sábado, 31 de janeiro de 2015

"As Above So Below" (John Erick Dowdle, 2014) Dentro de catacumbas logo abaixo de Paris repousa o segredo para a vida eterna.

Scarlett Marlowe (Perdita Weeks) é uma ambiciosa arqueologista movida pela missão pessoal de reparar o legado do pai, um respeitado pesquisador que dedicou a vida para encontrar a lendária Pedra Filosofal, tendo se suicidado ao fracassar. Rezam os escritos que a Pedra Filosofal é uma substância capaz de transformar metais em ouro, bem como conceder vida eterna a quem dela se apoderar. Na Alquimia, a Pedra Filosofal representa o objetivo maior entre os estudiosos, por séculos consumindo as vidas dos aventureiros obcecados em sintetizá-la. Conforme registros históricos, somente um homem, um francês chamado Nicolas Flamel, a teria formulado e alcançado a imortalidade. No início do filme, acompanhamos a corajosa Scarlett entrando clandestinamente na fronteira do Irã, determinada a explorar um complexo de túneis onde estaria a Pedra de Roseta, um fragmento em rocha essencial para a tradução dos símbolos mais complexos da Alquimia Clássica. Com a ajuda de Reza, um morador da região, ela tem acesso a uma passagem secreta para o complexo de túneis das escavações, justamente às vésperas de o governo iraniano pretender implodir o lugar.

Scarlettt consegue encontrar parte da Pedra de Roseta, onde restam traduzidos os símbolos da Alquimia. Alarmes de sirenes os alertam para a iminente implosão dos túneis, e vez que o governo iraniano desconhece a presença dos dois intrusos, Scarlett e Reza correm graves riscos permanecendo no local por muito tempo. O formato da estrutura - grafada em aramaico associado aos símbolos da Alquimia - os deixa assustados, uma estátua em tamanho real de um touro. Reza insiste que o tempo se esgotou, e terminarão soterrados na caverna se não voltarem de imediato pela passagem. Scarlett realiza filmagens da estátua do touro, de modo a registrar todo aquele "compêndio" em aramaico para posterior análise, e por pouco escapa com vida do complexo, no exato minuto em que a passagem acaba soterrada pela explosão das dinamites. Inexplicavelmente, durante a comoção, Scarlett enxerga o corpo de um homem oscilando na forca, uma referência a seu pai suicida. Estaria enxergando coisas?Prova do suspense por vir, o diretor John Erick Dowdle abre o filme em grande tensão. A combinação de lanternas vermelhas predominantes ao longo das passagens na caverna, a busca de Scarlett pela saída a tempo e os avisos intermitentes pelo sistema de alarme do complexo durante a contagem para a implosão os colocará roendo as unhas!

O filme corta para um sítio de escavações em Paris. Scarlett dá um depoimento para a câmera, quando temos a oportunidade de conhecer melhor suas impressionantes qualificações - entre doutorados em Arqueologia & Simbologia, o domínio de quatro línguas faladas e duas mortas e a faixa preta em artes marciais - e de onde vem a vocação para a aventura. Desde criança, escutava as fantásticas histórias contadas pelo pai sobre Nicolas Flamel e sua Pedra Filosofal, e agora mulher adulta, pretende suceder onde o pai fracassou. Acompanhada pelo operador de câmera, Scarlett realiza um tour pela pequena rua da residência onde Flamel teria sintetizado a Pedra Filosofal e alcançado vida eterna. A arqueologista explica que após a morte do alquimista, ladrões haviam vilipendiado o túmulo em busca da substância mágica, tendo encontrado somente um sepulcro vazio, o que definitivamente fortaleceu a aura de mistério em torno de Flamel e a Pedra Filosofal. No cemitério de Paris, Scarlett nos conduz ao mausoléu do Alquimista para exibir a placa que o próprio preparara para si quando em vida. Há símbolos muito distintos que estudiosos de sua obra jamais conseguiram compreender. Essa revelação faz um link com a sequência inicial, pois deduzimos que ao filmar a Pedra de Roseta nas escavações do Irã, Scarlett buscava por um "dicionário" para pôr fim ao mistério do "recado" deixado por Flamel. Ela crê que os símbolos tragam um "passo a passo" de como mapear a localização da Pedra Filosofal.

Scarlett sabe que não conseguirá atingir seus objetivos sozinha. Ela precisa do suporte do velho amigo George (Ben Feldman), ainda ressentido pela "última aventura", que acabou lhe rendendo uma estadia em uma prisão turca. A moça o encontra na catedral de Paris. George tem como hobby invadir sorrateiramente as mais famosas igrejas europeias apenas pela satisfação pessoal de consertar suas torres de sinos, e depois, do alto, testemunhar o encanto das pessoas quando os mesmos voltam a soar ao meio dia. Quando Scarlett o rastreia até a essa catedral em particular, George acabou de finalizar mais uma obra. Eles saem pelo paço da torre, e da beirada, assistem à alegria dos transeuntes ao sabor da oscilação dos sinos, de volta à ativa depois de 284 anos parados. Diante da insistência da amiga, George topa ajudá-la a traduzir a placa de Nicolas Flamel. Com a ajuda de George, Scarlett tira a pesada placa do suporte, e fazendo uso de produtos químicos próprios, livra a superfície de uma película invisível, o que acaba por lhes revelar um texto. George fotografa a pedra, para que possam proceder ao trabalho de tradução longe dali, mais tranquilamente.

Scarlett e George traduzem o texto, e tentam fazer sentido da confusão. Depois de discutirem diferentes interpretações, concordam que já que os alquimistas acreditavam que 741 era o número do Diabo, e que a Pedra Filosofal estaria a meio caminho entre Céu, Terra e Inferno, ou seja, a uma distância de 370,5 pés abaixo da terra, deveriam se preparar para "cavar". Paris oferece as condições ideais para se penetrar 370,5 pés abaixo da terra graças às catacumbas, um labirinto de mais de 200 quilômetros abaixo da "Cidade das Luzes", guardando os restos mortais de seis milhões de cadáveres. A 370,5 pés abaixo do túmulo de Flamel, portanto, repousa intocada a Pedra Filosofal.

Scarlett e George justapõem dois mapas: o da cidade, onde fixam o túmulo de Nicolas Flamel no cemitério de Paris, e o do complexo de catacumbas. A justaposição indica que os túneis chegam muito perto, mas não passam exatamente sob o epicentro desejado, o túmulo de Flamel. Ao repassar o histórico sísmico daquela região metropolitana, alvo de 3 colapsos registrados ao longo dos últimos séculos, e que no entanto manteve Paris firme e forte acima, o rapaz conclui que deva existir uma câmara oculta não prevista por mapa algum. Em uma "missão de reconhecimento", Scarlett e George visitam o trecho das catacumbas acessível aos turistas, quando a historiadora lhes conta mais sobre a origem dos túneis. Foi no começo do século XVIII que por questão de saúde pública os cadáveres precisaram ser desenterrados do velho cemitério e relocados para as catacumbas. O passeio é assustador, paredes inteiras ornamentadas por crânios humanos. Scarlett comunica a seu operador de câmera, Benji, que precisam encontrar um caminho para a área fora dos limites turísticos. Um rapaz os aconselha a procurarem por um cara de nome Papillon em um clube parisiense chamado La Vitrine. Scarlett momentaneamente se distrai quando a guia pede que não se afaste do grupo, e ao olhar para trás, não encontra mais sinal do misterioso estranho.

