segunda-feira, 18 de maio de 2015

Corrente do Mal ("It Follows", 2014) O melhor filme de Horror americano de 2015 é uma atmosférica alegoria dos primeiros, mais aterrorizantes anos da pandemia global de um certo vírus que mataria mais de 30 milhões de pessoas.

Uma garota parece ver algo terrível, algo que somente ela consegue enxergar. A menina deixa a casa pela porta da frente e corre para o meio da rua do que parece ser um típico bairro americano de classe média, algo no fim do quarteirão a deixa em pânico. Perturbada demais para responder ao pai, que pergunta o que está acontecendo, ela apanha a chave do carro e parte. Agora está anoitecendo, e enquanto dirige, olha para trás, temerosa de que a Coisa que a apavorou no bairro e que ninguém mais viu esteja no seu encalço. Ela dirige até a uma praia. Em uma cena contundente graças `a solidão envolvida, nós a vemos desolada, sentada nas dunas, com o mar ao fundo, em um ponto deserto, ligando para o pai, pedindo desculpas por todas as vezes em que não o escutou ou não foi uma boa filha. Ela desceu do carro mas o deixou com o motor ligado, de modo a permitir que seus faróis iluminassem aquele trecho da praia. A menina sabe que vai morrer, e precisa se desculpar com a família. Quando olha em direção ao carro, enxerga uma figura misteriosa no banco do motorista. Na manhã seguinte, ela é encontrada morta na praia, as pernas quebradas em uma posição irreal.

O filme então nos apresenta `a protagonista do filme. Jay (Maika Monroe, na performance que provavelmente lhe valerá uma grande carreira no cinema) é uma adolescente aos seus 18, 19 anos. Ela está distraída na piscina, pensativa, quando uma vizinha a chama para assistir a um filme. Jay explica que não pode, pois logo mais encontrará Hugh, um rapaz boa praça por quem está caidinha. O mundo de Jay está para virar de cabeça para baixo, e o diretor sugere o perigo por vir ao mostrá-la observando um esquilo correndo sobre os fios de um poste aproximando-se de um passarinho. Claro que, `aquela altura, Jay nem imagina que seu mundo está para desmoronar. Ela ainda nutre sonhos sobre o primeiro amor, e aos 18, sua vida inteira a aguarda. Ao entrar em casa para se preparar para o cinema, somos apresentados a seus 3 melhores amigos, Paul, a irmã Kelly, e Yara. De frente ao espelho, Jay se veste e se penteia com muito esmero, para parecer linda para o pretendente.

O primeiro encontro é bastante revelador. Na fila para o cinema, eles conversam sobre quem gostariam de ser se lhes fosse dada a oportunidade de trocar lugares. Quando Hugh aponta para um menininho com os pais e diz que inveja a bênção de se ter toda a vida pela frente, ele revela indiretamente que anda deprimido. De fato, aos 20 e poucos anos, soa esquisito falar com nostalgia sobre o passado. Sentados em seus lugares `a espera do início da sessão, Jay diz que agora é sua vez, e pede que o pretendente adivinhe com quem ela trocaria de lugar. Uma moça de pé ao fim da galley chama a atenção de Hugh, e ele não hesita em apontar para a garota de amarelo. Ocorre que Jay não enxerga ninguém no corredor. Subitamente, Hugh fica lívido, e diz que não se sente bem. Jay & Hugh deixam o cinema apressados. Ela não suspeita de nada mais grave que não um mal-estar por parte do namorado. Logo descobrirá a verdade. Mais tarde, eles paqueram `a mesa de uma lanchonete. Nada muito íntimo acontece entre Hugh & Jay naquela primeira noite, mas sem dúvida há atração e a menina parece genuinamente interessada no rapaz. Os primeiros 10 minutos do filme nos mostram o talento do diretor David Robert Mitchell para sustentar atmosfera. "It Follows" tem como uma de suas forças a fotografia cheia de vida, e David Robert Mitchell sabe usar a máximo efeito céus nublados e calçadas espaçosas e diners e cinemas… O filme é uma delícia de se assistir, e mesmo quando pouco acontece, incute tremenda inquietação. 

Na manhã seguinte, Jay & Kelly caminham pela calçada do bairro, e ela comenta o primeiro encontro, o estado psicológico depressivo e tenso do rapaz tendo chamado sua atenção. Na segunda noite, Jay & Hugh finalmente ficam íntimos, e fazem amor dentro do carro, no estacionamento de um prédio que parece ser o de uma escola abandonada. Depois da intimidade no banco traseiro, os dois relaxam e conversam. Jay fica de bruços, tocando uma rosa com as pontas dos dedos, falando sobre o quanto o ato significou, quando Hugh chega insuspeito por trás e a bota para dormir com um pano molhado com clorofórmio. Em um primeiro momento, cremos que Hugh se revelará um estuprador ou coisa pior, se é que existe coisa pior, mas não é nada disso. Na verdade, Hugh não quer fazer mal a Jay, porém precisa colocá-la momentaneamente para dormir.

