sexta-feira, 9 de setembro de 2016

O Vingador ("Murphy's Law", 1986, J. Lee Thompson). O canto do cisne da carreira de Bronson é um brutal banho de sangue motivado por vingança.

Charles Bronson interpreta Jack Murphy, tira veterano da Força Policial de Los Angeles, e, quando o filme abre, só de vê-lo entrar em cena pela primeira vez, podemos deduzir que este cara já viu dias melhores. Murphy deixa o supermercado com o saco de compras bem a tempo de flagrar uma jovem delinquente fazendo uma ligação direta no seu carro. Quando Murphy abre a boca para exclamar "É meu carro!", a moça já pisa no acelerador e deixa o estacionamento. Murphy consegue atirar o saco de compras no vidro da frente, o que a atrapalha a ponto de perder o controle sobre o volante, atravessar uma vitrine e ir parar dentro de uma diner, onde fregueses são surpreendidos pelo inusitado acidente. Rápida e astuciosa, ela teria conseguido correr e despistá-lo, não fosse o azar de se meter em um beco sem saída. Murphy dá um disparo de aviso, para o alto, apenas para que deixe de fugir e trate de se entregar. Quando Murphy abaixa a guarda por tomar a situação como inofensiva, a hábil ladra distrai o policial ao lhe perguntar "Por que todos os homens da Força têm aquilo pequeno", pondo-o de quatro com um bem dado chute entre as pernas. Ela consegue escapar, mas seus caminhos se cruzarão um pouco mais tarde. Aprenderemos que eles se tornarão amigos & parceiros durante uma improvável fuga. Os créditos do filme abrem ao longo da sequência seguinte, por meio da qual somos apresentados ao ritual de despertar de Murphy, e tiramos algumas acertadas conclusões a respeito do personagem. Ao lado do retrato de uma mulher bonita, há uma garrafa de Jack Daniels, e os detalhes no desleixo do quarto, a cama onde ele acorda solitariamente, nos sugerem que Murphy foi deixado pela esposa, a mulher bonita da foto. O barulho do telefone o desperta do torpor, e ele é acionada para uma ocorrência, convidado a comparecer a uma cena de crime, as investigações já em curso. Muito contrariado e desanimado, o acompanhamos cumprindo os rituais matinais básicos de higiene enquanto tenta manter a aparência da sobriedade, por mais que os amigos da Força suspeitem de seu problema com álcool.

A cena do crime, um túnel num local ermo, já foi isolada pela polícia. Ele é recebido pelo amigo Art (Robert F. Lyons), que o põe a par das informações, até aquele momento. Uma jovem prostituta foi encontrada morta. Murphy pinça um detalhe do chão do túnel, até então imperceptível aos demais, um colar. Há um nome grafado na medalha, "Anthony Alberto Vincenzo". Anthony é o irmão mais jovem de Frank Vincenzo, um notório gângster & narcotraficante distribuidor do cartel colombiano. Por mais que tenha ficado muito próximo de pegá-lo, Murphy jamais reuniu provas para pô-lo definitivamente atrás das grades. O irmão, Anthony, também não vale nada, e, diferente do primogênito, mais centrado no negócio das drogas, circula socialmente como agente de talentos, para abusar de mulheres. De posse do medalhão, a Polícia terá como conectá-lo ao homicídio. Sem desperdiçar a oportunidade de azucrinar o irmão mais velho de Anthony, Jack visita o gângster no restaurante de luxo preferido. Com muita satisfação, explica como colocará o irmão na cadeia, exibindo o mandado e recomendando que comece a falar sobre o paradeiro de Anthony. Frank se esquiva afirmando que não o vê há um bom tempo. Aqui, há uma interessante linha de diálogo que nomina o filme. Vincenzo pergunta a Murphy se o tira já ouviu falar na "Lei de Murphy". Se algo puder dar errado, dará mesmo! Ele está ameaçando sutilmente o policial. Murphy retruca, sem se intimidar, que a única "Lei de Murphy" que conhece é a "Lei de Jack Murphy", muito mais simples: Não brinque com Jack Murphy.


Naquela mesma noite, uma mulher loira chega a Los Angeles. Ainda não sabemos nada sobre a estranha, chamada Joan Freeman (uma performance vencedora de Carrie Snodgress), mas ela está de visita para acertar as contas com um número de pessoas. Ela se encontra com um detetive particular, a quem dera a incumbência de rastrear os nomes de uma lista, e fornecer seus endereços & telefones. Alguns nomes demandaram mais trabalho, então ele sugere que o preço de seus serviços deva sofrer um incremento. A mulher e o homem conversam em um banco, à beira do lago, e como o fazem a um horário bem avançado da noite, não há ninguém ali por perto. O detetive não sabe com quem está lidando, e ao sugerir que vazará as informações para as pessoas da lista, caso a demanda por honorários não seja atendida, assina a própria sentença de morte. Ela o distrai prometendo pagar os dois mil dólares extra, mas ao invés da carteira, saca da bolsa um revólver. O homem ainda tenta deixar a questão por menos, e dar as costas para partir, mas ela o orienta a permanecer parado, caso não queira morrer. Instruindo-o a abrir a boca, como em uma consulta médica, ela desliza o cano da arma para dentro e atira. Murphy recebe uma intimação para comparecer ao tribunal, para finalizar o trâmite do divórcio. A razão pela qual tem vivido uma existência desregrada, portanto, se deve ao fato de ter sido deixado pela mulher, há pouco tempo. O divórcio será o menor dos problemas, pois Murphy logo se verá metido em um jogo muito mais perigoso, bolado pela vingativa Joan Freeman, que ressurgiu somente agora para torturá-lo, revanche por um fato consumado há mais de uma década, conforme saberemos, chegado o tempo certo. Ele recebe uma ligação, e estranha quando uma voz feminina desconhecida lhe pergunta se se trata de Jack Murphy do outro lado da linha. Assim que confirma, a estranha desliga. Um segundo telefonema o deixa mais constrangido, a ponto de perguntar se se trata de um jogo. Ela vai direto ao ponto, e revela que o jogo está apenas começando. Ela promete matá-lo, não sem antes fazê-lo passar uma temporada no inferno. Murphy reage surpreso com tanto ódio, e antes que possa esboçar uma resposta à altura, Joan bate o fone com um sorriso malicioso e cheio de ideias perigosas.

A vida de Murphy está a um sopro de mudar, e na manhã seguinte, ao sair de casa para o trabalho, não se apercebe da vigília que já a partir daquele momento Joan faz sobre sua vida, como um predador se preparando para o bote. No trabalho, ele é amolado por Ed, um colega da Força, que o provoca com comentários sobre ter visto a ex-mulher de Murphy em uma boate de strip-tease (ela ganha a vida como dançarina, e deixou o casamento para se relacionar com o dono da casa noturna). Murphy cai na armadilha e acerta o colega com um murro, o que principia uma pequena confusão. Sargento Nachman o chama para uma reunião a sós no gabinete, e lhe dá um sermão sobre não ser o único homem divorciado da Força, pois cerca de ¾ dos tiras passam pelo mesmo problema. Ele o aconselha a retomar as rédeas da própria vida antes que se afunde em uma garrafa. Art dá a notícia a Murphy: a segurança do aeroporto internacional acaba de avisá-los que Anthony Vincenzo foi visto no salão de embarque, e o voo decolará dentro dos próximos 20 minutos. Assim que reconhece os policiais, Anthony Vincenzo saca da maleta um revólver e usa uma pobre aeromoça como refém. Filmes de ação dos anos 80 costumam ser deliciosamente exagerados, e, aqui, pelo menos hoje, muitos anos após o lançamento em vídeo, a forma como o momento foi orquestrado me causa algumas risadas involuntárias (o jeito com que Anthony Vincenzo adverte os policiais, em uma atuação tão sofrível quanto arranhar o quadro-negro com pregos, "Stay away from me or I'll blow her fucking head off!" & a reação aborrecida, porém nem tão preocupada assim de Bronson, como se seu gato tivesse apenas derrubado o abajur do criado-mudo e ele estivesse pensando "Eu tô velho demais pra isso!", ainda me fazem menear negativamente a cabeça, com um sorriso divertido). Prometendo executá-la caso os policiais se aproximem, Anthony tenta despistá-los nos corredores que dão para os portões de embarque. Em uma chocante novidade, mesmo para um filme violento estrelado por Charles Bronson, o bandido estoura os miolos da comissária e o corpo sem vida desliza pela parede deixando uma faixa de sangue, o que dá a Murphy o incentivo extra para usar força bruta e resolver o impasse. Ele fuzila o bandido e o impacto das balas atira o corpo de Anthony através do portão de vidro.

