segunda-feira, 31 de agosto de 2015

"Midnight Meat Train" & "Dread" & "Book of Blood": de Clive Barker, criador de "Hellraiser", chegam 3 novas razões para se temer a noite.

Há inconfundíveis mestres da literatura de Horror e então há toda uma classe exclusivamente ocupada por Clive Barker. Senhor de visões muito distintas, fortes e passionais, incapazes de serem reproduzidas pelas mentes de outros artistas, Barker  reúne as melhores qualidades de Edgar Allan Poe, mas apenas as toma como ponto de partida, vez que suas fervilhantes fantasias, usualmente carregadas de agressivo erotismo, o mantêm muitos passos à frente de qualquer outro autor ou artista. As suas obras, particularmente os contos, fogem a qualquer fórmula, pela habilidade de Barker em temperar as tramas mais aparentemente ordinárias com elementos oníricos & fantásticos que lhe permitem imaginar coisas tão macabras como um casal de turistas que se perde ao viajar por uma estrada no extremo Leste europeu (algo ordinário) e topa com um bizarro evento, duas cidadezinhas remotas, Popolac & Poduvejo, no interior da Iugoslávia, que costumam competir a cade dez anos de uma forma incomum, quando seus cidadãos, mais de 40 mil por cidade, se agregam em uma erótica e sinistra coreografia, amarrados em tiras de borracha para compor em uma complicadíssima arquitetura nada menos que gigantes descomunais que praticamente tocam as nuvens e lutam até que haja apenas um colosso de pé (elemento fantástico). Lamentavelmente, as particularidades que tornaram Barker um dos luminares do horror também atrapalharam a fiel tradução de suas ideias às telas, pois mesmo quando surge alguém corajoso o bastante para criar um roteiro a partir de seus conceitos, os elementos mais palpitantes da fonte original perigam ser perdidos em algum momento da transposição de palavras para imagens. "Hellraiser 1 & 2", "Nightbreed" & "O Mestre das Ilusões", filmes absolutamente fantásticos, diferente de tudo o que você viu no gênero, saíram da mente de Barker, que esteve envolvido em todos os passos da produção. Ao contrário, adaptações que apenas "pegaram emprestado" a envergadura de seu nome e apenas remotamente as ideias, e não contaram ou mesmo dispensaram o aval de Barker ("Hellraiser 3") jamais deixaram o lugar comum da mediocridade. Felizmente, a partir da segunda metade da década de 2000, alguns cineastas muito talentosos que parecem não apenas impressionados com o peso do nome de Clive Barker, mas também conhecedores de sua obra resolveram oferecer suas versões cinematográficas para alguns dos mais fantásticos contos da coletânea "Books of Blood", muito embora as mais desafiadoras e melancólicas tramas estejam por vir, uma delas, inclusive, em vias de começar a ser rodada, "Jacqueline Ess", estrelando Lena Headey. Levando em conta que a coletânea "Books of Blood" contempla aproximadamente 30 histórias, e pouquíssimo disso tenha gerado filmes, é natural compreender a relutância com que diretores apaixonados pelo gênero tratam o desafio de mergulhar seus dentes na obra literária do mestre do Horror. Eles não têm reparo algum com Barker, na verdade lhe reservam o mais profundo respeito e admiração, ocorre que temem bancar as implicações e polêmicas de suas intrincadas, dificílimas premissas. O próprio Barker explica os obstáculos oferecidos pela sua visão particular a aqueles que tentam filmá-la. Em uma entrevista para Nigel Floyd, em 1987, muito antes que seus principais contos fossem adaptados para o cinema, Barker já falava das crenças pessoais intrínsecas às histórias, uma espécie de filosofia que se tornou uma constante na bibliografia: "Há um conto chamado ‘Jacqueline Ess’, sobre uma mulher que só descobre poderes extraordinários quando à beira de cometer o suicídio. O que me interessa é a ideia de personagens que confrontam o ordinário, e encontram um novo significado no extraordinário, ao invés de simplesmente acharem criaturas ou forças que devam erradicar ou exorcizar para retornar ao paradigma de onde partiram. Eu creio que meus contos têm finais felizes, por mais perverso que pareça, porque usualmente concluem com cenas de revelação, personagens compreendendo melhor a si mesmos, percebendo por que precisam da carne em suas vidas.  (...) Em ‘Midnight Meat Train’, (Leon) Kaufman é um protagonista à margem da vida, um contador banal cuja vida nada vale, até entender que há forças maiores atuantes secretamente neste mundo. E eis um conto, eu creio, com uma conclusão perfeitamente feliz: ele atravessa o inferno e sai profundamente transformado... e no final de ‘In the Hills, the Cities’, os dois protagonistas morrem, todavia, ganham novo, extraordinário entendimento, entendimento que talvez não se queira celebrar... é ambíguo. Mas quando eles avistam os gigantes nas colinas, aquele tipo de visão lhes é apresentado de forma que até aquele instante jamais foram capazes de imaginar... eu realmente aprecio a ambiguidade e ambivalência de momentos que podem ser simultaneamente terríveis e cheios de significado, da mesma maneira que muitos instantes pivotais em nossas vidas são ritos de passagem, momentos em que coisas são perdidas para jamais poderem ser recapturadas. No entanto, há uma estrada pela frente que só pelo mérito da novidade, também pode parecer excitante e extraordinária".