Quando Jay desperta, ela se vê amarrada a uma cadeira de roda. Inicialmente confusa, ela é consolada por Hugh, que pede para que se acalme e lhe dê a oportunidade de explicar melhor por que a prendeu. Ele pede desculpa e diz que não a machucará. De posse de uma lanterna, Hugh pede toda sua atenção, e começa a explicar: "Essa coisa… Ela vai te seguir. Alguém passou a coisa para mim, e eu a passei para você, no carro. Pode parecer com alguém que conhece ou um estranho. Qualquer pessoa que esteja se aproximando. Pode parecer com quem quer que seja, mas é uma Entidade só. Algumas vezes, penso que a Coisa assume a forma de alguém que você ama apenas para te machucar". Subitamente, Hugh lança um facho de luz ao estacionamento, e diz que já consegue enxergar a Coisa. Ele apanha a cadeira de rodas e coloca Jay na beirada do segundo nível, para que a moça veja a "Entidade" também. Jay não compreende: ela enxerga uma garota aparentemente comum, sem roupas, com um olhar muito vago, caminhando a passos lentos em direção ao prédio. No ouvido de Jay, Hugh suplica "Apenas durma com outra pessoa e passe a praga adiante, que se verá livre. Se a Coisa te pegar e matar antes, então ela volta a me atormentar. Passe a Coisa adiante!". A visão daquela garota nua e apática surgindo entre as colunas do segundo piso abandonado avançando lentamente em direção a Jay a deixa mortificada. Ela pergunta o que a garota quer, porém não recebe uma resposta sequer. A Coisa simplesmente caminha em sua direção sem oferecer motivos ou explicações. Não há respostas, apenas a certeza que Jay sente nas entranhas que se a "Entidade" colocar as mãos em seu corpo, causará toda sorte de violência até matá-la. Hugh explica que só está fazendo aquilo para que Jay compreenda que não se trata de um joguinho. A maldição é muito real. Finalmente, quando a menina se encontra a poucos metros de Jay, Hugh apanha a cadeira de rodas e trata de fugir daquela escola abandonada. "Nunca entre em um lugar com uma saída apenas. A Coisa é muito lenta, mas obstinada", ele vai orientando enquanto a empurra.

Paul, Kelly & Yara estão se distraindo com um jogo de cartas no alpendre, altas horas da noite, quando Hugh encosta o carro no meio fio. Ele ajuda Jay a sair, e a deixa largada na calçada, arrancando com o automóvel antes que lhe possam perguntar o que houve. Ao verem-na em estado de choque, evidentemente pensam em estupro. Polícia e paramédicos são chamados. Para a surpresa geral, Jay conta que Hugh não lhe fez mal algum, e revela o lance da menina nua que apareceu no estacionamento. Os policiais perguntam se Jay sabe onde ele mora, mas Hugh costumava dizer que tinha vergonha da própria casa, então Jay jamais lhe perguntou novamente. Ela é levada ao hospital onde passa a noite, mas na manhã seguinte é liberada. Greg é o garoto vizinho da frente, e ele e a mãe assistiram `a comoção da noite anterior. Através de uma conversa entre a mãe de Greg e a outra vizinha, aprendemos que Hugh havia premeditado o esquema, pois até a casa onde afirmava morar havia sido alugada por uma temporada, e não havia mais sinal da passagem do rapaz pelo imóvel.

Jay procura retomar a vida, ainda bastante traumatizada pelos acontecimentos. No colégio, a professora lê um poema para os alunos. Distraída, Jay lança o olhar para fora da sala, para o campus muito amplo e cheio de prédios. Ela nota uma velhinha de camisola caminhando pelo gramado sem sequer ser notada pelos demais estudantes. A cena é particularmente enervante, pois curiosamente o poema lido na sala refere-se a Lázaro, aquele que voltou dos mortos. A idosa de camisola avança em direção `a janela, até que, assaltada pela certeza de que se trata da "Entidade", Jay pega os livros e deixa a sala. Nos corredores, a idosa ressurge vagando como um zumbi em direção a Jay. Ela tenta conversar, mas não há como barganhar com a Coisa. Se você não correr e A Coisa te apanhar, já era.

Ela visita Paul & Kelly no trabalho. Os irmãos trabalham em uma sorveteria. Angustiada, Jay fala sobre a visão da Coisa, mas os amigos não conseguem compreender o encontro aterrorizante. Paul a convida a passar a noite em casa, e Jay acha uma excelente ideia. Eles deixarão todas as portas trancadas e permanecerão de vigília caso algum visitante surja. Yara também aparece para dormir com o grupo. Na sala de estar, Paul dá início `a vigília. Comendo de um balde de pipocas, ele se acomoda no sofá para assistir a um filme e suportar a madrugada. Em determinado momento da noite, Jay desce as escadas queixando-se de insônia. Paul a convida a se sentar no sofá. Os dois trocam lembranças de quando eram menores. A conversa dá a entender que quando mais novos, Paul fora apaixonado por Jay.

Barulho de vidro quebrado deixa ambos sobressaltados. Ao investigar, Paul encontra a janela da cozinha quebrada, como se alguém tivesse atirado uma pedra do lado de fora e então sumido. Paul a deixa momentaneamente para chamar a irmã Kelly. Sozinha, Jay resolve espiar a cozinha, e o que encontra é uma visão de arrepiar. No início, ela observa apenas a silhueta de uma garota ordinária, mas ao se aproximar a invasora se revela melhor. Ela veste apenas saia e meia, a meia em apenas um dos pés, e não tem os dentes da frente. A invasora aproxima-se com um olhar vago, e enquanto caminha, vai deixando o rastro de urina entre as pernas. Uma cena realmente perturbadora e surreal. Jay sobe as escadas quase tropeçando nas próprias pernas tamanho o medo. Ela se tranca em um dos quartos até que Paul & Kelly batem `a porta. Paul & Kelly vasculharam a casa, não encontraram sinal de coisa alguma, o que não é de se espantar, afinal a "Entidade" aparece apenas para as pessoas tocadas pela maldição. Jay chora e diz que há algo de errado em sua vida. Quando eles escutam uma batida seguida por uma voz feminina, relutam em abrir, mas descobrem se tratar de Yara. Repentinamente, logo atrás de Yara, Jay enxerga um homem muito alto e magro, praticamente um gigante, ganhando o corredor a passos rápidos para buscá-la. A "Entidade" assume formas cada vez mais agressivas em bizarrice. Ela salta pela janela aos gritos e foge, para o choque dos amigos, que nada conseguem ver.