A mãe dos irmãos Vincenzo faz seu filho mais velho, Frank, jurar que arruinará a vida de Murphy, como represália pela morte do rapaz ("Ele era um bom garoto, um garoto decente", a mulher lamenta, no funeral, com um sotaque italiano, outro instante involuntariamente hilariante, dada a performance um tanto quanto forçada, uma das razões pelas quais tanto sentimos falta dos anos 80! "Eu quero esse tira bastardo morto! Eu o quero crucificado!", ela determina, e Frank a escuta com muita atenção, enquanto meus olhos se enchem de lágrimas por causa das risadas). Agora, Murphy figura na lista de vingança de dois inimigos: não somente Joan Freeman deseja crucificá-lo, agora a máfia quer sua cabeça. O policial não consegue se ajudar, e, movido por uma crise de ciúmes, visita a casa noturna onde a ex-mulher se apresenta. Ela o vê em um canto e se dirige à mesa após a apresentação, mas a conversa não custa a azedar quando o possessivo Murphy a admoesta por trabalhar em um local de tão baixo nível. Ela se zanga e se sai com o argumento de que é uma dançarina, e não há nada de errado naquilo. Murphy espera pelo encerramento da boate, escondido na sombra do interior do carro, e quando a ex-mulher sai com o atual companheiro, ambos aos beijos e abraços, ele os segue a uma distância segura. Parado do outro lado da rua, precisa de um gole de uísque para anestesiar a dor por flagrá-los chegando ao apartamento onde agora habitam como marido & mulher. Os hábitos de Murphy são cuidadosamente estudados pela sempre camuflada Joan Freeman, que usará a rotina do policial contra o próprio, para incriminá-lo.

Na venda de licor onde costuma comprar bebida, Murphy reconhece a jovem ladra responsável pela tentativa de furto de seu carro, no começo do filme. Arabella não tem a mesma sorte de antes, e esconder-se dentro de uma cabine no banheiro feminino não impede o policial de ir buscá-la dentro! Ela tenta a mesma manobra, o chute entre as pernas, mas, dessa vez, Murphy atentou-se para não lhe dar chance de livrar a cara. Cobrindo-o de palavrões, Arabella tenta fazer o papel de vítima ao ser arrastada à delegacia, mas as desculpas não colam, e ela permanece sob custódia. À noite, Murphy se tortura ao visitar a boate para ver os movimentos da ex-mulher stripper, que dessa vez não o trata com paciência, e vai logo declarando que não o suporta mais a espionando. Ela tenta acertá-lo com um tapa, mas Murphy detém o punho no ar. Diante do novo companheiro da ex-mulher, ele frisa que ali no palco, ela se parece com uma vadia, e ele, seu cafetão. Desavisado, ao entrar no carro, Murphy é golpeado na cabeça, e desmaia. Joan tem planos para implicá-lo no assassinato que está para cometer. Atrás do volante do carro de Murphy, vestida com casaco e chapéu, com o tira desmaiado, acomodado no banco do carona, Joan segue a ex-mulher e o namorado. Antes que o insuspeito casal cruze a entrada, ela se serve do revólver do policial desacordado para fuzilá-los através da janela. Os dois são varados por disparos que também causam estardalhaço ao pulverizarem o vidro do lobby. Um morador da vizinhança, alerta graças à comoção, chega a tempo de anotar a placa do carro, que arranca logo após os tiros. Satisfeita com o sucesso do plano, Joan guia o carro de Murphy de volta à casa do policial, e ao deixá-lo, sorri ao vê-lo ainda meio grogue, alheio ao acontecido, desconhecedor dos últimos gravíssimos eventos.

Como de se esperar, os colegas aparecem na porta de Murphy, e o levam sob custódia. Para seu azar, Ed, o colega com quem teve desavenças, compilou provas muito palpitantes que o colocam na cena do crime, no horário dos assassinatos. Para Ed, o homicídio está recheado de elementos de um típico caso passional: Jack não suportou o fato de a mulher o ter deixado, e, em um acesso de fúria, a executou junto ao amante. Resultados da balística indicam a arma de Jack como a utilizada no homicídio, e o deixam indefinitivamente atrás das grades. O destino prega uma peça quando, sob custódia, é algemado à Arabella, a delinquente que atazanou sua vida no começo do filme. Murphy bola uma estratégia para escapar da prisão temporária, e começa a provocar a garota ao perguntar se ela já arrumou uma namorada. Arabella reage conforme o esperado, dando-lhe uma saraivada de socos, o que distrai o guarda plantonista, forçando-o a abrir a cela para interferir na briga. Murphy, claro, toma a arma do policial e com um golpe bem dado na nuca, o deixa momentaneamente desacordado. A única saída é "para cima". No hall de elevadores, Murphy chama um deles e o põe em descida, induzindo os tiras presentes no prédio a crerem que os fugitivos estão a caminho. Ele praticamente a arrasta para o heliporto. Murphy pilotava helicópteros na época da Guerra da Coréia. Ele embarca no helicóptero da cobertura, e decola antes que o heliporto seja tomado pelos colegas, agora perseguidores.


A Guarda Costeira é acionada; oficialmente, Murphy & Arabella, que nada tinha a ver com a situação do tira, se tornam fugitivos & cúmplices aos olhos da lei. Sem combustível, Murphy é obrigado a aterrissar sobre um celeiro. Após um divertido e perigoso encontro com os proprietários, meia dúzia de caipiras, chocados com a inusitada descida de um helicóptero bem sobre a plantação de drogas, o policial rapidamente os rende e toma suas armas. Murphy consegue iniciar a ignição de uma caminhonete, e foge para uma porção montanhosa afastada da cidade, para a cabine do velho parceiro, Ben Wilcove (Ben Henderson). Murphy desmaia no centro da sala, e Arabella é surpreendida quando Ben surge com uma espingarda. Ela procura sumarizar a absurda situação, e assim que Ben percebe de quem se trata, abaixa a arma e se encarrega de socorrê-los. Tendo servido junto a Murphy na Guerra da Coréia, ele sabe como atender as escoriações, basicamente um corte na testa. Enquanto Murphy se recupera, Ben prepara algo para Arabella comer, e revela de onde os dois se conhecem. Além de terem servido juntos, também foram parceiros, até que um garoto de 16 anos forçou Ben a uma aposentadoria prematura ao lhe dar um tiro na coluna. Ali na cabine, Murphy e Arabella fazem bom proveito da trégua na incansável perseguição imposta pela Polícia de Los Angeles. A paz não dura, e Murphy acaba estragando a trégua com Arabella, quando a ladra, muito prestativa, lhe prepara um omelete para o café da manhã, e o tira faz um comentário derrogatório. Ela devolve a indelicadeza atirando o prato em Murphy ("Ótimo, então não coma, vista!", ela exclama) e deixando a cabine. Murphy sabe que chegou a hora da despedida, e até que desvende o mistério sobre quem o implicou no homicídio da ex-mulher, precisará trabalhar em dupla com Arabella. Como cúmplices, seus destinos permanecem entrelaçados. Ben procura suavizar os ânimos inflamados do amigo, e o presenteia com o velho revólver calibre 38. Murphy precisará da arma de fogo. Os amigos se despedem. De volta à caminhonete, o tira logo encontra a ladra, um pouco mais à frente na estrada de terra batida, e, reunindo paciência, consegue pedir desculpas com humildade, convencendo-a de que precisam trabalhar juntos.


Sempre um passo à frente, Joan os seguiu até a cabine. Ela não atentou contra as vidas de Murphy & Arabella porque está se divertindo com o policial, como um gato a dar patadas no rato, antes de devorá-lo. Disposta a enriquecer a lista de mortes para pô-la nas costas do tira, ela espera que Murphy parta, para adicionar mais um crédito. Ben assiste à caminhonete se afastar. Ao voltar para dentro, parece se sentir observado à distância. Ele dá pela ausência de uma das espingardas do suporte, e antes que possa compreender a situação, é lançado ao chão quando alguém enfia agressivamente o cano contra as costas. Indefeso, por um instante, Ben reconhece a invasora. Os motivos pelos quais Joan deseja se vingar de Murphy também envolvem o pobre Ben, por um confronto do passado, a ser esmiuçado mais à frente. Por ora, basta frisar que Murphy nem se lembra mais da psicopata, e crê que só tem de se preocupar com Vincenzo e a Força Policial. Joan saboreia a confusão no rosto de Ben, e então aperta o gatilho. A força do tiro da espingarda é tão forte que lança respingos de sangue na face da assassina. Murphy & Arabella só ficam sabendo do assassinato quando, tendo voltado a Los Angeles e interrompido a correria para comerem em uma diner, a ladra se assusta ao reconhecer a foto do veterano, na página policial. Murphy se sente péssimo pela morte do ex-parceiro, e novamente cita Vincenzo como o provável autor do atentado. Ele recomenda que Arabella se afaste, mas a ladra explica que só se verá livre se Murphy também provar a inocência. Eles permanecerão juntos até o fim da aventura. O tira assevera que se quiser trabalhar em dupla, deverá escutar & seguir suas determinações.