Naquela mesma noite, Scarlett, George e Benji prestam uma visita ao Le Vitrine, uma casa noturna às margens do Rio Sena. Na entrada, Benji tem a atenção capturada por uma moça de olhar muito penetrante que chega a desconcertá-lo. Ele não tem tempo para lhe dirigir a palavra, pois a estranha deixa a Le Vitrine a passos rápidos. Ao perguntar por Papillon, o grupo é dirigido ao lounge do nightclub, onde encontra o único homem conhecedor de quase todos os segredos das catacumbas. Inicialmente, Papillon opõe alguma resistência, declarando não ser nenhum guia turístico. Scarlett retruca perguntando-lhe se parecem os turistas usuais. Scarlett cita a câmara oculta, e desperta o interesse do explorador ao falar sobre as riquezas que por ali se encontrariam preservadas.

Papillon reúne o time habitual, e na manhã seguinte, partem para as imediações que dão acesso `as catacumbas. Uma série de detalhes merece atenção, desde os riscos de contato com morcegos `a falta d'água. Debaixo da terra, qualquer deslize pode levar `a morte. Com o senso de dever cumprido, George se despede de Scarlett e lhe deseja sorte, mas a moça insiste que os acompanhe. `A margem do túnel de acesso, o grupo veste as lanternas frontais. Subitamente, os guardas chegam e os surpreendem. Sem opção, George, que não queria se envolver, acaba tendo de seguir os demais para dentro das catacumbas, para não ser preso. Após o entrevero, George agora definitivamente faz parte de uma jornada rumo ao desconhecido. Em um discreto momento entre Benji e Scarlett, ela explica ao operador de câmera que o rapaz evita cavernas em razão de um trauma de infância: quando pequeno, seu irmãozinho se afogou em uma gruta, deixando-o marcado. Pessoas aversas a lugares apertados não se divertirão. A partir desse ponto, "As Above So Below" se passa exclusivamente dentro de passagens muito estreitas, grutas muito apertadas. A sensação de sufoco é muito pesada, e assistindo ao produto final, não temos como deixar de imaginar as dificuldades enfrentadas pelo diretor John Erick Dowdle e seus atores para rodar o filme.

Os primeiros túneis revelam pichações, algumas feitas pelo próprio Papillon, registrando sua passagem por ali quando de outras incursões. Apesar de arriscado, aquele ponto do labirinto ainda é um lugar visitado por exploradores experientes, ou seja, em que pese o aperto de corredores e o desconforto de se caminhar por poças sujas, ainda há a possibilidade de se voltar pela passagem e encarar a Polícia. Movidos pela missão de encontrar a Pedra Filosofal, todavia, a turma segue com a descida. No caminho, em uma das grutas, encontra uma seita misteriosa orando reservadamente. Depois de um prolongado tempo de descida, o grupo chega a uma encruzilhada, onde enxerga diante de si dois caminhos distintos que em tese desembocariam no mesmo lugar, um deles aprovado por Papillon, outro preferido por Scarlett. Papillon crê que o túnel sugerido pela moça seja uma péssima aposta, declarando que outras pessoas que se meteram pela passagem jamais foram vistas novamente. Ele cita o caso de "La Taupe", um ex-integrante da equipe que resolveu descer sozinho pela rota alternativa, apenas para desaparecer misteriosamente. O discurso de Papillon tem um forte efeito sobre os demais, e acaba acordado que seguirão mesmo pela rota mais longa, todavia mais segura.

A rota segura acaba por se revelar problemática. De uma estranha maneira, o grupo liderado por Papillon não a encontra do jeito que a haviam explorado antes, por mais que haja grafites com a assinatura do explorador nas paredes. Ele jura que não se recorda do túnel com aquela configuração. Para deixá-los ainda mais confusos, chamados insistentes de um telefone passam a ecoar pelos túneis. Papillon afirma que há cinquenta anos a Prefeitura retirou as linhas telefônicas do subterrâneo, e portanto não há explicação lógica para o fenômeno. Mais adiante, George aponta para Scarlett a indicação esculpida nos blocos, "Barriere d'enfer", o ponto onde os prédios desabaram e centenas de pessoas caíram para suas mortes no século passado. As surpresas inusitadas apenas começaram, porque um pouco mais adiante, o grupo encontra um piano bem no meio da cripta. Alguém chega a sugerir uma explicação lógica, racionalizando que seria um piano pertencente a um dos prédios, que acabou permanecendo ali. George se surpreende com a semelhança entre o piano e aquele onde ele e o irmão costumavam brincar quando crianças, mesmo que não soubessem tocar. George menciona uma determinada tecla que não funcionava, e então dá conta de que assim como o piano de sua recordação, aquele também traz a mesma tecla falha.

Seguindo os chamados do telefone, assim como ocorreu com o piano na cripta anterior, o grupo encontra um aparelho em outro ponto do complexo. Ao atender, Scarlett choca-se ao escutar a voz do falecido pai lhe perguntando por que deixaram de conversar. Quem eles encontram os observando, ali parado na escuridão, é "La Taupe", o desaparecido membro do time de exploração, tido como morto pelos demais. "La Taupe" avisa que o grupo cometeu um erro ao se aventurar pelas catacumbas, e acusa Papillon de jamais ter vindo procurá-lo. Antes que possam pedir mais explicações, os exploradores precisam seguir "La Taupe" de imediato, pois o instável túnel começa a trincar. "La Taupe" afirma algo enigmático, "A única saída é para baixo". "La Taupe" lhes mostra um poço muito profundo entre os sistemas leste e sul do complexo, que dá para o lugar onde Scarlett calculou existir a câmara oculta. Só ao descer pelas cordas os exploradores dão pela real profundidade. Durante a descida, Benji quase despenca, porém felizmente só machuca a mão.

Scarlett e os rapazes chegam ao ponto onde deveria existir a câmara oculta. Inicialmente confusos ao encontrar um beco sem saída, as dúvidas logo se dissipam quando Scarlett traduz os sinais grafados nas paredes. George e a amiga creem que a câmara se encontre, isso sim, escondida por trás de uma parede falsa, no mesmo estilo que as civilizações antigas faziam com os túmulos dos faraós nas pirâmides. O texto soa como um teste de raciocínio lógico, algo que somente duas pessoas altamente estudiosas teriam como decifrar. Scarlett e George unem forças para solucionar o teste, e chegando a uma resposta plausível, arrancam um determinado bloco que acaba por revelar uma passagem secreta para a cripta de mais de 500 anos. Em uma impressionante revelação, deparam-se com o corpo de um cavaleiro templário, preservado ao longo dos séculos, deitado sobre o mausoléu. Scarlett pede que desliguem as lanternas, o que lhes permite enxergar uma superfície translucida do outro lado da gruta, acessível por um lago interno. Conforme esperado, a passagem dá para uma cela cheia de barras de ouro e a pedra filosofal, um objeto semelhante a um amuleto. Tão encantada com a descoberta, Scarlett não percebe quando os demais exploradores começam a saquear todo o ouro que conseguem carregar. Ela ainda exclama para que não toquem no tesouro, mas já é tarde. A parte superior da gruta desmorona sobre suas cabeças.