`Aquelas horas, Greg está namorando fora de casa, dentro do automóvel de uma garota, ambos fumando cigarros e relaxando. Ele vê quando Jay salta pela janela, monta na bicicleta e foge. Jay nem sabe para onde ir, mas acaba parando no parquinho. Ela se senta no balanço, e espera que a "Entidade' venha logo pegá-la. A Coisa não surge, mas a turma não custa a aparecer. Até então ignorante quanto ao drama na vida de Jay, Greg também se junta ao grupo no parquinho, e aprende sobre o que está se sucedendo. Jay crê que somente encontrará as respostas quando rastrear Hugh. O ex-namorado lhe deve explicações. Greg chama os demais para entrar no carro, e eles partem pela madrugada com a missão de encontrar o velho endereço do Hugh. Aqui, assim como em tantos outros distintos momentos de "It Follows", as estrelas são trilha sonora & fotografia. A melodia muito enervante apenas realça as imagens das vias bem largas e calçadas vazias do centro de Detroit, no curso da madrugada. Há muito tempo desde que vi a "w Delta z" não assistia a algo tão propriamente atmosférico.

Hugh não morava na residência indicada conforme se acreditava, apenas a alugara enquanto não resolvia a questão da "Entidade", ou melhor, enquanto não passava a maldição para outra pessoa e "tirava o dele da reta". O interior revela a paranóia com que esse cara teve de conviver enquanto lidou com o assédio da Coisa, tendo pendurado garrafinhas como apanhadores de sonhos, de modo a acusar qualquer movimentação dentro da residência pelo tilintar das latas. No andar de cima, Paul encontra sob o colchão várias revistas de mulheres peladas. As capas sugerem revistas dos anos 80, talvez 1988, 1989, mas jamais temos certeza. Entre as páginas de uma daquelas edições, Paul encontra a foto de "Hugh" com uma moça. Se prestarmos atenção, perceberemos que a menina da foto é a mesma que vimos no início do filme, a garota que fugiu para a praia e ali foi morta pela "Entidade". Parece seguro afirmar que ela foi o "Paciente Zero", tendo passado o mesmo trágico destino para o namorado, "Hugh". Quando Jay e os amigos pedem informações na coordenação e solicitam os livros com as fotos dos formandos dos últimos anos, encontram uma foto do rapaz, e, pasmem, "Hugh" na verdade é um cara chamado "Jeff". Até mesmo quanto ao nome ele mentiu, para se aproximar de Jay sem levantar suspeitas e conseguir sua confiança, de modo a passar a maldição para a frente e desaparecer facilmente.

Agora que a turma tem o verdadeiro nome do rapaz, eles partem para prestar uma visita a Jeff. Dentro do carro, há um momento em que Greg toca Jay no ombro de uma maneira carinhosa. Paul parece incomodado, uma pequena prova de seus verdadeiros sentimentos por Jay. Eles são recebidos pela mãe do Jeff. O rapaz aceita conversar, e eles se sentam no gramado para que o rapaz explique melhor a natureza do mistério. Assim como Jay, ele não sabe por quê ou onde o lance da maldição começou. Ele apenas "ganhou a Entidade de presente" da garota e passou adiante. Apesar de a Coisa ter deixado de persegui-lo, Jeff ainda consegue vê-la ocasionalmente. Greg hesita em acreditar. Jeff se desculpa para Jay, e diz que sua intenção jamais fora machucá-la. Mesmo hoje, Jeff ainda lida com o trauma da situação. Quando uma moça atravessa o gramado segurando uma bola de basquete a caminho da quadra, ele aponta para a menina e pergunta se a turma a enxerga também. Claro que eles a veem, não se trata da Entidade… Ainda.

A família de Greg tem uma bela cabine na praia, e o garoto sugere que passem uma noite no lugar, pois oferece a privacidade para que discutam o plano para vencer a maldição. É noite, e Jay parece entristecida e calada, nos braços da amiga no banco detrás. Kelly pergunta se Jay não pensa em passar a maldição adiante para se livrar, mas a menina nada diz. Eles preparam a casa para que acuse qualquer intromissão, pendurando latinhas nas portas e janelas. Na primeira noite, nada acontece, e conseguem dormir em paz. Na manhã seguinte, Greg pega a arma de fogo da família para ensinar Jay a atirar. Eles praticam tiro com latas velhas. Sentados `a beira do mar, eles espairecem tomando latinhas de cerveja, quando o aterrorizante poltergeist acusa presença, puxando os cabelos de Jay. Para os amigos, é como se uma força invisível a estivesse suspendendo  no ar pelo cabelo. Pela primeira vez, o fenômeno interagirá com o restante da turma, pois quando Paul tenta acertar o poltergeist com uma cadeira, é atingido por um coice que o faz voar longe.

As meninas e Paul correm da "Entidade". Greg, que havia ficado para trás, parte no encalço da turma. Eles se refugiam dentro da casa dos barcos, e Jay apanha o revólver. Ela afasta a porta da casa e abre fogo contra a "Entidade". A menina parece ser atingida no pescoço e vai ao chão, mas logo se levanta, como se nada tivesse acontecido, avançando com aquele mesmo olhar indiferente e aterrorizante. Jay e a turma se trancam, e pela janelinha, a garota vê quando um gigante passa momentaneamente ao lado: a "Entidade" já mudou de forma, antes a menina, agora o gigante magrelo que Jay encontrou previamente dentro da casa de Paul & Kelly. A porta é arrebentada a golpes invisíveis, e quem enfia a cabeça para dentro é um moleque com dentes enormes, outra novidade do "canivete suíço" de imagens bizarras da "Entidade". Jay foge pelo outro lado, e de posse da chave, arranca com o carro. Tão aterrorizada em sua fuga pela estrada da praia, não percebe que uma camioneta está dando a ré. Jay desvia no último segundo, o carro é lançado em um milharal, e ela desmaia.

