dre namorava Verônica, irmã de Teresa, e trabalhava como projetista, quando cursavam a oitava série. Tudo faz sentido. Chris vai fazendo as associações corretas. Ele discute com Rod os motivos pelos quais o rapaz teria mudado tanto, e ao mencionar a esposa trinta anos mais velha, corrobora automaticamente a tese anteriormente levantada. O amigo insiste: "Chris, você tem que sair daí! Você se meteu em uma situação tipo 'De Olhos Bem Fechados', saia...". A ligação sofre uma interrupção e cai, com o esgotamento da bateria. Para todos os efeitos, Chris se vê isolado em um meio onde não se sente querido, apartado até mesmo do melhor amigo, a única pessoa de confiança no seu círculo. Determinado a partir, ele esbarra com Rose na porta do quarto e, ainda calmamente, com a voz firme, ressalta à moça a imperatividade de se despedirem dos anfitriões. Ele pede que Rose arrume as malas, e não se importe com o que estiver faltando. O foco resume-se em se despedirem dos Armitage, entrarem no carro e deixarem o lugar.



Chris já viu o suficiente para saber que aquelas pessoas não são confiáveis, porém seu coração será estilhaçado com a descoberta a seguir. Ao recolher as roupas e vasculhar o closet à procura da máquina fotográfica, ele topa com uma caixinha, onde há um maço de fotos. As primeiras fotografias acompanham o crescimento de Rose, da infância à adolescência. Ao chegar à puberdade, o horror o assalta, quando a vê em registros íntimos, próprios a jovens casais apaixonados, com pessoas a quem foi apresentado no curso do fim de semana. Ele a enxerga com Walter, hoje o atual copeiro, com outros jovens negros e, por fim, com Georgina, cuja aparência e ânimo, na foto, diferem bastante da versão apresentada ao fotógrafo, as duas abraçadas em uma relação obviamente homossexual. As fotografias datam de alguns anos atrás, e Chris chega à apavorante conclusão que aquelas pessoas, gente comum do dia a dia, haviam sido induzidas a uma relação por Rose, apenas para serem levadas a aquela casa de lago sob uma desculpa esfarrapada, como convite para conhecerem os pais da moça, onde seriam submetidas à hipnose que as conformaria a seus novos papéis na dinâmica da família Armitage. Destroçado, Chris sustenta compostura para continuar interpretando o papel de bom moço, sem atirar cobranças e perguntas à Rose. Por ora, concentra-se em partir sem maiores alardes. Chris sabe que pode lidar com as contradições mais tarde, uma vez devolvido à segurança do lar. Sagaz e atenta, Rose nota a sutil mudança no humor do namorado.

Chris desce as escadas, em direção à porta, e não tem como evitar os Armitage, reunidos ali embaixo. Gentil e resoluto, justifica a necessidade de deixá-los com a desculpa do adoecimento repentino do cachorrinho, o que exige seu retorno imediato. Enquanto procura manter as emoções em xeque, Chris fica lembrando à Rose a chave do carro, que ela finge procurar dentro da bolsa. O olhar angustiado do rapaz denuncia a desconfiança. Logo, o tom dos membros da família soa mais malicioso e constrangedor. Até então preocupado, mas amigável, Chris passa a entregar, na voz, a urgência de partir. Parece-lhe claro que os Armitage querem lhe fazer mal. A máscara de Rose cai quando, repentinamente, ela o encara com dureza e lhe explica que infelizmente não pode lhe entregar a chave, afinal participa da farsa. Chris investe contra a porta numa tentativa de escapar, mas Missy o imobiliza ao bater a colherinha por duas vezes na xícara, hipnotizando-o e o fazendo mergulhar no "lugar profundo". Chris se vê afundar no meio escuro e infinito, com uma "pequena tela" acima, na verdade os Armitage reunidos ao redor de seu corpo, o carregando a alguma espécie de sótão, para a "operação". Sua única esperança, o amigo Rod, só vai se atentar à ocorrência do desaparecimento mais tarde no dia seguinte, após tentar por muitas vezes contatar o fotógrafo, sem sucesso. Ele visita o apartamento de Chris para servir a ração ao cachorrinho. Tristonho, o cãozinho parece sinalizar o cometimento de algum mal ao dono, para o incômodo do gentil, observador Rod. Ocorre-lhe "jogar" o nome de Dre Hayworth no Google, e os resultados o deixam definitivamente estupefato. Rod descortina notícias sobre o desaparecimento misterioso de Dre, morador do Brooklyn abduzido num bairro de classe média alta, e enxerga o padrão no sumiço de Hayworth e o inexplicável silêncio de Chris.


O fotógrafo desperta acomodado em uma poltrona, com os punhos e tornozelos amarrados, dentro de uma espécie de elegante gabinete, onde se encontra exposta como troféu de caça a cabeça de um veado. Há uma televisão à frente de Chris, onde lhe é exibido um material publicitário sobre uma coisa experimental batizada de "Coagula". Um cavalheiro idoso surge filosofando sobre o sonho de se viver eternamente, "de corpo em corpo", e conta que para as pessoas de sua "ordem" (gente da Nova Ordem Mundial, talvez?), a ambição da imortalidade se encontra cada vez mais factível, cortesia dos avanços feitos pelo "Coagula". Diante de uma casa que Chris identifica como sendo a fachada da propriedade de campo dos Armitage, o senhor idoso convida os interessados a "se juntarem à família". Em um tétrico instante, nós os vemos abraçar uma senhora idosa, a matriarca, e um jovem casal, versões mais novas de Dean & Missy. Rose & Jeremy também aparecem ao lado dos pais, ainda crianças. A imagem é substituída por uma outra onde a colherinha faz a borda da xícara tilintar, devolvendo Chris ao "lugar profundo". Rod procura a polícia e tenta explicar os motivos da preocupação. Ele recapitula a viagem e o desaparecimento do amigo, e adiciona ao depoimento a descoberta de Dre Hayworth, sumido há seis meses em um subúrbio afluente e hoje cidadão em um condado do interior, sob novo nome, casado com uma mulher mais velha. Rod comete a trapalhada de vocalizar a suspeita de que gente do bairro tem sido abduzida e encaminhada para reprogramação como escravos sexuais. Os policiais reagem com gargalhadas, não o levando a sério. Rod será forçado a agir por conta própria, caso queira salvar o amigo. Como um autêntico detetive, reduz a termo todas as informações ainda frescas na memória, e se empenha na ingrata tarefa de fazer sentido da salada de dados sem aparente conexão. Ao tentar contatar o celular de Chris, sua chamada é finalmente respondida, mas não pelo fotógrafo. Do outro lado da linha, Rose interpreta a donzela preocupada, e conta uma historinha mentirosa. Ela "revela" que Chris partiu há dois dias, após uma discussão acalorada, e se esqueceu do aparelho. Rod desconfia da garota após questioná-la sobre a companhia de táxi usada pelo rapaz. Ao senti-la titubeante, Rod passa a gravar o colóquio, todavia, perspicaz, ela retoma o papo com uma mentira qualquer que nada tem a ver com o assunto, afirmando que Rod telefonou porque, no fundo, sente-se atraído pela namorada do amigo e crê que ela lhe deu abertura. Furioso, Rod revolta-se e desliga o telefone.

Chris desperta no mesmo gabinete, e assiste a um vídeo gravado. Para sua surpresa, ele vê Jim Hudson, o célebre empresário, dono de galerias artísticas. Hudson esclarece o motivo da abdução, e simplifica o que teria sido uma longa explicação, para sintetizar que tudo não passou de uma série de estágios até a etapa final do procedimento, o transplante, na verdade uma cirurgia cerebral que passará a consciência de Hudson para o corpo de ChrisA única maneira de salvar Hudson de uma doença terminal se dará pela via do transplante de consciência. Como uma pequena parte do cérebro de Chris permanecerá ativa para a manutenção de vida no corpo, ele não "morrerá por completo", pois embora sua matéria se torne veículo para o intelecto de Jim, haverá um pouquinho da consciência de Chris, assistindo ao passar dos anos sem nada poder fazer, à deriva no lugar profundo. Hudson elucida: "Sua existência passará a ser a de um mero passageiro". Ao escutar aquela loucura, seu rosto se contorce de dor, porque ele compreende que Walter, Georgina e Dre sofreram a mesma maldade e não tiveram como evitar o pior. A cena da colherinha contra a xícara volta à tela, e Chris adormece. Em uma outra sala, o neurocirurgião se prepara para performar a troca.

Ele começa a cirurgia por Hudson, àquela altura anestesiado e já com o escalpo arregaçado, para a exposição do crânio, que será serrado. Jeremy vai apanhar Chris com a cadeira de rodas, e ao desamarrá-lo, é surpreendido com a reação do fotógrafo. Chris o nocauteia com um inesperado, duríssimo golpe na cabeça. Insuspeito, Dean não imagina o imprevisto. Ao dar pela demora do filho, ele coloca a cara no corredor, e é empalado: Chris chega como um trem fumegante, com a cabeça do cervo nos braços. Ele executa um golpe perfeito, fazendo os chifres perfurarem o abdômen do neurocirurgião, o ferindo de morte. Agonizante, Dean vai derrubando uma porção de apetrechos ao cair, entre eles as velas, cujas chamas não custam a incendiar os lençóis do centro cirúrgico. Sob o efeito da anestesia geral, Hudson se vê cruelmente a mercê de uma horrenda morte, engolfado em chamas, sem ter como reagir. A próxima a morrer é Missy. A psiquiatra não acredita quando o vê ali de pé na cozinha, e antes que consiga pegar a xícara para hipnotizá-lo com as batidas da colher, Chris quebra a louça. Ela tenta esfaqueá-lo com um abridor de carta. Chris amortece o golpe com a palma da mão. Possesso pela fúria, ele nem chega a esboçar reação perante a dor. Simplesmente crava o abridor de cartas na psiquiatra, acertando-a com um golpe fatal que lhe vara o pescoço. A um sopro de abrir a porta para fugir, Jeremy chega por trás e o segura numa gravata. Chris arranca a maçaneta e estoqueia o rapaz na coxa. Depois que Jeremy o solta, Chris o chuta na cabeça, primeiramente o derrubando, depois o pisoteando freneticamente na face, até esmigalhar os ossos. Alheia ao drama no andar inferior, Rose navega com o notebook na internet, com fones de ouvido, sobre a cama. Chris encontra as chaves e dá a partida no carro. Ele contata a polícia, porém antes de conseguir se explicar melhor, acidentalmente e de uma maneira moderada, bate com o lado do automóvel na criada Georgina, que surge inesperadamente no portão. Imediatamente, Chris associa o acidente à fatídica manhã, quando sua mãe fora atropelada e, por medo, sua inação lhe custara a vida. Bravamente, ele desce para ajudá-la a entrar no lado do passageiro. Ele não a deixará para trás. Esta sequência chamou a minha atenção por uma sacada maravilhosamente emocional da edição, pois quando o fotógrafo a observa desacordada no chão, a imagem é entrecortada por uma cena anterior, lá pela primeira hora, Georgina com lágrimas nos olhos, pedindo desculpas a Chris pelo carregador de celular, o momento pelo qual o rapaz sentiu compaixão pela infantilizada criada, tendo percebido que ela não passava de vítima de uma misteriosa maldade, àquela altura ainda oculta aos seus olhos. De toda sorte, ele se lembra da mãe, e também daquele instante, a indefesa Georgina com olhos marejados, e parte para a ação. Chris consegue acomodá-la, mas com o barulho da pancada entrega sua fuga à Rose, que tira os fones e desce para investigar. Subitamente, a namorada aparece no alpendre, com um rifle em mãos. Ela faz mira. Como o carro se encontra a certa distância, não arrisca o disparo.

Georgina desperta do torpor, e, ainda alienada, ataca Chris, causando a momentânea perda da direção. O carro choca-se contra uma árvore, e a criada morre instantaneamente. Uma bala vara o vidro da janela e passa rente ao fotógrafo. Ele entende que se trata de Rose. Chris deixa o carro, novamente se esquivando dos disparos. Rose ordena a Walter que o derrube. Ferido, Chris é facilmente rendido pelo copeiro, porém ao clicar propositalmente o celular de modo a disparar o flash diante de seus olhos, acaba por ajudá-lo a romper a hipnose. Por um breve momento, Walter, outra infeliz vítima alienada dos Armitage, recupera o protagonismo sobre a própria mente, bem no instante em que Rose chega para finalizá-lo. Ele pede o rifle à Rose, oferecendo-se, aparentemente, para executar o fotógrafo, mas acaba atirando na parte baixa do abdômen da patroa. Surpresa e cheia de sangue na boca, ela dá as costas como se fosse tentar correr, e vai ao asfalto. Walter e Chris ainda trocam olhares de reconhecimento. Pela primeira vez vemos o copeiro sem chapéu, a cicatriz na testa como prova das torturas sofridas por Walter, objeto dos experimentos de Dean. Cheio de dor e consciente de que jamais voltará a ser o homem de antes, Walter resolve abreviar seu calvário, e se suicida com um tiro no queixo. Chris se aproxima de Rose, para checá-la. Ainda viva, ela tenta seduzi-lo com promessas de amor. Chris considera vingança ao segurá-la pela garganta, pronto para matá-la estrangulada, mas, sendo moralmente superior e não trazendo dentro de si a mesma maldade, desiste do ato, a deixando para trás. Rose morre de hemorragia, estatelada no meio do asfalto. Rod surge na escura estrada ladeada por veredas em um carro da polícia, e o resgata.

A discussão em torno de "Corra!" não se resume apenas a seu recente lançamento. O filme vem causando forte impressão muito antes da exibição nos cinemas. A ideia do projeto esteve no centro do furacão que hoje rege as rodas de conversa. Muitos se serviram do argumento do filme para validar (ou enfraquecer) o discurso em torno da questão racial. Surpreendentemente, ao assistir a "Corra!", a contenda sobre racismo parece exaurida já dentro dos primeiros dez minutos. Eu explico: sim, a cor de Chris se pronuncia como um relevante detalhe, afinal se reporta às razões maquiavélicas pelas quais se veria alvo das manipulações da namorada, no começo, e do restante da família, mais tarde, entretanto, depois que a locomotiva narrativa passa a correr sobre os trilhos, a trama parece submergir a uma profundidade muito mais psicológica, eu diria filosófica, sobre a fragilidade da condição humana, e quão poderosamente maldades infligidas sobre nossas mentes, na infância, podem nos curvar, ou ao menos nos deixar conformados a perigosos padrões, dificílimos de serem rompidos. "Corra!" foi beneficiário & vítima da própria celeuma, pois não obstante a polêmica tenha levado multidões às bilheterias, a superficialidade do debate impediu muitos de assistirem ao filme com um pouco mais de atenção e boa vontade. Em que pese o sucesso instantâneo, só o tempo fará justiça a este maravilhoso filme de terror que tem muito a dizer, não apenas a um grupo, mas a um amplo espectro de pessoas que, por uma razão ou outra, jamais se sentiram integradas a um meio, ou pior, conheceram a dor envolvida em transitar desavisadamente para dentro de uma situação onde não se é bem-vindo, e tudo o que precisa fazer resume-se a dar as costas e partir o mais rápido possível. A profundidade psicológica do filme junge-se ao excepcional desempenho do protagonista, e explorarei o tópico no momento oportuno.

Produzido pela Blumhouse, o fenômeno criativo de onde chegam os melhores filmes de terror dos últimos anos, "Corra!" foi realizado por um irrisório custo, cinco milhões de dólares, rendendo cinquenta vezes o valor do orçamento (duzentos e cinquenta milhões só nas bilheterias norte-americanas). O sucesso o consagrou como o título mais rentável e bem-sucedido da produtora até hoje. Dirigido por Jordan Peele, um ator que, sob o manto de cineasta, não tinha um único título no portfólio, "Corra!" soma-se ao panteão de clássicos dirigidos por "marinheiros de primeira viagem", diretores sem nenhuma (ou quase nenhuma) experiência que, não obstante a pressão da estreia, criaram obras as quais, mesmo após décadas, pessoas não se cansam de revisitar, pois sempre descobrem elementos novos escondidos entre suas camadas de complexidade. Em muitas resenhas, cito os exemplos de sempre ao escrever sobre cineastas marcados pela dádiva/maldição de terem criado a perfeição. Brad Anderson & Tom Shankland me vêm automaticamente à mente, este com "w Delta z", aquele com "Session 9", filmes sobre os quais me aprofundei neste blog, e os quais sempre resgato para ilustrar diversos pontos. Mais tarde nas suas carreiras, os dois sofreram criativamente, pois independente das tentativas de descobrirem vozes mais pessoais, usualmente se viram confrontados pela majestade de seus clássicos, régua para tudo o que viria posteriormente. Com "Corra!", Jordan Peele realizou um terror extraordinário, e em que pese viver um grande momento da carreira, tendo o nome vinculado a muitos projetos, provavelmente será assombrado pela primeira magistral criação. Peele negocia a vaga de diretor do cobiçado, aguardado "Akira", adaptação para as telas do mangá homônimo, projeto que se encontra no mínimo há três décadas em fase de pré-produção e finalmente parece às vésperas de se concretizar. A escolha ilustra o inédito cacife do diretor, porém pode feri-lo como tiro no pé. Sabemos que estúdios tendem a contratar prodígios do momento, apenas para os podarem assim que lhes são dadas centenas de milhões para filmarem superproduções. Aconteceu com José Padilha, ao realizar "Robocop", e custou a carreira ocidental de John Woo, poeta chinês da violência trazido a Hollywood após a descoberta de seus clássicos. Woo permaneceu por alguns anos realizando grandes produções na qualidade de "diretor operário", ou, como costumo chamá-los, "diretores de filmes de James Bond", cineastas capazes de administrar um farto orçamento, mas resignados o suficiente para jamais se rebelarem contra a fórmula delegada pelos interesses acima. Woo só reconquistou a paz de espírito ao regressar para a China e voltar a fazer seus filmes menores, mais espetaculares do que qualquer blockbuster americano, pois livres da ingerência de terceiros. Só o tempo dirá se Jordan Peele gozará da impressionante longevidade de James Wan, por exemplo, o único caso de um cineasta relativamente jovem que manteve altíssimo padrão e consistência nas escolhas.

A equipe técnica trouxe uma gama de talentos a bordo, dentre eles Gregory Plotkin. Eu já ouvira falar no nome, e, ao pesquisar onde o vira antes, recordei-me: Plotkin dirigiu "Atividade Paranormal: Dimensão Fantasma", sólida sequência e último exemplar da franquia, quase tão maravilhoso quanto "Atividade Paranormal: Marcados pelo Mal", este sim o título definitivo da série, deliciosa realocação do tema para dentro de uma febril, energética e romântica comunidade latina. Em "Corra!", Plotkin empresta seu entusiasmo & perícia para a precisa edição que elimina a ameaça da redundância e sopra no filme o fôlego para a corrida de eletrizantes 104 minutos. Toby Oliver, o diretor de fotografia, reveste a trama com certa elegância, mas seu rebuscado olhar chama mais a atenção justamente na sequência inicial, a abdução de Dre Hayworth. Sabemos que o filme abre com  a cena do jovem caminhando bem-humorado, porém apresentando sinais de apreensão, por um bairro tipicamente afluente e suburbano, à noite. Mesmo na quietude envolvida na suposta casualidade de uma pessoa em busca de direções, o olhar de Toby Oliver constrói um dos momentos mais angustiantes da história, quando algo que nos é comum & primitivo grita em nossos ouvidos que o mal arrebatará aquela criatura assim que ela dobrar na esquina, como, de fato, acontece. Para criar um senso de atmosfera, ele aproveita o potencial de ruas largas, calçadas espaçosas e fachadas de prósperas residências banhadas pela cândida luz dos postes. Por outro lado, Oliver também utiliza o potencial da natural iluminação a máximo efeito quando a trama se transfere à propriedade de campo, onde a copa & ramagens das árvores e a superfície do lago cuidam de polir a já benevolente cortesia de um lânguido sol ao entardecer. Michael Abels, autor da trilha, faz sua estreia em "Corra!", e nos encanta com uma batida energética, como o cântico tribal a preceder as batalhas. Todas estas talentosas mentes uniram forças para facilitar o trabalho do diretor. Graças a um time altamente capacitado, Jordan Peele obteve êxito ao tentar nos oferecer um filme no mínimo tecnicamente impecável.