Joan Freeman seduz o Juiz, Kellerman (Jerome Thor, veterano de thrillers de Bronson), propositalmente sentada em uma mesa de onde ele possa enxergá-la muito bem através do salão, no restaurante que ele costuma frequentar, todas as noites. Em determinado momento, ele se aproxima para cumprimentá-la. Kellerman indaga se os dois já se viram anteriormente, afinal a mulher lhe parece muito familiar. Claro, eles já se cruzaram no passado, em terríveis circunstâncias. Se Kellerman se lembrasse de Joan Freeman, se manteria afastado. Ela finge muito bem não se recordar, mas pergunta se ele gostaria de acompanhá-la na sobremesa. O flerte inocente evolui para um encontro amoroso, quando o juiz a leva para casa. O nome do magistrado aparece na lista de "acerto de contas" da psicopata, e embora até aquele instante os homicídios tenham sido cometidos com armas de fogo, este se dará pelas suas mãos nuas. As roupas espalhadas pelo chão e sobre cadeiras sugerem o momento posterior ao ato do sexo, e quando os reencontramos, os dois se encontram na banheira, Kellerman totalmente dentro d'água, e ela sentada na beirada de modo a conseguir segurar suas pernas. Uma das forças da cena consiste na velocidade com que um instante de prazer vira uma desesperada batalha pela vida. Em um segundo, eles agem como dois amantes exaustos e felizes, após a relação, e no minuto seguinte, a mulher já está muito bem concentrada em afogá-lo sem lhe dar qualquer chance para reverter o horroroso predicamento em que se vê metido. A partir daí, acreditamos no potencial para a maldade da vilã. Você pode imaginar que há coisas que ela seja incapaz de fazer, mas não há.

Murphy resolve não esperar mais, e ao invés de aguardar novo ataque a sua vida, presta uma visita a Vincenzo. Ele traça um plano com Arabella, e a estratégia funciona. A moça aparece no lobby do hotel onde o mafioso mora, com uma conversa sobre um furo no pneu da caminhonete. Bonita, ela seduz os dois guardas a relaxarem. Enquanto um deles deixa o lobby para verificar a caminhonete, o outro é embaralhado pelas promessas vazias da moça, que lhe pergunta se há algum lugar onde possam ficar mais à vontade. Murphy, até então clandestino dentro da carroceria, nocauteia um dos homens, assim que ele se agacha para verificar o pneu. Ele tira o quepe e o uniforme do guarda desacordado, para facilitar a entrada no prédio sem chamar a atenção. O segundo oficial é surpreendido por Murphy no quarto onde imaginara que ficaria com Arabella. Uma vez livres pelo hall de elevadores, os dois alcançam a exclusiva cobertura habitada pelo mafioso. Distraindo os dois asseclas que vigiam a entrada, Arabella se apresenta como entregadora de pizza, até abrir a caixa e revelar uma arma. Murphy chega logo em seguida. Vincenzo está recebendo gratificação oral de uma prostituta, e nem percebe quando o tira chega por trás e põe o cano do revólver na sua têmpora. Vincenzo leva uma terrível surra. Mesmo depois de se submeter a um sádico jogo de roleta russa imposto por Murphy, o mafioso jura, choramingando, que não armou nada dos últimos acontecimentos. Mesmo sabendo do caráter viciado & maligno do gângster, Murphy percebe que não foi mesmo Vincenzo o autor dos atentados. Ele então o deixa escapar com vida. Agora que Vincenzo foi terrivelmente humilhado, não demorará a também "mandar seus cachorros" no encalço de Murphy. O policial faz novos inimigos a uma impressionante velocidade. Vincenzo ordena que seus homens coloquem "a palavra na rua": dez mil dólares para quem lhe der uma pista do paradeiro de Murphy & Arabella. Agora, ele irá à forra.

Determinado a encontrar a verdade sobre o inimigo oculto, Murphy sabe que precisará da ajuda de algum colega de dentro da polícia, e assim aparece na garagem do colega Art. Inicialmente hesitante em ajudar o amigo foragido, Art acaba cedendo, e promete compilar a lista de ocorrências atendidas por Murphy & o falecido Wilcove, alguém que tenha sido mandado à cadeia por muitos anos, e tenha deixado o presídio recentemente, com motivos para odiá-los tanto assim. O colega também aceita hospedá-los por uma noite. Na manhã seguinte, começamos a enxergar a atração entre Murphy & Arabella. Enquanto ele faz a barba, a moça fica observando com interesse, até que o tira estraga tudo ao perguntar se ela não tem nada melhor para fazer. Murphy imediatamente tenta endireitar a situação ao se desculpar, o que lhe vale o respeito da moça. Os dois comem sanduíches à mesa da cozinha, e um incipiente flerte iniciado pela garota logo se estabelece. Ela lhe diz que Murphy não está tão mal, e seria ainda mais "inteirão" se deixasse de beber. A paquera é interrompida, quando Art os contata. O amigo conseguiu 3 nomes. Os dois primeiros citados não chamam a atenção de Murphy, mas quando ele profere o de Joan Freeman, uma ocorrência antiga, de dez anos atrás, o tira tem um insight. No jornal daquela manhã, o afogamento de Kellerman causa grande comoção. Art comenta que Kellerman foi o juiz cuja sentença mandou a mulher para trás das grades, nos anos 70. A convicção de Murphy foi formada, e ele ruma ao Sunset, um antigo hotel no centro de Los Angeles onde, conforme o banco de dados, Joan foi acomodada após a saída do sistema carcerário.

No apartamento, Joan levanta pesos diante do espelho, e impressiona pela dedicação e força. A agente da condicional (Janet MacLachlan) se encontra de visita, ignorante quanto aos tenebrosos crimes cometidos pela ex-prisioneira. A agente é surpreendida pelas novidades de Joan. Não somente abriu mão de uma vaga de emprego, a sua espera desde a libertação, ela também confidencia que achou uma ocupação muito mais interessante. A agente pergunta se Joan poderia explicar melhor. A assassina abre um álbum com fotos das pessoas que já matou (a ex-mulher de Murphy, Ben Wilcove, Kellerman) e as que pretende matar. Ainda confusa, a mulher não se atenta ao perigo. Joan a prende rapidamente com um fio bem amarrado em torno do pescoço, e a mata estrangulada. "Eles não deviam ter me soltado, eu sou mesmo louca", ela sussurra, enquanto a mata. Murphy chega ao Sunset e consegue a chave do apartamento de Joan após ameaçar quebrar os dentes do recepcionista folgado. O homem então os reconhece pelas fotos no jornal, e aciona a polícia. Joan não se encontra em casa, e Murphy bisbilhota seus pertences. O álbum de fotografias com registros das vítimas elimina quaisquer dúvidas. Ao mexer na porta da despensa, o corpo da agente de condicional desaba para fora. Quando os dois estão deixando o local, dois policiais aparecem no 6° andar. Há uma breve troca de tiros, sem que ninguém saia ferido, e Murphy bola uma fuga através da escada de incêndio externa. Ele explica à Arabella que precisam chegar a Malibu o quanto antes.

Murphy & Arabella voltam à estrada para realizar a viagem para Malibu, quando finalmente o filme descortina as razões de Joan Freeman. Murphy conta a história à parceira. Ela era a namorada possessiva de um jovem segurança que trabalhava no Bradbury Hotel. Há 10 anos, ao visitá-lo uma manhã, acabou causando uma cena de ciúme, que logo escalou para briga. Ela puxou a arma do namorado e atirou à queima-roupa, em um instante de loucura. Murphy & Wilcove foram os dois policiais que primeiro chegaram ao Bradbury. Freeman havia subido para a cobertura com uma refém. O fato é que graças a Murphy & Wilcove, Freeman foi presa. O ex-parceiro & Kellerman, portanto, foram mortos por Freeman como vingança pessoal pela sua prisão. Agora, Murphy & Arabella precisam chegar a Malibu para conversar com Albert Skinner, o promotor original do caso e provável nome na lista de acerto de contas de Joan. Eles chegam `a casa de praia de Skinner, à noite, e se separam para encontrar o promotor. No andar de cima, Arabella é apanhada de surpresa por Joan, e apaga quando a vilã a segura por trás e força um lenço embebido com clorofórmio contra o rosto. Ela nem tem tempo de gritar para pedir socorro para o policial. Na sala de estar, sentado perante a lareira, Murphy encontra o corpo sem vida de Skinner, um saco plástico amarrado na cabeça. O silêncio da parceira o deixa preocupado, e ao tentar localizá-la no andar superior, topa com uma mensagem escrita a batom, no espelho da suíte: "Nós estamos esperando por você no lugar onde tudo começou". Ao telefonar para a Homicídios, Murphy não tem sorte, pois quem atende é Ed, o colega por quem nutre antipatia. Como não lhe restam alternativas, Murphy reporta a gravidade da situação para Ed. Ele explica que Joan Freeman o incriminou, e agora deseja desfechar o acerto de contas no Bradbury. Ed se encarrega de repassar a mensagem para os colegas da Força, de modo que todos possam se encontrar no Bradbury para ajudá-lo no impasse.

O Bradbury Building, um personagem à parte, também serviu de palco para muitos outros célebres suspenses, como "Blade Runner". Projetado nos estilos renascença italiana & romântica, seu interior, semelhante ao das catedrais, perenemente iluminado por uma imensa claraboia de vidro no alto, é fortemente caracterizado por vários mezaninos abertos a darem para um salão central, ladeado por torres de elevadores mecânicos estilo gaiolas, um charme que nos remete ao começo do século XX, quando foi levantado. Murphy entra no prédio abandonado pelo átrio, e Joan o observa, imersa nas sombras. Arabella foi amordaçada, e teve as mãos e pés amarrados. Ela está aprisionada no fosso de um dos elevadores mecânicos, e não tem como se comunicar com o tira. Ele sobe cautelosamente pelas escadas, de arma em punho. Nisso, os mafiosos chegam ao Bradbury. Ed é um policial "comprado", e ao invés de acionar os colegas da polícia, entregou a localização de Murphy a Vincenzo. Ed entra desacompanhado, e, por um momento, Murphy acredita que ele trouxe reforços, conforme solicitara ao telefone. Ed mostra suas reais intenções ao sacar a arma para Murphy e ironizar que Frank Vincenzo "deseja conversar", do lado de fora. Subitamente, o policial corrupto tem o pescoço varado por uma flechada.