Jay sofreu algumas concussões. Quando desperta, vê-se no hospital cercada pelos amigos. Ao escutar passos no corredor, se sobressalta, imaginando tratar-se da Coisa. Apenas uma enfermeira. A vida de Jay está perfilada de medo. Naquela mesma noite, Greg a visita e os dois se trancam. Eles mantêm relações sexuais, Jay supostamente se livrando da maldição e a passando ao rapaz, que desde o início não acreditou muito na história e se dispôs a dar esse passo para ajudá-la. Greg volta `a vida normal, e o vemos interagindo normalmente com as meninas da escola. 3 dias se passam, e quando Greg a visita no hospital, conta que até agora nada o tem perseguido. Ele crê que a maldição finalmente foi posta para descansar. Jay tem uma manhã normal na piscina, e dentro de casa nada incomum acontece. Greg visita a turma, e novamente diz que até agora, passados poucos dias, o fenômeno ainda não se manifestou.

`A noite, contemplativa `a janela, Jay se distrai observando a tranquilidade no quarteirão, quando sorri ao enxergar Greg aparentemente realizando uma caminhada noturna pelas calçadas. Quando "Greg" bate `a porta e depois arremessa uma pedra contra a janela para entrar "na marra", ela percebe que não se trata do rapaz, mas da Coisa, que assumiu a forma do próprio. Em vão, Jay tenta avisá-lo, a ligação caindo na caixa postal. Desesperada para avisar o amigo, ela atravessa a rua e entra na casa para tentar chegar a tempo. Na melhor, mais memorável cena do filme, ela dá de cara com a mãe de Greg, a forma assumida pela "Entidade", batendo `a porta do filho. O rapaz abre a porta, insuspeito, e encontra a mãe ali na sua frente, com um olhar incompreensível, a camisola aberta de forma a revelar parte de um dos seios. Ele não tem tempo de processar o que está acontecendo, pois a "Entidade" salta sobre o rapaz e o domina com facilidade. No corredor, muito chocada, Jay custa a reagir. Da porta aberta, clarões semelhantes a eletricidade emanam de dentro do quarto. Ao vencer a surpresa e se aproximar para ver o que houve, Jay enxerga a "mãe" de Greg montada sobre o corpo do rapaz desacordado, como que o violando sexualmente. A cena é filmada como um encontro romântico e sensual, mas quando a câmera se aproxima e mostra a forma como ela segura o seu braço, entre uma porção de detalhes sórdidos, fica claro que a "Entidade" está consumindo a vítima. O poltergeist não apenas drena a vida de seus portadores, ele os mata da forma mais cruel possível. Ao assumir a forma da mãe para atacá-lo e possui-lo sexualmente, a Coisa parece fazê-lo apenas para adicionar injúria `a ferida, tornando a experiência ainda mais emocionalmente dolorosa. A cena em que Greg é abusado sexualmente e consumido não me pareceu estranha, até que eu finalmente me lembrei de um filme amedrontador que assisti quando criança, "A Casa das Almas Perdidas", a história verídica de uma família americana perseguida implacavelmente por fenômenos parecidos. Há uma cena em que o pai está assistindo `a televisão na sala de estar, na calada da noite, quando o fenômeno subitamente se materializa como uma mulher e o assalta, "montando" sobre seu corpo para estuprá-lo. Pela dinâmica do ataque e o uso de luz que emana como ondas, a forma como David Robert Mitchell filma a morte de Greg remete `a cena de "A Casa das Almas Perdidas". O "estupro" de "It Follows", no entanto, vai mais além, direto na jugular, pois realça a brutalidade com um corrompido senso de erotismo.

Jay foge no carro, e ainda consegue enxergar a Coisa deixando a casa, caminhando para o meio da rua. Agora que Greg está morto, ela voltou `a estaca zero. Acolhida pelas amigas Kelly & Yara, Jay é acordada na manhã seguinte por batidas na porta. Ela e Paul têm uma conversa privada, quando o rapaz fala sobre seus sentimentos. Ele sempre fora apaixonado por Jay. Ao olhar casualmente a uma foto da garota na piscina do ginásio, ele tem uma ideia. Agora que nada mais tem a perder, todas as sugestões são bem vindas por Jay. A turma preparará a piscina do ginásio abandonado para "eletrocutar" o poltergeist. A ideia faz sentido: Jay deve atrair o fenômeno para dentro da piscina. Os amigos estarão presente. Ela deve subir as escadas a tempo, deixando a piscina o mais rápido possível, quando a turma arremessará uma variedade de eletrodomésticos ligados `as tomadas dentro d'água, criando o curto circuito que supostamente colocará um ponto final `a maldição. Quando deixa a casa para se preparar para invadir o ginásio com os amigos, Jay ainda enxerga, sobre o telhado, um homem nu a encarando.

Eles preparam a piscina para a guerra, os eletrodomésticos - luminárias, televisores, abajur - na borda, prontos para serem arremessados para dentro. Jay veste um maiô preto e mergulha na piscina, enquanto os amigos ficam `a espreita, só aguardando que a Coisa dê as caras. O fenômeno toma a forma ideal para abalar a garota, aparecendo como seu falecido pai. Os amigos nada enxergam, todavia quando a Coisa começa a erguer as luminárias e coisas para atirar em Jay, a turma fica boquiaberta ao enxergar todos aqueles itens "flutuando" no ar. Paul pega o revólver dentro da mochila, e grita para que Jay aponte para onde enxerga a "Entidade". Ela precisa mergulhar para escapar das coisas atiradas pelo poltergeist. Kelly arremessa um lençol que acaba por acusar a silhueta da Coisa. Paul faz mira e atira certeiro. A "Entidade" cai dentro da piscina, mas antes que Jay salte para fora, consegue segurar a garota pelo pé. Atingida por mais um tiro, a Coisa a deixa escapar, e Jay é puxada para a segurança da beirada.