Surpreendente prova do poder da pedra filosofal, Scarlett esfrega o amuleto nas palmas das mãos e depois aperta o braço machucado de uma das moças participantes da equipe. Os ferimentos imediatamente cicatrizam. Embora tenham supostamente encontrado a pedra filosofal, o desmoronamento os obriga a procurarem por uma saída alternativa. De fato, existe tal passagem, onde restam declinados trechos próprios da Alquimia. "Assim no Céu como abaixo" significa que embora desejem voltar para a superfície de Paris, a única porta existente encontra-se a seus pés. Os exploradores descobrem mais um poço, que os leva ainda mais pelas entranhas da terra. George interpreta o aviso na entrada, "Abandone toda a esperança, vós que entrais aqui". De acordo com a mitologia, a mensagem está escrita na entrada do inferno. Ao adentrar pela "passagem", a garota membro da equipe é atacada e morta, a cabeça repetidamente batida contra a rocha por "La Taupe" (ou seu fantasma). No caminho para as profundezas, o grupo segue descendo por infindáveis poços. Benji é o próximo a morrer, empurrado em um buraco pela moça misteriosa que nos lembramos de ter visto no início, quando Scarlett, George e Benji visitaram o La Vitrine. À medida que exploram o complexo, compreendem que o lugar usa seus segredos mais inconfessáveis para desestabilizá-los. O rapaz que sugeriu a Scarlett o nome de Papillon como candidato a guia ressurge. Aprendemos que é um fantasma do passado de Papillon, um garoto que morreu tragicamente dentro de um carro em chamas, acidente causado não intencionalmente pelo guia. Nós o vemos ardendo dentro de um carro envolto em chamas, e ao se deparar com a surreal cena, Papillon grita que a culpa não foi sua. O guia é arrastado por sombras demoníacas que o carregam para dentro do fogo enquanto protesta inocência. George é atormentado por aparições do irmãozinho afogado, mas Scarlett procura lembrá-lo de que as catacumbas estão usando seus traumas para mexer com a cabeça.

A esta altura, só restam três pessoas nas catacumbas - George, Scarlett e Zed, o "Segundo em Comando" de Papillon. Com o cerco das trevas se fechando, George se abre para Scarlett e lhe confessa que a semana que passou a seu lado na Turquia foi a melhor de sua vida. O labirinto não custa a afetar a cabeça de Zed também. Na sequência mais apavorante, o trio se depara com uma criança metida em capuz, sentada em uma cadeira. Zed a reconhece como um filho indesejado: no passado, engravidara a namorada, porém despreparado para as responsabilidades, preferira deixar o bebê sob os cuidados da mãe, deixando ambos para trás. Agora, o remorso voltou para consumi-lo. Gárgulas assustadoras ganham vida, uma delas mordendo George no pescoço, a ponto de tirar carne. Seriamente ferido, George precisa do milagre da Pedra Filosofal. Ao usar o amuleto em vão, Scarlett percebe que foi vítima de um ardil. Ela apanhou um amuleto falso, não a verdadeira Pedra Filosofal. Ela suplica que Zed cuide do companheiro enquanto retorna pelo labirinto, para a cripta original, de onde pretende encontrar a verdadeira Pedra e assim salvá-lo. A sequência do retorno de Scarlett pelo labirinto rivaliza com outro excelente filme de John Erick Dowdle, "Quarentena", sobre o vírus da Raiva em um condomínio fechado tornando os moradores zumbis. O puro desespero também merece os mesmos elogios que o segmento "Safe Heaven", de "V/H/S 2" (quem assistiu ao filme ou leu minha resenha a respeito entenderá do que estou falando). O labirinto canhoneia a exploradora com imagens sinistras, a mais bizarra quando encontra uma figura balançando sob a corda, e ao retirar o capuz pensando tratar-se do pai vê a si mesma. Ela acaba encontrando a verdadeira Pedra Filosofal através do reflexo de um espelho, e cumprindo o intento do desafio - rezam os símbolos inscritos na tumba "Pela retificação, encontrarás a pedra escondida" - finalmente fazendo as pazes com o passado ao se deparar com o corpo do pai e lhe pedindo desculpas por não ter atendido o telefone na noite em que se suicidou, tornando-se legítima possuidora da Pedra Filosofal.

Scarlett consegue voltar pelo labirinto ao ponto onde deixou George. Ela o beija apaixonadamente, e repentinamente todo o sangue e as feridas desaparecem. Há uma única saída somente, um profundíssimo poço que parece não ter fim. Scarlett explica que os três precisarão saltar, mas antes precisam se perdoar pelos eventos do passado. Ela revela a George que o rapaz só consegue enxergar o irmãozinho porque algo na morte do mesmo o atormenta, e agora precisa confessar o que exatamente aconteceu para efetivamente se libertar. "Quando meu irmão ficou com a perna presa, eu prometi que voltaria com ajuda, mas me perdi no caminho e ele se afogou", George confessa, cheio de dor. Zed desabafa sobre o filho abandonado e o quanto se arrepende por jamais ter sido o pai que o garotinho precisou. Libertados pelo poder da verdade, saltam no poço, uma queda vertiginosa e imprevisível. Milagrosamente, eles saem por um bueiro nas calçadas de Paris, vivos e gratos pela Segunda Chance. Depois de todo o Horror, só a verdade foi capaz de tirá-los das trevas. O trio se abraça emocionado, cada um com uma longa missão de reparar os equívocos do passado pela frente.

John Erick Dowdle, diretor de "Poughkeepsie Tapes", mantém vivo o estilo "found footage" com mais uma inventiva, original obra, um mix curioso de intriga internacional com tonalidades sobrenaturais. Prova da maturidade de Dowdle, "As Above So Below" mostra um cineasta bem mais à vontade e menos afoito, seguro de si e do potencial do intrigante roteiro escrito pelo próprio, que em uma única oportunidade costura elementos de grandes sucessos tão queridos, como "Os Caçadores da Arca Perdida" & "O Código Da Vinci" em um cenário semelhante ao de "O Exorcista". As pessoas apreciadoras de envolventes intrigas em torno de releituras de fatos históricos se fascinarão com essa interessante fantasia sobre a busca da Pedra Filosofal. Entusiasta confesso do estilo "found footage", Erick Dowdle, que vinha aperfeiçoando a técnica com "Poughkeepsie Tapes" & "Quarentena", realiza seu melhor trabalho até agora dentro do sistema dos grandes estúdios. Apesar de inferior a "Poughkeepsie Tapes", seu primeiro e mais impressionante filme, "As Above so Below" disputa acirradamente o "primeiro lugar de 2014" com outra obra "found footage" igualmente relevante, o fantástico "Afflicted", de Clif Prowse & Derek Lee. Não apenas rodados conforme a proposta "found footage", ambos os filmes também se parecem em termos de ambientação, com protagonistas aventurando-se em tramas internacionais cheias de mistério; "Afflicted", com seus dois melhores amigos viajando pela Europa até um deles ser mordido e virar vampiro, "As Above so Below" com a heroína na busca pela Pedra Filosofal que a leva de cavernas no Irã aos encantos da eletrizante "Cidade das Luzes", e depois `as catacumbas. 

A atriz britânica Perdita Weeks dá vida à protagonista com a entusiasmada energia de quem reconhece como um papel poderá alavancar sua promissora carreira. Mais conhecida pela performance no aclamado "The Tudors", Perdita Weeks recebeu de John Erick Dowdle seu primeiro papel de envergadura na grande tela. Aqui lembrando-me uma jovem "Katherine Heigl britânica", Perdita oferece uma performance digna de nota ao fugir de armadilhas fáceis, interpretando a personagem com modos mais suaves, agradáveis e elegantes. Em filmes parecidos, onde as rédeas acabam nas mãos de personagens femininas, os diretores tendem a construi-las como super heroínas capazes de empunhar armas de fogo ou realizar movimentos acrobáticos em cenas de luta irreais. O clichê torna-se cansativo. O diretor John Erick Dowdle e sua atriz principal evitaram a cilada, com uma protagonista que jamais soa artificial. Ao contrário, a doçura com que Perdita dá vida à Scarlett talvez represente a verdadeira "Pedra Filosofal" de Dowdle, que definitivamente contou com a pessoa e o desempenho corretos para capitanear a produção.