Escalar o elenco de uma história tão psicologicamente exaustiva parece-me a mais árdua parte na feitura do filme, pois uma vez que se tenha os atores certos para habitarem papéis tão memoráveis, tudo o que passa a preocupar o cineasta são as posições das câmeras. Basta reclinar a cadeira, acomodar-se, gritar "ação" e deixar que seus extraordinários artistas criem magia. Jordan Peele gozou da perspicácia extra que falta a muitos diretores experientes, pois entendeu que sua precisão não girava em torno de rostos famosos, e sim de competência. Talvez pelo background como ator, Peele tenha se guiado pelo feeling natural por diferenças de estilo dramático para pinçar, dentre nomes pouco conhecidos, os protagonistas da aventura, "escalando-os" como "centroavantes" (Daniel Kaluuya & Allison Williams), sem deixar de primar pela fineza, escolhendo character actors veteranos de ilibadas filmografias para fecharem o time como "meio campistas". Os veteranos Bradley Whitford e Catherine Keener aproveitaram a oportunidade para brilhar como os líderes espirituais da família Armitage. Para a atriz, o papel lhe deve ter parecido uma volta para casa. Habilidosa em dramas sombrios e sinistros, ela recicla a sua personagem do aterrorizante "An American Crime", de 2007, onde interpretou uma frustrada, reprimida mãe solteira de meia idade, que encontra uma válvula de escape ao vitimizar uma pobre menina indefesa, sob a sua tutela por algumas semanas, até a morte. O filme, uma dramatização do notório, tétrico caso "Sylvia Likens", encontrou na figura da elegante atriz o equilíbrio perfeito entre ressentimento & redenção, criando uma vilã tão odiosa quanto patética. Aqui, Keener volta a soprar vida noutra mulher malévola, e a força da performance reside na naturalidade com que a personagem coexiste em um meio onde pessoas conviveriam com Missy e pagariam caro seus altos honorários de psiquiatra sem imaginar seu processo de pensamento psicopata. No papel da criada Georgina, Betty Gabriel não precisou de muita exposição para nos deixar curiosos, e suas aparições, poucas, mas contundentes, criaram um retrato trágico da tensão cultural a perfilhar o pano de fundo, emblema perfeito para a filosofia por trás da maldade dos Armitage. Sobre sua personagem, ela teve o seguinte a dizer: "Georgina também simboliza séculos de escravidão. Mesmo hoje, mulheres e crianças negras ou pardas têm sido vendidas a algum tipo de escravidão, escravidão sexual. Então, por exemplo, na cena em que Rod procura a polícia para lhes contar o que tem acontecido e todos riem na sua cara, é todo um novo jeito pelo qual podemos perceber 'Ora, ele está certo!'. Ao passo que não a vemos, ela se encontra presente, em algum nível. Portanto, a depender do prisma, ela (Georgina) pode representar várias perturbadoras realidades".

No seu primeiro papel de relevância no cinema, Allison Williams quase rouba o filme no papel de Rose. No frigir dos ovos, o drama de Chris assume contornos de tragédia, porque qualquer pessoa vítima de injustiça poderá depor a respeito da amargura que acompanha o sobrevivente, mas testemunhar a única pessoa em quem você depositou confiança assumir um papel importante na farsa, com a chave tilintando nos dedos, deve ser particularmente doloroso. A atriz desempenha com naturalidade e desenvoltura o papel da namorada moderna e compreensiva. Embora se mova e fale com liberalidade, destacando-se como uma pessoa sincronizada com os próprios objetivos de vida, Rose parece reservar um enorme espaço no coração para Chris, de modo que quando a máscara se vai, e a farsa da parceria cai por terra, soa crível a horrenda decepção a tomar conta de seus olhos arregalados. Como namorada e cúmplice, Williams não erra no tom, aproximando-se do perfil de boa companheira, a parceira que com uma única palavra carinhosa consegue fazer a semana do namorado. Quando ela se "transforma", a atriz desempenha a mudança de girl next door para assassina implacável com a preocupante rapidez de um veloz toque no interruptor. De cabelos presos em rabo de cavalo e rifle em mãos, ela me lembrou da eletrizante performance de Carrie Snodgress como a antagonista do herói no violentíssimo "O Vingador", o suspense de 1986 estrelado por Charles Bronson em um de seus últimos papéis de importância. A personagem de Williams ainda exigiu mais perícia no approach da atriz, pois há uma mudança de caráter envolvida no seu arco. Enquanto em "O Vingador" Snodgress mostra a que veio desde a primeira agressiva cena, quando executa um homem com um tiro na boca aberta, Williams exercita o comedimento que a mantém fiel ao arquétipo da namorada preocupada, até a revelação da chave e o clímax, onde deixa a casa com rifle em mãos, um momento no mínimo visualmente inesquecível, reminiscente de um outro, em "O Vingador", quando Joan Freeman, personagem de Snodgress, elimina o ex-parceiro de Bronson com o disparo de uma escopeta, com a indefesa vítima aos seus pés no chão da cabine. O impacto da cena dispensa a captura do produto do tiro, e sagazmente foca-se na energia exigida e na reação da predadora, como o sangue a salpicar seu rosto, os lábios bem apertados em uma expressão de esforço, ou o significativo recuo do cabo, pesado e bruto, mas, ainda assim, amparado por mãos & força feminina. Williams não teve a chance de "sujar as mãos" como a vilã de "O Vingador", todavia, pelo breve espaço de tempo envolvido em seu duelo com Chris na escura estrada do bosque, acessa uma agressividade ímpar, acende uma peculiar centelha de ódio nos olhos, chamas da certeza de seu comprometimento em descer muito além do que o abismo a que o dedo sobre o impessoal inox do gatilho é capaz de levar. Não, ela estaria pronta a chafurdar a carne, voluntariar-se a pôr as mãos no corpo do outro, em quebrar ossos com punhos que acertam com a pontaria & momentum de um cruzado lançado por um pugilista mais experiente, a sequência de três cruzados com que Buster Douglas encerrou a aura de invencibilidade de Tyson, em 1990, pondo-o humilde, ensanguentado e atônito aos seus pés. Nesse sentido, apesar das diferenças, Rose em "Corra!" & Joan em "Murphy's Law" são praticamente o mesmo demônio, bem imortalizado no tiroteio final de "O Vingador", no abandonado Hotel Bradbury, quando, armada de besta & flechas, Joan vai desafiando Bronson a enfrentá-la nas trevas das entranhas do prédio: "Somos só eu e você agora, amigo".

Nenhum colega de elenco, todavia, brilhou mais do que Daniel Kaluuya, a quem este filme verdadeiramente pertence. Eu deixei para escrever sobre sua performance por último, pois de sua sólida atuação brota um manancial de questões menores e instigantes, dignas de discussão. Para um filme tão importante, o diretor poderia ter incorrido na pressão de escalar um nome conhecido para criar seu herói. Felizmente, em vez de tropeçar na armadilha de escolher seu time pela expectativa de terceiros, confia a um competentíssimo ator a missão de criar um protagonista realmente especial em sua adorável humanidade. A maravilhosa surpresa reside no tom escolhido pelo artista para dar forma & substância à criação. Em filmes do gênero, atores menos sensíveis e mais obtusos insistiriam no mesmo equívoco, performar a mais básica, tentadora das emoções, a raiva. Eu me recordo de quando Sylvester Stallone fez "Copland", o drama independente de 1996 pelo qual recebeu as melhores resenhas da carreira. O ator interpretava um xerife envelhecido, acima do peso e surdo de um ouvido, uma alma tímida e generosa que vira a vida passar, contentando-se em assistir ao progresso dos demais, à margem das próprias minúsculas ambições. Quando chegam a suas mãos provas do envolvimento de colegas policiais da cidadezinha com o crime organizado novaiorquino, do outro lado da ponte, esse cara redescobre a própria honra e parte para o embate com a força policial inteira. Para realizar o excelente trabalho, Stallone precisou dar um passo de fé, e repelir a vaidade em nome de uma performance mais sensível e introvertida. Ao desnudar a alma para as câmeras sem medo de ser visto barrigudo, deprimido e reservado, para além das aparências, gerou um herói tão inesquecível quanto o Rocky, finalmente visto como artista dramático, e não estrela de cinema. Muitos homens da ação reconectaram-se ao que há de melhor em seus corações através de papéis nos quais jamais imaginaríamos vê-los um dia. Infelizmente, as pessoas não conseguem afastar o hábito da acomodação, e portanto grandes momentos dramáticos de astros da ação passam largamente desconhecido. Samuel L. Jackson foi catapultado ao estrelato pelos seus personagens energéticos e cheios de artimanhas, mas pouquíssimos tiveram a honra, e eu friso o termo honra, de assistirem a seu emocionante, comovente desempenho em "Freedomland", ainda não resenhado por mim, todavia sobre o qual já teci profundas considerações nos meus trabalhos sobre os filmes "A Garota Morta" e "Big Game". Robin Williams se foi em 2014, deixando para trás muitos filmes onde restaram imortalizados sua maestria sobre o bom humor e o entusiasmo de criança. As pessoas se recordarão das gargalhadas proporcionadas pelo talento de Williams, mas, lamentavelmente, poucos tomarão conhecimento que, do mesmo jeito que sabia fazer rir, Williams poderia acessar recantos de nossas almas e derrubar nossas defesas em um piscar de olhos para nos fazer verter uma represa de lágrimas. Nossos olhos se acenderão sob a menção dos seus clássicos, não? "Jumanji", "Sociedade dos Poetas Mortos", "Patch Adams"... mas e quanto a "Boulevard", "Retratos de uma Obsessão" e "Segredos da Noite"? Embora seja louvável sua destreza para arrancar risadas, foram nos dramas menores que o astro nos franqueou visitas a uma atormentada parte da sua alma, uma atitude que lhe exigiu intrepidez, mas que permanece obscura sob o manto de seu próprio estrelato e as limitações de nossa miopia. Retomando a análise de "Corra!", Daniel Kaluuya tratou o personagem com o mesmo esmero e senso de responsabilidade, não envilecendo o núcleo gentil de sua alma. Como protagonista de um filme de terror, se o ego tivesse subido à cabeça, Kaluuya não teria hesitado em "devorar o cenário". Como "menos é mais", entretanto, assimilou que com seu recato contaria a backstory inteira de Chris sem precisar desperdiçar nosso tempo com linhas e mais linhas de diálogo. Ponderado, humilde, inteligente e moralmente superior, Chris transcende a ameaça da unidimensionalidade e cumpre com louvor o seu arco como uma figura real por quem torcemos a cada curva da imprevisível jornada. Seu passado ganha vida própria e nos fornece informações ausentes do quebra-cabeças através da dor de um olhar ou a resignação por trás de um sorriso. O caráter do personagem não "pede" para ser validado, suas ações falam por si, e a admiração que nutrimos pelo rapaz desdobra-se espontaneamente das virtudes demonstradas pelo fotógrafo durante a aventura. Eu teci estas considerações sobre Chris para justificar por que, ao contrário da maioria, não creio que "Corra!" ancore-se exclusivamente na questão do preconceito racial. Se prestarmos atenção ao material publicitário, verificaremos que membros do elenco e da equipe técnica ilustraram uma porção de observações muito válidas para ratificar o debate. Honestamente, creio que o diretor seja maior do que a simplória compartimentalização, e seu filme precise ser saboreado com mais acuidade, para só assim se ganhar real noção de importância/envergadura dos detalhes. Se a tipificação de preconceito racial reclama um sentimento de antagonismo generalizado subtraído de qualquer exame crítico, o termo, conceitualmente, não cabe aos Armitage, porque o fogo que consome suas almas é ainda mais diabólico e melindroso, vai além da cor da pele. No século XXI, qualquer pessoa que acredite que uma pessoa possa ser definida pela cor jamais será levada a sério, e se dará um tiro no pé, porque se voluntariará ao ostracismo social. Não há espaço para pensamento tão diminuto. Há, entretanto, uma agenda secreta por trás de uma força oculta que fomenta a animosidade entre pessoas de cores diferentes, e um pequeno grupo interessado em se tornar "porta-voz" de comunidades, com interesses mascarados, maliciosamente maquiados como "altruísticos". A mídia comprometida com a agenda globalista estimula com flagrante insistência a tensão com o propósito de criar confronto, jogando "uns contra os outros" para o benefício de poucos, desmoralizando pessoas ou agentes de bem, como policiais, e quando meta capitalistas financiam ONGs e empurram o mundo ao colapso onde "família" se tornará um termo obsoleto ou aplicável a qualquer conjunto, e cristãos sofrerão um tipo de perseguição jamais visto antes, acomodam-se nas poltronas e dão gostosas risadas ao assistirem aos desavisados introjetando valores absurdos e voltando-se contra suas famílias ou origens, enquanto os manipuladores preservam as próprias. A leitura atenta de textos sobre Gramscismo deslindará a cruel psicopatia e a ardilosidade por trás do curso que os eventos históricos têm tomado, no Brasil e no mundo. Desta feita, retomando a discussão após o válido aparte, "Corra!" não merece o rótulo pelo qual incendiou os debates, pois os Armitage não agem a partir do horrendo pecado do racismo. Na verdade, parecem antagonizar o protagonista por um rancor fundado no plano espiritual. Eles não escolheram Chris porque supunham que o rapaz fosse uma criatura inferior, mas justamente por obra de irrestrita inveja. A seu modo, depondo a seu favor, Chris dispunha de uma impressionante gradação de maravilhosas qualidades, que aos Armitage faltava. A abdução do garoto não se cingia à solução imediata para a doença de Jim, à tragédia da perda da visão. Como o próprio homem confessa, em dado momento, "eu quero seus olhos" não deve ser tomado ao pé da letra. Mais do que as córneas, Jim desejava a sensibilidade, a poesia de uma alma capaz de voar mais alto, uma qualidade que não lhe fora naturalmente dada. A mesma observação aplica-se a Missy & Dean. Para se induzir uma pessoa inocente a erro e lhe fazer tamanha crueldade, aproveitando-se da vulnerabilidade, só se concebe semelhante ato pelo viés de um sentimento de ordem diabólica. Missy e Dean tinham motivos para ressenti-lo. Chris os fazia lembrar da juventude há muito perdida, e por ter crescido para se tornar um homem de valor após tão traumático evento na infância, atirava nas caras de ambos a própria feiura. Eles se sentiam no dever de arruiná-lo porque sabiam que assim como jamais teriam como girar os ponteiros para trás, também não o teriam, para frente. A facilidade com que Chris nos ganha para seu lado deve-se à habilidade de Daniel Kaluuya em dar vida a um personagem crível e moralmente irrepreensível e elevado. Eu me impressionei com sua inabalável fé, única possível explicação pela qual passou a maior parte do filme perdoando as pessoas, consistentes no ato de pisar em cima de seus calos. Suas decisões vinham de um lugar dentro de si que queria dar aos semelhantes o benefício da dúvida, enquanto o mesmo não se pode afirmar sobre Rose. Aliás, é de se pensar: seria a garota ao telefone com Dre Hayworth, no começo do filme, a própria Rose?

O teste definitivo de qualidade de qualquer filme é definido por quantas vezes você o procurou para assistir, e se a cada nova exibição, descobriu coisas novas. "Corra!" demanda repetidas exibições até revelar o rosário de mistérios no coração da proposta. Por diversas vezes, puxei da minha mente outra história de horror similar ao drama de Chris, sobre a qual escrevi anteriormente neste blog. Eu me refiro a "Creep", o magistral thriller psicológico dirigido & estrelado por Mark Duplass, junto a seu amigo Patrick Bryce, sobre um cinegrafista amador que atende a uma proposta de emprego no Craiglist. Ele se encontra com o excêntrico empregador numa cabine da montanha, e o homem lhe faz uma proposta, pela qual, em troca de determinada soma de dinheiro, o filmará ao longo do dia inteiro. O bem-humorado, simpático cavalheiro, dado a abraços & amostras constrangedoras de fraterno carinho, explica que, sendo paciente de uma doença terminal, em vias de se tornar pai, deseja deixar ao filho um tributo, um filme pelo qual o menino venha a descobrir quem seu genitor foi. À medida que o dia avança, e o homem vai desrespeitando, primeiro sutilmente, e depois ostensivamente, os limites do cinegrafista, o filme, que começa como comédia, vai adquirindo tonalidades de puro horror. Quando, por fim, o rapaz compreende que seu empregador é um psicopata, e um serial killer responsável pelo desaparecimento de centenas, já é tarde demais para agir, porque o homem se apaixonou por sua pessoa e não o deixará em paz. Quando eu li recomendações sobre este suspense, pouco interesse tive de procurá-lo, porque, francamente, a premissa não deixava o lugar comum. Ao finalmente dar uma chance a "Creep", descobri uma eletrizante lição em exercício psicológico, e no minuto seguinte à primeira exibição, tive de assistir ao filme novamente. Mesmo hoje, ao revisitá-lo, descubro inéditos, importantes pormenores, impossíveis de serem capturados em uma única sessão. Assim como ocorre a "Creep", "Corra!" também investe em detalhes para deixar em aberto o convite do "volte sempre", e, de semelhante forma, bebe da rica fonte da fragilidade da mente humana para instigar o debate que lhe vale um lugar especial entre similares do gênero. Em ambos os filmes, predomina o dilema "Até onde basta?", "Quão longe você se permitirá ser desrespeitado até impor limites?". Em "Creep", a generosidade e gentil alma do cinegrafista, farejada de longe pelo predador, declara sua morte. Sua primeira linha, ao lhe pregar um tremendo susto na janela do carro, gira em torno de "Vamos nos divertir muito hoje... você tem um rosto realmente bondoso e gentil", um substitutivo ao que realmente se passa na sua cabeça doente: "Eu vou testá-lo com joguinhos psicológicos cada vez mais atrevidos até te desrespeitar completamente, e mesmo assim você continuará me dando oportunidades de azucriná-lo seguidamente, porque precisa acreditar na bondade dos outros, nem que seja à custa do próprio bem-estar". Mesmo numa crescente de sinais estranhos dados pelo esquisito patrão, o rapaz parece cair em si só mais tarde, quando se vê obrigado a passar a noite na cabine da montanha, e o homem lhe conta uma horrorosa história sobre seu passado, envolvendo uma esposa com fetiche por bestialismo. Com a confissão, o cinegrafista é sacudido para fora da própria letargia, para fora da carência por aceitação, e entende que precisa deixar o lugar imediatamente. Eu me lembro de ter pensado, "Bom, aí está, amigo: você teve muitas chances de partir, e as foi eliminando, até se ver sentado à mesa em uma cabine deserta com esse cara, para justamente então se dar conta de que está lidando com uma maldade além da própria compreensão. Boa sorte com isso". Em "Corra!", o primeiro forte sinal de que Chris entrou em uma perigosa situação acontece na primeira noite, quando Missy o induz a se aprofundar nas dolorosas recordações sobre a mãe, e o hipnotiza contra a vontade. Neste ponto, eu disse a mim mesmo que, fosse eu na situação, teria partido ao raiar do sol, sem dar nenhum tipo de explicação. Teria simplesmente deixado a propriedade a pé, sem nem mesmo me arriscar a chamar um táxi e precisar aguardar na sala. Chris, entretanto, persiste na dura missão de desculpar as pequenas ofensas, na missão de perseverar até que alguém, qualquer um, possa lhe dar uma genuína prova de bondade. Quase interpretei o erro de julgamento de Chris como desleixo do roteiro, mas aí me recordei de que, no filme, o fotógrafo sequer chegara aos trinta anos. Aos trinta e oito anos de idade, não me cabe projetar minhas observações sobre as escolhas de um jovem de vinte e cinco. Quando somos jovens, sofremos para sustentar um absurdo policiamento sobre o senso crítico que nos é inerente desde o instante que chegamos ao mundo, e nutrimos uma irreal expectativa pelas coisas, sensações e pessoas deste mundo, performando contorcionismos para "fazer caber" a sua realidade a um modelo de perfeição alimentado por fantasias de altruísmo deturpado. Eu me lembro de uma linha do maravilhoso "Romeo is Bleeding", de 1993, a história de um tira corrupto que recebe "por fora" de mafiosos novaiorquinos, e vive uma existência dupla, dentro e fora da lei. Até o dia em que uma psicopata, assassina serial a serviço da máfia, atravessa seu caminho, e embora não tire a sua vida, lhe custa a sanidade. De toda forma, há uma interessante linha proferida pelo tira, após cair na real, que cabe a minha explicação: "Você sabe o que é inferno? Inferno é quando você teve a chance de dar as costas e partir, mas resolveu ficar". Tendo este relevante aspecto em mente, enxerguei que mais do que uma superficial história de horror baseada em preconceito racial, o filme, no frigir dos ovos, tenta nos contar uma parábola sobre empáticos (Chris) e narcisistas (a família Armitage), ou melhor, sobre um certo tipo de fenômeno associado a essa perturbadora realidade, chamado "gangstalking". Chris nega-se a enxergar a realidade descortinada diante dos olhos por causa da decência que o impele a negá-la, mesmo quando o sexto sentido acusa e exclama a um nível subconsciente que não está por "imaginar coisas", que embora jamais obtenha uma honesta confissão daquelas pessoas, elas lhe querem muito mal, sim, por uma gama de razões, a mais palpitante delas, talvez, não a cor da pele, mas o altruísmo, a empatia tão intrínseca ao rapaz, impossível de ser condensada por narcisistas, meros copiadores de nobres sentimentos, sem, de facto, experimentá-los a um nível pessoal. "gangstalking" é um termo recorrente ao tema, e assim como a palavra "Gaslightning", aparece consistentemente na literatura sobre o transtorno, muito embora os entusiastas de teorias de conspiração levem o assunto à vertente de "implante de chips", experimentos macabros perpetrados pela CIA ou seja lá o que for, o que, lamentavelmente, solapa a credibilidade de uma seriíssima questão. Não, "gangstalking" não se amolda à noção fantasiosa dos febris teoristas. Na verdade, é tão real quanto o dia após a noite, embora não pelas razões e instrumentos apregoados pelos malucos que enxergam um ângulo, um esquema para cada faceta da vida. Seus motivos parecem atrelar-se a questões de ordem espiritual, de sorte que jamais nos caberá compreendê-lo inteiramente (por mais que haja ampla documentação online da verossimilhança das alegações das vítimas), e se trata de um assalto recorrente, sobretudo a pessoas que em algum momento da vida tenham sido tocadas por abusos emocionais perpetrados por narcisistas malignos. Cuidadosamente escrito, "Corra!" enverga com sagacidade o passado de Chris sob o peso da dor da traumática perda da mãe, para assim criar a ferida emocional que, em boa parte, atrai o assédio perpetrado tantos anos mais tarde, conduzidos por narcisistas. Ainda sobre esse aspecto, a representação do mergulho da hipnose como imersão em um meio tomado pelo breu e sem fim à vista encapsula com muita sensibilidade a representação do tormento emocional infligido por narcisistas, principalmente quando, como abusados, não temos conhecimento do transtorno ou de como se manifesta, e, por conseguinte, nos metemos na mais absurda confusão ao procurar por lógica dentro de um túnel fantasma, ou de um espaço sideral com uma tela plana flutuando acima de nossas cabeças.