A turma parece ter momentaneamente derrotado a "Entidade", mas não se sabe se voltará. Paul & Jay fazem amor, o garoto disposto a trazer a maldição para si de modo a livrá-la em definitivo. O problema com Greg fora que apesar de ter "assumido a bronca", ele não fora diligente, e ao se deixar ser morto, a Coisa voltou a atormentar a menina. Paul será mais cuidadoso. Depois da relação, eles conversam no sossego do quarto, enquanto chove muito do lado de fora. Ao voltar para casa, Paul observa duas meninas ao passar com o automóvel pela esquina, e podemos até imaginar o que se passa em sua cabeça, certamente considerando se se tratam de duas garotas ou a Coisa tomando forma. Paul & Jay se envolvem romanticamente e se tornam namorados. É a manhã de um novo dia, e embora passeiem de mãos dadas e com expressões aliviadas, bem atrás e distante na calçada, pode-se enxergar a figura de um rapaz acompanhando o casal. Pode ser um menino da vizinhança apenas passeando pelo bairro, ou a "Entidade". O que há de tão horrível na maldição é que nunca se sabe...

Apenas muito raramente testemunhamos o surgimento de talentos fora de série em filmes que realmente fazem a diferença e reinventam estilos, e que mesmo lançados independentemente, merecem tantos elogios que acabam por vencer suas limitações para se tornarem blockbusters. Eu poderia citar muitos exemplos mas nada seria mais emblemático do que mencionar o clássico com que "It Follows" guarda impressionantes semelhanças, "Halloween", de John Carpenter. Antes que "It Follows" merecesse elogios da crítica especializada, foi o pequeno suspense de John Carpenter rodado em 1978 a um custo simbólico que estabeleceu as fundações para que quase quarenta anos mais tarde o cineasta David Robert Mitchell revisitasse o formato para criar seu próprio clássico "It Follows".

Quando um jovem cineasta resolve fazer um filme fazendo referência aos clássicos do passado, o resultado varia pela imprevisibilidade. Enquanto James Wan, o magistral diretor de "Invocação do Mal", conseguiu conciliar seu estilo e personalidade com o apelo de público, produzindo dividendos impressionantes nas bilheterias, outros diretores, como Rob Zombie & Ti West, têm encontrado muitas dificuldades para traduzir seus excitantes pontos de vista em dividendos financeiros. Embora talentosíssimos mestres do Horror, Rob Zombie & Ti West ainda procuram refinar seus olhares de modo a conseguir alcançar o tipo de sucesso que lhes daria carta branca para que rodassem coisas ainda mais grandiosas e excitantes. Levando-se em conta o retorno financeiro baseado exclusivamente nos elogios ao pé do ouvido e burburinho causado pela passagem nos festivais, parece-me que o diretor David Robert Mitchell não apenas criou algo diferente e encantador, sua visão também foi generosamente abraçada pelo grande público, que há muito não via algo semelhante. Depois do sucesso de "It Follows", resta esperar e ver se ele conseguirá fazer a mesma transição de James Wan, de filmes pessoais para grandes blockbusters dotados de personalidade.

Sempre me pareceu que há uma maneira certa para se assistir a um excitante filme de Horror. Se existe algo que mereça ser visto no escurinho do quarto, preferencialmente com o sossego que somente se encontra às horas mais adiantadas da noite, vocês não precisam procurar mais, "It Follows" é sua pedida. Assistir ao filme os levará de volta a um tempo em que o gênero valorizava atmosfera pelo minimalismo, e dependia de muito pouco para dar o recado. São muitas as maneiras com que "It Follows" & "Halloween" se parecem, mas discorrer somente sobre suas semelhanças poderia estigmatizá-lo como uma "sessão nostalgia", um equívoco, pois apesar de acenar para os clássicos que vieram anteriormente, dá uma polida e aperfeiçoa os elementos que nos fizeram amá-los, os clássicos, em primeiro lugar. Não se pode falar sobre "It Follows", todavia, sem revisitar o suspense de Carpenter, e refrescar a memória para que nos lembremos de todas as coisas de "Halloween" que deixaram saudade.

No filme de Carpenter, um menino de 6 anos esfaqueia e mata a irmã mais velha, no Dia das Bruxas do ano de 1963. 15 anos mais tarde, ele escapa do hospital psiquiátrico e volta para a cidadezinha de Haddonfield. O filme se passa no curso de uma noite, o Dia das Bruxas, quando o assassino aterroriza uma jovem chamada Laurie (Jamie Lee Curtis) e suas amigas,  enquanto o psiquiatra Dr. Loomis (Donald Pleasence), o homem que mais conhece sua mente perturbada, corre contra o tempo para impedir que ele deixe um novo rastro de matanças. Sucesso absoluto de bilheteria, tendo rendido ao estúdio 70 milhões de dólares frente a um custo de apenas 300 mil, "Halloween" deu origem a uma infinidade de imitações e transformou a atriz Jamie Lee Curtis em estrela. Lançado ao cruel teste do tempo, "Halloween" provou-se um vencedor mesmo tantas décadas desde sua estreia, sendo considerado pelo Chicago Film Critics Association o 3˚ filme mais apavorante de todos os tempos. Após tantas continuações, é fácil incorrer no pecado de desmerecê-lo, contudo quem estiver disposto a revisitar o primeiro, o original, de 1978, estará se permitindo redescobrir um dos suspenses mais tensos e originais de todos os tempos. Aqueles que guardam uma recordação mais cristalina do filme de John Carpenter provavelmente compreenderão a minha análise melhor. Se os amigos não se lembram do primeiro, antes de assistirem a "It Follows", não deixem de conferir o suspense de John Carpenter. Acreditem, mesmo diferentes, os dois filmes parecem obra de uma mesma mente!