John Erick Dowdle ganhou uma chance no sistema dos blockbusters graças a seu inquestionável talento. Apesar de pouco visto (até hoje inédito em DVD), seu "Poughkeepsie Tapes" se tornou a lenda sobre a qual fãs de horror cochichavam. Ironicamente, foi esse pequeno filme de horror "maldito" de 2007 que despertou a atenção de gente como M. Night Shyamalan, que o escolheu a dedo para rodar "Devil". Mesmo se tratando de sistemas de trabalho tão distintos - filmar uma produção independente diverge completamente de realizar um blockbuster para a Universal -  há algo de "Poughkeepsie Tapes" que sobrevive nas incursões de Dowdle pelo cinema comercial, como "Quarentena", "Devil" e "As Above so Below", talvez o amor do diretor por clássicos do passado, impresso em discretos pequenos instantes de seus filmes, como quando em "Poughkeepsie Tapes" a melhor amiga de Cheryl Dempsey diz algo nas linhas de que "foi difícil me recordar da garota que eu amava e conhecer a mulher que voltou", que nos faz pensar em quão bons e intrigantes eram os suspenses de nossa infância, e constatar a maestria com que Dowdle sabe endereçar semelhantes sentimentos. Não apenas com suas raízes cinematográficas fincadas firmemente no fértil terreno das décadas de 70&80, quando Cronenberg, Barker, De Palma e Argento eram Reis, Dowdle se expressa com um rebuscado sabor a mais, provavelmente a melancolia tão inerente a quem ama o gênero.

Ao situar boa parte da história de "As Above so Below" no labirinto abaixo de Paris, John Erick Dowdle parece prestar uma homenagem a um clássico muito querido do passado, "Hellbound: Hellraiser 2". Assistindo ao sufoco vivido pela turma liderada por Scarlett, recordei-me da violentíssima última hora de "Hellbound: Hellraiser 2", quando as protagonistas exploram o domínio de Leviathan, o inferno descrito como um estéril, cinzento labirinto, um "coliseu infinito" perenemente mergulhado nas sombras, sobre o qual paira girando o Leviathan, uma figura gigantesca e indiferente em forma de tetraedro. Embora haja mais espaço para fantasia e imaginação no filme dirigido por Tony Randel e produzido por Clive Barker, "As Above so Below" também recaptura a claustrofobia de se penetrar em um reino onde regras de Lógica e Física não se aplicam. Em ambos os filmes, ainda mais em "Hellbound: Hellraiser 2", pesando sobre as imagens delirantes, um clima tétrico e pesado acompanha os personagens ao longo da "descida". Não obstante o diretor Dowdle mirar nos blockbusters mais clássicos estilo "Os Caçadores da Arca Perdida", "As Above so Below" quase ensaia o impacto de "Hellbound: Hellraiser 2". Mesmo quase trinta anos após o lançamento, todavia, a crueldade e a força de suas imagens simultaneamente gráficas e erotizadas ainda estão para ser rivalizadas, e talvez ciente disso, Dowdle nem tentou, limitando-se a discretamente a acenar com o chapéu para um dos clássicos que definitivamente fizeram parte de sua formação de cineasta.

O "rebuscado sabor a mais" a que me refiro alguns parágrafos acima se destaca na primeira metade de "As Above so Below", antes da descida às catacumbas. Como poucos diretores conseguem, Dowdle aproveita ao máximo as oportunidades que a ambientação da história permite. Há algo no Velho Continente, em cidades tão românticas quanto Paris, que faz o gênero se ver "em casa" novamente. Não só dos antigos filmes de Dario Argento me recordei, como também experimentei um tipo de eletricidade que revisito todas as vezes que leio a coletânea de Clive Barker "Books of Blood". De certa forma, "La Femme du Vème" foi outro suspense recente que também reuniu as qualidades que o aproximaram das tintas do mestre britânico do Horror. As catacumbas podem parecer o último lugar que você gostaria de visitar se fosse fazer turismo em Paris, mas então por que virou ponto turístico a ponto de atrair backpackers de todos os cantos do mundo?Existe um estranho apelo romântico na coexistência de um lugar que há séculos serviu de morada final para as pessoas vitimadas pela Peste & as delicadas ruas com pequenos, antiquíssimos prédios, seus cafés e tabacarias, a ideia da Morte convivendo harmoniosamente com a criativa boemia artística e os encantos da "Cidade das Luzes" acima.