Assim como vimos em tantos outros filmes, como "Os Estranhos" & "O Dia Seguinte", "Corra!" esbanja um invejável habilidade em build up que, contraditoriamente, me faz pensar no seu único ponto fraco: com 104 minutos, se o diretor o tivesse esticado por mais 16, teríamos sólidas duas horas que teriam beneficiado o resultado final. Nós vemos o carro se afastar na estrada do bosque, com Chris dentro, a salvo, e os créditos sobem, entretanto teria sido prudente acompanhá-lo na sua "volta ao mundo", após tão traumático evento, pois guardaríamos uma noção de como o rapaz assimilou o acontecido, e retomou a vida. Vez que o filme, primordialmente, nos conta o drama de um homem objeto de gangstalking perpetrado por narcisistas, a profundidade psicológica da tragédia oferece um leque de situações que, de uma forma ou de outra, teria alicercado interessantes desdobramentos e explorações. Claro, o clímax, com direito à "realocação" de consciência e troca de corpos, beira as raias do horror fantástico, mas tudo o que vem antes pode - e deve - acontecer na nossa realidade, sem que nem mesmo tomemos conta da manipulação. Ainda no tocante ao produto final, há algumas cenas vistas no trailer, ausentes do filme, que podem nos ajudar a compreender as ações dos personagens. A primeira cena vista no trailer e ausente no lançamento nos mostra o protagonista na escuridão, usando um isqueiro para se orientar, quando, repentinamente, um esqueleto revelado pela precária luz salta do breu. Na versão derradeira, o diretor faz questão de nos mostrar a cabeça do veado, exposta como troféu de caça no gabinete onde Chris é mantido em cativeiro. A cabeça será usada mais tarde, quando Chris recorrer à mesma para, com os chifres, empalar o neurocirurgião. Pois bem, o esqueleto que salta sobre o rapaz, na cena cortada, compõe um pesadelo do fotógrafo, e pertence, obviamente, ao veado morto cuja cabeça exposta o deixou tão impressionado. A segunda cena, vista em TV Spots à época do lançamento nos cinemas, reporta-se à abdução de Dre Hayworth, e exibe, claramente, uma misteriosa figura vestida como cavaleiro medieval, atacando o rapaz. A aparição sugere o papel mais ativo de Dean na abdução, pois, na casa dos Armitage, vemos uma armadura idêntica exposta na sala de estar. Existe uma terceira cena, jamais vista no cinema ou no trailer, que põe em xeque o caráter final de Rose. No filme, ela é claramente uma vilã. porém o diálogo, caso tivesse permanecido, teria levantado a importante questão de que até ponto livre arbítrio estava em jogo, no tocante a suas macabras ações. A cena se dá quando Chris procura a namorada na manhã seguinte à hipnose para lhe contar que Missy o induziu ao transe, contra a vontade. O momento excluído revolve o comentário da moça. Ela fala algo nas linhas de que a mãe fizera o mesmo a sua pessoa, quando criança, por causa de seu pavor em se apresentar nas peças escolares, e que, embora se recorde de ter sofrido de pesadelos horrendos por um tempo, de fato, a hipnose a livrou do medo de atuar nas peças. Se Missy foi capaz de submeter a filha à hipnose, por que não deixar um gatilho através do qual a manipulasse a fazer suas vontades, como tomar parte no sórdido segredo da família? O filme deixará perguntas, e talvez por não as ter respondido, o diretor esteja criando o mistério que deixará as pessoas falando a respeito de "Corra!" por muitos anos.
Todos os direitos autorais reservados a Blumhouse Productions. O uso do trailer & imagens é para efeito meramente ilustrativo da resenha.


Um dos mais sensacionais filmes independentes fantásticos de 2016, "The Void" é o primeiro lançamento em um bom tempo a render uma elegante, merecida homenagem a H.P. Lovecraft, o maestro do horror cósmico, inspiração para os maiores escritores & cineastas do século XX. Dirigido & escrito por Jeremy Gillespie & Steven Kostanski, também autores do argumento, "The Void" ganha febril vida na forma de um caleidoscópio de puro gore e terror espacial que revisita os mais palpitantes temas da obra literária de Lovecraft, cujas adaptações para cinema usualmente transitam sobre a corda bamba da inconstância, gerando ou maravilhosos resultados, ou produtos aquém do esperado. Curiosamente, "The Void" não adapta nenhuma obra específica do autor. Trata-se de um trabalho original dos diretores, todavia jamais existiria se não tivesse pegado emprestado o núcleo das terríveis, assombrosas ideias de Lovecraft, nos moldes do que Koji Shiraishi fez em 2008, ao procurar inspiração para filmar "Okarutu", outro trabalho pessoal fortemente assentado sobre filosofia lovecraftiana. James (Evan Stern), um jovem problemático e dependente de drogas, se atira para fora de uma cabine, em cuja porta resta pintado um misterioso símbolo em forma de triângulo, e corre em direção ao denso, escuro e assustador bosque, visivelmente apavorado. Em seguida, uma moça deixa a cabine. Ela não goza da mesma sorte do colega, pois é derrubada com um certeiro tiro nas costas. Seu corpo se torna uma bola flamejante depois que Vincent (Daniel Fathers) e seu filho Simon (Mik Byskov) lançam gasolina e um fósforo aceso sobre a garota. Vincent observa o bosque, desgostoso, e decreta que James não conseguirá chegar muito longe. A todo instante, o filho veste um olhar dolorido e preocupado, a expressão de alguém que não se acostumou a cenas tão brutais. À primeira vista, assumimos que pai & filho são homicidas impiedosos, pelo cometimento de tão terrível ato, porém as reviravoltas à frente nos apontarão que não ocorre consoante as primeiras impressões. Enquanto James foge desesperadamente, ao longe, testemunhamos bizarras figuras metidas em capuzes, com pinceladas pretas na parte do rosto a lhes emprestarem uma simetria triangular idêntica ao símbolo na porta, assistindo à ação, sem se intrometer.

Não muito distante dali, o policial rodoviário Daniel Carter (Aaron Poole, do excelente "The Conspiracy", já resenhado no blog) cumpre o cansativo turno noturno, à espera de qualquer ocorrência, dentro de seu automóvel, estacionado em uma das vicinais do bosque. A atendente da linha de emergência entra em contato. Para todos os efeitos, trata-se de mais uma noite sem novidades, em uma modorrenta cidade do interior, quando, subitamente, o policial dá por uma movimentação nas árvores mais à frente e, após melhor averiguação, percebe que se trata de James, o jovem fugitivo. Ele manda um sinal de rádio `a atendente e solicita informações sobre o melhor hospital nas redondezas. Daniel resolve levá-lo ao hospital de Marsch County, porque, caso contrário, o próximo no mapa demandará mais 20 minutos de corrida na pista, e ele não quer barganhar com a vida do rapaz. Há uma razão pela qual Daniel parece meio contrariado em aparecer no hospital de Marsch County, entenderemos seu motivo posteriormente.

O movimento no saguão do hospital, mínimo, reflete a desolação e tristeza reinantes sobre o local. O lugar trabalha com uma staff mínima, porque, dentro em breve, a equipe médica e enfermeiras estarão de mudança definitiva para um prédio muito maior e melhor. O hospital foi vítima de um incêndio misterioso, alguns meses atrás, e a prefeitura achou mais conveniente realocá-los a um espaço mais apropriado. Caixas fechadas espalhadas pelos cantos da recepção e gabinetes robustecem a impressão de transitoriedade. Na recepção, o policial encontra as enfermeiras Allison (Kathleen Munroe) e Beverly (Stephanie Belding), que imediatamente cuidam de depositar o paciente sobre a maca. A staff trabalha sob a direção do brilhante Dr. Richard Powell (o veterano character actor Kenneth Welsh, em extraordinária performance após uma longa carreira de papéis secundários), e conta ainda com o suporte da rebelde residente de Medicina Kim (Ellen Wong). Embora praticamente deserto, há ainda mais dois pacientes sob cuidados, Cliff (Matt Kennedy), um rapaz boa praça e simpático recuperando-se de uma cirurgia menor, e Maggie (Grace Munro, em sólida atuação), uma moça grávida acompanhada do dedicado, bondoso avô, o Sr. Ben (James Millington).

James é conduzido para a emergência na maca. Em outro quarto, Cliff se distrai com o humor irreverente de Kim. Ela lhe mostra as fortíssimas imagens de livros de estudantes de Medicina. Para Kim, sangue faz parte do dia a dia, porém Cliff não tem um estômago igualmente forte, e nem arrisca espiar. Ele resolve cochilar um pouco. Há uma oscilação das lâmpadas do corredor, e a televisão, que exibe "A Noite dos Mortos Vivos" naquele horário, também varia entre a imagem do filme e faixas de ruído. Embora seja cedo demais para deduzir, há um peso sobrenatural projetando-se sobre as pobres pessoas no hospital. Na sala de espera, Daniel escuta ao extrovertido vovô vocalizar a expectativa pela chegada do neto. A comoção na sala de emergência chama a atenção de Daniel, que ao verificar a situação, encontra Dr. Powell debruçado sobre James, aplicando um sedativo que o colocará para dormir. O médico e as enfermeiras creem que James esteja passando por uma crise de abstinência. Marcas no braço indicam o apetite por agulhas, e seu estado agitado coincide com a sintomatologia de dependentes químicos. O rapaz finalmente adormece sob o efeito dos calmantes. Daniel percebe que sua camisa ficou um pouco salpicada de sangue. Quando ele vai passar álcool no tecido, dentro do almoxarifado, entendemos por que o rapaz procurou o hospital de Marsch County a contragosto. A enfermeira Allison vai ao seu encontro para ajudá-lo com a camisa, e, pela conversa, compreendemos que os dois foram casados em algum ponto. Uma separação prematura meio que deixou a história do casal em suspensão.

Dr. Powell surge para dar as últimas informações a respeito do paciente, e entra acidentalmente em cena. Depois que a enfermeira se escusa para ir buscar qualquer coisa, policial e médico têm a privacidade para dialogar melhor. Powell recomenda que Daniel exercite a paciência ao conversar com Allison. Pela fala do médico, aprendemos que foi pela trágica morte de um filho que os dois se separaram. Também descobrimos algo sobre Powell, vez que, tendo perdido a filha Sarah, ele dá conselhos com conhecimento de causa. Com a madrugada em curso e as coisas em aparente ordem, Daniel caminha pelo corredor da ala de pacientes, praticamente vazia, e se detém ao escutar um barulho vindo de um dos quartos. Ele encontra a enfermeira Beverly, de pé ao lado do leito de Cliff, e pergunta se a moça se sente bem. A enfermeira se vira, e revela o caos da cena: enfiou uma tesoura em um dos olhos do paciente, após usá-la para extirpar o próprio rosto como se o mesmo fosse uma máscara de limpeza. Beverly parece tomada por um surto psicótico. "Esse não é meu rosto", ela murmura, confusa, com um sorriso, "Essa não sou eu!". A enfermeira manipula a tesoura de um jeito que acusa a intenção de usá-la em Daniel. Lamentavelmente, o policial precisa efetuar um disparo para tirá-la da ofensiva, o que chama a atenção da equipe médica.

Daniel procura se refrescar no banheiro, passa mal e desmaia. Há a intromissão de bizarras cenas que não parecem relacionadas à narrativa. Conhecedores da obra literária de Lovecraft, óbvia inspiração para este filme, interpretarão as tomadas de nuvens formando imagens esquisitas no céu e a superfície estéril e rochosa do que parece ser outro planeta como referências ao horror cósmico tão característico do mestre, sobre o qual tecerei comentários mais adiante. Daniel desperta com os chamados de Allison e Dr. Powell. Ele teve uma síncope. O patrulheiro Mitchell (Art Hindle, entusiastas de Cronenberg se recordarão dele como o pai divorciado de "Os Filhos do Medo") se encontra no átrio do hospital, para coletar informações sobre a confusão envolvendo Beverly. Daniel conta o ocorrido - a enfermeira assassinou Cliff com uma estocada de tesoura no olho, depois partiu para cima do policial, não lhe dando alternativas. Mitchell revela que algo estranho se encontra em curso na região, naquela noite. A vinte milhas ao norte, soube de um verdadeiro banho de sangue, e James, o visitante, parece envolvido na carnificina. Ele levanta a hipótese de o homem ter dado alucinógeno para a enfermeira, o que explicaria o modo como ela perdeu a cabeça, matou Cliff e atacou Daniel.

Ao tentar uma ligação para a delegacia, para chamar a perícia, Daniel estranha ao constatar o telefone mudo. Ele deixa o hospital momentaneamente, para procurar utilizar o rádio, que também não dá sinais de serviço. Ao olhar de forma casual na direção do bosque, Daniel enxerga uma pessoa sob capuz branco, semelhante a aquele visto no início do filme. Diante do silêncio do estranho, Daniel deixa o automóvel e lhe pergunta se pode ajudá-lo. Subitamente, ocorre uma queda generalizada de energia. Ao fundo, ecoa o ressoante, tétrico rumor de um berrante semelhante aos utilizados para tanger gado. O estranho saca um punhal e parte para cima do policial. Apesar de atingido em uma parte do ombro, Daniel consegue golpeá-lo, desvencilhar-se e buscar refúgio no lobby do hospital. Logo, outros membros do culto deixam a escuridão, e sob a luz cálida e amarelada dos postes, emergem, às dezenas. Ferido, Daniel perde a consciência e recebe atendimento ao desfalecer no chão. Dr. Powell e as enfermeiras precisam estancar a hemorragia no ombro. O policial sofre novas visões, a mais impressionante a de uma colossal movimentação no tecido esgarçado do céu estrelado.

O pesadelo só está por começar, e os gritos de desespero vindos do quarto onde James foi acomodado lançam o grupo numa corrida para examinar o ocorrido. Eles dão de cara com uma macabra cena, mais selvagem que seus piores pesadelos. Como suspeito de assassinato, o dependente químico foi algemado à grade da cama, e suplica que o libertem. A alguns metros da cama, do corpo de Beverly brotou uma coisa disforme e monstruosa. Não há como descrever a aberração, não se pode pontuar olhos, ou bocas, trata-se de uma coisa amorfa com tentáculos e tromba, crescida a partir do cadáver da enfermeira, agora pendurada ao monstro como mero anexo, praticamente uma casca inerte. Daniel quebra a grade da cama a chutes, liberta o rapaz e ordena que deixem o quarto. Ele encerra a porta e a chaveia com a esperança de mantê-la aprisionada. Com uma cotovelada, Daniel arrebenta a caixa de segurança e puxa o machado para incêndio. Ele explica a Mitchell, sob a aterrorizante atenção dos demais, que precisam abrir caminho até seus carros, no estacionamento, para evacuar o lugar. Nisso, Vincent e o filho Simon aparecem esbaforidos, o homem de posse do rifle.

Perante a intromissão de Vincent e Simon, James se vale da confusão generalizada para pôr as mãos no bisturi do médico e tomar a menina grávida como refém. Vincent o mantém sob a mira do rifle. Dr. Powell tenta negociar com o delinquente, mas acaba levando um golpe na jugular, um ferimento fatal. Ao fazer gestos exagerados com a mão armada, James dá oportunidade para que o Sr. Ben o segure pelo pulso e o desarme com um bem-lançado murro no maxilar. Enquanto o embate se dá no corredor, o monstro consegue mover a tranca do quarto para cima, e libertar-se. Mitchell não percebe o perigo a tempo, e a criatura o apanha por trás, enlaçando-o com os tentáculos. O patrulheiro é arrastado para uma sala escura, aos gritos, e pouco há a fazer. A monstruosidade, que preserva o cadáver da enfermeira morta como uma "capa de chuva", enfia os tentáculos, semelhantes aos de polvos, por todos os orifícios da pobre vítima. Vincent e Simon abrem fogo contra o monstro, e quando os tiros não funcionam, "fatiam" a fera a machadadas. Gosma jorra do corpo da besta enquanto a lâmina segue no sobe-e-desce, até deixar o monstro silente. Após a confusão, James é algemado junto ao corrimão, e o grupo tenta fazer sentido da loucura. Daniel e Vincent demoram a se entender, porque o policial não quer deixá-los fazer mal a James. Os dois visitantes parecem compreender a natureza do sobrenatural, mas a febre do momento deixa todos de cabeça quente, gerando intensas discussões.

Allison preocupa-se com Maggie, porque a menina está em vias de parir, e o parto deverá ocorrer a qualquer momento daquela madrugada. Vincent exclama que consegue ouvir os berrantes mesmo a milhas do hospital. Os membros do culto ou já se posicionaram ao redor do hospital deserto ou estão a caminho para reforçar a vigília. Os sobreviventes atiram os restos da criatura sobre um carrinho e o empurram, em chamas, através do lobby, até a coisa cair no estacionamento. Reunidos em uma sala, eles se esforçam para chegar a um acordo. Allison aponta ao marido que os rapazes devem recuperar o carro, enquanto ela precisa visitar o depósito para reunir os itens necessários para realizar a cesariana. Daniel pede que ela aguarde sua volta para ir ao depósito. Vincent e Simon têm um rifle, mas nenhuma munição. O policial explica que se eles o ajudarem a vasculhar o carro, lhes fornecerá balas para o rifle. Os três partem em direção ao escuro estacionamento, intencionando alcançar o carro. Dentro do hospital Allison, Kim e o Sr. Ben ajudam Maggie a se deitar, e a cobrem com lençóis, por causa do frio.

À primeira vista, não há sinal dos integrantes do culto pelas vizinhanças, e enquanto Daniel vira o interior do automóvel de ponta-cabeça para juntar projéteis suficientes, Simon Vincent recomendam pressa, do lado de fora, ambos de machados em mãos, na expectativa. No hospital, Allison descumpre sua parte no trato, e parte sozinha para o almoxarifado, para colher anestésicos e demais itens necessários à cesariana improvisada. A tomada da cena a mostra separando frascos, e, quando a moça se abaixa, acusa a presença de uma figura na porta, mais especificamente Dr. Powell, que, para todos os efeitos, tinha morrido ao tomar a facada no pescoço. Quando Daniel aciona o giroflex, a aquosa combinação de luz vermelha & azul deita-se sobre o culto, em massa, seus membros mais à frente do carro, pessoas de branco munidas de punhais. Vincent grita para que o policial trate de pegar o restante das balas para darem o fora dali. Um dos estranhos fere o garoto com uma punhalada na palma da mão, mas Daniel o derruba com um tiro de escopeta. Eles retornam para dentro, e o policial fica furioso quando Kim lhe conta que Allison não quis esperar e partiu sozinha para o almoxarifado.