Não obstante as pessoas amarem-no ("It Follows") pelas mais diferentes razões, uma constante nas análises que tenho lido refere-se ao sentimento de nostalgia que o diretor David Robert Mitchell impõe a seu filme. Amantes do gênero Horror que tenham uma certa idade conseguirão enxergar melhor os elementos com que Mitchell comunica o saudosismo que permeia a história do começo ao fim. A trilha sonora de uma obra pode ser considerada sua alma, prova disso o fato de nos lembrarmos imediatamente de nossos filmes mais queridos pelas suas melodias, por exemplo as tristíssimas trilhas sonoras compostas por Ennio Morricone para "Nuovo Cinema Paradiso" & "Malena"& "Lolita"& "Love Affair". Em uma época em que trilhas sonoras soavam exclusivamente orquestrais, Carpenter criou um novo estilo através do uso de teclados e sintetizadores eletrônicos com batidas lentas e ritmadas, o que revestiu suas histórias de um senso de angústia e inexorabilidade quase claustrofóbico. Como sei que não conseguiria explicar as diferentes emoções que a trilha sonora evoca, eis um trecho da tétrica melodia composta pelo próprio Carpenter:


Todos os direitos autorais reservados a Varese Sarabande. O uso da faixa é para efeito meramente ilustrativo da resenha.
"It Follows" não perde tempo ao apresentar logo de cara um estilo de trilha fortemente influenciado pelos teclados e sintetizadores, assinada por Rich Vreeland. O compositor parece ter expandido o potencial da revolução de Carpenter. Não obstante a melodia de "Halloween" possa soar como música de uma nota só, principalmente quando esticada ao longo do filme, Vreeland cria um conjunto de derivadas enriquecedoras. Ora triste, ora arrepiante, a música de Vreeland expande o leque de emoções, até porque composta quase 40 anos após o filme de Carpenter e portanto com muito mais recursos. "It Follows" está permeado de melodias marcantes e contundentes, em grande parte diretamente responsáveis pela expectativa dos momentos mais calmos e contemplativos, e pelo Horror absoluto que emana dos encontros de Jay com a "Entidade". Abaixo, segue um trecho da trilha sonora. Os amigos certamente poderão perceber as semelhanças entre as batidas:
Todos os direitos autorais reservados a Milan Records. O uso da faixa é para efeito meramente ilustrativo da resenha.
O metabolismo dos dois filmes também coincide em termos de ritmo de desenvolvimento. Apesar de tétricos e angustiantes, nenhum dos dois ficou notório por ação absoluta ou ininterrupta. Ao contrário, as pessoas que não os apreciam costumam rotulá-los de chatos justamente por lhes faltar a característica da montagem cinética tão apropriada a épicos grandiosos de super-heróis, por exemplo. Quando disse que "It Follows" mais agradará as pessoas mais velhas que portanto tiveram a oportunidade de assistir a coisas como "Halloween" em VHS, é porque o diretor David Robert Mitchell corteja a todo instante referências a uma época em que suspenses sabiam como muito sutilmente incutir medo, genuíno medo, com pouquíssimos, simplistas e eficientes recursos.

Não há nada mais horripilante que a ideia de um monstro que avança em sua direção implacavelmente, sem pressa alguma para colocar as mãos sobre você. Pessoas guardam distintas recordações do primeiro "Halloween", mas quando eu o vi pela primeira vez, quando criança, me recordo que o elemento que permaneceria na minha cabeça anos por vir foi a imagem de seu monstro, o psicopata de máscara branca avançando em direção `a protagonista com a tranquilidade que sequer lhe permitia correr. Ele caminhava calma e obstinadamente, e por mais que o cobrissem de tiros, seguia marchando, como imagens de um pesadelo absolvido de lógica. Há algo de bastante inquietante na maneira como Carpenter apresenta o seu "monstro", um senso de inevitabilidade angustiante que somado `a trilha composta pelo próprio diretor nos faz continuar pensando no filme muito tempo depois de o termos visto. Em "It Follows", a aproximação vagarosa da "Entidade" transforma a espera em uma angustiante e prolongada perseguição que dura do começo ao fim. O fato de a Coisa não correr para alcançar sua presa apenas reforça a tese de que uma vez que você foi tocado pela maldição, não adianta correr ou espernear, querendo ou não, trata-se de uma questão de tempo até que sucumba a seus mistérios. Não apenas a marcha dos dois monstros se assemelham, ambos matam desprovidos de quaisquer emoções ou motivações, máquinas de matar indiferentes a tentativas de barganha, tão despolitizadas quanto um vírus (mais sobre minha comparação depois).

A maneira como o Mal é representado pode determinar de cara se você terá ou não um filme instigante. As produções maiores dão um tiro no pé ao retratar o Mal da maneira mais extravagante possível, cortesia dos efeitos especiais de ponta. Esquecem-se de coisas marcantes como por exemplo a "Sadako" de "Ringu". Tudo de que Hideo Nakata precisa para incutir puro medo é de uma voz ao telefone e uma menininha cujos cabelos compridos sempre cobrem a frente do rosto. Também parecem não ter aprendido a lição do mestre  Clive Barker com seus cenobitas em "Hellraiser", os seres misteriosos charmosos pela enorme melancolia, vestidos em surreais trajes fetichistas de couro, estilo sadomasoquista "bondage". David Robert Mitchell não apenas homenageou os clássicos do passado como provou seu amor pelos mestres que vieram anteriormente, dando `a "Entidade" um ar de mistério que cria imagens verdadeiramente macabras em suas peculiaridades. O coração quase vai `a boca de susto em cenas como quando Jay vê a moça desdentada urinando na saia dentro da cozinha, ou quando Greg abre a porta para a macabra imagem da mãe, de camisola, com um olhar ilegível, na verdade mais uma das muitas formas assumidas pela "Coisa". O diretor não precisou de efeitos para criar as representações da "Entidade". Quando a vemos, nós a enxergamos como uma moça desdentada, ou uma criança, ou uma mulher exibindo sensualmente um dos seios. Detalhes como o olhar distante e perdido, o fato de na maioria das vezes estarem despidos e a marcha lenta operam o milagre que os efeitos especiais apenas avacalhariam.