Joan guarda excelente visão dos andares inferiores, pois se posicionou mais ao alto. Ela se armou com uma besta (arco-e-flecha), e seus disparos são precisos. Murphy se alberga como pode, porém ao tentar alcançar o revólver de Ed, deixado num canto, quase tem a mão varada por um preciso disparo. O impacto da ponta da flecha contra o cão do revólver o lança na escuridão abaixo. Joan se diverte com a delicada situação de Murphy, e não parece querer matá-lo tão cedo. Por causa da demora de Ed, Vincenzo e seus dois homens saem do carro para procurar pessoalmente por Murphy, dentro do Bradbury. Os mafiosos portam armas pesadas, tais como pistolas e escopetas. Da escuridão acima, Joan estuda o entrevero e aguarda. Os dois homens de Vincenzo se separam, cada qual varrendo mezaninos opostos. Murphy surpreende um dos bandidos com um murro, e antes de ser atingido pelo outro gângster, usa o cara como "escudo". De fato, o homem toma um tiro de escopeta nas costas, e Murphy sai ileso. Sobre a gaiola do elevador mecânico, Murphy pretende chegar ao topo. Sob fogo cerrado, ele consegue desembarcar a salvo em um dos últimos lances de escada. À espreita por trás de uma janela, Murphy espera pela passagem do segundo homem, para se lançar ao corredor e apanhá-lo com o impacto do peso. O bandido perde o equilíbrio, e Murphy toma sua escopeta, mas quando vai atirar, vê que o homem já foi fatalmente ferido ao cair com a cabeça em uma afiada lasca de vidro.

Murphy chama Vincenzo para a briga, e o instiga a tentar matá-lo sem a ajuda de terceiros. O mafioso porta uma metralhadora. Ao, de relance, dar pela sombra de Murphy, correndo, dispara uma saraivada de tiros em direção ao mezanino do andar superior. Murphy faz uma encenação e finge ter sido alvejado. Vincenzo sobe as escadas para o mezanino, e ao encontrar um corpo de bruços, descarrega a metralhadora nas suas costas. Certo de que apanhou o rival, ele debocha "Você se lembra do que eu te falei sobre a Lei de Murphy?". Ao virar o cadáver com um pontapé, tem um choque ao ver que não se trata de Murphy, e sim de um de seus homens. Ele se volta por causa do clicar de uma arma engatilhada, e dá de cara com a figura de Murphy, deixando as sombras, escopeta em mãos. "Você se lembra do que eu te disse? Não brinque com Jack Murphy!", ele assinala, e atira. O impacto dos disparos de escopeta lançam o corpo de Vincenzo corredor afora. Agora que são só Murphy & Joan, a assassina aciona a descida do elevador, e o policial compreende que Arabella foi aprisionada no fundo do fosso. Em uma corrida contra o tempo, ele consegue arrombar a grade do canal e desatar os nós bem a tempo de arrancá-lo do fosso e escapar do peso da gaiola. Murphy mal tem tempo de celebrar, pois Arabella é atingida por uma flechada nas costas, bem diante de seus olhos. Furioso, Murphy grita e lança um olhar de ódio para Joan, que assiste a tudo com perverso contentamento e o convida para cima, para o ajuste de contas.


Murphy sobe pelo elevador ao andar onde a viu pela última vez. Ele presta atenção ao redor, mas não encontra sinais da vilã. A falta do machado no quadro de bombeiros o deixa em alerta. Joan se aproxima cautelosamente, às costas do rival, de machado em mãos, só à espera de se achegar o suficiente para desferir um golpe fatal. Murphy se vira a tempo de livrar a cabeça do semicírculo veloz traçado pela lâmina no vazio. Joan perde o equilíbrio com o empurrão de Murphy, e rola escada abaixo de modo a bater com as costas no parapeito do mezanino. Murphy segue com uma voadora que a atinge no peito, e a faz virar sobre a balaustrada, para o precipício, uma altíssima queda rumo ao lobby. Joan só não cai no mesmo instante pois a cabeça do machado, presa à balaustrada, impede o lançamento. Vestida com luvas de couro, Joan vai gradualmente perdendo a firmeza  sobre o cabo de madeira. Ela suplica para que Murphy a ajude, mas o tira viu o suficiente de sua brutalidade para cometer a tolice de estender uma mão salvadora. Impotente, ela ainda o xinga e amaldiçoa, até a gravidade selar seu destino e carregá-la a uma queda mortal. Murphy limpou seu nome, e não tem mais nada a temer. Na calçada do Bradbury, há ambulâncias e carros de polícia à espera dos dois heróis. Arabella também sobreviveu (a flecha a acertou no ombro, e não perfurou órgãos), e, como bons parceiros, o tira e a ladra descansam lado a lado na ambulância, exaustos, mas satisfeitos. Com bom humor, ele promete que assim que ambos se sentirem melhor, lavará a boca da ladra com sabão!

"Murphy´s Law" faz parte do pacote de filmes que o astro Charles Bronson, então em decadência profissional, fez para a Cannon, o arrojado estúdio de produções de baixo orçamento, ainda hoje lembrado com muito carinho. Cinéfilos da minha faixa etária, 30-40, se recordarão com nostalgia dos filmes da Cannon (lançados no Brasil sob o selo da América Vídeo), afinal, aqui no Brasil, a infância nos anos 80/começo dos anos 90 foi povoada por um fértil imaginário ilustrado por aventuras de Chuck Norris & Van Damme, em um universo paralelo populado por heróis lutando para derrubar ditadores em países fictícios da América Latina ou agentes secretos se infiltrando em campeonatos clandestinos de kickboxer no submundo para derrubar vilões canastrões & maravilhosos, como Martin Kove, Bolo Yeung, Matthias Hues ou Richard Lynch! A história da Cannon merece um filme exclusivo, prova disso a existência do documentário "Electric Boogaloo: The Wild, Untold Story of Cannon Films", um nostálgico, ora hilariante, ora tristonho passeio pelas alamedas das recordações, dos primeiros anos do grupo consolidado pelos produtores israelenses & primos Menahem Golan/Yoram Globus  até seu último suspiro, quando os profissionais que haviam feito da Cannon uma mágica força cinematográfica precisaram assistir ao declínio, enquanto blockbusters cada vez mais luxuosos relegaram coisas de ação mais simplórias & ingênuas ao ostracismo (as atividades da Cannon duraram 14 anos, aproximadamente). Eu não poderia me aprofundar em "Murphy’s Law" sem tecer algumas considerações sobre o sistema de trabalho do estúdio & o contexto da época em que se inserem filmes de Bronson. A Cannon Filmes ofereceu um repertório tão vasto durante os anos de funcionamento que custo a pensar em outra companhia que repita os mesmos feitos hoje (talvez a Vertigo ou a Magnet Releasing). Abençoados pelo selo do grupo Golan/Globus, novatos em via de se tornarem astros tiveram suas primeiras grandes chances (caso de Jean Claude Van Damme, cujos primeiros passos se deram em "Cyborg: O Dragão do Futuro", de Albert Pyun, e "O Grande Dragão Branco"), carreiras de astros consolidados, mas em baixa, ganharam algum fôlego (como Chuck Norris e Lee Marvin, heróis da extravagância "Comando Delta"), e projetos ambiciosos e arriscados demais, até mesmo para grandes estúdios, encontraram uma forma de transpor o limbo entre script & tela, nem sempre com bons resultados (por exemplo, o investimento de 50 milhões de dólares em uma tríade de filmes que seriam dirigidos por Tobe Hooper, à época na crista da onda, no lastro do sucesso do primeiro "Poltergeist", um filme regido, em boa parte, por Spielberg, que nos créditos oficialmente aparece apenas como produtor). Nos anos 80, após o reinado como astro internacional por um bom tempo, Bronson começava a "descer a montanha". Tendo iniciado a caminhada rumo ato final de sua carreira, ele assinou o contrato com a Cannon por um período relativamente longo, 1982-1989, descrito pelos fãs do astro como "A Era Cannon". Fãs não se entendem quanto ao mérito das aventuras estreladas por Bronson no curso desses 7 anos. Muitos as desprezam por crerem que o valor dos aspectos envolvidos na feitura de filmes padece de carências, principalmente quando comparados aos clássicos protagonizados no auge. Outros, que guardam certa nostalgia pelo cinema de ação daquela década, com direito a todos os seus maravilhosos exageros, defendem que as coisas filmadas na Era Cannon acabaram por prolongar um pouco a carreira do astro. Mesmo massacrados pelas resenhas nos jornais, thrillers policiais estrelados por Bronson encontravam uma forma de irem parar nas marquises dos cinemas (certo que com receitas modestas, Bronson não era mais campeão de bilheteria), e, mais tarde, quando lançados em vídeo, atendiam a seu verdadeiro, nascente nicho, o mercado das videolocadoras, em ascensão nos anos 80, quando faziam muito, muito giro de caixa para o estúdio (a Cannon essencialmente "fazia negócios" com o mercado em questão, recebendo do mesmo uma determinada soma de dinheiro como investimento e prometendo, como retorno, um número de filmes para abastecê-las). Pessoalmente, discordo dos críticos da qualidade do selo: para um ex-astro, os roteiros do estúdio de Menahem Golan/Yoram Globus traduziam-se como o único veículo através do qual Bronson tinha como protagonizar filmes de ação em uma década que assistia ao surgimento de Stallone, Schwarzenegger, Van Damme, Seagal e Tom Cruise, e o declínio dos durões dos anos 70, como Burt Reynolds e o próprio Bronson, Eastwood excetuado, graças à capacidade de se reinventar como diretor, escapando de um destino tão trágico quanto o de seus contemporâneos. Ademais, graças às locadoras, garotos crescendo naquele tempo tiveram a chance de serem apresentados ao trabalho do ator, efetivamente lhe valendo um novo público. O contrato com a Cannon brindou o estúdio com um filme estrelado por Bronson, por ano. Assim, no curso da década de 80, a geração do VHS se deliciou com clássicos nos moldes de "Desejo de Matar 2, 3 & 4" (o mais maluco e divertido deles, definitivamente a terceira parte, um mix de "Warriors" com "Jogos Mortais"!), "Kinjite: Desejos Proibidos", "Dez Minutos para Morrer", "O Mensageiro da Morte", "Assassinato nos Estados Unidos" e, claro, "Murphy’s Law", a melhor parceria de Bronson com o estúdio. A esmagadora maioria dessas aventuras guarda o mesmo denominador. Foram dirigidas pelo mesmo profissional, J. Lee Thompson, uma presença constante na filmografia de Bronson, a remontar seus anos de glória. Bronson apreciava o método de trabalho do cineasta, um veterano ciente dos aspectos envolvidos em se rodar um filme, que realizava seu ofício sem frescuras e tratava de pôr a produção nos trilhos para correr. Hoje, penso que essa rara dinâmica de se montar filmes possa ser vislumbrada somente nos trabalhos de Clint Eastwood, reverenciado por atores que fazem fila para trabalhar sob sua batuta. Experiente e à vontade, Eastwood sabe o que quer, dá liberdade ao elenco, cuida de fazer as filmagens andarem e geralmente termina o trabalho semanas antes do prazo assinalado no cronograma.