Os dois contos que mais têm sua linguagem traduzida para celuloide são "The Life of Death" & "New Murders in the Rue Morgue". As catacumbas como pano de fundo remetem a "The Life of Death", uma gótica história sobre uma mulher aos seus 30 e tantos chamada Elaine, que recentemente teve o útero extirpado para livrar-se de um tumor. Profundamente deprimida, evita a companhia dos colegas de trabalho e rechaça as investidas do ex-noivo, que deseja reatar. Quando o tumor no útero havia sido descoberto, ele terminou o relacionamento, justificando-se no desejo de ser pai e a impossibilidade de realizar o sonho agora que o problema no útero a impediria de gerar vida. Apesar de arrependido, seu remorso não basta para demovê-la do ressentimento. Mesmo livre do câncer, Elaine se mantém distante e reservada, e os colegas constantemente a flagram de olhos marejados. Uma manhã, ela é atraída pelo rumor de trabalho da Prefeitura, demolindo uma antiga igreja de uma pracinha, no centro de Londres. Curiosa, Elaine visita o cenário e conhece um cavalheiro muito educado, que lhe conta que ali se encontra para visitar o lugar por uma última vez, pois logo a Prefeitura interditará a praça por uma questão de saúde pública: os trabalhos de demolição instabilizaram a fundação, e abaixo da igreja, há catacumbas usadas na época da Peste Negra para guardar os mortos. Naquela noite, intrigada com a conversa sobre catacumbas, Elaine retorna à pracinha, e tirando proveito da distração dos funcionários, ultrapassa as faixas e desce até às mesmas. Ao enxergar os restos fossilizados daquela gente, descobre que a Morte não é tão chocante assim. Inesperadamente, após a experiência, retorna para casa revigorada e até mesmo feliz. Ela redescobre o prazer de viver, permite aflorar a sexualidade, e vez ou outra, ao regressar `a pracinha, encontra seu admirador, com quem segue conversando e paquerando docemente. Enquanto Elaine volta à vida com muita saúde e disposição, os colegas do trabalho passam a cair, um a um, vitimados por uma estranha doença semelhante à Peste. Barker jamais responde a questão proposta, mas nos guia sutilmente à conclusão de que o cavalheiro galanteador não seria nada menos do que A Morte. Vários elementos da escrita de Clive Barker me deixam boquiaberto, talvez os mais impressionantes a habilidade para sustentar suspense a ponto de tornar duas mídias tão distintas - literatura & cinema - praticamente a mesma coisa, a naturalidade com que mescla o absolutamente fantástico aos dramas banais do cotidiano, e a maneira apaixonante com que escreve personagens femininas. Barker afasta as fórmulas fáceis, com seu jeito de escrever mulheres inesquecíveis, jamais vulgares, sempre contradições vivas. Ao ler "The Life of Death", praticamente vi passar diante de meus olhos o "filme" que Barker estava "rodando". Enxerguei nitidamente a atriz Naomi Watts como "Elaine Ryder", a interação desajeitada mas contraditoriamente confortável e asseguradora entre a Elaine e o cavalheiro, quando se conhecem pela primeira vez, e o desenrolar da trama, a cada página mais intrigante, mais atmosférica. Não apenas o espírito melancólico evocado por Dowdle ao filmar "As Above so Below" juntou as peças na minha cabeça, como também a questão das catacumbas, tão proeminentes em ambas as histórias, uma escrita & a outra contada por imagens em movimento. A influência de Edgar Allan Poe sobre o imaginário de Clive Barker jamais foi questionada pelos estudiosos de sua obra; em "New Murders in the Rue Morgue", o escritor britânico escancara a admiração pelo artista do macabro que o antecedeu readaptando um de seus mais conhecidos textos, "Os Assassinatos na Galle Morgue", sobre um detetive que investiga uma série de bizarros assassinatos a golpes de navalha, e vem a descobrir que o maníaco era um pobre e confuso gorila, que perdera o controle ao encontrar uma navalha. Em "New Murders in the Rue Morgue", Barker contava a história de três amigos - dois homens e uma mulher - que haviam passado a melhor época de suas vidas, a juventude, na Paris pré-guerra, e agora se reencontravam na "Cidade das Luzes" muitas décadas após as férias que tinham mudado suas vidas, em circunstâncias sombrias. Lewis, o protagonista, jamais deixara se apagar a centelha do amor por Catherine, irmã de Philippe. Muitos anos mais tarde, agora aos 73 anos, Lewis é procurado por Catherine. Philippe foi preso, acusado de estraçalhar a golpes de navalha a jovem amante. Ao mergulhar fundo nas investigações e escutar histórias sobre um cavalheiro encorpado e monossilábico que fede à excesso de perfume, Lewis descortina lentamente a horrorosa verdade. Philippe crescera com as histórias de Lewis sobre o conto de Edgar Allan Poe, "Os Assassinatos na Galle Morgue", na cabeça. Ele costumava escutar eletrizado à maneira como o amigo falava sobre o gorila e a navalha, o que semeara na sua mente perturbada a ideia de tentar a mesma empreitada. Paciente e secretamente, treinou um gorila para portar-se como cavalheiro, criando um monstro nos moldes da criatura descrita por Edgar Allan Poe. Dado a moças novas, Philippe se apaixonou por uma sedutora estudante parisiense de Medicina, para quem arrumou um apartamento para os encontros amorosos. Quando o gorila - agora uma besta de natureza travestida, metido em trajes de cavalheiro vitoriano e capaz de articular frases menos complexas - assistiu ao amor de seu mestre pela mulher, ficou enlouquecido, estraçalhando a estudante de Medicina e dando início ao massacre, assassinando muitas prostitutas da região conforme o mesmo modus operandi. O proveito magistral de Paris e seu clima de mistérios e magia salta das páginas, e pelas lentes de John Erick Dowdle, na primeira metade de "As Above so Below", salta das telas, colocando-nos de imediato bem no meio dessa melancólica jornada que poderia muito bem ter saído da mente angustiada de um poeta tão atormentado quanto Barker ou Poe. Quando Scarlett e os exploradores descem às catacumbas, um certo desânimo abateu-se sobre minhas expectativas, pelo menos por um breve momento. Eu temia que a parte fotográfica tão maravilhosamente capturada por Dowdle, como na cena entre Scarlett e George ao alto da catedral, assistindo ao encanto dos parisienses quando os sinos voltam a bater, ou o ritmo ágil de empolgação e mistério deixassem saudades, ficassem para trás. Felizmente, Dowdle sustentou o ritmo, mas não há como negar a supremacia da primeira parte sobre o segmento final.

Para quem jamais se esqueceu daquelas saudosas aventuras sobre tesouros e civilizações perdidas e também "aprecia o prato" com uma pitadinha de Horror, "As Above so Below" é o filme da vez, um motivo de celebração. Filmes do tipo acontecem raramente. Adicionem ao desinteresse dos grandes estúdios a marcação cerrada que fazem sobre "diretores artísticos", ou seja, cineastas que prezam por imprimir identidade à obra, por maior que seja a escala de produção, e compreenderão o milagre da existência de "As Above so Below". O mesmo diretor deve lançar seu próximo filme em breve, "The Coup" (ou "O Golpe"), estrelando Owen Wilson, sobre uma família norte-americana viajando por um país estrangeiro, de férias, quando um golpe de Estado derruba o governo e causa caos, os rebeldes executando sumariamente os estrangeiros. Aproveitando o ensejo, 2015 deverá ser um ano maravilhoso para o gênero, que segue na curva ascendente graças à nova geração de diretores que trouxe consigo o melhor dos mestres do passado. Entre os diversos filmes interessantes, há os de lançamento mais imediato, e outros a que só nos resta aguardar. Entre os mais próximos, eu acho que "Unfriended" deixará uma forte impressão, sobre seis adolescentes perseguidos pelo fantasma de uma moça que se suicidou um ano atrás, depois que os amigos a haviam filmado alcoolizada, postado o vídeo na internet como brincadeira e a chamado de palavras de baixo calão. De muitas maneiras, a proposta se assemelha `a do ótimo "Ouija O Jogo dos Espíritos". Mais distante, no grande esquema das coisas, há "Jacqueline Ess", a adaptação de um dos melhores contos de Clive Barker, um veículo para a atriz Lena Headey, a Cersei de "Game of Thrones", que viverá a heroína da história, a "Jacqueline Ess", uma mulher que somatiza as frustrações do casamento e as traições do marido no poder telecinético sobre a matéria. Barker jamais escreveu com tanta propriedade sobre mulheres excepcionais. Resta imaginar se o diretor da adaptação enxergará os detalhes que tornam o escritor - e as mulheres concebidas por sua mente - tão singulares.

quarta-feira, 14 de janeiro de 2015

"La Femme du Vème" (2011, Pawel Pawlikowski) Fantasia & Realidade colidem neste filme de horror sobre um escritor norte-americano em busca de si mesmo na encantadora "Cidade das Luzes"!

Tom Ricks (Ethan Hawke, novamente se saindo muito bem em um grande filme de horror) é um escritor norte-americano que chega a Paris obstinado em reconectar com esposa e filha. Pela dinâmica do reencontro, deduzimos que Ricks se separou da mulher em péssimos termos: ao bater à porta para ver a filha Chloe, a ex-mulher Nathalie reage furiosa e tenta fechá-la na sua cara. Mesmo insistindo que só deseja entregar um ursinho de pelúcia para a menina, Ricks precisa deixar o lugar com pressa, pois a mulher liga para a Polícia. O escritor ainda consegue falar com a filha na calçada, quando está chegando da escola. Aprendemos que recentemente Ricks enfrentou severos problemas psiquiátricos, pois a menininha pergunta se o pai ainda está doente. Ricks explica que melhorou e que, diferente do que a mãe contara, não esteve preso, apenas no hospital, por algum tempo. Exausto, Ricks cochila dentro do Ônibus, e ao ser acordado no final da linha, dá conta de que suas malas foram carregadas. De uma hora para outra, o americano vê-se numa "sinuca de bico", praticamente sem dinheiro algum na carteira. Ao entrar em um rústico café parisiense, que também serve de albergue, Ricks explica sua difícil situação ao Senhor Sezer (Samir Guesmi), o dono do estabelecimento, que concorda em acomodá-lo imediatamente e receber o dinheiro só depois, quando Ricks puder quitar seus débitos.