Em sua imprecisão de tempo, "It Follows" também foi impecavelmente ambientado. Ao término do filme, não podemos realmente afirmar o período em que se deu a história, que tanto pode ter ocorrido nos anos 80, quanto nos 90, quanto na década de 2000. Filmado em Detroit, sobre o filme pesa a atmosfera pesada concebida pela fotografia opressiva e cinzenta. Há instantes propositalmente criados para nos desconcertar, porque carros, penteados e figurinos sugerem o final dos anos 80, talvez início dos anos 90 como o provável cenário para o desenrolar dessa história de Horror. Eu me recordo de quando tinha 11 anos e assisti a "Rocky V" (foto) nos cinemas, no começo de 1991. A sinopse era a de que depois de voltar da Rússia como herói, após ter vencido Drago, Rocky perde todo o dinheiro e se vê obrigado a voltar ao velho bairro com a família. As pessoas que assistiram ao filme sabe o que acontece. Ele se torna treinador na decadente academia deixada pelo velhinho que era seu manager, e acaba ajudando um jovem aspirante que ao se tornar o novo campeão mundial é manipulado por um promotor inescrupuloso para se voltar contra o próprio Rocky. Assistindo a "It Follows", me recordei bastante de "Rocky V" no que se refere a figurinos, fotografia, visual, carros, a batida de vida que pulsava na quase sempre nublada Filadélfia naquele "time frame" em particular, desta vez realocada para Detroit em "It Follows"… É como se David Robert Mitchell tivesse procurado recapturar um momento, revisitar o mundo preservado como o fora no início da década de 90. Não raras vezes, vemos televisores antigos exibindo filmes datados. No começo de "It Follows", quando Jay ainda está começando a conhecer Hugh, a sair com o pretendente, e o casal passeia no cinema, se prestarmos atenção na marquise do teatro, quando os dois deixam apressadamente o prédio, veremos que o filme em cartaz é "Charada", com Audrey Hepburn & Cary Grant, algo antigo que você jamais imaginaria interessar a jovens de hoje em dia. Ao me tocar do detalhe, imaginei que teria sido ainda melhor se David Robert Mitchell tivesse colocado "Rocky V" naquela marquise, porque então, ao menos indiretamente, o diretor estaria nos remetendo a 1990/1991, o período em que tudo deve ter ocorrido dentro da trama.

O diretor M. Night Shyamalan tentou algo semelhante no seu melhor filme, "Sinais". Poucas pessoas perceberam, mas "Sinais" parece se esforçar para criar um sentimento de alienação ao se recusar a fornecer uma referência de espaço & tempo, um expediente que assim como ocorre a "It Follows" estimula a sensação de se viver em uma fantasia, um mundo de irrealidade e sonhos, semelhantes a aqueles bem confusos que temos ao tirar o cochilo após o almoço. Em "Sinais", há uma brevíssima cena durante o segmento final em que o pastor, seu irmão e os filhos pequenos assistem ao telejornal, momentos antes da invasão do mundo por alienígenas. Se os amigos revisitarem o filme, e prestarem muita, muita atenção neste segmento em particular, observarão que as roupas, a fotografia, as matizes da imagem e a própria interpretação do ator que faz o jornalista parecem… Eu não imagino um termo melhor do que "incongruentes", como se repentinamente estivéssemos caminhando ao longo de um túnel do tempo para assistir a algo tão "vintage" que pareceria mais `a vontade em algo dos anos 60. Em termos de atmosfera, ao falar sobre sua inspiração, o diretor Shyamalan citou "A Noite dos Mortos-Vivos", de George Romero, de 1968, e ao assistir a "Sinais" novamente, uma vez compreendidas suas intenções, pude enxergar com mais clareza o que Shyamalan pretendia por trás de suas peculiaridades. David Robert Mitchell apenas levou a ideia mais longe.