Em termos de qualidade/escala, o mesmo fenômeno observado no outono da carreira de Bronson pode ser hoje contrastado com o de Steven Seagal. Se prestarmos atenção no currículo de Seagal, notaremos uma "Era Dourada", quando estrelava as superproduções da Warner, blockbusters dos verões da década de 90, como "A Força em Alerta 2", e pinçaremos o ponto da reversão, do declínio, a se iniciar em 2002, quando os últimos grandes filmes ("Ameaça Subterrânea" & "Glimmerman"), tendo performado mal nas bilheterias, moveram a Warner a revogar o contrato, e seu nome, até então atrativo, foi retirado das marquises. O comportamento na esfera pessoal não o ajudou. Foi em 2002, após o fracasso de "Half Past Dead", que Seagal migrou para o mercado direto-para-vídeo, quando também se observam instantes bem distintos. As primeiras produções pós-2002 ainda gozavam de excelência, produtos muito atraentes em termos de orçamento (modestos, mas bem aplicados) & boa vontade do próprio astro, que parecia tentar fazer o melhor possível com o material. "Resgate sem Limites", lançado em DVD no Brasil pela Universal, não teria como competir com filmes exibidos nos multiplexes, ainda assim, levando-se em conta o mercado para o qual foi produzido, direto-para-vídeo, cumpria muito bem seu papel, e oferecia um entretenimento de primeira, com um Seagal ainda interessado, o suporte sempre confiável de um elenco secundário acima da média, mais especificamente do competente Byron Mann como o parceiro, e lindas locações na Tailândia. Seagal então embarcou em uma aventura muito semelhante ao envolvimento de Bronson com a Cannon nos anos 80. Ele assinou contrato com a Nu Image/Millenium Films, a companhia de produções independentes fundada em 1992, especializada em filmes de ação de baixo orçamento rodados na Bulgária e África do Sul por questões orçamentárias, e rodou a maioria dos títulos de sua recente filmografia, lançados quase sempre no Brasil sob o selo da Califórnia Filmes, com resultados aquém do esperado. No caso de Bronson & Cannon, na década de 80, por mais que o astro parecesse cansado, ele se esforçava para tratar o material com o mesmo carinho com o que fizera na fase áurea, seu magnetismo o suficiente para lhe valer algumas semanas de exibição na tela grande dos cinemas e, mais tarde, muito sucesso nas videolocadoras. Seagal, a seu turno, pareceu deixar de se importar com o resultado das produções. Embora eu o admire, não seria honesto se omitisse o desleixo dos filmes oriundos do contrato com a Nu Image: se nos atentarmos, pontuaremos falhas diretamente contabilizadas ao desinteresse do astro. Primeiro, em diferentes momentos, a voz "não bate". Sabemos que muito do diálogo é adicionado na pós-produção, e ao se dissociar dos filmes, Seagal metia seus diretores na sinuca de bico, quando precisavam se valer de outros atores (cujas vozes não soavam em nada parecidas `a do astro) para terminá-los. Segundo, cenas de luta ou ação filmadas em planos mais abertos denunciavam o truque do uso de dublês como compensação pela ausência de Seagal. Sobrepostas a sua presença autêntica, registrada por tomadas mais próximas de modo a mascarar o excesso de peso, vemos cenas "sequestradas" pelo dublê, disfarçado em casacos de couro como se o truque bastasse para iludir os fãs, capazes de notar o macete. Assim, a magia da edição cumpria seu trabalho de criar a ilusão de que Steven Seagal estivera o tempo inteiro presente, nada mais oposto da realidade. A pouca colaboratividade do astro azedou os ânimos da Millenium, e seus anos de trabalho com o estúdio geraram DVDs pouco elogiados pela crítica. Vejam bem, eu sempre apreciei e torci para os pequenos filmes de ação, pois nos mesmos vislumbro a magia, a doce ingenuidade que até me causa inveja, todavia, seria hipocrisia fechar os olhos para um rosário de falhas e desleixos engatilhados propositalmente pelo desinteresse de Seagal. Assim, filmes como "Hoje Você Morre", "Lado a Lado com o Inimigo", e "Determinado a Matar", entre outros, foram concebidos e lançados com um amálgama de problemas que, por fim, traça as distintas éticas de trabalho com que os dois astros, Bronson & Seagal, trataram o declínio das carreiras em duas épocas, este na década de 2000, aquele nos anos 80. À título de comparação, Bronson soube lidar com o ato final com mais dignidade. Seus filmes, mesmo mais simplistas, foram vistos na telona, e, no mercado para vídeo, reavivaram o interesse de uma geração nova demais para conhecê-lo dos tempos dos triunfos. Gostaria de aproveitar a oportunidade para clarificar: eu adquiri esses filmes de Seagal em DVD, e  sempre me diverti com suas proezas, apenas creio - e isso deve ser compreendido como uma crítica construtiva de quem o admira - que se Seagal se empenhasse um pouquinho mais, teríamos um produto bem-acabado.

Escrito por Gail Morgan Hickman, autora do argumento de "The Enforcer", o thriller policial de 1976 estrelado por Clint Eastwood no papel de Dirty Harry, "Murphy’s Law" costura os principais retalhos de um típico "guilty pleasure" de seu tempo, com Bronson fazendo aquilo que sabe melhor, simultaneamente experimentando com pontuais inovações na fórmula que levam a trama a interessantes, novas direções. Mesmo visivelmente mais lento (Bronson tinha 65 anos quando das filmagens), por mais que seus dias de glória estivessem distantes no passado, "Bronson ainda era Bronson", e bastava para imbuir qualquer produção de charme extra. Embora "Murphy’s Law" se erga sobre os pilares do imenso magnetismo do ator principal, o filme também se destaca graças ao valoroso elenco secundário. Kathleen Wilhoite oferece um energético contraponto ao jeitão austero de Bronson, temperando a seriedade e violência tão naturais ao colega com bom humor desbocado. Sobre a experiência, décadas depois, a atriz nos revelou reminiscências daquela ocasião, ao discorrer sobre o trabalho com Bronson: "Eu me lembro das cenas que fizemos, dentro do carro, quando eramos só nós dois, por um longo período, e, do nada, ele me faria uma pergunta apenas para começar um bate-papo. Ele era um homem inteligente e bem-humorado. Eu me policiava a não falar com ele até que ele falasse primeiro. O pessoal da produção havia me aconselhado a não tentar demais, mas acabamos formando uma doce relação de trabalho. Eu me lembro que quando ele achava que a produção estava demorando, diria 'Let's shoooooooooot (Vamos logo filmar)'. Era divertido". Digno de nota, quando o projeto ainda se encontrava nas fases muito iniciais de concepção, uma das atrizes sondadas para o papel foi Madonna, cuja carreira musical deslanchava. Ela ainda não era o fenômeno que viria a se tornar, mas seu passe já valia ouro. Na época, acabara de lançar uma música especialmente linda, "Crazy for You", para a trilha sonora do filme "Vision Quest", estrelado por Matthew Modine, e também aparecia em uma breve cena, cantando. O papel ficou entre Madonna e Wilhoite, e o altíssimo valor pedido pela cantora acabou pesando a favor da contratação da outra atriz. De qualquer jeito, a escolha por Wilhoite ajudou o filme: talentosa, se sai com personalidade, ao atuar ao lado de Bronson, porém não chegando a ofuscá-lo. O arco do protagonista permanece central, e o elenco secundário serve ao veículo, sem se pôr à frente da estrela (salvo Snodgress, absoluta quando em cena).