Ricks sofre com a ruptura da unidade familiar, mas sabe que é muito cedo para tentar nova reaproximação. Ao longe, assiste a pequenas miscelâneas da vida da filha, como quando a vê deixando o apartamento para a escola. Um dia, ao visitar uma pequena livraria, Ricks é reconhecido pelo dono como escritor de um romance de sucesso. Ele o convida a um encontro literário de artistas. Meio a contragosto, aceita um bilhete com o endereço e promete aparecer. Com o passaporte retido pelo Sr. Sezer até a quitação dos débitos, a sorte de Ricks muda para melhor quando o Senhorio acena com uma oferta de emprego: basicamente, tudo o que Ricks precisaria fazer seria monitorar imagens de câmeras de segurança, em uma salinha de um comércio particular, durante toda a madrugada, deixando aqueles que trazem a "senha" correta - "Vim ver o Sr. Monde" - entrar. Por 50 euros a noite, Ricks topa o desafio.

Ricks comparece ao sarau e se sente um pouco intimidado em meio a tantos intelectuais. Entediado, subitamente tem a atenção capturada por uma dama muito elegante (Kristin Scott Thomas) que também parece alheia às rodas de conversa, quase como um fantasma. Ele a segue ao terraço, que dá para uma vista fantástica da Torre Eiffel. Ricks se apresenta à dama, que parece ter subido à cobertura apenas para que conversassem mais reservadamente. Ela se chama Margit Kaddar, viúva de um escritor húngaro que fez muito sucesso na América, nos anos 90. O breve encontro é interrompido com um doce flerte, quando Margit lhe entrega seu número e pede que a procure, "Qualquer horário depois das 16:00", ela orienta.

Ricks redescobre a paixão para escrever, redigindo seus pensamentos em um bloquinho ao longo das exaustivas horas de trabalho na madrugada. O escritor aparece nas imediações da escola e durante o recreio consegue conversar um pouquinho com Chloe. Ania, uma jovem polonesa que trabalha no café do Sr. Sezer, aproxima-se do americano com a desculpa de lhe entregar as folhas que o escritor deixara no bar, e os dois começam a se conhecer melhor. Naquela semana, intrigado pelo convite de Margit, Ricks liga para o número fornecido, mas ninguém atende. No cartão, consta o endereço do apartamento, e assim sendo, Ricks resolve visitá-la.

Margit não parece surpresa quando ele bate à porta, como se já esperasse pela visita. Eles fazem amor, e quando Ricks a deixa, sabe que retornará. Ania aborda o americano uma manhã para contar que encontrou seu romance num sebo local. Ricks pede que Ania leia um trecho, e após esperá-la terminar, diz que o ritmo fica ainda mais lindo na língua polonesa. Ricks segue encontrando Margit, e por meio dessas visitas, vamos aprendendo mais sobre o que se passa por trás de seu silêncio. Ele revela que se sente como uma versão fictícia de si próprio, e que seu "verdadeiro eu" provavelmente ainda se encontre na América, levando uma vida comum ao lado da filha. O frágil estado psicológico do rapaz logo começa a desmoronar. Durante o turno da madrugada, passa a ser perturbado por barulhos vindos do corredor. Chegando ao albergue depois de uma noite estressante, é visitado por Ania. Ela o chama para um quarto vazio, para conversar, e os dois terminam se beijando.

Ricks e Ania passeiam sobre os trilhos, ao amanhecer, e namoram no bosque. Em mais uma discreta, reveladora cena, ao comentar a obra de Ricks, a moça diz que o escritor descreve sentimentos tão ricamente que lhe deve parecer difícil diferenciar realidade de fantasia. Ao retornar para o albergue, Ricks é acostado pelo morador mal encarado do apartamento ao lado. O homem lhe diz que os viu namorando, e que o americano nem imagina o tamanho da encrenca em que se meteu, pois Ania é esposa do Sr. Sezer. Ele chantageia o escritor, dando-lhe 24 horas para arrumar mil euros, senão Sezer, um homem explosivo, ficará sabendo da verdade. Na manhã seguinte, encontra um lembrete sob a porta "Mil euros, ou você é um homem morto". Ao encontrar-se com Margit na tarde daquele mesmo dia, Ricks desabafa, e lamenta "Você não imagina do que essa gente é capaz". Os dois fazem amor, e Margit profetiza "Eles é que não sabem do que você é capaz". Quando Ricks volta para o apartamento, encontra o vizinho barbaramente assassinado dentro do banheiro. A Polícia o questiona acerca do desentendimento entre os dois, e tendo encontrado digitais do americano na nota escrita pela vítima, detêm-no temporariamente. Ricks fornece o endereço de Margit, seu álibi para o horário em que o assassinato provavelmente se deu.

Ricks aguarda na cela por um novo interrogatório. Conduzido novamente à presença do inspetor, ele lhe exibe uma foto de Margit e pergunta se a reconhece. O escritor confirma que a mulher na foto é a mesma com quem vem se relacionando, para a incredulidade do inspetor, que revela que Margit Kaddar se suicidou em 1991, depois que o marido e o filhinho morreram atropelados, não sem antes ter degolado a garganta do motorista bêbado. Abalado, Ricks não compreende o que se passa, mas então é liberado quando a perícia identifica que a faca utilizada no homicídio pertence a Sezer. O dono do albergue é conduzido à delegacia aos gritos, acusando o americano de ter armado uma cilada para que "pagasse o pato". Ricks tem consciência de que seu estado psicológico vem se corroendo. Ao retornar ao endereço onde por todas as tardes fez amor com Margit, um cavalheiro, morador do mesmo prédio, declara que o apartamento encontra-se fechado há décadas.

Ricks espera anoitecer para vasculhar o lugar, e desta vez a encontra a sua espera. Confrontada com a acusação de Ricks, de que ela não pode ser real, Margit responde que é o amor mais real que o escritor encontrou em toda a vida, e tendo ambos perdido tanto, agora se pertencem. Assustado, ele pede que Margit mantenha-se distante. A trama complica-se quando Ricks é despertado por policiais, que o alertam que Chloe está desaparecida. O dia está amanhecendo, e ao ser escoltado pelos policiais pela calçada, Ricks vê a mulher no banco de uma das viaturas. Emocionado, pede que a ex-mulher abaixe o vidro, quando promete que recuperará a criança. Certo de que Margit tem alguma responsabilidade no sumiço, Ricks retorna ao apartamento, onde a confronta, suplicando para que devolva a menina. Indiferente ao desespero do americano, ela o aconselha a desistir da filha e da ex-mulher, o lugar de Ricks agora é a seu lado. Naquela mesma manhã, vemos que, felizmente, nada aconteceu à menininha: ela havia saído para passear, e se perdera no bosque. Um carro de Polícia avista a criança e a leva para a mãe. Ricks assiste ao feliz reencontro a uma certa distância, aliviado. Ao final, escreve uma carta à menina, despedindo-se. Ricks aceita que há um traço muito sombrio de sua personalidade que só coloca as pessoas a quem ama em risco, e portanto se afastará por tempo indeterminado. Ricks pede para que Chloe conserve consigo sua parte boa, a parte de si que enxerga a vida sob um prisma mais ingênuo e doce. Incapaz de dissociar-se de suas fantasias, Ricks desiste do relacionamento com Ania. O filme termina ao vermos o escritor ascendendo ao apartamento da misteriosa dama, para mais uma tarde de amor, sem respostas para as muitas perguntas que a história deixa.