Daniel e Vincent partem juntos, munidos de lanternas, hospital adentro, para buscar Allison. Um hospital escuro sempre será inquietante em seu silêncio, imaginem sob as presentes circunstâncias! Os dois são atraídos por chamadas do telefone do gabinete do Dr. Powell, e pelo display, Daniel constata que a ligação vem de dentro do hospital, da ala do necrotério. Ao atender, escuta a voz de Powell, do outro lado da linha. Ele diz, com uma voz gutural "Você enxergou algo, enquanto esteve apagado... pude perceber no momento em que voltou a si. Posso mostrar mais dessas coisas, se desejar. Sei que é difícil entender, Beverly também achou difícil, mas lhe asseguro, minhas intenções são altruístas. Você deseja tanto seguir as pegadas de seu pai, Daniel. Quer realmente segui-lo até onde ele foi? Eu entendo como o luto deixa as pessoas desesperadas, como na noite em que você trouxe Allison para mim, a vida dentro de seu ventre, desesperada para sair. Perder a minha filha também foi algo que me transformou... mas estou fazendo o necessário para reparar a perda. Você entenderá, em breve. Não se preocupe com Allison, Daniel. Eu a ajudarei. Eu ajudarei todos vocês". Enquanto o monólogo se sucede, a câmera passeia pelo interior do gabinete, e vemos uma foto de Powell, cerca de uma década mais jovem, ao lado de uma menina muito magra, que presumimos ser sua filha morta. Vincent encontra fotos polaroide dentro de uma maletinha branca, e o conteúdo, de revirar o estômago, exibe revoltantes imagens de orgias envolvendo jovens em alguma espécie de culto satânico. Os cadernos de Powell indicam sua obsessão pelo oculto, pois há pentagramas e símbolos preenchendo folhas e mais folhas. Acima de qualquer suspeita, o importante cirurgião presidira o culto e promovera orgias e rituais satânicos escudado pela impressão de respeitabilidade e estatura social.

Daniel carrega o rifle e se prepara para entrar até as vísceras do hospital para resgatar Allison. Antes de partir, entrega um revólver para a assustada Kim, e pede à moça para defender as vidas de Maggie e do Sr. Ben enquanto estiver ausente. Vincent Simon passam a vista pelas macabras fotos polaroide, e lhes ocorre a ideia de arrancar a verdade, mesmo que à força, do viciado James, metido até o pescoço na sujeira (o rapaz aparece nas nauseantes fotos de bacanal). Sob a ameaça de surra, inclusive de ter um dos dedos da mão quebrado a marteladas, James revela o que sabe, e insiste na responsabilidade de Powell. Quando Daniel explica que mesmo após ter sido golpeado no pescoço o médico se encontra perambulando pelas entranhas do prédio, o viciado se desespera. Ele relembra as circunstâncias de como o conheceu. James era basicamente um andarilho vagabundeando pelas estradas do interior, movido pela loucura de consumir drogas, quando uma moça o abordou e o convidou a ir a essa boca de fumo onde encontrariam cristal a baixo custo. Ao chegar à boca de fumo, na verdade o sítio visto no começo do filme, James descobriu tarde demais que o lugar, chamado por Dr. Powell de "igreja", albergava orgias, e jovens consumiam drogas ininterruptamente sob a direção do médico, o "sacerdote", que ordenava sacrifícios e matanças para "enriquecer" os eventos. As pessoas se vestiam com robes brancos cujas faces, cobertas por capuz, exibiam o esquisito triângulo, a imagem tão recorrente ao longo do filme. James afirma, categórico: "Eu não acredito no inferno, mas essa parada é muito pior! Eu vi pessoas se transformarem. Eu vi!". Daniel o livra das algemas, e decreta que o rapaz os acompanhará na descida, para seu desgosto. Ele implora para que apenas tratem de fugir do hospital, mas o furioso Vincent o obriga a olhar através das janelas do lobby: o número de estranhos aumentou, eles agora tomam conta do perímetro completo do hospital.

Sabemos que o prédio sofreu um incêndio, meses antes, então o aspecto do porão causa grande opressão claustrofóbica. O quarteto precisa cruzar um emaranhado de corredores muito estreitos e empoeirados para atingir o necrotério. Eles desembocam em novas passagens que originalmente não compunham a planta do hospital. O local fora preparado clandestinamente para práticas satânicas. Allison desperta em uma maca do necrotério. Ela foi drogada de modo a não conseguir se mover, todavia escuta a voz distante de Dr. Powell, esterilizando instrumentos cirúrgicos na cuba. Mesmo no torpor, Allison pergunta como o médico pode estar ali, se ele foi morto. Powell expõe sua agenda secreta, basicamente uma missão movida pela depravação sem limites de conseguir, através do oculto, trazer a filha de volta ao mundo dos vivos. Allison servirá como conduto para o regresso, o "portal" entre o mundo dos vivos e dos mortos. Na sala onde Kim toma conta do Sr. Ben e da jovem grávida, a situação se deteriorou. Ela se vê a um sopro de entrar em processo de parto. Também nas vísceras do hospital, a turma se depara com uma porta marcada pelo triângulo ícone do culto luciferiano. Ao empurrarem a porta, os rapazes visitam um espaço semelhante a um açougue. O fedor é medonho. No necrotério, Powell segue se aprofundando nas suas teses para uma atônita Allison: "Você sabe para onde vai, depois que morre? Eu sei. Você segue a viagem, renasce em outra coisa, como o lagarto ao se tornar mariposa. Até agora, eu só fui capaz de rastrear a mariposa dentro do casulo. O corpo precisa se ajustar, claro. Ele se adapta. Não fomos feitos para esse tipo de coisa. Eu admito, no começo, realizei erros. Alguns destes erros ainda se encontram nas entranhas do hospital, conosco. Para falar a verdade, meus 'erros' causaram o incêndio que quase destruiu o hospital. Você sabe... eles querem morrer, mas eu não vou deixar. Não chore, Allison, eu a ajudarei. Esse é o fim do ciclo de vida & morte. Você deseja este mundo, realmente? Este mundo que tirou teu filho de ti? Sabe o que aconteceu na noite em que você pariu? Cordão umbilical ficou preso, embolado ao redor do pescoço do bebê, em um nó cada vez mais apertado, até que ele não tivesse mais forças para lutar. Irônico, não? Que algo tão emblemático da ligação de vida entre mãe & filho tenha atuado como a forca que lhe custou a vida. A aleatoriedade do destino".


No salão explorado pelo quarteto, as imagens são de puro vandalismo, irrestrita profanação. Pedaços de corpos presos por ganchos, depravação por todos os cantos. Há um número absurdo de gente morta espalhada por todas as direções. Repentinamente, os corpos sinalizam vida. Há um zumbi tentando inutilmente se matar, enfiando a cara em um cano, sem conseguir desligar. Mortos-vivos marcados pela deformidade deixam a escuridão e avançam contra os quatro aventureiros. Daniel e Simon se veem forçados a recuar, e retardam o avanço dos zumbis com fogo cerrado. James é pego e arrastado por uma coisa que se parece com uma tarântula, pois se movimenta de quatro, sobre pés & mãos. Dominado psicologicamente, Vincent caminha direto para uma fenda, uma passagem para outra dimensão, aparentemente. Enquanto isso, no lobby do hospital, Kim se vê forçada a realizar a cesariana, quando Maggie entra em trabalho de parto. Sr. Ben segura a residente pelos braços e grita para colocar um pouco de senso na sua cabeça, pedindo coragem, lembrando-a de que se não ir adiante com a cirurgia, a neta morrerá. Repentinamente, Sr. Ben tem a garganta retalhada por um golpe de bisturi, e, na cena mais memorável do filme, vai ao chão, revelando a neta Maggie às suas costas, com um sorriso histérico, quase como se tivesse atingido o nirvana. Diante de uma estupefata Kim, Maggie expõe a verdade: Dr. Powell é o pai da criatura em seu ventre, concebida em uma das bacanais do culto. As luzes do gerador se vão, e o chamado do berrante chama a atenção de Kim para os encapuzados, agora no interior do hospital.

Nas entranhas do hospital, Simon segue Vincent até uma cela recriada exatamente como a sala de estar da antiga casa, no tempo em que a mãe e a irmã estavam vivas. Vincent briga com o filho, por pouco não o estrangula, enquanto exige saber por que o rapaz não impediu a morte da mãe & irmã. O roteirista não se preocupou em esmiuçar o passado de Vincent, porém podemos deduzir que o rapaz, Simon, foi o elo fraco da família, aquele que, por ignorância, se meteu com o culto. Possivelmente, ao tentar romper com a seita, a perseguição dos satanistas tenha precipitado a morte de membros da família. Vincent cai em si e mantém as emoções sob controle. Daniel finalmente chega ao necrotério, e por um momento crê que Allison ficará bem, pois a encontra prostrada no leito, com os olhos marejados. A voz de Powell aviva o ambiente, e o policial se dá conta de que onde antes suas mãos se encontravam, a barriga de Allison, agora existe somente um punhado de cinzas, e ao invés da bela mulher, uma monstruosidade de tentáculos, como um híbrido de polvo e tarântula, ocupando a cama numa posição obscena. Powell ataca a ferida emocional de Daniel, e afirma que no dia em que Allison perdeu o bebê, enxergou alívio, e não pesar, nos olhos do policial. Determinado a abreviar o sofrimento da mulher/besta, Daniel finaliza sua vida a golpes de machado.


A antessala do necrotério virou um ambiente estéril e escuro, como o interior de uma nave extraterrestre, ou o meio pelo qual a Isserley de "Under the Skin" abduzia suas vítimas. Na parede, da folga entre a moldura do portal e a estrutura triangular, emana uma luminescência esbranquiçada que nos faz pensar na natureza do além. A voz onipresente de Powell apregoa seu desafio a Deus: "Passei a vida resistindo à morte, mas agora entendo. Eu devo abraçá-la. Terei minha bela filha Sarah de volta. Só preciso cuidar de um último detalhe". Daniel não tem como evitar a facada desferida por Maggie, que o acerta nas costas. Ela rasteja até o altar onde Dr. Powell ressurge, como um sacerdote pervertido, cuja aparência evoca a dos cenobitas fetichistas de "Hellraiser". O policial vai ao chão e assiste aos desdobramentos da sinistra cerimônia. Powell convida a moça a se juntar a ele no altar, e Maggie se ajoelha aos seus pés. Ele abre as mãos em direção à passagem e exclama "Observe o abismo se abrir diante de mim". Entoando dizeres de encantamento em uma língua estranha, Powell move a passagem e exibe o grande "vazio" do outro lado, uma enormidade de luz branca que ofusca a vista. Ele deposita a mão na cabeça de Maggie e a moça entra em definitivo trabalho de parto. Powell decreta que sua filha Sarah viverá pelo ventre de Maggie.

Uma besta horrenda, semelhante a um búfalo melado, rasga furiosamente a barriga da moça e emerge do útero, embebida em sangue e gosma. Assim como ocorreu à BeverlyMaggie permanece conectada à monstruosidade como um "apêndice" primitivo, um trapo a ser arrastado. Vincent surge com o rifle e abre fogo contra a criatura. Ela o derruba com patadas, e embora Vincent conte com o suporte de Simon, é fatalmente apanhado pela besta, que o impala no peito com as trombas. Ele se banha em gasolina, e grita para que o filho lance o sinal luminoso, o que fatalmente os imolará - homem & besta - no fogo. Com o sacrifício, Vincent perde a vida, mas também leva consigo a "filha" de Powell. Simon consegue fugir do necrotério através do duto de ventilação. Ele e Kim serão os únicos a deixar o hospital com as vidas. Gravemente atingido, Daniel decide usar suas últimas forças para acabar com Powell, de pé diante do portal, falando sobre estrelas alinhadas e sabedoria cósmica. O policial o atinge com um golpe no ombro, e enterra a lâmina com tanta força que expõe o úmero. Usando o peso do próprio corpo, Daniel lança-se contra o médico, e ambos atravessam a passagem, rumo ao "outro lado". Em um desfecho que como nenhum outro retrata graficamente a obra literária de H.P. Lovecraft, criador do mito de "Cthulhu" e da ideia de seres extraterrestres tomando residência no nosso planeta, o filme termina com uma épica tomada panorâmica de Daniel Alysson reunidos em uma realidade alternativa, um mundo sombrio, deserto, uma espécie de "Egito alienígena sob sombras eternas" sobre o qual paira uma monolítica pirâmide alienígena, e tetraedros se pronunciam por trás das costas dos promontórios.


Para quem cresceu nos anos 80, na época das "locadoras de bairro", esta grata, bem-vinda surpresa "abrirá o portal" para aqueles dias tão afastados no passado, devolvendo-nos às noites de filmes de terror, quando fitas de vídeo empoeiradas ainda preservavam mistério, e das mínimas coisinhas tirávamos alegria. Há muito não se vê algo como "The Void", temática & estilisticamente. O único cineasta ainda na ativa cuja obra confunde-se tão significativamente com o trabalho literária de H. P. Lovecraft, Stuart Gordon, lançou seu último longa inspirado no mestre há mais de quinze anos, com a excelente coprodução espanhola "Dagon", vista por poucos, basicamente de exclusivo conhecimento de um nicho mais sofisticado. Desde 1985, todavia, o diretor tem tentado transpor para as telas as ocasionalmente infilmáveis ideias do mestre. Sua atração pela fantasia lovecraftiana começou em 1985, com "Re-Animator", e prosseguiu, nos anos seguintes, com uma variedade de produções de baixo orçamento recebidas com opiniões acirradas dos críticos, como "Do Além" (1986) & "Castle Freak" (1995). Mesmo depois de se aventurar no cinema com a adaptação das obras de Lovecraft, Gordon ainda tentou traduzir o peculiar horror do romancista, não para o cinema, mas para a TV, com "Dreams in the Witch House", curta-metragem rodada para a série da Starz Media, "Mestres do Horror". Outros cineastas especializados também toparam a dificílima empreitada de recriar em imagens & sons os tão abstratos delírios lovecraftianos, com destaque para Dan O'Bannon, o diretor do maravilhoso "The Ressurected", de 1991, estrelando John Terry, Chris Sarandon e Jane Sibbett, adaptação do conto "The Case of Charles Dexter Ward". Curiosamente, se analisarmos individualmente estas obras, observaremos que nenhum diretor arriscou uma adequação literal das tramas lovecraftianas. No caso de Gordon, em suas incursões, ele tomou emprestado "pedaços & partes" de distintas ideias originárias de dois ou três contos e, através da adição de ingredientes e da experimentação com os resultados, todos derivados da vasta, febril mente de Lovecraft, temperou construções cinematográficas que mais ou menos traduziam uma parte de suas obsessões. Bem-intencionado e talentoso, Gordon pecou, a meu ver, pelo exagero que imprimiu aos filmes ao exacerbar o gore, deixando de lado a elegância, pilar da prosa do escritor. Pelas transposições do trabalho de Lovecraft para as telas, aprendemos duas importantes lições. Primeira lição, como a adaptação literal dos conceitos beira as raias do impossível, se analisarmos as versões cinematográficas, anotaremos que os diretores sempre aproveitaram outros conceitos do mestre, e, munidos de liberdade criativa, suavizaram-nos, tornando as tramas passíveis de captura pela lente. Lovecraft não foi o único autor cujas obras, quando filmadas, foram submetidas a um processo de "recriação", de preparação para outro tipo de mídia, mais avesso a propostas tão inflamatórias: o mesmo fenômeno acontece a Edgar Allan Poe, outro nome sagrado da literatura, cujos trabalhos continuam a inspirar os românticos, os melancólicos e os entusiastas do horror gótico. O escritor, um homem atormentado de cuja mente brotavam as mais tenebrosas ideias, mas contraditoriamente possuía a sensibilidade e bondade para amar os animais, mais especificamente adotando gatos de rua com que abarrotava a capacidade de seu humilde apartamento, morreu a 7 de outubro de 1849, crê-se, vejam só, de raiva virótica, e deixou um conjunto de obras que, ao longo dos séculos, infundiu de paixão um riquíssimo portfólio, desde séries brasileiras como "Contos do Edgar", a filmes dirigidos por luminares do gênero, como Dario Argento & George Romero ("Dois Olhos Satânicos") e o próprio Stuart Gordon ("O Poço & O Pêndulo"). Em "Dois Olhos Satânicos", por exemplo, Romero Argento adaptaram para o mundo contemporâneo o universo dos contos "The Facts in the Case of Mr. Valdemar" e "The Black Cat", e, no último caso, Argento agregou à trama elementos de outros contos, "Berenice" e "The Fall of the House of Usher". No que importa a estes dois grandes escritores, portanto, qualquer versão cinematográfica representará visões particulares filtradas da argamassa, da superestrutura dos trabalhos reduzidos a termo e sacramentados nos cânones da dramaturgia dos séculos XIX e XX. Lição n°2, surpreendentemente, o melhor caminho para honrar o legado destes dois grandes nomes consiste no expediente da "reimaginação", ou melhor, no ato se desapegar dos textos e dar asas à imaginação, utilizando-os como ponto de partida, mas se afastando da literalidade das folhas de papel. Os cineastas devem se voluntariar a retomar os delirantes sonhos de onde foram deixados pelos pensadores originais, para aí sim rodarem os filmes que bem entenderem. Neste sentido, não filmariam página por página, entretanto, não haveria melhor presente aos mestres do que lhes apresentar novas visões decorrentes de seus pesadelos pessoais. Os cineastas e artistas mais interessantes de nossa época, como David Cronenberg e Clive Barker, beberam da fonte, e trabalharam em cima da centelha deixada por Poe & Lovecraft. Foi assim que os cineastas Steven Kostanski & Jeremy Gillespie criaram "The Void", uma joia rara e um dos melhores filmes de horror dos últimos cinco anos, que embora gerada da mente de seus diretores, traz em si encrustada a mitologia lovecraftiana.