Em termos estruturais, "Murphy’s Law" me fez pensar no tratamento dispensado por Paul Verhoeven a seus antagonistas. Em filmes de Verhoeven, ele generosamente delega a função de vilão a dois personagens, constantemente em atrito. Claro, com isso, sana uma habitual deficiência em tramas semelhantes, vilões unidimensionais, individuais e caricatos que "abocanham mais do que podem mastigar". Quando outorga a duas personagens o mesmo ofício, o diretor permite um melhor desenvolvimento psicológico, criando vilões intrigantes, pois coloridos, interessantes em seus antagonismos. Em "Murphy’s Law", pela primeira vez, somos servidos com uma vilã meticulosamente concebida, na contramão da tendência maniqueísta dos film-noir que tendiam a restringir a complexidade de uma personagem feminina a luvas brancas, subidas até a altura dos cotovelos, e um cigarro entre os dedos. Para um filme policial de pequeno orçamento, "Murphy’s Law" sacou da cartola um feito e tanto. Graças à performance e contribuição da veterana Carrie Snodgress, Bronson não apenas precisou se lançar de encontro ao seu mais tenebroso vilão, o filme também está para ser rivalizado em sua delicada caracterização de uma excelente antagonista. Eu confesso que não me recordo de um papel feminino tão agressivo e brutal, salvo raras exceções, como Selma Blair em "w Delta z", que poderíamos considerar um thriller do gênero policial, e Clare Higgins em "Hellraiser 1 & 2" (apesar de seu caso derivar para a seara do horror erótico & fantástico, e não a dos thrillers policiais mais contundentes & realistas). Quando "Murphy’s Law" entrou em produção, meados dos anos 80, Carrie Snodgress batalhava para retomar a carreira, deixada de lado há pouco mais de uma década. Há 15 anos, em 1970, Snodgress, então aos 25 anos de idade, tomava os críticos de assalto com a fenomenal performance em "Diary of a Mad Housewife", ao lado de Richard Benjamin & Frank Langella. Ela interpretava uma jovem esposa frustrada que iniciava um romance com o escritor interpretado por Langella. Naquele ano, Snodgress foi indicada aos principais prêmios, desde o Globo de Ouro ao Oscar de Melhor Atriz (ela perdeu para Glenda Jackson, vencedora pelo seu papel na deliciosa extravagância "Women in Love", do diretor Ken Russell), e seu agente se enrolava para filtrar uma avalanche de convites feitos pelos principais cineastas em atividade, verdadeiros wunderkinds loucos para tê-la em seus filmes (a título de exemplo, então um ator iniciante a um passo de se tornar estrela, Sylvester Stallone só faltou mover montanhas para trazer Snodgress, a quem queria dar o papel da "Adrian", para o seu "Rocky": na primeira versão do script, a Adrian e o irmão Paulie eram descendentes de irlandeses, Stallone tinha Snodgress em mente para a Adrian, e para Paulie, desejava Harvey Keitel). Snodgress abandonou tudo por amor, e foi viver em um rancho com o astro de rock & roll e compositor Neil Young, com quem teve um filho. As coisas, lamentavelmente, não aconteceram como esperava. O bebê sofreu um aneurisma cerebral durante o trabalho de parto, o que o deixou com quadro similar ao de paralisia cerebral, e o casamento com Young durou somente até 1974. Quando Carrie caiu na real, atrizes como Jill Clayburgh haviam ocupado a lacuna deixada pela sua partida alguns anos antes, em 1971, e estavam desempenhando papéis que, em outras circunstâncias, teriam sido primeiramente oferecidos a Snodgress. O restante da década de 70 trouxe pouca novidade para a carreira da atriz, que embora tenha se mantido ocupada, perdera o momentum gerado por uma indicação ao Oscar. Por mais que tivesse deixado passar chances monumentais, como o papel da Adrian de "Rocky", conseguiu nos impactar mesmo nas coisas menores. Foi no esteio de seu inquestionável talento que a Cannon a incorporou ao elenco de "Murphy’s Law", onde deu a maravilhosa performance pela qual o filme é imediatamente lembrado. Se por um lado uma das principais normas de uma produção encabeçada por Bronson é a de que ninguém capture as atenções, necessariamente reservadas ao astro, por outro, não se pode culpar Snodgress por ofuscar tão facilmente a envergadura do ator principal. Em momento algum, capturamos uma nota falsa, pois Carrie constrói para si, mesmo nos momentos silenciosos, um arcabouço de dores e mágoas requentadas. Mesmo transitando em um meio povoado por mafiosos perigosíssimos, dela emana uma aura de ameaça incomum e desinibida. Snodgress fez mais do que dar uma performance extraordinária. Pelo talento em comunicar emoções, a vilã desabrocha como indivíduo, e não clichê. Para clichês, bastaria o estereótipo da femme-fatale, com um revólver na bolsa para o trabalho sujo. Para este emocionante filme de Bronson, a atriz foi mais além. A atriz explica, em entrevista a John Gallagher, que inicialmente, no roteiro, os homicídios perpetrados pela vilã Joan Freeman se davam pelo uso de armas de fogo. Por sua sugestão, foram reescritos para acomodar a agressividade e determinação cega de uma predadora em missão. Carrie Snodgress elabora: "O que eu fiz foi que assim que eu conheci J. Lee Thompson, eu expliquei que, do jeito que estava escrito, havia falhas no roteiro, e as falhas consistiam no fato de que a maioria dos homicídios era perpetrada por arma de fogo, e eu acreditava que para alguém verdadeiramente insano e comprometido com esses atos de violência, apertar o gatilho era muito fácil. Então desenvolvemos o estrangulamento (ela se refere, obviamente, à cena em que Joan Freeman mata a agente da condicional), o afogamento... desenvolvemos ideias diferentes para essas mortes, porque eu acredito que estrangular alguém, aí há um compromisso, um senso de febre pelo ato de matar, em contraste a se ter uma distância entre você e outra pessoa (as mortes originais perpetradas por arma de fogo), ele (J. Lee Thompson) amou isso. Outro ponto de credibilidade que eu desenvolvi foi (a cena do) levantamento de peso, isso não estava no roteiro original. Eu levantei pesos por aproximadamente dois meses e meio, e eu creio que depois que você a vê levantando pesos, você acredita, a partir daí, que ela é capaz de cometer aqueles atos de violência". Contraditoriamente, quando se pensa em Carrie Snodgress, as pessoas tendem a se recordar da atriz pelos seus papéis de esposa/mãe sofrida, como em "Diary of a Mad Housewife" & "Cavaleiro Solitário", um papel que ela fez muito bem e, tragicamente, levou consigo na triste vida pessoal, repleta de atribulações. Ao menos para mim, todavia, é pelo papel da assassina fria e implacável pelo qual eu me recordo de seu legado. Atrizes a cujos olhares é própria certa tristeza parecem canalizar sem esforço uma espécie de violência mais primitiva que torna papéis assim tão surpreendentes e inesquecíveis. Charles Bronson, monstre sacré do cinema, cravou duradoura sobrevida no imaginário dos fãs como um herói estoico de poucas palavras e excelente mira, destemido ao peitar os vilões mais tenebrosos e imorais possíveis. Ao longo da extensa filmografia, deve ter enfrentado um magnífico espectro de vilões, de serial killers a traficantes de drogas. Surpreende-me, portanto, como razoável conhecedor de sua obra, que tenha sido criada por uma mulher, uma atriz, a figura antagonista de mais indelével impressão, daquele determinado momento da carreira de Bronson, quando protagonizava os filmes para a Cannon. Em "Murphy's Law", a parte da vendeta do mafioso Frank Vincenzo não bastaria para resgatar o filme do lugar comum, afinal soaria como mesmice de outros thrillers policiais estrelados por Bronson. Ao conceber a personagem de uma mulher determinada a se vingar, e lhe confiar o tão pivotal papel da mente maquiavélica de onde nascem as mais ardilosas ideias para tornar a vida do protagonista um inferno, a roteirista Gail Morgan Hickman presenteia o diretor J. Lee Thompson com um fértil campo de maravilhosas oportunidades, do qual o cineasta tirou bons frutos (Carrie menciona na mesma entrevista que, como diretor sensível a atores, Thompson escutava a cada uma de suas sugestões, e não hesitava em pô-las em prática). Valendo-se do criativo roteiro, Thompson cria algo inédito, uma vilã psicopata, atípica às cansativas encarnações de gangsteres em tramas do tipo, e por mais que o mérito caiba à Carrie, com seu desempenho absolutamente petrificante, J. Lee também merece uma salva de palmas por tê-la usado tão magnificamente. Em "Murphy's Law", podem-se perceber duas forças antagônicas bem paralelas: mafiosos & Joan Freeman. A existência dos mafiosos serve à função de deixar os fãs de Bronson mais confortáveis, afinal, habituados ao ator dispensando chumbo grosso a bandidos, se divertirão com a constante movimentação de tiroteios entre o herói e a turma de Vincenzo, até o explosivo final. Joan Freeman, por sua vez, adicionada ao conjunto como carta fora do baralho, o elemento de desestabilização da fórmula cansada, promove bem-vinda reviravolta na maneira de se contar a mesma história, e reveste essa aventura, que tinha tudo para passar desapercebida entre similares do gênero, de brilho próprio, uma joia incrustada entre outros títulos apenas medianos. Nesse sentido, "Murphy's Law" se parece bastante com um de meus filmes de horror preferidos, "w Delta z". Neste, à primeira vista, há pouco a despertar o interesse, razão pela qual fez modesto sucesso comercial. Francamente, a rotina tira traumatizado v. serial killer rendeu sua cota de interpretações instigantes, comparadas, frequentemente, ao pioneiro da fórmula, "Se7en". Imagino que, quando do início das filmagens de "w Delta z", em 2006, as pessoas devem ter passado a vista pela premissa e a desacreditado "Oh, não, não mais um clone de Se7en". Qual não foi a surpresa quando Tom Shankland executou um filme de alma própria, cuja menor escala não o impedia de projetar sombra mesmo sobre seu mais desenvolto antecessor, "Se7en". Eu sempre tive um grande apreço por "w Delta z", e o tomei como superior a demais títulos do gênero justamente por aquilo que o filme não é. "w Delta z" não é um filme extremamente violento, não é cínico, passa longe de ironias, e não tenta parecer mais esperto do que o público, ao contrário de "Se7en". Desconsiderada a memorável fotografia de Darius Khondji, encontro dificuldade em investir meu tempo na jornada dos personagens do filme de David Fincher. Quando os protagonistas de um filme não conseguem te cativar, seja pela arrogância, seja pela presunção, seja por falarem pelos cotovelos, sirva-se da analogia da fundação comprometida & condenada de uma edificação. Por mais bonita que pareça a fachada, uma mera "embalagem" não a salvará do trabalho gradual & paciente da gravidade. Para os personagens de "Se7en", achei a tentativa de Fincher de "tocar fogo no mundo" muito contraproducente. Quando percebi o fim a que empregava o incontestável talento, foi difícil emular qualquer empatia por um jovem detetive que se arvora de saber de tudo, mas não tem a menor noção de como o mundo funciona, ou pelo veterano caladão e deprimido que pouco mostra de si. Menor que seja, o filme de Shankland, simplório & de baixo orçamento, foi muito mais honesto, com os personagens mais humanos e psicologicamente enobrecidos, vividos por Stellan Skarsgard, Selma Blair, Melissa George e Ashley Walters, com cujas histórias conseguíamos nos envolver, e lamentar pelos seus trágicos destinos individuais. Alguns nominariam a construção dos personagens de "melosa", "piegas". Eu a tomei como uma lufada de ar fresco, afinal, em uma época onde cinismo é enaltecido via escárnio, a simplicidade de seres humanos reais lidando com encruzilhadas calça "w Delta z" com o favoritismo dos honestos. Sim, há aspectos técnicos que teriam se servido de uma revisão mais detalhada, contudo, mesmo na simplicidade, o filme decola com a leveza que nos leva junto em suas asas para um voo. Sensibilidade com o trato dos personagens, a fotografia melancólica de Morten Soborg... Shankland mostrou que não se precisa de muito, quando seu coração se centra no lugar certo. Voltando `a análise de "Murphy's Law", eis a similaridade entre os dois filmes. "Murphy's Law" tinha tudo para se tornar mais um lançamento de Bronson em uma época, anos 80, quando seu nome não atraia o mesmo público de antigamente, todavia, pelas circunstâncias do destino, calhou de virar um suspense policial verdadeiramente ímpar, e o último grande momento de Bronson antes da morte, muitos anos depois, em 2003. Ao revisitar o filme para elaborar a resenha, eu me atentei que "Murphy's Law" caberia como uma luva a um diretor como James Wan, talvez o melhor cineasta em atividade. Uma de suas habilidades - trabalhar em cima de fórmulas batidas para, a partir de um modelo, criar algo novo e excitante - restou inquestionável após o magnífico "Sentença de Morte", de 2007, uma espécie de remake de "Desejo de Matar", coincidentemente, o filme pelo qual Bronson virou astro, em 1974. Ao voltar ao filme para escrever este trabalho, e me distrair com ilações sobre quem deveria executar um determinado papel, consegui enxergar a Reese Witherspoon no papel da Joan Freeman, em uma versão para a década de 2010, porque quem a viu no recente "Hot Pursuit", onde interpreta uma policial, sabe que ela também pode projetar altivez & força, e arrisco afirmar que James Wan nos daria um eletrizante suspense à altura de seus clássicos, como "Sentença de Morte" & "Insidious 1&2". Faço um adendo para destacar que mais do que atuações, se um remake entrasse, de fato, em produção, eu assistiria ao filme especialmente para ver como James Wan recapturaria aquele período  - meados dos anos 80, com seus cabelos, roupas, músicas, carros, armas de fogo - em toda sua glória & extravagância. Por um viés estritamente fotográfico, o visual provavelmente pareceria mais berrante & romantizado, talvez ainda mais excitante do que efetivamente o foi. O que há de especial em mexer com peças desse quebra cabeça do passado nem chega a ser a perspectiva da aparência da completude do quadro, tantos anos depois, mas a forma como reimaginamos uma realidade paralela para justificar a melancolia inerente a exercícios do gênero.