Atmosférico filme de suspense que novamente aproveita o charme natural do ator Ethan Hawke no gênero, "La Femme du Vème" é uma raridade em meio a thrillers tão genéricos de hoje. Saudosos de uma época em que histórias misteriosas realmente absorviam as pessoas têm muito a comemorar com este envolvente suspense lançado no Brasil sob o título "Estranha Obsessão". Em termos de estilo, "La Femme du Vème" salta aos olhos como uma espécie de versão modernizada de "Inverno de Sangue em Veneza", de Nicolas Roeg. Mais alinhado ao estilo dos antigos film noir da década de 70, o diretor Pawel Pawlikowski criou uma obra intrigante que nos desafia a prever o próximo desdobramento, ao mesmo tempo que não temos a mínima ideia de onde parará essa empolgante valsa na escuridão. Hawke, um ator muito querido pela crítica, recentemente descobriu-se em casa no gênero Horror protagonizando com muita autoridade os ótimos e diversificados "Uma Noite de Crime" & "A Entidade". Aqui, empresta a sua persona de "herói relutante" estilo "Harrison Ford", a uma história igualmente assustadora, porém mais estilística e elegante. Apesar de refrescante em tom, é necessário saber o que esperar, porque as qualidades que o tornam especial são as mesmas que levaram algumas pessoas a ignorá-lo. Semelhante ao ocorrido com "Under the Skin", de Jonathan Glazer, - obra prima para uns, entediante para outros - "La Femme du Vème" não é um filme de terror, mas não duvidem que se trata de um filme aterrorizante, e sim, há uma diferença entre filmes de terror & aterrorizantes, muito embora algumas vezes confundam-se.

Coisas como "Ouija O Jogo dos Espíritos" & "A Entidade" ilustram o que há de mais interessante em filmes de terror, o tipo de programa que você precisa fazer no cinema acompanhado por amigos: não há nada mais divertido do que assistir a um bom filme no escurinho do cinema, uma experiência completa onde, juntamente ao restante da plateia, você reage ao que é apresentado conforme as direções que o diretor deseja te levar, de modo que você rói as unhas, pula na poltrona, assusta-se, até mesmo dá risadas e, no total, diverte-se pra valer!O que eu costumo chamar de filmes aterrorizantes são obras diferentes, vez que raramente exibidas nos cinemas, e por não caírem no gosto popular, sobre as mesmas pouco se escuta. A peculiaridade que diferencia filmes de terror de aterrorizantes é a forma como estes deixam um sabor amargo na boca, um gosto que leva tempo para deixar - às vezes, não há tempo no mundo que cure as marcas de algo tão psicologicamente devastador. Recentemente, o polêmico "Under the Skin", um "conto de fadas" sobre uma extraterrestre seduzindo homens nas rodovias da Escócia, assaltou como uma avalanche as salas do circuito alternativo, dividindo pessoas entre grupos daqueles que o amaram, o odiaram, e aqueles que até hoje não sabem ao certo como se sentir a respeito. Unanimemente, uma vez que se assiste ao trabalho de Jonathan Glazer, não há como se apagar tão cedo da cabeça a imagem de "Isserley", a extraterrestre andando entre nós, um "milagre do século XXI" tão espetacular quanto imperceptível em meio a manhãs nubladas e frias no centro monolítico de Glasgow. Há os filmes ainda mais raros que conseguem simultaneamente perturbar e reunir as qualidades de um grande blockbuster. O talentoso James Wan, diretor de "Invocação do Mal" & "Sobrenatural", cria cinema pipoca com o senso de estilo que imprime sua identidade ao frame, lançando obras claramente pessoais que também fazem centenas de milhões nas bilheterias. "Hellraiser" & "Hellbound: Hellraiser 2", do mestre do macabro Clive Barker, não apenas comprova a diferença acima, como revela lições interessantes sobre arte e a expressão da mesma a um nível muito pessoal. Quando os direitos sobre os personagens foram vendidos a produtores norte-americanos e novos roteiristas tentaram "retomar" de onde Barker havia parado com "Hellbound: Hellraiser 2", as continuações foram ficando gradualmente menos relevantes, por mais que "Hellraiser 3", por exemplo, tenha feito bom dinheiro nas bilheterias. O filme de Barker, a adaptação de seu romance "The Hellbound Heart", era uma jogada de risco, prova disso o orçamento reduzido que recebeu para rodá-lo. Quis o destino que o conto moral sobre um triângulo amoroso proibido, segredos inconfessáveis e fetiches sadomasoquistas caísse no gosto popular, por mais que as pessoas não soubessem pontuar ao certo o quê em "Hellraiser" & "Hellbound: Hellraiser 2" as havia cativado tanto. Quando os produtores americanos selecionaram um ou outro elemento do original para retomar a franquia - no caso, os cenobitas exclusivamente, deixando de lado os pontos verdadeiramente explosivos propostos pelos dois primeiros - criaram, a partir de "Hellraiser 3", filmes de terror que nem de longe pareciam igualmente perturbadores. Apenas aqueles que verdadeiramente saíram marcados pela obra de Barker reconhecerão que os cenobitas jamais foram os monstros da história. Eles eram apenas seres mágicos que faziam uma "participação especial" em um conto hedonista sobre amores não correspondidos, fetiches e desejos proibidos.

"La Femme du Vème" não pertence ao gênero Horror, todavia há elementos da história que o tornam um filme aterrorizante. Em termos de estrutura, faz-nos pensar bastante no antigo, excitante film noir de Alan Parker "Coração Satânico", com Mickey Rourke. Assim como o clássico de 1987, o protagonista de "La Femme du Vème" está em busca de respostas tão horrorosas que faria melhor não as encontrando. Contar uma história pela ótica de um protagonista emocionalmente instável é desafio para poucos diretores. David Cronenberg, por exemplo, fez bonito com seu "Spider", de 2002, um suspense desenrolado diante dos olhos de um homem esquizofrênico, personagem de Ralph Fiennes. Também digno de nota, ambos os filmes, "Coração Satânico" & "La Femme du Vème", oferecem um "saborzinho" de road trip, de uma viagem assustadora sem destino certo. Em "Coração Satânico", o detetive Harry Angel, personagem de Mickey Rourke, aceita rastrear o paradeiro de um desaparecido croner chamado Johnny Favourite, o que o arremessa a uma jornada de auto descobrimento que o leva de Nova York ao interior do Sul dos Estados Unidos, com o clímax em Nova Orleans, tudo no ano de 1955, menos de dez anos após o fim da Segunda Grande Guerra; em "La Femme du Vème", o escritor Tom Ricks busca reconectar com a ex-mulher e a filha na sempre romântica & misteriosa Paris, mas ao conhecer a enigmática dama vivida por Kristin Scott Thomas acaba por encontrar diante de si fragmentos do quebra cabeça de sua própria vida, elementos que preferiu descartar por muito tempo e agora se vê forçado a redescobrir. Ainda em comum, os dois film noir evocam como poucos um extraordinário feeling de se estar vivenciando uma outra época & lugar, "Coração Satânico" no Sul dos Estados Unidos dez anos após o fim da Segunda Grande Guerra & "La Femme du Vème" na "Cidade das Luzes" no começo da nova década, em 2010.

Pawel Pawlikowski não apenas rodou um impressionante suspense; talvez involuntariamente, tenha criado como poucos imagens muito impressionantes de Paris, fotografias que publicitários contratados pela Prefeitura teriam dificuldade de reproduzir tão bem para uma campanha turística. A saga de Ricks o leva desde o tenso desembaraço na Imigração no começo do filme aos cantos mais diversificados da "Cidade das Luzes", ora espaços pequenos e íntimos, ora grandiosos a se perder de vista, de mesas rústicas em pequenos cafés `as ruas e calçadas que aprendemos a amar por imagens em livros ou filmes, mas até as conhecermos pessoalmente, não nos damos conta de que são ainda mais maravilhosas do que pensávamos, e aí estou falando do Arco do Triunfo, Champs Elysées, o Castelo de Versalhes, a Catedral de Notre Dame… Nenhuma outra produção desde "Albergue Espanhol", de 2002, fez tanto pelo turismo de um local através de imagens.
"La Femme du Vème" é um convite explícito `a aventura na Europa. Backpackers, fiquem certos de que esse estiloso suspense dará aquele empurrãozinho extra de que precisam para vestir as mochilas e partir para se aventurar pelos cantos mais fantásticos deste enorme, belo mundo!Aproveitem bem, pois cada dia fica tarde demais.