Tecnicamente, o filme é um primor de técnica e competência. David Robert Mitchell toma muitos riscos ao optar por tracking shots ininterruptas e demoradas que deixariam veteranos como Brian De Palma orgulhosos. Basicamente, ao escolher tracking shots, o diretor põe uma tremenda responsabilidade e cobrança extras sobre os próprios ombros e os de seu elenco. A ação é capturada em um take apenas sem interrupções, se algo dá errado no curso da ação, não há cortes para poupar a "parte boa". Paul Thomas Anderson abre "Boogie Nights Prazer Sem Limites" com uma tracking shot que começa na marquise de um cinema onde se lê o nome do filme, desce e atravessa a rua de um quarteirão em San Fernando Valley, em 1977, até chegar `as calçadas do outro lado onde acompanha os personagens de Burt Reynolds & Julianne Moore entrando na boate, também apresentando os demais personagens daquele trama. De Palma, o mestre do thriller erótico, aperfeiçoou o uso de tracking shots, e a introdução a "Snake Eyes" tornou-se uma das cenas mais impressionantes de todos os tempos no que diz respeito `a técnica. Mesmo hoje nem se pode começar a imaginar a dificuldade de se rodar algo tão grandioso e demorado em um take de tirar o fôlego quanto quando o personagem principal entra na arena onde se dará a disputa do campeonato pelo cinturão dos pesos pesados logo mais. Cineastas talentosos fazem mágica com tracking shots, David Robert Mitchell é um estreante que ao escolher a técnica arriscou dar um tiro no pé. Ele se sai extraordinário, e a usa em favor do gênero como poucas vezes visto antes. Eu me recordo de ter visto o recurso empregado nos thrillers de Brian De Palma, mas poucas vezes no gênero Horror, o único exemplo que me vem `a mente a cena em "Hellbound: Hellraiser 2" em que Clare Higgins mata o jovem psiquiatra. O recurso é baseado inteiramente em uma tomada apenas, sem cortes, e portanto trabalhoso: a câmera começa capturando a comoção lateralmente, vai para atrás da atriz, de modo a mostrar que suas costas, anteriormente expostas em carne viva, agora estão completamente cicatrizadas por conta do nutriente e sangue que está drenando da vítima, continua com seu movimento ao redor do casal, mostrando a força de seus braços, e finalmente estaciona ao lado dos dois, quando mostra o estado lamentável do rapaz, sangue escorrendo do nariz, ouvido e boca, terrivelmente ferido, enquanto ela o beija com a passionalidade de uma amante que lhe quer muito bem. Em sua simplicidade e ousadia, a cena agrega tantas informações simultaneamente - a pele das costas reparada, os braços femininos porém fortes, o choro de dor da vítima, sangue escorrendo pelo nariz e ouvido - que exercita um tipo de agressividade incapaz de se emular não fossem pela técnica da tracking shot e a coragem e talento dos atores envolvidos. "It Follows" usa o mesmo recurso em diferentes momentos, e sempre os aproveita muito bem.

"It Follows" pode ser interpretado de muitas formas, todas válidas vez que a leitura depende dos olhos do observador. Partindo da premissa de que o tormento toma a vida de uma pessoa após a intimidade das relações sexuais, eu o tomei como uma angustiante releitura da histeria da AIDS nos primeiros anos de seu surgimento, no começo dos anos 80. Em muitos momentos, assistindo a "It Follows", me recordei de um documentário chamado "Estávamos Aqui", que revisita os primeiros momentos da catástrofe, relembrados pelos olhos das pessoas no epicentro da tragédia, em São Francisco, naquele período em particular. A AIDS chegou a São Francisco nas comemorações do feriado da Independência Americana em 1976, mas só mostrou a cara feia 4 anos mais tarde, no início dos anos 80, 1980&1981, o tempo de incubação do vírus, quando os primeiros casos de pneumocistose e um raro câncer de pele chamado Sarcoma de Kaposi foram registrados. Quando se percebeu que algo letal de fato estava `a solta, mais da metade dos cidadãos da comunidade estava contaminada e, naquele tempo, sentenciada a uma pena de morte. O tipo de confusão que a personagem principal experimenta, desde a negação e revolta passando pela aceitação até a maneira como procura lidar com a terrível situação, em muito guarda paralelos com o que aconteceu com aquelas pessoas nos anos 80, a mercê de um monstro invisível contra o qual médicos não tinham nenhum tipo de arsenal. Creio que outra interpretação igualmente válida seria ler o poltergeist como a soma de todas as ações, boas ou más, que você cometeu no curso de sua vida até o presente momento, principalmente quando se é razoavelmente jovem e não se compreende como as coisas efetivamente funcionam em oposição a como gostaríamos que fosse. Por esse viés, a "Entidade" representaria a soma das recordações de pessoas que você intencionalmente ou não machucou ou injustiçou, as más escolhas que agora pesam sobre seus ombros, os laços mal atados de um passado relativamente recente que dada a oportunidade você adoraria amarrar melhor. Essa linha de raciocínio bate com a revelação de um breve momento, no começo do filme, quando o deprimido e angustiado Hugh aponta para o menininho no cinema e diz que adoraria trocar de lugares com a criança e sua vida inteira pela frente, quando ele mesmo tem 20 e poucos anos, também um futuro por vir, mas não parece perceber em razão de todos os problemas que se tornaram maiores do que consiga suportar sozinho. Seja qual for a interpretação que os amigos tirem do desfecho, é muito seguro afirmar que não encontrarão outro filme de Horror que os convide tanto `a reflexão quanto "It Follows" este ano.

Aproveitando o ensejo sobre o que 2015 ainda nos reserva, quero deixá-los a par de um Horror chamado "Knock Knock", dirigido pelo cineasta Eli Roth, e estrelando Keanu Reeves. Keanu Reeves interpreta um arquiteto bem sucedido e casado que ficou em casa para trabalhar enquanto a mulher e os filhos se ausentaram para passar o fim de semana na praia. Uma noite de chuva, ele escuta batidas na porta e encontra duas garotas aparentemente comuns que pedem para entrar e usar o telefone. Ele deixa que as moças entrem, e embora o encontro comece cordial, logo se transforma em um jogo de morte para o arquiteto, porque as duas estranhas se revelam psicopatas, ali com o único intento de se divertirem com o seu terror até resolverem matá-lo. Pessoas que viram o filme o elogiaram bastante. O diretor Eli Roth ficou conhecido pela violência de suas imagens, mas aqui parece ter amadurecido bastante, pois dizem que há pouco em termos de sanguinolência. Ele parece ter exercitado a contenção, amadurecido, e feito algo que alguém como Brian De Palma teria se saído excelente. Abaixo do trailer de "It Follows" vocês poderão conferir o teaser de "Knock Knock". Agora, sobra-nos a parte mais difícil (ou mais saborosa, dependendo do seu ponto de vista)… Esperar!
Todos os direitos autorais reservados a RADiUS-TWC. O uso do trailer é para efeito meramente ilustrativo da resenha.

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