Afinal de contas, no contexto de uma época há 30 anos, existe melhor termo para quantificar o peso de "Murphy's Law" do que melancolia? Não só as tramas violentas, os estilos de roupas, os carros, o ritmo e o sentimento - hoje elementos vívidos somente nas lembranças daqueles que se predispuseram a se recordar, artifício típico a que lançam mão os mais sentimentais, qualquer coisa para sublimarem despedidas - ficaram para trás, perdidos na calada da madrugada. Não, parte do protagonismo, parte dos artistas que deram vida a delírios de carne & osso também cavalgaram estrada afora, rumo ao pôr-do-sol, nos deixando como segredo de polichinelo a melodramática e fatal constatação da verdadeira semântica da alcunha estrela, rótulo a que permanecem tão atrelados quando em vida. E o paradoxo sematológico é: em vida, por mais infalíveis que pareçam a nossas despreparadas impressões, no íntimo, veem-se como pessoas absolutamente comuns, desempenhando a mentira das mentiras, a arte de criar vidas em celuloide. Somente na morte, depois que se vão, efetivamente sobem como coisinhas cintilantes para polvilhar o manto de noites bem claras como, aí sim, estrelas. Bronson morreu em 2003, aos 81 anos, em decorrência de complicações do mal de Alzheimer. Quase um ano depois, em 2004, Carrie Snodgress também se foi, à espera de um transplante de fígado,aos 58 anos. Você jamais imaginaria, só de olhar, como pessoas que por uma ou outra razão te marcaram são diferentes de como as construiu, psicologicamente. Em "Murphy's Law", Carrie Snodgress se entrega tão cegamente ao papel que você não suporia que uma personagem tão poderosa, tão intimidadora, fisicamente intimidadora, poderia esconder uma mulher cuja vida fora tão difícil & triste. Nesse diapasão, por que não? Algumas pessoas têm histórias tristes de vida, certo? Vejam a história da Clare Higgins, a atriz britânica por trás de dois dos melhores filmes de horror de todos os tempos, "Hellraiser" & "Hellbound: Hellraiser 2". Em que pese o venerável destemor ao se entregar aos recantos mais inexplorados e negros da alma para interpretar uma vilã como Julia, a própria vida da atriz, diametralmente oposta da fantasia escrita por Clive Barker, sustenta sua cruz de tristezas, impasses e remorsos, que, uma vez conhecida, nos felicita com um novo olhar à mesma pessoa. Eu já escrevi extensamente sobre a vida da Clare antes, e, no caso da Carrie Snodgress, a vida também atirou uma porção de desafios no seu colo, talvez até mais do que uma mulher corajosa deva suportar. Acho que toda mãe ama o filho mais do que a si, aliás, dizem que, uma vez que nos tornamos pais ou mães, não podemos mais morrer. Antes, nos aventuramos com a intrepidez dos "imortais". Basta a chegada de um filho, porém, para tomarmos real medida da régua do tempo, da facilidade com que mesas são viradas contra nossos peitos, com consequências desastrosas. Repentinamente, descobrimos que não podemos mais morrer tão cedo. Ter um filho com paralisia cerebral, como foi o caso da Carrie Snodgress, deve ser algo terrível, não pela criança, afinal todo filho vem ao mundo como uma benção para os pais. Refiro-me à profunda transformação espiritual que as pessoas sofrem, ao perceberem que precisam permanecer vivas & bem, por causa da criança, como o protagonista de "Freedomland" desabafa, em uma cena emocionante, "Agora, tudo o que eu quero é não abandoná-lo (o filho)", e que não nos cabe antever nosso tempo. Ela também sofreu muito na esfera sentimental, porque não teve parceiros duradouros, ou companheiros que respeitassem sua individualidade. O casamento com Neil Young não durou, e Carrie se envolveu em uma nova relação turbulenta, com Jack Nietzsche, compositor de trilhas para filmes. O namorado foi preso e passou 3 anos na cadeia por agredi-la no rosto com o cabo de um revólver. Você assistiria a "Murphy's Law" e seria levado a crer que a mulher que manuseia com destreza um arco-e-flecha e afoga um homem maior com as próprias mãos quebraria com facilidade o pescoço de um ex-namorado que lhe levantasse a voz, mas a "Joan Freeman do lado de lá da tela" resume-se a uma performance muito técnica de uma atriz talentosa de vida complicada que só queria cuidar do filho, do mesmo jeito que a "Julia do lado de lá da tela" do filme de Barker se tornou real graças à dramaturgia da "Julia do lado de cá", Clare Higgins, outra atriz fantástica, que não suportava violência (deixou a premiere de "Hellraiser" 10 minutos após o início, ela simplesmente não conseguia assistir a filmes de horror) e, na esfera pessoal, sofria de remorso e tentava reconquistar o filho que aos 17 anos entregara para adoção. Sobre a Carrie Snodgress, impressiona-me como descobrimos tanto sobre uma pessoa, depois que ela se vai, principalmente em uma época em que o acesso à informação atinge a velocidade da luz. Kathleen Wilhoite também tem boas lembranças de conhecê-la em "Murphy's Law": "Eu me lembro da Carrie Snodgress. Ela era minha amiga. Ela era uma atriz maravilhosa, e me ensinou a 'quebrar' o script em módulos para organizar as minhas cenas. Ela era extremamente generosa comigo".