"A mais antiga e poderosa emoção do ser humano é o medo, e o mais antigo e poderoso tipo de medo é o do desconhecido", escreveu Lovecraft, o legítimo sucessor de Edgar Allan Poe como mestre do macabro, e um homem cuja sofrida vida pessoal em muito espelhou a caótica arte do terror antropológico. Tendo perdido o pai na infância, Lovecraft conheceu intimamente os horrores das "doenças da alma" desde cedo, já que o pai lutou por boa parte da vida com a esquizofrenia, a mãe veio a desenvolver a condição, e o próprio Lovecraft, na infância, teve o desenvolvimento escolar sabotado por longos períodos de distanciamento engatilhados por colapsos emocionais, requentados por aguda depressão. Sentindo-se alienado de seu meio, ele veio a lapidar a temática que perduraria nos seus contos, através da proposta de um horror indiferente à luta entre Bem v. Mal. Para LovecraftCthulhuAzathot & Yog-Sothoth, deuses mais antigos do que o tempo, integrantes dos complexos cânones nascidos da mente do romancista, nos observam, de fora, com curiosidade, casualmente expondo suas horrendas caras para denunciar a inutilidade da empreitada humana na busca pela lógica, vez que da desordem tudo veio, e à desordem voltará, sem sobreaviso. Lovecraft tinha fascínio incomum pela astronomia, o estudo das estrelas, e os "insondáveis mistérios do cosmo" (termo utilizado na sua melhor história, a magistral "A Cor que veio do espaço"). Nas tramas, apreciava criar personagens estudiosos compromissados com a cerebral, enlouquecedora missão de descrever e desvendar a natureza das coisas. Guillermo del Toro, diretor de "O Labirinto do Fauno", discorre muito bem sobre sua singularidade, ao arrazoar que Lovecraft foi o primeiro escritor a forjar "uma escala pela qual se pode mensurar a pequenez do homem diante do cosmo". Quando eu escrevi, no parágrafo acima, que o melhor approach ao mestre se dá pelo caminho da imaginação, ilustro o meu ponto citando "Okarutu", de Koji Shiraishi, resenhado no blog, em artigo cuja leitura recomendo. Ali, no filme de Shiraishi, testemunhamos em primeira mão a revolução de perene movimento pela qual a realidade como a conhecemos, particularmente a paisagem de um dos mais celebrados pontos turísticos do Japão, o cruzamento na estação de trem de Shibuya, coexiste com uma outra dimensão, visível só a olhares mais sensíveis, uma outra existência, habitada por sombras gigantescas semelhantes a lulas voadoras e malevolentes, em suspensão no meio amorfo e abstrato superposto ao céu. `A lógica, portanto, não cabe a importância dada, porque o olhar racional jamais capturará a envergadura enlouquecedora da natureza das coisas. A lógica não passa de um soluço de equilíbrio, prestes a ser sufocado. No pináculo de suas colossais dimensões, os deuses de impronunciáveis nomes encapsulam um universo cujas miríades encontram-se além da compreensão do "cérebro órgão", mas talvez dentro dos segredos da glândula pineal ("From Beyond"), proposta anos-luz dos fantasmas escritos pelos seus contemporâneos, que, pessimistas que o fossem, reservavam uma importância à redenção, recurso absolutamente ausente, estranho ao tom implacavelmente niilista das obras do mestre do macabro. Lovecraft também foi o precursor da "politização" de suas criaturas, uma atenção posteriormente emulada pelo grande Clive Barker, o homem que adora humanizar seus monstros e escrevê-los (ou filmá-los) nos seus ângulos mais mundanos e reveladores, como o olhar sabedor que atravessa o rosto da monstruosidade assim que ela prova uma taça de champanhe, apenas horas após ter emergido de uma poça de sangue, lutado e drenado um pobre doente mental agonizante por causa de maciça hemorragia, sobre um colchão, em "Hellbound: Hellraiser II", ou o deleite com que Frank, a criatura sem pele, clandestina no sótão, "esquenta" a fumaça do cigarro nos pulmões com uma elegante tragada, na escuridão, enquanto a amante lhe fornece cadáveres de homens executados a marteladas. Força de um "atavismo intelectual", Barker e Cronenberg sobrelevavam-se como última fronteira para as obsessões lovecraftianas, tochas tremulantes de criativo talento, intimidadas por uma implacável noite escura, marcada pela "ascensão dos medíocres", do "horror dos multiplexes". Após muitos anos de apatia, período dentro do qual os gênios silenciaram (Quando Barker dirigiu pela última vez? Para onde foram os cenobitas fetichistas de "Hellraiser I&II"? Quando Cronenberg perdeu a sedutora "melancolia cronenberguiana", o entusiasmo pelo body-horror, e se conformou em virar uma espécie de "James Ivory dos pobres", com o volúvel "Um Método Perigoso"?), destemidos surgiram do anonimato como novos guerreiros do horror clássico. Nos últimos anos, acompanhamos o nascimento de Mickey Keating ("Darling", "Psychopaths"), Ben Wheatley ("Kill List"), e Kolsch Widmeyer ("Starry Eyes"). Agora, Kostanski Gillespie se voluntariaram para levar adiante as chamas do terror gótico com "The Void", o filme que não se baseia em conto algum de Lovecraft, mas deixaria o mestre orgulhoso do imaginário que sua pena convidou os jovens de hoje a arquitetar.

Escaldados na célebre, proporcionalmente inversa regra da "qualidade de perfumes & tamanho de frascos", Kostanski Gillespie procederam com muita cautela nos vários departamentos envolvidos na produção do filme, e, felizmente, escolheram o caminho mais difícil, ou seja, reduziram manipulação digital a um mínimo, voltando-se aos efeitos especiais perpetrados "na raça". "The Void" rompe com o expediente dos efeitos especiais via CGI, calcanhar de Aquiles da maioria das produções no cinema atual, e Stefano Beninati, o supervisor, cria mágica às custas de suas maravilhosas armaduras, reminiscentes dos monstros de "O Labirinto do Fauno", apenas um pouco mais grotescas, vez que, no filme de del Toro, as criaturas exibiam um certo nível de requinte e senso moral, e no de Kostanski Gillespie, a "poesia da carne", incongruente e desbalanceada, basta para depor a favor da fortuidade do universo, do desprezo com que o mesmo lança os dados da sorte. Tendo dispensado efeitos em CGI, os diretores de "The Void" criaram uma obra na veia dos horrores lovecraftianos mais datados de Stuart Gordon, tipo "Re-Animator" e "Dagon". A execução, a "impressão" do fantástico no celuloide me lembram a proficiência do time técnico por trás de "Hellbound: Hellraiser 2", responsável por imagens verdadeiramente perturbadoras executadas com a maestria dos velhos mágicos, absolvidas da artificialidade dos computadores. "The Void" não nos poupa de cenas ensandecedoras de absoluta escatologia, onde monstruosidades com gânglios e trombas movem-se com o auxílio de tentáculos, e enquanto procuramos compreender a natureza, a espinha dorsal da origem da coisa, perguntando-nos se mais se assemelham a monstros do abismo do mar ou algo mais ostensivamente satânico, daquela massa disforme de caos chegam os gritos que mais se parecem ao berreiro de criança pequena, uma contradição que realça o absurdo da coisa, ou, como preferiria H.P. Lovecraft, a total irracionalidade sobre a qual fundamos nossas vidas sob a vã expectativa de segurança e longevidade. Tão importante quanto aquilo mostrado explicitamente é a mitologia que sustenta o mise-en-scèneLovecraft criou uma das mitologias mais intrigantes e duradouras da literatura, e o testemunho da longevidade da mesma se observa no merchandising que se faz hoje em dia em torno de figuras como a de Cthulhu, estampado em camisas, poster, bonés, e bonecos, entre outros. Quando escreveu "The Hellbound Heart", dirigiu "Hellraiser" e produziu "Hellbound: Hellraiser II", Clive Barker também bolou uma mitologia para os cenobitas na forma do labirinto (fotos), evocando uma sensacional intimidade que, uma vez vendidos os direitos autorais para produtores americanos, custou à franquia a identidade. Costumo afirmar que só há dois "Hellraiser de Clive Barker", o primeiro e o segundo, onde palpitam os fetiches, o masoquismo, e o drama da paixão não-correspondida, tão ou talvez até mais singular `a alma do projeto do que meramente as figuras dos cenobitas. Sob a benção de BarkerPeter Atkins, o roteirista de "Hellraiser 2", estendeu o escopo do filme anterior, e descortinou um labirinto a perder de vista, sobre o qual paira o monólito em forma de gigantesco diamante, a girar indiferentemente. Trata-se de Leviatã, o "Deus da Carne, Fome & Desejo", na definição dada por Julia, às portas do abismo do inferno. Também autores do roteiro de "The Void", Kostanski Gillespie foram responsáveis por um feito monumental, porque, se levarmos em consideração que no caso de "Hellbound: Hellraiser IIPeter Atkins foi poupado de criar um background, tarefa já levada a efeito com louvor no primeiro filme de Barker, para se voltar apenas à concepção de uma mitologia, anotaremos que os dois diretores realizaram duas grandes conquistas, em simultâneo, pois imaginaram um background ao mesmo tempo em que nos abriram uma pequena janela para que flertássemos com a mitologia, não escancarada, mas sempre presente. Em ambos os filmes, encontraremos homens cultos obcecados com outra dimensão. Em "Hellbound: Hellraiser II", Doutor Channard, vivido competentemente pelo veterano Kenneth Cranham, esconde, por trás da fachada de requinte e elegância, a perseguição por assuntos sobrenaturais, tendo priorizado seus interesses a um nível quase religioso. Por mais que a lógica se encontre impressa nos alfarrábios a abarrotarem a escrivaninha e as paredes do gabinete (chamado, por Atkins e o diretor Tony Randel, de "obsession room"), o britânico fleumático anseia por dar um passo em direção ao abismo ("I have to see, I have to know", Channard diz docemente à Julia, afagando-a no rosto com candura). Dr. Powell esconde fotografias em polaroide de orgias satânicas; Dr. Channard, recortes de jornais ou artigos científicos, onde se lê coisas como "Is death the fourth dimension?" & "Children of the vortex". A primeira cena de Channard, quando comanda uma cirurgia cerebral ao mesmo tempo em que faz uma preleção aos estudantes de Medicina - "Nós podemos trazê-los (pacientes psiquiátricos) de volta, mais frequente do que a ortodoxia científica possa levar a crer, senhoras e senhores. E o bisturi, longe de ser o inimigo da análise, é usualmente seu melhor aliado em resolver o quebra-cabeças da psicose. Análise isola e massageia. Cirurgia pontua e corrige. Agora, neste caso. Uma psicose enrustida, severa o suficiente para produzir aterrorizantes e frequentes ataques de histeria. 'Incurável', diriam alguns. Nada disso. Análise isola. Bisturi expõe. Medicamento controla. E então, senhoras e senhores, nós reconstruímos. Com todo o cuidado e conhecimento que nossos anos de treinamento nos deram... nós os trazemos de volta!" - repercute em "The Void" através da voz gutural de Dr. Powell, enquanto a câmera segue executando uma movimentação em trilhos, uma perfeita técnica de travelling, invadindo vagarosamente as entranhas do hospital deserto, ao tempo que Powell vai vocalizando sua real agenda ao protagonista Daniel através de uma ligação telefônica. Coincidem, também, as escolhas para ambientação das tramas em hospitais onde pressupõe-se a predominância da lógica do homem congruente, todavia em cujas galerias segredos vis e diabólicos só esperam para emergir, e nada poderá detê-los quando o caldo transbordar. Dr. Channard escondia os pacientes mais atormentados dos olhares curiosos estocando-os no subterrâneo, mais tarde as pobres almas seriam utilizadas pelo médico como sacrifício para Julia; Dr. Powell conduzia missas satânicas no porão do hospital, e entre seus bens pessoais, a maleta escondia as fotografias em polaroides reveladores de sua vida dupla. Os dois homens da ciência exploravam e destruíam almas vulneráveis. Channard mandou para a morte dezenas de pacientes incapazes de se defender, e Powell se valeu do desespero de jovens problemáticos para se aproximar de seu intento. Os dois cirurgiões reservam aos hospitais o papel de templo, de escada para o alcance da vida eterna, não uma vida eterna galgada pelo mérito das virtudes, e sim uma outra, barganhada pela intercessão do profano, com seus macabros atalhos. Neste diapasão, para Clive Barker, mais lhe interessava a jornada, o destino vinha em segundo plano. Em "Hellraiser I&II", a manipulação da configuração do lamento fazia mais do que "convidar" os cenobitas. O quebra-cabeças não representava apenas o mapa para se chegar aos cenobitas, a configuração era a própria estrada, o atalho, para se alcançar o destino desejado. Em "The Void", especificamos a mesma personalidade obcecada pelas minúcias do oculto na figura de Dr. Powell, cujo portal para a outra dimensão é precedido pelo mesmo tratamento, pelo incansável estudo e intensa paixão semelhantes aos reservados por Channard à caixa, em "Hellraiser 2". Ambos os filmes, por conseguinte, esbanjam um macabro cientificismo subvertido por uma confusa adequação ao profano, e criam riquíssimas mitologias particulares, onde não há parâmetros pré-estabelecidos. Acerca desta característica, trago à baila o exemplo do segmento "Parallel Monsters", de "V/H/S Viral", uma curta-metragem espanhol de cujos poros exala pura, absoluta maldade, sobre um cientista brilhante construtor de um portal para outra dimensão. Ao abrir uma cisma para um universo paralelo e conhecer uma versão de si mesmo, ele convence seu "outro eu" a trocar de lugares, de universos, apenas por uns quinze minutos. O desavisado cientista descobre que o universo paralelo reproduz quase inteiramente sua realidade, com uma importante diferença: ali, reina o luciferianismo e a promiscuidade, homens têm pênis semelhantes a trombas com bocas cheias de dentes, as vaginas das mulheres abrem-se até os umbigos como plantas carnívoras, e, quando sexualmente excitada, daquela estranha gente emana uma fulgurante luminescência dos olhos & bocas. Ele se depara com uma cena macabra na sala de estar da casa do seu "outro eu", onde topa com uma prática de swing com atributos de adoração satânica envolvendo dois estranhos e a "sua esposa", Marta, na verdade uma "outra Marta". Angustiante e devastador, o segmento de Nacho Vigalondo experimenta com tópicos típicos a Lovecraft, igualmente presentes em "The Void" (cientificismo v. luciferianismo). Em termos de imagens mais abertas, por outro lado, a cosmovisão de Lovecraft jamais foi tão bem destrinchada quanto no labirinto de "Hellraiser 2" & na paisagem deserta de "The Void", dois filmes estigmatizados pelo legado do autor, ironicamente desvinculados de sua caneta. Pela razão acima exposta, considerando todas as adaptações da obra literária do romancista, ainda creio que o caminho mais rápido a seu coração comece pela reinterpretação, não pelo apego à forma.

Kostanski & Gillespie (foto) mencionam o nome de Lovecraft em muitas das entrevistas concedidas para promover o trabalho. No frigir dos ovos, de três fontes lovecraftianas os cineastas beberam, "The Call of Cthulhu", "The Dunwich Horror" & "The Shadow Over Innsmouth", três contos sobre seitas e sacrifícios humanos em honra de deuses antigos alienígenas. Perguntado sobre a influência do autor, Kostanski afirma: "Foi mais o tom geral que queríamos capturar, pois eu amo coisas que se fazem sentir lovecraftianas sem serem exclusivamente adaptações de suas histórias. Eu também não creio que suas histórias se traduzam ao cinema muito bem, pois parecem enraizadas em origens literárias baseadas em cartas e coisas antigas, e o modo como são escritas realmente as deixam intraduzíveis para a mídia visual. Assim, qualquer coisa que invoque um senso de pavor cósmico traz o tipo de tom buscado pela gente com nosso filme, e também extraímos muita influencia de outros filmes e até videogames". Reparem no termo usado pelos cineastas, "intraduzíveis". Qualquer filme inspirado em Lovecraft trará imagens bombásticas e grandiosas numa galante tentativa de sublimar a impossibilidade da literalidade. Guillermo del Toro falou sobre a capacidade ímpar do autor para descrever e dirigir emoções e sensações, como se estivéssemos naquele pequeno escaler, perdidos no Oceano Pacífico, no começo do século XX, em "Dagon", ou como se nosso próprio pedaço de terra, a que chamamos de lar, encontrasse-se a mercê da volição de uma coisa indescritível, além da compreensão humana, vinda de outro universo, trazida por um meteoro, como em "A Cor que veio do espaço". Graças ao olhar do diretor de fotografia Samy Inayeh, desenvolto em produções do gênero, Kostanski & Gillespie rechearam "The Void" com visuais extasiantes, à altura da loucura cósmica mesclada à nossa desprotegida, falsa noção de realidade. Em "The Void", as intromissões das referidas cenas dão à jornada um ar místico, cuja escala ultrapassa a cronologia das vidas daquelas pessoas, e sugere um estado de espírito típico das obras de Lovecraft, afeto a escrever sobre um período muito anterior ao da formação das rochas e primeiros organismos, ou quiçá do próprio tempo. Quando filmou "Okaruto", uma trama que, na superfície, revolve o maior ataque terrorista da história do Japão, Koji Shiraishi também cortejou com um sobrenatural oriundo da criação do próprio cosmos através de imagens ímpares, abstratas demais para serem categorizadas e guardadas pela estrutura normal do pensamento, e, talvez por isso, emblemáticas de um período anterior ao próprio tempo. O aspecto lovecraftiano da trama, claro, perfilha cada minuto de um filme que, inicialmente, parece documentar a tragédia da patética vida de uma alma solitária e errante, um típico Net cafe refugee de Tóquio, mas que logo descamba para o caos quando do mesmo homem vem o planejamento de um maciço ataque terrorista em pleno cruzamento da estação de Shibuya, ato que que muda o curso da história do Japão, e nos faz pensar em questões envolvendo fatalismo e predestinação. Somos ainda levados a pensar em "Stargate", de 1994, pelo fato de o portal deter uma importância tão determinante nas vidas dos personagens. Pela escolha visual da equipe de "The Void", o triângulo reúne o arcabouço de crenças do culto, mas talvez principalmente emblematize o portal interstelar que faz as vezes de túnel entre galáxias, como acontece, com tintas menos aterrorizantes e mais aventureiras, em "Stargate", ou mais apavorante e discretamente na forma da configuração do lamento de "Hellraiser".

As performances uniformemente excelentes são dadas com o entusiasmo de profissionais sabedores da chance única de participarem de tão relevante projeto. Aaron Poole soma ao currículo mais um genial filme de horror, dando seguimento ao vencedor momentum que começou com o papel principal no empolgante "The Conspiracy", em 2011, e continuou, no ano seguinte, com o intrigante "The Last Will and Testament of Rosalind Leigh" (recomendado, inclusive, por Clive Barker). No papel da esposa, Kathleen Munroe ganha pontos pela veracidade com que representa uma jovem ainda marcada pela morte do bebê no parto, e pelo carinho reservado ao ex-marido. Uma bela mulher dotada do biotipo canadense, ela me lembra uma jovem Caroline DhavernasGrace Munro torna sua breve participação um motivo de celebração, em uma das cenas pivôs. A forma como surge sorridente às costas do avô após degolá-lo com um bisturi impacta pela surpresa da premeditada traição, justificável somente pelo fervor com que a jovem se entregara ao culto. Kenneth Welsh, veterano canadense de tantos filmes, possui até mesmo o primeiro nome que o artista por trás do similar Dr. Channard, Kenneth Cranham! E, assim como Cranham, Welsh também construiu para si a respeitabilidade de um ator eclético à vontade em qualquer gênero. Quis o destino que, nos dois casos, do horror viessem os personagens pelos quais seriam para sempre lembrados. No papel da residente de Medicina Kim, Ellen Wong tempera a seriedade com uma salutar dose de humor e jovem rebeldia, uma personagem muito bem-vinda a filmes do gênero, por lhes prestar o incomensurável serviço de mitigar o enorme peso de temas tão sérios.

A trilha sonora, assinada pelo grupo Blitz/Berlin, fia-se em sintetizadores reminiscentes dos filmes oitentistas de John Carpenter, uma tendência retomada há alguns anos por outros compositores, como disasterpiece, autor da melodia do chocante "Corrente do Mal", já resenhado no blog. Pulsante, a música de Blitz/Berlin ensaia as batidas de um coração eletrônico pesado e indiferente, nos moldes da suíte introdutória de Howard Shore para o macabro "Estranhos Prazeres", de David Cronenberg. A trilha sonora de "The Void" resgata tão perfeitamente a atmosfera dos filmes de John Carpenter que a primeira coisa a vir à mente durante a fuga da estudante Kim através dos corredores iluminados por um neon vermelho alienígena, durante a invasão dos membros do culto, são as cenas de clássicos como "Assault at Precinct 13" e, mais contundentemente, o primeiro "Halloween", de 1978. Falando de reminiscências, a escolha da paleta de cores no segmento da invasão ao hospital de "The Void" parodia os mais importantes trabalhos de Dario Argento, como o extravagante "Suspiria", em suas gloriosas, agressivas cores, com realce rubro. O imaginário de Argento sempre encontra um jeito de emanar do subconsciente desses novos wunderkinds do horror, basta conferirem "Demônio de Neon", de Nicolas Winding Refn, um trabalho praticamente levantado sobre o esqueleto estrutural de "Suspiria".