Falando de Europa, não é de hoje que o astro Ethan Hawke se move com desenvoltura e autoridade em meio a cenários tão atemporais e repletos de história & significado. Se cada ator tivesse de ser lembrado por um único filme, seu melhor, a primeira imagem que viria `a mente quando se falasse de Ethan Hawke seria a de suas andanças ao lado de Julie Delpy pelos recantos mais românticos de Viena em "Antes do Amanhecer" (foto), a ode do diretor Richard Linklater ao amor jovem & eterno e a um mágico momento de nossas vidas - 20 e poucos, no auge da saúde & juventude, quando o mundo resume-se ao que está por vir, é só expectativas, sonhos em vias de se realizar - a que, mais tarde, uma vez o tendo perdido, tentamos reencontrar, sem sucesso. Em "Antes do Pôr do Sol", a continuação de 2004, dez anos depois do primeiro portanto, os dois heróis do original, agora aos trinta e poucos, tendo colecionado sua cota de desapontamentos e desilusões, reencontram-se novamente, desta vez na mágica Paris, o mesmo cenário que mais tarde serviria de plano de fundo para "La Femme du Vème", e no decorrer de uma tarde, precisam decidir se sós lhes restam as recordações daquelas férias em 1994 ou se têm um futuro a compartilhar. No mais recente, "Antes da Meia Noite", nós os reencontramos de férias na Grécia, ambos aos quarenta, pais de lindas filhas gêmeas, enfrentando - e vencendo - as pequenas crises que aparecem para qualquer casal e apenas os deixam mais fortalecido. "La Femme du Vème" dá a Hawke a oportunidade de caminhar por espaços semelhantes cruzados com Julie Delpy no segundo filme da série, dessa vez em uma história de amor sombria e misteriosa, porém igualmente impactante em termos de estonteante cinematografia.

O diretor Pawel Pawlikowski merece elogios pela maturidade com que lida com o material, a todo momento confiando no talento de seu elenco e na qualidade do roteiro e jamais se perdendo com violência gratuita ou excessos que não teriam beneficiado a história de modo algum. Há cineastas igualmente talentosos que precisaram de mais tempo para confiar no próprio talento para "largar as armas", ou melhor, os excessos. Tomemos como exemplo o francês Pascal Laugier, que rodou um dos filmes mais brutais de todos os tempos, o desnecessário "Martyrs", porém só foi criar algo humana & sentimentalmente relevante quando exercitou a compaixão e a elegância com o intrigante "The Tall Man - O Homem das Sombras", um filme tanto de terror quanto aterrorizante (pelas razões certas), com muita sensibilidade abordando questões difíceis sobre pais e filhos, adoção, e a falibilidade daqueles a quem crianças depositam toda a expectativa de proteção e segurança. Por alguns anos, o nome de Laugier esteve associado ao ainda não produzido remake de "Hellraiser"; por uma razão ou outra, as negociações entre a Dimension e o cineasta ruíram, definitivamente uma pena para aqueles que amam a obra de Clive Barker e compreendem que a adaptação de um romance tão complexo e psicologicamente intrincado precisa de um homem com sensibilidade por trás das lentes. O gótico "La Femme du Vème" podia valer a Pawlikowski um lugar entre os concorrentes para o cargo. Se produzido da maneira correta - ensaiando um retorno `as raízes melancólicas dos dois primeiros, devolvendo o enredo aos britânicos - Pawlikowski se sentiria em casa para realizar algo especial. Em meu amor pelo cinema, uma chama que remonta a minha infância, "Hellraiser" & "Hellbound: Hellraiser 2" são os dois filmes a que adoraria ter emprestado a minha visão, até pelo fato de o poder visceral dos dois derivar de uma época quando mais estamos abertos à "magia". E antes que os amigos digam agora, brincando, que "Agora vem a parte onde ele vai dizer que escolheria Jennifer Connelly para o papel de Julia", estão cobertos de razão!Se ela já é uma mulher fantástica e uma atriz talentosíssima, agora adicionem a tudo o encantador sotaque britânico que a Jennifer teria de fazer para o papel. Ela arrebataria vítimas muito antes que o primeiro golpe de martelo descesse sobre suas cabeças ou lhes desse o beijo que lhes drenasse sangue, nutrientes e vida juntos.


Aproveitando o mote de "Hellraiser" & Clive Barker, o enredo de "La Femme du Vème" muito se assemelha a um daqueles melancólicos, eletrizantes contos que Barker escreveu para suas coletâneas "Books of Blood". Em diversos momentos ao longo do filme de Pawlikowski, pensei em alguns de meus preferidos, como por exemplo "Novos Assassinatos na Galle Morgue", pelo fato de a história também se desenrolar na "Cidade das Luzes", e "Jaqueline Ess", no que importa `a presença misteriosa da dama vivida por Kristin Scott Thomas e a maestria com que Barker cria personagens femininas fascinantes em força e crueldade. Como admirador de sua obra, eu considero filmes estilo "La Femme du Vème" joias raras, pois mesmo sem ligação alguma com o escritor britânico, evocam um estilo próprio do mesmo. Recentemente, o novo horror de John Erick Dowdle, "As Above So Below", também capturou o feeling de uma autêntica obra gótica estilo Barker ou Edgar Allan Poe, e portanto subiu a minha lista dos melhores do ano. "As Above So Below" será o próximo filme sobre o qual espero falar no meu blog. Creio que o que as linhas de Barker e filmes como "La Femme du Vème" têm em comum seria a propriedade de nos absorver com tramas onde, por mais contraditório que pareça, muito acontece quando menos parece acontecer. Dos encontros de Rick & Margit emana uma peculiar quietude, pois mesmo isolados no mundo externo por cortinas muito vermelhas contra molduras de janelas, há um tipo de eletricidade antecedente à tragédia permeando o ar, e você simplesmente sente que o horror é eminente. Simultaneamente, assim como o anti herói, experimentamos os mesmos temores ao vê-lo circulando por entre pequenos cafés parisienses enquanto a inquietante historicidade daqueles prédios públicos imortais os torna o palco perfeito para um conto sobre amores proibidos, desejos inconfessáveis e memórias reprimidas.

A falta de resolução aproxima "La Femme du Vème" de seus pares - os chamados filmes aterrorizantes de arte que terminam sem nos dar explicações, estilo "Under the Skin". Seria Margit um segmento da imaginação de Ricks?E se Sim, como explicar que a mulher na foto apresentada pelo inspetor corresponda exatamente à forma como Ricks a idealizou, ainda mais levando-se em conta que jamais a conhecera?Qual a natureza dos problemas psiquiátricos que o levaram a permanecer por tempo indeterminado em uma instituição?Pawel Pawlikowski e Douglas Kennedy, autor do romance original, preferiram nos reservar a intrigante tarefa de preencher lacunas, por mais fantásticas que as perguntas soem, por mais incompreensíveis que as respostas pareçam. Talvez os motivos permaneçam encobertos pela parte do coração de Ricks que se permita tamanha perversão, o mesmo tipo de melancolia que, por exemplo, encorajou um sujeito chamado Frank a se apaixonar pela emocionalmente instável esposa do irmão e brincar com um certo quebra cabeça chamado Configuração da Lamentação...

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