Eu não teria como desfechar a resenha em uma nota tão emocional, afinal de contas, filmes da Cannon encapsulam a ideia da diversão inofensiva, seja pelos exageros, seja pela ingenuidade de uma irresgatável era, substituída por tempos mais cínicos & incertos. Hoje, as fitas de vídeo da América Filmes, com suas capinhas azuis & estreladas, amontoam-se nos gabinetes de colecionadores com motivos de sobra para se orgulharem, e muitas dessas pessoas foram graciosas e gentis a ponto de escanearem as saudosas capas de vídeo, para que aqueles acima de 30 anos se afoguem em nostalgia! Vejam só, logo abaixo, a vinheta exibida no início da fita, e "façam sua tela pegar fogo". Saquem só Burt Reynolds em "Encurralado em Las Vegas", aos 36 segundos!



Nós que temos idade para ter vivido aquela fantástica época sabemos como foi um tempo maravilhoso. Agora, imaginem escutar as recordações de pessoas que trabalharam dentro do estúdio, e ajudaram a criar a magia da qual sentimos falta! Quem falou sobre a experiência foi Albert Pyun, um dos mais celebrados diretores de filmes B em atividade nos anos 80/começo dos anos 90. Hoje, os mais jovens sequer conhecem o nome, mas quem amava filmes e era adolescente nos anos 90 se lembrará das sensacionais esquisitices de Pyun estreladas por gente como Van DammeSteven SeagalChristopher LambertIce TRob Lowe e tantos outros. Pyun quase não trabalha mais. O tempo marcha, e a indústria não vê muito valor naqueles que por mais que amem criar, não participam do grande esquema. Recentemente acometido por uma moléstia degenerativa, seus fãs voltaram a falar do cineasta, o que lhe valeu um modesto revival dos clássicos mais antigos, como "Sword and the Sorcerer". Em uma série de entrevistas concedidas a blogs de cinema, Pyun rememorou, com muita dignidade, sua fase criativa na saudosa Cannon. Ele afirma, em entrevista a Ronald Perrone, para o blog Radioactive Dreams: "
Foi divertido, louco e barulhento! Ele (Menahem Golan) amava filmes e o mundo do cinema, e isso era excitante e contagiante. Um bom homem. Se você tivesse uma ideia, e fosse diretamente a ele para sugeri-la, seus olhos acenderiam, e ele diria 'Vá fazer! Eu quero ver esse filme!'. Ele era extraordinário para um jovem, maluco cineasta como eu, na época". O cineasta ainda contrapõe o sistema dos estúdios de filmes de baixo orçamento versus o tipo de mercado que procurava atender: "Havia um modo de se fazer filmes na Cannon, quando eu trabalhava lá. O estúdio utilizava junk bonds (títulos especulativos) para financiar os filmes. (Menahem Golan/Yoram Globus) foram uns dos primeiros a firmarem contrato com as companhias de vídeo, pelo qual basicamente realizavam a pré-venda dos títulos… As companhias de vídeo chegavam para eles e diziam 'Dê-nos os seus próximos 50 filmes, e te entregaremos uma determinada soma de dinheiro'. E então chegou ao ponto que eles pegavam boa parte desse dinheiro, investiam em coisas como 'Superman IV – Em Busca da Paz', os filmes de maior orçamento da casa, e então, depois, caiam na real 'Oh, Deus, nós não temos mais dinheiro suficiente para cumprir o acordo (de entregar o restante dos filmes). Gastamos o dinheiro que tínhamos para 50 filmes em apenas 5, e agora não temos o suficiente para os outros 45'. E era então que me procuravam dizendo 'Bem, temos de entregar para as companhias de vídeo todos esses outros filmes. Você poderia rodá-los por quase nenhum dinheiro, e filmá-los nesses outros países distantes onde temos crédito, de modo a não precisarmos tirar dos nossos bolsos?' Era selvagem mesmo!". Sobre "Superman 4 - Em Busca da Paz", o estúdio, que separara 36 milhões para produzir o longa, precisou realocar metade desse valor para honrar os contratos com as empresas home video. A última aventura de Superman estrelada por Christopher Reeve, portanto, custou meros 17 milhões de dólares, e o produto final, muito aquém das aventuras épicas regidas por Richard Donner, com Marlon Brando como abre-alas, ainda causa mal-estar aos fãs de Reeve, o único & verdadeiro Superman. Ele merecia uma despedida muito, muito mais épica. Apesar de se lembrar dos anos na Cannon como selvagens e divertidos, quando o estúdio encerrou suas operações, Pyun vocaliza a dor do fim de um ciclo: "Uma vez que os problemas financeiros nos acertaram, deixou de ser divertido, e tornou-se incrivelmente triste". Após a falência, o catálogo da Cannon foi adquirido pela Metro-Goldwin Mayer. Se vocês procurarem hoje por filmes da Cannon em DVD, os encontrarão sob o selo da MGM, atual detentora dos direitos autorais. As adoráveis caixinhas azuis ilustradas por estrelas não existem mais, a não ser, claro, nas estantes dos colecionadores de VHS. Ao escrever sobre o ciclo da Cannon, da origem ao fim, da maluquice à melancolia, da festa fervilhante ao silêncio sepulcral, eu pensei em "Boogie Nights - Prazer sem Limites". Entre tantas outras coisas, o drama de Paul Thomas Anderson contava uma história semelhante, através da ascensão & queda do astro pornô vivido por Mark Wahlberg, nos anos 70. Burt Reynolds interpretava o diretor de filmes pornôs e figura paterna para a trupe, e através de seus olhos, Paul Thomas Anderson retratava o fim de uma época, quando o cinema pornô, até o início dos anos 80 aceito como um tipo de arte, merecedora de exibição nas telas grandes, marginal que fosse, se viu relegado ao vídeo, o que tirou a autonomia das pessoas que transitavam por aquele submundo tão transgressor para sobreviver. O personagem do Burt encapsulava muito bem a frustração dos cineastas que, de uma hora para a outra, foram forçados a produzir o dobro por metade dos custos de outrora, para suprir as vídeolocadoras. A segunda metade do filme, portanto, torna-se mais sombria & pesarosa, quando aquela gente entra nos anos 80 e cada qual vai se perdendo por distintas razões: alguns se afundam nas drogas, outros no crime. Para completar, a indústria pornô estava às vésperas de ser acertada furiosamente por um golpe fulminante, uma doença prestes a emergir, a AIDS. Eu me recordei da segunda metade de "Boogie Nights - Prazer sem Limites" ao ler o trecho final da fala de Albert Pyun sobre o fechamento da Cannon. Ao procurar pela antiga vinheta da América Filmes, e há vários vídeos com a vinheta em questão, temia parecer muito apegado ao passado, mas então li os comentários sob o vídeo. Muitas, muitas pessoas se sentem de modo semelhante. Por mais que sejamos tão diferentes, cada pessoa um universo, há elementos fundamentais a qualquer ser humano, como saudade, a maneira como reagimos à saudade. Como o psicanalista Rubem Alves escreveu tão bem antes, quando a sentimos, aí está nossa alma apontando para onde gostaríamos de voltar.

Todos os direitos autorais reservados a Metro-Goldwin Mayer. O uso do trailer & imagens é para efeito meramente ilustrativo da resenha.