Os efeitos especiais datados nos remetem aos saudosos anos 80, quando terror era mais difícil de ser filmado, e exigia a execução diante das câmeras, para funcionar. Nem por isso, "The Void" é menos eficiente do que os ricos e modernos similares. Na verdade, Kostanski & Gillespie vestiram a camisa do horror vintage e pintaram a tela com uma carnificina que parece real, e ainda há de ser rivalizada pelos concorrentes. O uso de CGI tende a virar um tiro no pé, pois encoraja diretores a descambarem para um festival de nonsense e tolices. No commentary track gravado para a edição especial em DVD de "Hellbound: Hellraiser 2", de 2001, Tony Randel levantava uma questão importante sobre seu filme ao afirmar que uma das forças residia nos excelentes efeitos realizados sem CGI e a aplicação da técnica de stop-motion. Ao tecer comentários sobre sua aversão a CGI, Randel citava "Stuart Little", e reclamava que, no referido filme, os efeitos especiais simplesmente não pareciam críveis. No caso do seu filme, as passagens mais fantásticas foram executadas longe da manipulação do CGI, e visões inesquecíveis como o labirinto sobre o qual gira o gigantesco monólito em forma de diamante, o Leviatã, criadas a partir de um conjunto de técnicas aplicadas em conjunto, como a matte painting de Cliff Culley, e os efeitos com a manipulação do diamante, em menor escala, girando sobre um eixo. Depois que as composições foram enriquecidas pela trilha sonora de Christopher Young, o produto final, a descida ao inferno de "Hellbound: Hellraiser 2", sagra-se como um dos momentos mais genuinamente perturbadores da história do horror moderno. O restante do esquisito magnetismo repousa na elegância das performances, com ênfase a Clare Higgins, e na contundência de sensibilíssimos detalhes, como a mitologia dos cenobitas, estranhos e amorais sadomasoquistas diferentes de qualquer coisa vista antes no cinema, ou a perversidade em sequências eletrizantes embriagadas por malévolo erotismo, como a do ressurgimento de Julia como uma monstruosidade sem pele através do colchão, uma passagem especialmente prolongada e violenta envolvendo a batalha do "monstro" com um doente mental após o mesmo ter se despedaçado com uma navalha, movido pela esquizofrenia a levá-lo a enxergar larvas pelo corpo. Ele agora luta desesperadamente pela própria vida enquanto Julia se adere às costas da vítima como um parasita, para drená-lo até a morte e recuperar a força e a velha forma de mulher. Mesmo hoje, três décadas após tê-lo visto pela primeira vez, quando criança, a sequência constrange pela ferocidade envolvida nos desdobramentos da confusão em cima do colchão. Embora não haja nada de belo na duríssima imagem da "coisa" e do homem ferido rolando agarrados pelo chão, não temos como não pensar que, em termos de ficção, trata-se de uma "mulher" montada sobre a patética vítima, e Clive Barker, graças à duração exagerada do encontro e à obsessão por detalhes, como o modo como filma o trapézio e os músculos das coxas e braços de Julia, durante um exaustivo embate de dois corpos nus, consegue conceber uma cena marcada pela macabra libidinagem sadomasoquista frequente na sua bibliografia. E nada cabe melhor a uma cena tão psicologicamente embaralhada quanto uma frase dita sobre a condição humana por Lovecraft: "O mundo é deveras cômico, mas a piada está na raça humana". Voltando a "The Void", o mesmo foi produzido quase trinta anos mais tarde que "Hellraiser 2", mas o charme dos efeitos permanece inalterado. Há algo próprio ao feito à mão e demandante de sacrifícios que escapa aos olhos de quem pensa que a ilimitada ilusão criada pelo CGI pode crescer nos corações de quem verdadeiramente aprecia terror.

"The Void" precisa ser descoberto. Como um dos filmes de terror mais relevantes dos últimos anos, faz parte da seleta lista da nata do gênero, que inclui obras-primas como "Kill List", "Session 9", "Hellraiser 1 & 2", e "w Delta z", dentre (poucos) outros. Seu alcance suplanta a mise-en-scène de conceitos inaugurados pelos mestres do passado, e transcende o lugar comum do medo físico em favor do niilismo cósmico catalisador da abertura de portais estelares e adoração a deuses mitológicos. Suas delirantes fantasias devassam profundezas de febril imaginário, e se prestam como ponto de partida para a pesquisa de um horror mais metafísico. Daí, a necessidade de conhecer a obra de Lovecraft antes de assistir a "The Void". Hoje, com o advento da internet, encontrar materiais para aprofundamento nos estudos encontra-se a um clique de distância. Contraditoriamente, o drama não consiste em coletar informações, afinal são muitas as fontes, e sim fortalecer a disciplina para separar e categorizar esse material: de tão vasto, conhecê-lo exige foco. Há um canal chamado "Impensável", pelo qual seu criador bolou uma série chamada "Inenarrável". Com muita disposição e talento, esse cavalheiro apanhou os principais contos de H.P. Lovecraft e prestou um valorosíssimo serviço ao traduzi-los para o Português e lê-los sob efeitos de áudio, criando experiências imersivas impossíveis de serem experimentadas antes do advento da grande rede. Dentre suas excepcionais performances, recomendo com especial entusiasmo o conto "A Cor que veio do espaço", um dos mais intrigantes trabalhos de Lovecraft que, na voz do narrador, adquire contornos épicos, e serve como perfeita introdução para cinéfilos que não conhecem ainda a febril imaginação de um dos pilares do horror fantástico moderno.
Todos os direitos autorais reservados a Screen Media Films. O uso do trailer & imagens é para efeito meramente ilustrativo da resenha.


Baseado em fatos reais. Roman Melnyck (Arnold Schwarzenegger, no melhor desempenho de sua carreira) é um trabalhador honrado & homem de família que mal pode esperar para rever a mulher e a filha grávida logo mais à noite, no horário programado para a chegada do voo. Profissional do ramo da construção, Melnyck leva seu ofício com muita seriedade, e nem mesmo a aguardada volta da família o demove do canteiro de obras, onde lida com os problemas rotineiros da construção com experiência, habilidade e muito bom humor. Seu chefe Matt se surpreende com a eficiência da coordenação dos trabalhos sob o manto de Roman. O 6° andar ficou pronto, e o 7° andar não levará mais de três horas para ser concluído também. A construtora está adiantada no cronograma, graças ao talento do homem. Embora Roman resista um pouco, Matt consegue convencê-lo a adiantar-se e ir para casa, para evitar imprevistos como tráfego congestionado. Ele tampouco quer ver o amigo no canteiro de obras na manhã seguinte: Roman tem o direito de curtir a família, e celebrar uma nova fase da vida, agora como avô.

Roman mora em um típico bairro de trabalhadores "blue collar", e foi pelo suor do rosto que comprou a casa, conquistou seus bens e criou dignamente a família. No rádio, só se fala sobre a proximidade do Natal, e músicas natalinas dão o tom correto à festiva época. No interior do lar, vê-se o esmero com que Roman preparou as faixas de boas-vindas para mulher e filha. Ele também mobiliou o quarto para a chegada do netinho. Preso ao espelho, podemos observar o ultrassom do bebê, destacado pelo orgulhoso vovô, uma forma de amenizar a ansiedade da espera. Cheio de expectativa, Roman toma banho e se veste para aguardar a chegada do voo no aeroporto, para onde parte com certa antecedência, intencionando fugir de congestionamentos imprevistos, conforme Matt o orientara. Roman aproveita a folga de tempo para adquirir um lindo buquê de flores. Quando o horário da chegada chega e se vai sem novidade no painel eletrônico, ele resolve procurar o guichê da companhia aérea. Seu humor é dos melhores, não há nenhuma linha de angústia no seu rosto. Ao se aproximar do guichê, dá um "encontrão" em um passageiro qualquer, que leva a situação no bom humor. Ao se despedir do estranho, Roman ainda brinca "Você é um bom dançarino". Ele fornece ao cavalheiro do guichê o número do voo, AX 1-12, originário de Kiev, com escalas em Frankfurt e Nova York. Uma senhorita da empresa escuta a conversa, e o aborda com muita delicadeza, convidando-o a segui-la à sala de operações. O mundo de Roman está prestes a desabar, e ele parece não desconfiar da gravidade da situação.

Roman segue a senhorita por corredores do andar operacional da companhia, e há um interessante momento onde, ao seu lado, vindo no sentido oposto, um senhor de mesma idade acaba de deixar o escritório, com a face transtornada pela dor. O choque do homem não passa desapercebido aos olhos de Roman, que já começa a pressentir a ocorrência de algum sinistro. Inquieto, ele pergunta à moça, com urgência na voz, se houve algum imprevisto no voo, se há uma nova previsão de aterrissagem. Quem finalmente presta esclarecimentos é uma jovem agente aeroportuária chamada Eva Sanders. Ela desempenha a pesarosa, duríssima incumbência de se sentar à mesa diante do pobre Roman para lhe dar a horrorosa notícia: o avião sofreu um terrível acidente, e embora àquela altura não haja informações sólidas sobre a tragédia, é seguro afirmar que não há sobreviventes. Roman mal consegue esboçar uma resposta. "Ela estava grávida", murmura, em choque, e sofre o princípio de um ataque cardíaco, desabando inconsciente no chão. Atendido na enfermaria, ele consegue descansar, e a agente Sanders lhe fornece todos os contatos de que precisa nesse momento de grande dificuldade. Roman não consegue voltar para casa. A madrugada se põe em curso, e o vemos dentro do carro, no estacionamento deserto, digerindo a horrenda surpresa que não pode ser expressa em palavras.


O filme, então, nos apresenta ao segundo protagonista desta história, o Sr. Jacob Bonaos (Scoot McNairy, de "Monsters"), cujo acidental papel na cadeia de eventos foi determinante para a ocorrência da terrível tragédia no ar. Nós o conhecemos na noite em que acontece a colisão aérea. Controlador de voo, Jacob vivia uma existência comum & feliz ao lado da esposa Christina (Maggie Grace, de "Busca Explosiva") e do filho Samuel (Judah Nelson), e sua primeira cena nos dá uma amostra da harmônica existência dos Bonaos, quando o vemos fazendo amor com a mulher, e eles precisam tomar cuidado para não despertar o menino, no outro quarto. Jacob se apresenta na torre, sua intimidade com as rotinas do controle patente pela desenvoltura com que se conduz. Quis o destino que, naquela noite, fosse realizada uma manutenção nas linhas, que não custaria mais de seis minutos, mas transformaria as vidas de centenas de pessoas para sempre. Bonaos estava instruindo a tripulação do voo AX 1-12, durante a aproximação, porém então, sobre seu colo, recaiu a responsabilidade para, em simultâneo, orientar um outro voo, a ser deslocado para o aeroporto de Pittsburgh. Enquanto tenta contatar via telefone o pessoal da torre de Pittsburg, Bonaos "se desliga" um pouco do rádio, e deixa de prestar assistência ao voo DH 6-1-6, cujos pilotos tomam a desavisada decisão de descer, o que o colocará no corredor aéreo do outro voo. O fato é que quando fica ciente de que os voos AX 1-12 & DG 6-1-6 encontram-se em rota de colisão, é tarde demais para tomar providências em tempo hábil para remeter. Desesperado, Bonaos ainda tenta conversar com a tripulação de um dos voos para que deixe o corredor, porém os sinais subitamente desaparecem do radar. Os aviões colidiram no céu. Diante da horripilante constatação, Bonaos custa a processar a chocante verdade. Seu remorso, tremendo, lança-o no puro desespero.


Assim como ocorreu a Roman quando lhe foi informado sobre o desastre, Bonaos também se move como zumbi, como se estivesse vivendo um pesadelo. Robert (William Donovan), seu diretor, o recebe no auditório e lhe conta que telefonemas reportam destroços e fuselagens não muito distante dali. Os aviões definitivamente colidiram. O diretor traz lágrimas nos olhos, visivelmente preocupado com o pobre Bonaos, um homem que há algumas horas vivia uma existência comum, e agora precisava suportar sobre os ombros o esmagador peso de centenas de vidas perdidas na altura. Na manhã seguinte, ainda lívido, Jacob encontra o diretor e os companheiros da torre para repassar as lembranças da fatídica noite. Antes de apanhar o carro para casa, ele escuta os conselhos de um colega, que pede para o rapaz não atender a telefonemas e permanecer na segurança do lar. Ao retornar para casa, ele encontra a chorosa Christina assistindo à cobertura televisiva da tragédia. Eles se abraçam, em desalento.


Roman também acompanha as últimas informações do caso pela televisão, e recebe um telefonema da agente Sander. Ela deseja que o viúvo procure o centro de atendimento a familiares das vítimas, porém lhe ocorre uma ideia melhor. Roman apanha o carro e dirige para o bosque onde os destroços dos aviões se concentraram. Ao chegar à cena, ele se depara com vans de equipes jornalísticas, ambulâncias, bombeiros, um verdadeiro aparato de operação militar, organizado para a varredura da região. Roman se apresenta como voluntário, e os soldados acabam aceitando sua oferta de solidariedade, assim como a de dezenas de outras pessoas tocadas pela tragédia. Não obstante falemos do choque de dois Boeings em pleno voo, surpreendentemente, há pedaços da aeronave que preservaram a forma original, como porções da cabine de passageiros, com cadáveres, alguns intactos, ainda presos aos assentos pelos cintos. Roman recebe um traje Hazmat e segue recolhendo pertences de passageiros mortos e os pondo em sacos, para posterior reconhecimento. Ele encontra o colar da esposa, e pouco mais à frente se depara com o cadáver da filha, estatelado sobre uma árvore. Às lágrimas, ele a devolve ao chão, e a abraça, inconsolável. Posteriormente, o corpo da esposa também é identificado. Roman se senta entre os sacos da mulher e da filha, em um hangar reservado aos cadáveres achados no bosque. Ele se afoga na depressão, e ao visitar o túmulo da amada família, acaba dormindo ao pé da lápide. Um funcionário do cemitério precisa abordá-lo com muita sensibilidade para convencê-lo a ir para casa.

Bonaos sente o peso da culpa e a depressão o impede de deixar a cama. Sua vida virou do avesso, e a fachada da casa da família foi pichada com os dizeres "assassino". Ele se tornou uma sombra do homem visto no começo da história. Perdeu peso, traz profundas olheiras, e seu péssimo aspecto geral retrata o intenso sofrimento psíquico. Logo, Christina e Bonaos passam a brigar por qualquer coisinha, como quando o homem desajeitadamente tenta preparar ovos mexidos para o filho. O casamento encontra-se em risco. Roman, a seu turno, afoga as mágoas assistindo a vídeos antigos realizados durante dias mais felizes, como a ocasião quando a esposa presenteou a filha com o colar encontrado no cenário do acidente. Quem bate à porta é uma moça chamada Tessa (Hannah Ware), uma jornalista empenhada em escrever um livro sobre a tragédia. Silente, Roman não atende às batidas pois quer ser deixado em paz. Algo no olhar, todavia, indica o interesse nas informações que a jornalista promete lhe fornecer. Por ora, o viúvo escolhe não se expor. Após a partida da jornalista, ele examina os papéis, os recortes deixados. À noite, Matt aparece no alpendre, trazendo almôndegas preparadas pela esposa. A turma sente falta de Roman, e os colegas mandaram lembranças. Ele vocaliza o desejo de voltar ao canteiro de obras, mas se vê obrigado a cuidar de detalhes antes de retomar a vida.



O casamento de Jacob & Christina azeda. A mulher recomenda que se afastem somente por um tempo, pouco tempo, até ganharem melhor perspectiva do futuro. Ela levará o menino e passará alguns dias na casa da irmã, até que o marido consiga se sentir melhor. Jacob contempla o suicídio ao visitar uma loja de armas. Ele adquire uma pistola para pôr termo à própria vida. Bonaos assiste solitariamente à televisão, envolvido pelo breu, com a arma no colo, decerto criando a coragem que nunca vem. A administração do aeroporto o convida a uma reunião, onde encontra dois de seus melhores amigos, entre eles o diretor Robert. Apesar de viver o período mais conturbado de sua existência, Bonaos conta com colegas que realmente se preocupam com seu bem-estar. Robert preparou um excelente plano para reerguê-lo após tão lamentável golpe do destino. Eles querem que Jacob mude de nome e cidade, tal qual as testemunhas inscritas no programa de proteção, e aceite um cargo de semelhante remuneração. Embora a oferta demande enorme fé para que Bonaos dê um passo rumo à incerteza por vir, ele sabe que não haverá melhor proposta, e aceita.

Roman comparece a uma reunião com os advogados da companhia aérea. Ele não está atrás de uma vultuosa indenização, e sim de um pedido de desculpas. Quando Roman percebe que aos olhos do time jurídico a tragédia pode se resumir a números, ele se levanta do lugar e exibe furiosamente a fotografia da esposa e da filha, explicando-lhes que precisa de um pedido de desculpas, não de um acerto financeiro. Bonaos comparece a sessões com o terapeuta, contudo se limita a pedir as pílulas, dispensando conselhos. Ele se recolheu a um mundo à parte, e não quer saber de falar sobre sentimentos conflitantes. Naquela noite, Bonaos tenta o suicídio ao engolir um punhado de pílulas. O instinto de sobrevivência o impele a vomitá-las, antes que possam fazer efeito. Em outro lugar, em uma mercearia de esquina, Roman compra uma garrafa de uísque, enche a cara e dirige para o canteiro de obras, altas horas da noite. Ele sobe até a cobertura do edifício em obras, e seriamente cogita saltar. Roman acaba não cometendo a insanidade.

Um ano se passa. Um sacerdote realiza um belo discurso sobre o altar do presbitério improvisado às portas do gélido bosque, na cerimônia organizada no exato lugar onde caíram os destroços. A inauguração do monumento rende homenagem às vítimas, e os familiares se comovem com as palavras do padre. Lembram-se do cavalheiro visto por Roman no corredor, no começo do filme? Pois bem, ele se aproxima para se apresentar. Chama-se Andrew Berg, e perdeu a esposa e os cunhados na tragédia. Ele leu no jornal a história do colar da filha de Roman, utilizado como base para o design do monumento. Com dor no olhar, Andrew lhe indaga como tem lidado com o luto, vez que mal sabe o que fará de uma hora para a outra, enquanto vê a vida escoar pelo dreno, sentado na sala escura. Roman lhe diz que, um dia, o homem finalmente encontrará uma boa razão para tirá-lo de cima da cama e trazê-lo de volta ao jogo da vida.

Para todos os efeitos, Jacob Bonaos "deixou de existir". Ele agora é "Pat Dealbert", e trabalha em uma agência turística sem despertar atenções sobre seu terrível passado. Ele vendeu um pacote de cruzeiro para um casal. Embora trabalhe com gosto, a cena não deixa de nos provocar um sabor amargo, pois somos levados a pensar na boa vida de Bonaos, no começo da trama, quando ainda contava com a mulher e o filho, e ocupava um valorizado cargo, o que contrasta com sua precária situação atual. Hoje, Bonaos mora em um flat, um confortável lugar, porém anos-luz do bairro de classe média alta da vida pretérita. Ele mais se assemelha a um solteirão desprovido de vida social, uma sombra do homem requintado que um dia fora. O mundo de Roman também diminuiu. Ele se conformou em trabalhar em empreitadas menores, e está concluindo as cercas da propriedade do simpático vizinho. O cavalheiro o elogia pela impressionante perícia, porém comete uma gafe ao comentar algo nas linhas de que a esposa adorará o resultado final. Instintivamente, o vizinho parece se arrepender da fala, pois jamais intencionara esfregar a felicidade pessoal, sua vida de casado, no rosto do viúvo. Roman leva na esportiva, mas sai do bate-papo visivelmente abalado, mais uma vez lembrado da tragédia que consome sua vida.

Uma noite, Roman toma a iniciativa de procurar Tessa, a jornalista que dentro de algumas semanas lançará o livro sobre os eventos por trás da tragédia. O viúvo deseja saber o paradeiro de Bonaos. Aparentemente, Roman deseja conversar, resolver o impasse, escutar a versão do controlador, em uma franca, honesta tentativa de superar o luto e perdoar o homem a quem atribui inteira responsabilidade pelo choque entre os Boeings. Tessa não fornece ainda as informações sobre Bonaos. Ela prefere visitá-lo antes na sua nova cidade, por ocasião da véspera do lançamento do livro. Bonaos vocaliza o desejo de que a jornalista explique aos familiares das vítimas que jamais foi uma má pessoa e que nunca imaginou que por um deslize de segundos causaria tanta dor. Dias depois, Roman recebe uma ligação de Tessa, marcando um encontro para logo mais, em uma diner qualquer. A jornalista vai direto ao ponto, e revela ao viúvo que o encontrou. Ela discorre sobre as novas circunstâncias da vida de Bonaos. Roman pede o endereço do rapaz, e Tessa titubeia, incerta se deve ou não fornecer os dados. Com sinceridade, o viúvo explicita seu intento. Apenas quer mostrar a foto da mulher e da filha, e exigir um pedido de desculpas. Ninguém conseguiu amenizar sua dor, nenhum agente aeroportuário, ou advogado da companhia aérea. Retomar a vida depende diretamente de um nobre pedido de desculpas. Comovida, Tessa lhe entrega um envelope com o paradeiro de Bonaos.


Bonaos prepara o jantar, até escutar a campainha. Por um momento, imaginamos que ao abrir a porta se deparará com Roman, mas quem ali se encontra são a mulher e o filho. Emocionado, ele os abraça, cheio de amor e saudade. Para sua felicidade, apesar do calvário inicial, Bonaos não perdeu o vínculo familiar. Após um tempo alienados um do outro, Christina e Bonaos conversam mais tranquilamente e em sintonia, ao sabor de taças de vinho, enquanto a criança dorme sossegadamente no sofá. Ele comenta que se a esposa se mudasse com Samuel para ali, seu progresso se daria mais rapidamente. Quando Bonaos comenta que reservou sua cama para a mulher e o filho, e ficará com o sofá, Christina responde, com os olhos marejados, que há lugar suficiente para os três, e marido e mulher se abraçam. Na manhã seguinte, uma tomada feita de cima registra a bela cena, os três acordando na mesma cama, novamente unidos como família. Para a má sorte de Bonaos, entretanto, Roman também resolveu prestar uma visita, e se encontra na cidade. Christina fica preocupada quando a campainha chama, e não encontra ninguém à porta. Em um quarto de motel, a algumas quadras de onde Bonaos tenta reconstruir a vida, Roman aguarda para agir, enquanto imagens horríveis envolvendo a queda do Boeing lhe causam um sono inconstante e cheio de perturbações.

Naquela noite, quando a campainha chama novamente, e Bonaos atende, o controlador de voo se vê cara a cara com o viúvo. Sem perder tempo, Roman ergue a foto da mulher e da filha na altura dos olhos do rapaz. Por um azar do destino, ambos perdem o temperamento. Roman extravasa a pressão escaldante do luto, e Bonaos suplica para que o viúvo deixe o apartamento, pois a mulher e o filho se encontram, e não quer assustá-los com nenhuma espécie de confrontação ou vozes alteradas. Acidentalmente, um movimento mais brusco e involuntário por parte de Bonaos acerta a foto na mão de Roman e a atira ao chão. O viúvo toma o acidente como total desrespeito por parte de Bonaos, e, cego de raiva, saca uma lâmina. Ele o golpeia duas vezes, furando-o no peito e na carótida, causando uma maciça hemorragia impossível de se estancar. Christina e Samuel chegam à sala bem no momento, e testemunham desesperados os últimos segundos de vida do ex-controlador de voo. Roman jamais foi um criminoso ou covarde, e após cometer o homicídio sob violenta emoção, senta-se no sofá, estoico, à espera da polícia. Ele compreende que precisa ser responsabilizado pelos seus atos, e cumprir pena.

Roman tenta se adaptar à existência atrás das grades, e vive como um homem magoado e reservado. As estações vão se sucedendo, e graças a uma belíssima montagem de folhas amarelas caindo ao toque do vento, nos é vendida a ideia da inexorável passagem dos anos. Quando menos se espera, uma década se foi. Um dia, ele recebe a visita do advogado, que traz boas novas. O juiz de execução penal resolveu rever sua pena e levar em consideração as circunstâncias atenuantes, reduzindo drasticamente a estadia na prisão. Dentro de quatro meses, Roman deixará o sistema carcerário. Claro, terá de comparecer semanalmente a sessões com um psicólogo, que redigirá relatórios sobre seu progresso, porém jamais precisará regressar à prisão. Roman deixa o presídio, e o primeiro lugar visitado é o cemitério onde suas amadas esposa & filha foram deixadas para descansar. Ele tem a oportunidade de depositar o colar sobre a lápide e lhes dizer o último adeus.

No que se assemelha a um encontro casual, um jovem que não deve ter mais do que vinte anos gentilmente se aproxima e pergunta a Roman se conhece a saída do cemitério. Atenciosamente, o viúvo aponta as direções necessárias para se alcançar a saída, e se oferece a guiá-lo até lá, vez que já terminou a visita. No caminho, o rapaz comenta que jamais esteve no cemitério. Com dor na voz embargada, Roman recorda-se de que a última vez que caminhou por aquelas trilhas, foi há onze anos. Eventualmente, o viúvo pressente a eletricidade do momento, e se convence de que o rapaz o conhece de outras paragens. De fato, o jovem saca a arma e ordena que não se mova. Trata-se de Samuel, agora já crescido. Ele disse que seguiu Roman do momento em que deixara a prisão, e imaginava que a lápide da família seria o primeiro lugar visitado. Embora a ausência do pai o tenha deixado amargurado, no último segundo, o jovem, que carrega dentro de si os bons ensinamentos da mãe, desiste da vingança, e sentencia que a saga de animosidade entre as famílias deve terminar ali. Roman segue seu caminho em paz. Livres do ódio, ambos podem olhar para o futuro em vez de reviverem diariamente aquela trágica noite da queda do voo AX 1-12.

Baseado em fatos verídicos, a colisão de um avião da Bashkerian Airlines com outro da DHL, em julho de 2002, no céu da cidadezinha alemã de Uberlingen, "Aftermath" adapta o fatídico encontro de dois personagens inexoravelmente ligados pelas consequências da tragédia, um cavalheiro chamado Vitaly Kaloyev, arquiteto russo que perdeu esposa e duas filhas no acidente e, no filme, é reimaginado como Roman Melnyck, e outro senhor chamado Peter Nielsen, o controlador de voo de plantão na torre de Zurique, Suíça, na data do sinistro, vivido, em "Aftermath", pelo ator Scoot McNary no papel de "Jacob Bonaos". Kaloyev jamais superou a perda, e sustentou Nielsen como responsável pela sua desgraça pessoal. Ele rastreou o paradeiro de Nielsen, e lhe prestou uma visita na cidade de Kloten, próximo a Zurique, em 24 de fevereiro de 2004. Assim como visto no filme, Kaloyev exibiu a foto da família e demandou um pedido de desculpas por parte de Nielsen. Um desentendimento fez com que o viúvo se enfurecesse, sacando uma faca e ferindo o outro homem de morte. Kaloyev não ofereceu resistência quando policiais o prenderam em um quarto de motel perto da cena do crime, e três anos após o início do cumprimento da sentença, magistrados levaram em conta seu estado emocional à época do crime, ajustando . Ele foi solto em novembro de 2007, e recebido como herói na sua cidade natal em Ossétia do Norte.

Após décadas consolidado como astro de ação, ironicamente, só foi após o ápice que Arnold Schwarzenegger viu chegar às mãos os roteiros mais humanos e gentis, coisas que deveria ter buscado muito antes, e só agora ganham maravilhosa vida por força das surpreendentes performances do ator. Em uma atuação comedida, humilde e melancólica, Schwarzenegger exibe fôlego dramático, e, em exercício de desapego, não hesita em se despir do glamour de herói de ação, como na breve cena em que, sem roupa, permite-se ser filmado mais velho e gordo. O resultado da aposta deu certo. Ao passo que a velha persona, tão explorada nos blockbusters das décadas de 80 & 90, ainda crispe em seus olhos, um novo tipo de herói, o herói do mundo real, emerge em toda a glória. Em um projeto que o próprio astro jamais tocaria há, digamos, trinta anos, ele redescobre a grandeza pertinente à dignidade do homem simples, comum e honrado, e de modo jamais feito anteriormente, nos convida a seguir suas atribuladas e falhas pegadas, visto que se trata de um ser humano de carne e osso, e não apenas uma delirante fantasia, como os papéis em filmes de ação que o tornaram muito, muito rico, mas deram pano para manga para que os maliciosos questionassem seu talento artístico. A guinada na carreira do ator pode ser rastreada à perna final do reinado como homem de ação, pois mesmo em "O Último Desafio", um veículo apropriado para suas habilidades, já se enxergava uma bem-vinda mudança no tom do astro, que, sim, dava vida a um valoroso xerife exército-de-um-homem-só, pronto para encarar dezenas de vilões, mas parecia mais surrado pela vida, e, mesmo triunfante sobre as adversidades, apanhava muito até fazer a vontade prevalecer sobre os planos dos perversos. Depois de "O Último Desafio", Schwarzenegger ousou então encabeçar uma produção exclusivamente ancorada em performance dramática, e o resultado foi a atuação vencedora no drama "Maggie", onde interpretava um valoroso chefe de família tentando cuidar da família em um Estados Unidos distópico assolado por uma catástrofe, mais especificamente um vírus potencializado da raiva para o qual não há vacina. Quando sua filha é mordida, e fica patente que se trata de uma questão de tempo até que desenvolva raiva, o pai, vivido pelo astro, toma para si a responsabilidade de cuidar da menina e, chegada a hora da transformação, lhe dar uma morte digna. Em um papel que de diversas maneiras nos faz pensar na belíssima performance de Tommy Kirk no clássico norte-americano "Old Yeller", talvez o primeiro filme da história que tenha legado à raiva uma importante função na trama, Schwarzenegger recicla as qualidades que tanto nos fizeram amá-lo na sua chegada ao cinema, e do mesmo modo que faria anos mais tarde neste "Aftermath", sintetiza uma nova sensibilidade que, ao retratá-lo como homem comum, o torna ainda mais admirável.

Sinalizando o compromisso com o novo momento, aqui, Schwarzenegger divide generosamente o escrutínio dos holofotes com seus colegas de elenco, igualmente brilhantes e merecedores de autonomia para encontrarem a própria voz. Scoot McNary, o segundo protagonista, chamara minha atenção no excepcional "Monsters", de 2011, a ficção-científica romântica dirigida por Gareth Edwards que deu fôlego aos filmes de monstro e lhe garantiu a cadeira de diretor de "Godzilla", de 2014. Em um típico filme de Schwarzenegger, o roteiro jamais concederia espaço ou tempo além do estritamente necessário para personagens que não o do herói, todavia, evidenciando o entusiasmo do astro pela incursão na fase character actor, o diretor Elliot Lester gozou de liberdade criativa para reservar ao controlador de voo o mesmo tratamento dedicado ao colega mais famoso. McNary teve tempo de sobra para criar nuances para a figura do atormentado "antagonista". Neste diapasão, ao assim proceder, Lester exercita a compaixão necessária para afastar da história a armadilha da banalização do drama de Roman, e enriquece a discussão ao nos lembrar da humanidade do controlador de voo, também chefe de família, do preço pago, tão caro quanto aquele depositado sobre as costas de Roman. As cenas de paz no seio da próspera vida familiar interpretadas por McNaary, Maggie Grace e o menino Judah Nelson nos brindam com um natural frescor que em vez de ilustrá-los como "família de comercial de margarina", mostra-os como um núcleo cúmplice e feliz, com direito a seus triunfos e dramas. A narrativa jamais abandona essas duas highways paralelas - o drama de Roman & e o conflito de Bonaos - e se alterna entre vias, rabiscando um quadro amplo & justo sobre as consequências do estranho senso de humor do destino.

Poucas produções abordaram com sensibilidade dramas sobre desastres aéreos, pois a maioria foca-se no acidente em si, e, quando menos se espera, tudo gira em torno do momento do impacto, e não do drama reverberado pela catástrofe. Ironicamente, apesar de "Aftermath" nos contar a história cuja premissa começa com a colisão de dois Boeings, não vemos um único avião no curso da trama, a não ser como pontinhos luminosos no monitor. Gratamente, o diretor preferiu relegar o cenário do desastre ao fundo, elegendo como prioridade as consequências do evento sobre aquelas pessoas, e não o evento per si. Ao assim proceder, "Aftermath" recupera a empolgação de produções mais antigas capazes de fazer os cabelos da nuca se eriçarem à romantizada visão de aeroportos, como foi o caso de "Fearless", de 1993, do diretor Peter Weir. No drama de Weir, um engenheiro sobrevivia à queda de um avião, levado abaixo em um milharal por problemas hidráulicos, e, no momento seguinte, salvava os demais passageiros, conduzindo-os através da cabine até à segurança do milharal, longe das chamas. Aclamado como herói, ele se aliena dos entes queridos graças à sensação de invencibilidade gerada pela vitória sobre a morte, e enquanto um terapeuta tenta ajudá-lo a se reconectar com a esposa e o filho, ele se apaixona por outra sobrevivente, uma jovem mãe devorada pela culpa por não ter abraçado o filho, um bebezinho, com força suficiente, no instante da queda, o que lhe custou a vida. Sempre conservei "Fearless" no coração, desde que o vi quando menino, em fita de vídeo, em 1994, e até mesmo encontrei inspiração na abertura, quando escrevi uma história chamada "Nosebleed", introduzida praticamente pelo mesmo expediente, um homem humilde e comum, neste caso um agente aeroportuário, metendo-se voluntariamente no aterrorizante cenário da queda de um Boeing na cabeceira da pista, salvando vidas e virando, de uma hora à outra, uma espécie de herói local, o que lhe rende a indesejável atenção de pessoas do passado, que ele teria feito de tudo para afastar. Eu me servi de três distintas fontes para conceber o roteiro, a cena introdutória do filme de Weir e as graphic novels "A History of Violence", de John Wagner (pelo viés do passado obscuro emergindo para assombrar o herói), e "Daredevil: Born Again", de Frank Miller (pela vertente da vilã pondo em movimento uma maciça campanha secreta de desmoralização da reputação do protagonista, e a luta de boxe entre os dois no ringue, no clímax, quando ele é massacrado, perde e diz algo nas linhas de "eu não capitulo, mesmo sob a perspectiva da morte", referência óbvia ao duelo entre o Demolidor e o Rei). De toda sorte, voltando a "Aftermath", assim como Weir realizou anteriormente, ele se policia para que o acidente em si não se transforme na coisa mais importante da trama, surpreendentemente intimista, e mesmo o aproveitando como o substrato sobre o qual brotaram as vertentes dramáticas, a coluna vertebral da tragédia não eclipsa os conflitos gerados pelo evento. Um acontecimento tão transformador quanto um desastre aéreo abre qualquer filme com a força de um dínamo, mas por não supervalorizá-lo, o diretor areja a história com espaço para que a força das performances e a assertividade do script se encarreguem de torná-lo um bom filme, e não somente um espetáculo do macabro.

"Aftermath" utiliza muito bem o conceito do correr do tempo em benefício do arco dos personagens. Ao desprezar a tragédia aérea e preferir explorar o lado humano, o diretor precisava estudar os desdobramentos nas vidas individuais após o acidente, e como acontece à pintura, só se produz um quadro completo se ao artista forem dados espaço & tempo para carregar as tintas na poesia. Assim, o diretor Lester lança mão do recurso da passagem dos anos para "prestar visitas periódicas" aos atormentados protagonistas em distintos momentos: nos dias seguintes à confusão, um ano após a queda, e então dez anos após o acerto de contas entre Roman e Bonaos. A liberdade narrativa estimula um afiado desenvolvimento psicológico, porque em um período relativamente longo, captura o espírito, a disposição e as mudanças interiores daquela gente, elementos impossíveis de serem individualizados dentro de um espaço usualmente reservado a jornadas mais imediatas por parte dos protagonistas de filmes do gênero. Neste sentido, "Aftermath" esbanja a profundidade que o lança à frente de histórias com o mesmo ponto de partida, e, a sua maneira, faz-me pensar no aterrorizante "The Poughkeepsie Tapes", sobre o qual já escrevi no blog. "The Poughkeepsie Tapes", um dos melhores exemplares do subgênero "mockumentary" (filmes rodados como autênticos documentários, mas "de mentirinha"), exibia o drama das famílias de vítimas deixadas no encalço de um serial killer chamado "O Açougueiro de Water Street" através de filmagens de época e, principalmente, da saga de uma moça chamada Cheryl Dempsey, uma garota absolutamente normal até ter sido abduzida da casa dos pais em 1998, e mantida por quase dez anos em cativeiro, onde foi transformada em escrava sexual e cúmplice de homicídio. Quando a polícia estoura o claustro e a liberta, a infantilizada mulher insiste em "ser devolvida para casa", referindo-se ao calabouço de perversões sexuais do homem a quem, antes de tirar a própria vida, deixa uma carta por meio da qual jura amor eterno. Vez que o diretor John Erick Dowdle espraiou o conceito do "Açougueiro de Water Street" ao longo de uma década, ele acabou cavando certa profundidade psicológica ao filme, que pode ser considerado um dos mais perturbadores do tipo, justamente pela sensibilidade humana submetida ao escrutínio do microscópio do "documentário" (ou "mockumentary", como preferir), e as reverberações acusadas pelo contraste da passagem do tempo versus as diferenças de tom entre os distintos atos. No caso de "Aftermath", não fosse pela perspectiva do avanço dos anos, o dilema determinante nesta trama, o poder do perdão, jamais teria funcionado, pois lhe faltaria a legitimidade da verossimilhança. Por outro lado, porque conhecemos Samuel menininho, e depois o reencontramos como jovem homem, o amadurecimento e desenlace da questão soa justo e legítimo. A cronologia de uma década nos confere uma percepção mais honesta dos arcos individuais das pessoas envolvidas na tragédia, desde a confusão e raiva à reconciliação final.

Tecnicamente, percebe-se o cuidado da produção em desglamourizar a fotografia com o intuito de criar uma experiência a mais próxima possível da realidade. O diretor de fotografia Pieter Vermeer opta por um filtro acinzentado, quase averso a cores, conferindo à trama uma tristeza surrada e desesperançosa. A arte de Vermeer me faz pensar no visual de Rodrigo Pietro para o angustiante drama existencial de Alejandro González Iñárritu, "21 Gramas", ambos distintos em execução, mas, em seus respectivos fins, idênticos: "21 Gramas" prima por cores saturadas para sustentar uma sufocante atmosfera de luto, "Aftermath" escolhe a parcimônia da paleta para retratar um mundo de desalento e perda através da cor cinza; dos dois jeitos, os dois filmes primorosamente enfocam o peso da inesperada ruptura familiar, e, da mesma forma que "21 Gramas" oferece certa poesia em determinadas cenas de beleza em meio a dor, "Aftermath" flerta com o surrealismo, mais exatamente no recorrente pesadelo a atormentar Roman, onde vemos a queda pela perspectiva de quem devia se encontrar do lado da janelinha com a visão para a asa, no instante do mergulho final. O filme também traz uma tétrica cena de arrepiar os cabelos, quando Roman se junta à equipe de resgate. Embora não vejamos os corpos diretamente, o diretor mostra só o suficiente para sabermos que estão lá, e, por algum motivo, o fato de permanecerem íntegros, alguns ainda nas cadeiras, dá ao momento uma macabra atmosfera digna de filme de terror. Em termos de estratégia de direção, Elliot Lester demonstra humildade e sabedoria ao preferir manter o ego sob controle para deixar que seu maravilhoso elenco conte a história. O cineasta Mark Romanek agiu semelhante há quinze anos, quando executou o impecável "Retratos de uma Obsessão", um sensível, profundo character study, prejudicado por uma equivocada campanha de marketing, iludida ao vendê-lo como o típico suspense sobre stalkers, quando, na verdade, fiava-se na performance vencedora de Robin Williams para contar a história de um sobrevivente de estupro na infância que sublimava a dor do trauma através da incondicional e secreta devoção a uma família a que julgava perfeita, e desejava como sua. Há uma cena onde o personagem de Robin Williams aparece no jogo da liga infantil para assistir à partida do menino, o filho do casal. Após o jogo, Williams caminha lado a lado com o garoto, e em uma breve conversa, fala sobre a própria dolorosa infância. Romanek limita-se a pôr as câmeras a uma certa distância, sem movimentos, sem estardalhaços. Ele sustenta a lente nos dois atores, e voilá, a magia toma frente, pela força do talento e, claro, do lindo, melancólico pano de fundo, folhas amareladas desprendendo-se das copas das árvores ao toque da ventania de outono. Em "Aftermath", fiel ao compromisso do comedimento, Lester não tenta "aparecer mais" do que seus astros, e felizmente não se põe no caminho de uma história que já reúne elementos suficientes para gerar um excelente filme. Ele prepara as câmeras nos lugares certos, acerta com o diretor de fotografia a captura das cenas em tomadas e luzes encantadoras, mas não procura imprimir uma marca em particular, estando submetido e a completo serviço do bem maior.

"Aftermath" o fará pensar na vida através de uma ótica mais cuidadosa e reflexiva, porque ao tempo que tramas do tipo lancem o escrutínio sobre a inconstante vastidão do coração humano, pouco produzem, em termos de análise, por uma mera questão de "amostragem". Um filme nos apresenta personagens em momentos de crise, e não obstante dificuldades nos ensinem muito sobre alguém, sequer arranham a complexidade do caráter. Essa história em particular analisa escolhas dentro de um período relevante de vida. Tendo assistido a muitos filmes, somente uma porcentagem mínima consegue permanecer conosco anos após a primeira exibição. Seguindo a tradição desta pequena parcela, "Aftermath" rondará seus pensamentos, e também o convidará a lançar um olhar sobre sua própria vida. No caso de Roman, um personagem pelo qual torci, a tragédia se deveu `a incapacidade de reagir propriamente ao predicamento a que sua vida fora jogada de supetão. Na mesma oportunidade, questiono: que tragédia não envolve exatamente o mesmo impasse? Um longo processo de perplexidade ante o sofrimento? Dia desses, ao passear por uma loja de departamento, deparei-me, na seção de brinquedos, com o "Jogo da Vida". As pessoas maduras o suficiente saberão que o "Jogo da Vida" circula há no mínimo trinta anos, pois eu me recordo das partidas com os colegas, na infância. Faz muito tempo desde que o vi pela última vez, mas guardo noções sobre como o negócio funciona. Você começava como um pino dentro de um carrinho onde existia espaço para outros pinos, leia-se a família que você formaria ao longo do caminho, e diante de si existia um tabuleiro atravessado por uma longa estrada, a começar por um específico ponto de partida, que terminava uma vez que o jogador chegasse ao destino. No curso da jornada, a depender da sorte envolvida na força aplicada sobre o giro da roleta, sua vida era mais ou menos guiada consoante uma série de variáveis. Hoje, as novas edições do jogo prometem inéditas situações, e não restam dúvidas de que as circunstâncias previstas nos lances da roleta mudaram muito desde minha última vez, no começo dos anos 90. Foi algo no contexto das doces, pueris ilustrações da caixa, entretanto, que me puseram a refletir sobre a singeleza a partir da qual alguém tenta realocar para um colorido tabuleiro toda a riqueza de distintas situações, próprias ao drama humano. Em gentil traçado, o desenhista condensa na superfície da caixa muitas divertidas situações como o universitário sorridente exibindo o canudo do diploma, o jovem casal deixando a igreja, a moça nos braços do homem, a garotinha com um buquê de flores correndo em direção aos contentes pais, e o bebê recebido neste mundo pela mãe, os avós presentes para acolhê-lo logo ao lado. Existe um quê de promessa nas imagens que dá ao contexto um irremissível fatalismo, um sabor agridoce. Sim, a vida pode nos reservar lindos momentos, dignos dos lápis coloridos do talentoso desenhista, para estampar a caixa de uma brincadeira chamada "Jogo da Vida", mas eu me flagrei me perguntando por que passar a vista sobre as gravuras me causava tão forte impressão, até mesmo me estimulava a pensar no filme sobre o qual eu escreveria uma resenha - o protagonista consumido pela perda e incapaz de "voltar para a casa", para o seu "velho eu". Eventualmente, compreendi o mistério. Reparem, o termo é importante, eu disse mistério. E a compreensão do mistério está na vanguarda da história do filme, transcendendo a imagem no ecrã, mesmo que invisível aos olhos, e só perceptível indiretamente, desde que se preste muita atenção. E o advérbio também leva ênfase, porque poderá, um dia, salvar sua vida também.

Eu compreendo a fundo a questão do transtorno da personalidade narcisista pois pela maioria da vida eu estive no fim recebedor desse tipo de abuso emocional. Embora tenha sofrido essa espécie de violência psicológica há muito tempo, só recentemente vim a me atentar que essa "coisa" tem um nome. Depois que li de maneira en passant materiais sobre a condição, enxerguei características de pessoas naquele quadro e me aprofundei no assunto. Com o tempo, a verdade foi trazida à luz. O transtorno da personalidade narcisista deve ter sido introduzido na minha vida aos seis anos, eu diria, quando fui apresentado à primeira narcisista, um assédio de puro ódio que deve ter começado em 1985, eu imagino, embora não me lembre claramente. Esticou-se por mais alguns anos, por mais que, mesmo depois de minha absolvição de qualquer convívio, a mesma figura tenha acompanhado minha vida à distância com fervorosa dedicação. A primeira manifestação de maldade por parte dessa pessoa permaneceu fresca na memória, mesmo embaralhada pela névoa das recordações mais afastadas, ela aparecendo na beira da cama, a uma hora avançada da noite, de modo que outras pessoas estivessem dormindo, fazendo questão de recomendar que eu não abrisse a boca, e me beliscando como se quisesse arrancar a pele, pelo simples prazer da agressão. Ela agia conforme a cartilha de sempre, beliscar e tartamudear ameaças para sustentar um clima de eterna intimidação, era uma brutalidade contida, claro, para que na manhã seguinte não houvesse hematomas roxos nos braços. Ali naquele ato perpetrado por uma mulher que à época devia ter seus trinta & poucos anos contra uma criança de seis, na calada da noite, a vida me apresentou a um esquisito tipo de maldade que eu só compreenderia décadas mais tarde. Em distintas formas & pessoas, o narcisismo me revisitaria até que eu tivesse maturidade suficiente para compreendê-lo. Ao escrever esta resenha, ocorreu-me a ferocidade com que o filme de Cronenberg, "Estranhos Prazeres", ancorou-se a minha mente, e me dei conta do quanto elementos da figura da primeira narcisista apareciam na personagem da atriz Deborah Unger. Mesmo fisicamente, as duas se assemelhavam, ambas loiras, o mesmo tipo de frieza robótica. Com o atropelo dos anos, a crueldade dessa promíscua sifilítica deve ter se encarregado de secá-la, mas, quando ela me fez a primeira de muitas ameaças que viriam pelos próximos anos, era como se o fizesse a própria "Catherine Ballard" daquele pesadelo de filme, com toda a efervescência de alguém com completo controle sobre uma criança de seis anos. Trago na minha memória seu olhar muito oblíquo quando me acuava para me hostilizar sem descanso, e penso que deve ter sido o mesmo com que Nero dedilhou cordas de harpa enquanto Roma ardia em chamas, naquela que seria a primeira parte de seu plano para jogar a culpa nos cristãos e depois atirá-los ao coliseu, onde seriam despedaçados por leões. Mais tarde, livre da proximidade desse demônio, gente nova com semelhantes traços entrou e saiu de minha vida, regularmente, com menor ou maior ascendência, a variar conforme o conhecimento de mundo que eu havia adquirido para me desvencilhar mais prontamente. Deus age de forma misteriosa, pois só mais tarde, cerca de um ano após a morte de minha avó, uma pessoa que me amou incondicionalmente e quis meu bem, comecei a "deixar a neblina", uma penumbra difícil de se dissipar da vida das pessoas que tiveram de aturar narcisistas e seus jogos desde a infância. Eu credito minha descoberta a sua intercessão, pois em menos de um ano desde abril de 2016, sob a impressão de casualidade, cheguei a materiais que me despertaram para a existência do problema, e serviram como ponto de partida para a investigação. Também foi aproximadamente nessa época que, em uma manhã de domingo, procurei voluntariamente a antiga igreja próxima ao colégio militar, onde ela, minha avó, tanto costumara me levar quando criança. Cheguei ao lugar com o intento de prestar uma breve visita para me recordar de um tempo há muito perdido, porém fiquei até o fim, e desde então, nunca mais deixei os bancos aos domingos. Com o tempo, atentei-me que a missa era frequentada por crianças trazidas pelos pais, a chamada "missa das crianças", e pensei comigo mesmo sobre a forma como Deus trabalha, e espera o momento certo. Eu havia deixado aquela casa há décadas, quando criança, e ao regressar, totalmente às cegas, quis o destino que eu entrasse pela nave da igreja junto a pais da minha idade com suas crianças pequenas, como se estivesse retomando algo de onde havíamos parado. Por causa de minhas leituras, e da retomada de uma fé que já existia em mim por causa de meus avós, uma fé que até há pouco tempo, antes de meu retorno voluntário, me parecia uma questão longínqua da infância, uma coisa superada, pude enxergar melhor as razões da recorrência desse mal na minha vida, e encontrar conforto na verdade pela qual vi que não, as experiências ruins não haviam sido provocadas por mim, tampouco eram coisas da imaginação fértil de uma criança. Minhas experiências com diferentes narcisistas em distintos períodos são, isso sim, testemunho pessoal da existência deste transtorno comportamental, tido na história da Psiquiatria como uma das manifestações mais corrosivas de que se tem notícia. Não são poucas as pessoas que, submetidas a semelhante tratamento, desenvolvem dissonância cognitiva, doenças arrítmicas ou cânceres, ou mesmo põem termo à própria vida, dado o grau de inconstância, opressão e incerteza que essa gente deliberadamente cria. Suas trágicas vítimas morrem sugadas sem sequer saber que há um nome para a diabólica condição, e que existem formas de anular a perversão, até mesmo afastá-la. Minhas experiências me abençoaram ao calibrar meus olhos para discernirem os sinais dessa "coisa", desse "monstro", dessa "besta" que, ocasionalmente, manifesta-se ao tomar morada em novos personagens. Quem atravessou o drama deve ficar certo de que só no tempo encontra-se a desejada redenção, porque a partir do momento que se regressa espontaneamente à cruz, mesmo quando você chegar aos 90 anos e tiver apenas mais um dia nesse mundo, ou se sua longevidade não gozar de tamanho alcance e se vir incapacitado por uma doença terminal, por exemplo, ainda assim, você se dá conta de que a vida está apenas começando, e o melhor ainda está por vir. À medida que o narcisista envelhece, ao contrário, e sua influência escoa pelo ralo junto com o poder de barganha para encontrar trouxas úteis para ajudá-lo a drenar as vidas de suas vítimas preferenciais, eles se dão conta de que não lhes foi concedida nenhuma garantia, pois a morte está aí, e basta estarmos vivos para morrermos. À proporção que a vida neste mundo se tornar cada vez mais difícil, e estamos caminhando a passos largos para isso, basta olhar com atenção para o que acontece no Brasil e se encontra em curso na Europa, com a destruição da instituição familiar e dos próprios valores cristãos através de imigração em massa, o drama existencial dessa gente só se agravará. O narcisista vai se descobrindo cada vez mais excluído, dadas as pontes implodidas ao longo da vida, até não lhe restar mais nada a não ser a autofagia de um indecifrável buraco negro interior e a maldade de outros narcisistas mais jovens e muitos piores. Afinal de contas, como as considerações acima se relacionam com o "Jogo da Vida", ou como o "Jogo da Vida" se reporta ao filme objeto da resenha?

Há um cavalheiro cujos vídeos venho acompanhando ao longo do último ano, o Rvmo. Padre Paulo Ricardo, cuja generosidade o moveu a dispor online seu vastíssimo conhecimento através do qual muitos têm sido tocados e inspirados a "voltar para casa", mesmo quando a fé cristã se tornara "algo acontecido muitos anos atrás". Em um de seus vídeos, pelo qual prestava aconselhamentos a um jovem católico atormentado por um drama de ordem pessoal, discutia o conceito que se tem da palavra "felicidade", e discorria sobre o quanto a procura por uma felicidade absoluta aqui nesta existência levava ao mais irrestrito desespero justamente porque felicidade não se encontra neste plano, ao menos não plenamente, vez que o ser humano foi criado para transcender. Em busca da pretensa felicidade, dizia Pe. Paulo Ricardo, o adúltero arruína a própria família, a prostituta se destrói, as pessoas mais carentes passam suas vidas mendigando migalhas de afeto, e o alcoólatra se mata aos poucos... ele ilustrou um amplo espectro de tragédias humanas introduzidas através de um "canto de sereia" que, para dinamitar as vidas das pessoas, usa apenas uma linha ilusória de significado vazado: "Seja feliz". O jovem em questão queixava-se do sofrimento de âmbito íntimo, afinal, por conta das convicções religiosas, precisara abdicar de uma determinada conduta particular, tida pela Igreja Católica como pecaminosa, e admitia a revolta contra a própria fé ao crer que perdia uma parte da vida, porque a renúncia não o fazia feliz. Em síntese, Pe. Paulo Ricardo oferecia sua orientação com uma brilhante resposta, que para o jovem em particular certamente deve ter servido para lhe abrir os olhos. Para mim, cujo drama difere da cruz do jovem em questão, porém é igualmente pesada, as palavras me serviram como uma lufada de ar fresco. Aqui, como jamais conseguiria em meus termos reproduzir o impacto de sua exposição, parafraseio suas destemidas palavras: "Para ajudar você, nós devemos fazer uma reflexão sobre a felicidade, e o que eu vou falar para você vale para qualquer fiel católico. Eu queria que você entendesse que o drama que você vive é semelhante ao drama de todos os outros. Todos os seres humanos marcados pelo pecado original têm sempre um canto de sereia, trata-se de uma tentação, uma tentação perversa, demoníaca, que diz assim 'seja feliz, procure a felicidade aqui na Terra'. É buscando essa felicidade que o alcoólatra se embriaga, que o drogado se entorpece, que a prostituta se destrói, que o adúltero acaba com sua família, é buscando essa felicidade que vivemos uma vida de tantas desventuras nessa Terra. No entanto, Nosso Senhor não prometeu felicidade para ninguém aqui, Ele prometeu, sim, felicidade no céu. Ele disse 'Eu vou preparar-vos um lugar, na casa de meu Pai há muitas moradas'. Na casa do Pai existem muitas moradas porque diversas são as cruzes que cada um tem que carregar. Haverá uma morada para você também. Existe um lugar no céu com teu nome escrito, e eu gostaria que esse lugar não ficasse vazio. Eu gostaria que você chegasse lá. Por isso, vamos nos ajudar mutuamente: você reza por mim, e eu rezo por você. Eu vou caindo por aqui, você cai por aí. Quedas diferentes, é verdade, mas é através do cair & levantar-se que nós um dia chegaremos ao céu. A diferença do bom católico para o pecador não é que o católico nunca peca, mas é que o católico odeia o seu pecado. E eu vejo pelo seu e-mail que você tem um coração profundamente católico, que você odeia seu pecado. Mas se você odeia o pecado, então odeie também a mentira que te leva ao pecado, ou seja, a ilusão. É necessário que você combata essa palavra ilusória do demônio que te promete a felicidade com o realismo da cruz, a cruz crava os nossos pés no chão. Veja, não olhe para o mundo como se fosse um mundo onde todos vivem o paraíso, e só você, pobre você, desventurado, não consegue o paraíso aqui na Terra. Em que mundo você anda? Eu não vejo esse paraíso para ninguém. A felicidade é no céu. Essa Terra, esse mundo em que vivemos é um tira-gosto. Sim, tira-gosto é coisa boa, Deus fez esse mundo para a gente vivê-lo, e vivê-lo com alegria, mas essa é somente uma vida, que no Evangelho de São João Jesus chama de 'bios', é a vida biológica. Mas o que Ele nos promete é uma outra vida, é a vida com 'v' maiúsculo, 'zoe', uma outra palavra em grego, para dizer, a vida verdadeira vem lá. Aqui é o tira-gosto, o banquete é lá no céu. Se nós nos aproximamos de uma mesa de tira-gosto com uma pretensão de banquete, sabe qual é o resultado final? Frustração. Sim, porque tira-gosto é coisa gostosa na boca, mas pesada no estômago. Você está querendo encher o seu estômago com um tira-gosto muito pesado. Você precisa, ao contrário, entender que essa vida não vai preencher o seu estômago, ou seja, o seu coração. Não vai te dar essa felicidade toda que você quer. A vida é boa, bela, bonita, vale à pena ser vivida, mas ela é marcada pela cruz. Jesus não prometeu paraíso para ninguém aqui na Terra, o que ele disse foi 'Renuncie a si mesmo, tome a sua cruz e me siga'. Você vai encontrar uma palavra concreta e real da Igreja, que diz a você que através do carregar a cruz no dia a dia, e de amizades desinteressadas, você pode sim alcançar aquilo que todo cristão quer, a santificação. Lute, é possível. Se você cair, levante-se, levante-se, pare de ouvir o canto da sereia, pare de ouvir uma palavra mentirosa e a substitua pelo ouvir a palavra de Deus, mas é necessário que seja uma palavra de Deus com os pés cravados no chão. Ou seja, não caia também nesses outros tantos cantos de sereia de igrejas que prometem o paraíso aqui na Terra, 'pare de sofrer', 'Deus vai resolver todos os seus problemas', 'você vai fazer o paraíso aqui', isso não existe, não há paraíso aqui, não há terra sem males nesse mundo, o que existe nesse mundo é a graça de Deus que nos ajuda a ter força moral no dia a dia para combater o Mal dentro e fora de nós até o último dia. Então, eu concluo contando para você a história de um monge muito sábio. Um dia, perguntaram para esse monge 'Escuta, o que vocês fazem lá no mosteiro?'. O monge então coçou a barba e disse assim 'Lá dentro? Lá, a gente cai, levanta, cai, levanta, cai, levanta, até o dia em que Nosso Senhor voltar. E quando Ele voltar, Ele vai ver que nós caímos e estamos acabando de levantar. E vai nos levantar definitivamente'. Eu tenho certeza que se você perseverar, as quedas diminuirão. Seja paciente consigo mesmo, mas é necessária uma vida de ascese, de carregar a cruz do dia a dia. Se você rejeitar a cruz, você vai cair no canto da sereia, mas se você abraçar a cruz e enxergar que a cruz é de todos, que você não é um pobre coitado, a única criatura na Terra que Deus se vingou e jogou a cruz nas suas costas, nada disso, você não vai cair. A cruz é um mistério, e Deus veio carregar a cruz conosco. Nós não estamos sozinhos, você não está sozinho, Jesus carrega a cruz com você. E se com Ele morremos, com Ele viveremos no céu. Tem um lugar para você no céu. Persevere, meu filho, continue. Deus te abençoe".

Depois que assisti à bela mensagem, entendi a natureza do que existe de invisível naquela caixa de "Jogo da Vida", e por que a sua presença jamais permitirá que se perca a emoção do momento. Ao escrever sobre o arco do protagonista deste filme, o Roman, enxerguei melhor a forma como os pontos se conectam e até mesmo me remetem de volta a minha própria vida, ou ou o fariam a qualquer outra pessoa. Ali, sobre a caixa, sobre a simplicidade de desenhos representantes de belas vinhetas para possibilidades da vida, pesa a sombra daquilo que a todos é comum, a cruz que cada um carrega sobre os ombros. Pe. Paulo Ricardo frisa "a vida é boa, bela, vale à pena ser vivida", conforme as ilustrações de "O Jogo da Vida" nos fazem lembrar, todavia é sob a força daquilo que não precisa ser impresso que o tempo, o senhor da razão, chega para complementar o que ao Padre já é familiar, "... mas é marcada pela cruz". No filme objeto da análise, temos a tragédia clássica de dois homens desesperados, Roman & Bonaos, impotentes em enxergar a natureza das diferentes cruzes sobre seus ombros, Roman tendo perdido a família, Bonaos a paz de espírito pelo sentimento de culpa, ambos recorrendo a extremos em busca de uma felicidade, uma satisfação que, neste contexto, jamais virá nesta vida, e só os afundará mais irremediavelmente no abismo. E mesmo que naquela noite o sinistro não tivesse ocorrido, Roman tivesse abraçado mulher e filha, e Bonaos seguido a vida perfeita, por mais que os anos vindouros lhes tivessem reservado momentos cheios de alegria - como as ilustrações na caixa de um jogo - qualquer felicidade, neste plano, sempre variará muito a depender das circunstâncias. A única conduta que lhes teria salvo seria a fé necessária para carregar a cruz, porque a consciência da transitoriedade dessa existência torna as ilustrações na caixa do "Jogo da Vida" ainda mais relativas. Para a minha vida pessoal, ao assistir a este filme e depois à fala de Pe. Paulo Ricardo, vim a compreender porque o transtorno da personalidade narcisista, esta "fera", este "monstro", tão recorrente desde a infância no meu caminho, jamais foi embora totalmente, e ainda hoje, tendo tomado morada em pessoas novas, ocasionalmente, estica o pescoço para me checar. Trata-se de um teste, uma cruz a ser carregada com dignidade e alegria, algo que jamais será explicado, pelo simples fato de que a cruz é justamente isso: um mistério. É pelo realismo da cruz, entretanto, que resistimos à poderosa ilusão criada pela mentira, e ao pontuarmos que, afinal de contas, nada é mais próprio ao narcisismo do que a criação de fantasias, constataremos que a arma que te fere, a cruz, acaba sendo a mesma que te salva. Recordo-me frequentemente de minha avó, e em meu coração firmei a convicção de que foi obra de seu amor o fato de eu ter regressado à igreja, e encontrado nome e explicação para um mal que tomou minha vida de assalto, quando pequeno, e vem perdurando até hoje. Ela sabia que haveria o tempo certo para que as peças se encaixassem em um conjunto claro e coeso. Eu sei que ela devia pressentir a natureza das pessoas completamente loucas e extremamente perigosas na minha vida, mas só lhe cabia orar, primeiro, para que não me fizessem mal, afinal narcisistas são instáveis, explosivos, imprevisíveis e de uma ferocidade demoníaca, e, segundo, que eu chegasse a uma resposta por mim mesmo, porque há constatações que ninguém mais pode fazer pela gente, a não ser nós mesmos. Como diz a música, "As coisas fundamentais se aplicam, à medida que o tempo se vai". Muitos anos se passaram desde que eu fui apresentado a um tipo de cruz que assume muitas faces, de sorte que hoje não me assusto mais, porém, de lá para cá, dentre tantos rostos distintos, ainda me impressiono com a única constante: é o mesmo olhar.
Todos os direitos autorais reservados a Lionsgate. O uso do trailer & imagens é para uso meramente ilustrativo da resenha.