Artista único, do tipo que surge uma só vez no espaço de uma vida, não apenas na arte em suas diversas formas de expressão, como na vida pessoal, Clive Barker mais se assemelha a um meteoro queimando na estratosfera. Um complicadíssimo homem de excessos, Barker é movido pela necessidade de se expressar, e para seu intelecto, não há veículos o suficiente. Ele nos presenteou com visões espetaculares no cinema, na literatura, na arte, e agora nos videogames, escrevendo o mote para jogos polêmicos e aterrorizantes como "Undying". Uma das mais autoexplicativas evidências de que Barker sempre se encontra um passo à frente de seus colegas pode ser rastreada na longevidade de "Hellraiser". "Hellraiser 1 & 2" redefiniram o gênero, mesmo que nada semelhante tenha voltado a agraciar as telas desde então. Quando Barker apanhou o mundo de surpresa com suas bizarrices, diretores que assistiram boquiabertos aos dois filmes reconheceram que estavam testemunhando o tipo de assombro que ocorre uma só vez dentro de, digamos, 100 anos. Ao tentarem dar prosseguimento ao legado, fracassaram retumbantes, a partir do fiasco de "Hellraiser 3", passando por tudo o que veio após a mediana continuação dirigida pelo comumente esforçado Anthony Hickox, em 1992. A meu ver, o que ocorreu com os dois primeiros "Hellraiser" e as continuações tão criticadas pode ser estudado como um fenômeno mais comum do que imaginamos, no cinema. Vimos acontecer com José Padilha, por exemplo, o talentoso diretor de "Tropa de Elite". O estilo quase documental e de guerrilha, a agressividade imposta a "Tropa de Elite 1 & 2" chamaram a atenção dos grandes estúdios de Hollywood, e produtores ficaram encantados com a atmosfera claustrofóbica e cinética dos filmes brasileiros, algo que não se via desde os gloriosos, findos dias de suspenses setentistas estilo "Operação França" e os thrillers de John Frankenheimer. O talento de Padilha lhe valeu a vaga de diretor do remake de "Robocop", no entanto ali o brasileiro descobriu tarde demais que para cada sugestão sua, os produtores impunham restrições que o amarravam de maneira tal que não teve como calibrar as suas melhores qualidades, a paixão que lhe permitiu criar as duas obras-primas anteriores, "Tropa de Elite 1 & 2", agora podada por um estúdio preocupado em garantir uma censura "PG-13" ("Parental Guidance"). Não obstante um filme muito interessante e movimentado, o novo "Robocop" não foi exatamente concebido conforme a visão com que Padilha enxergou as infinitas possibilidades, e sim consoante os ditames do estúdio. A contradição reside neste paradoxo: escolheram José Padilha pela ousadia, contudo depois que o conseguiram, precisaram enquadrá-lo numa fórmula que apesar de comumente gerar dividendos na bilheteria, aleija o artista, impedido de experimentar com suas ideias e paixões. Se o estúdio tivesse permitido o autêntico "Robocop de José Padilha", quem sabe, teríamos tido um suspense bem mais contundente, forte e memorável. Dadas as suas minúcias, poderia até não trazer para casa os mesmos dividendos financeiros, mas certamente pareceria muito, muito interessante, artisticamente falando. Com "Hellraiser", o mundo foi tomado de surpresa com uma obra muito sombria, um filme que mergulhava profundamente em recantos muito assustadores da psique humana. Sacudidos com a experiência que os dois primeiros filmes haviam oferecido, quando novos diretores tentaram recolher os cacos a partir de onde Barker deixara, ao final de "Hellraiser 2 Renascido das Trevas", inseguros ao se aventurarem pelos mesmos perigosos temas, procuraram levar os cenobitas a uma nova direção, imprópria aos tons de fetiche & sadomasoquismo da fonte original. Mesmo hoje, tantas décadas após as improdutivas tentativas de reinterpretação do material de Barker, agora que a Dimension pretende produzir a refilmagem do primeiro "Hellraiser", as forças criativas não parecem ter entrado em acordo, e quem mais sofre com a falta de boa vontade dos produtores é justamente a figura do diretor. Tomem como exemplo o cineasta Pascal Laugier, que nos deu o belíssimo "O Homem das Sombras" ("The Tall Man"). Criativamente, Laugier foi uma das crianças que cresceu sob a influência da poderosa força e sombra que "Hellraiser 1 & 2" projetaram sobre seu crescimento enquanto pessoa e artista, no entanto quando se voluntariou a filmar um remake que respeitasse e talvez reciclasse a explosiva filosofia de "The Hellbound Heart", o romance de Barker, acabou por abandonar o projeto, vocalizando a frustração com os produtores, obtusos ao podar cada ideia durante o processo criativo. Laugier preferiu abrir mão de um sonho de infância a filmar algo que apenas levaria o título "Hellraiser", contudo em nada honraria os pilares sobre os quais a figura dos cenobitas foi concebida. Não devemos nos esquecer de que a tendência atual consiste em anestesiar o público com efeitos especiais, e, em filmes de horror, com espetaculares monstros. Quando Clive Barker escreveu "The Hellbound Heart" e depois filmou "Hellraiser", estava contando uma história de desejos proibidos, paixões não correspondidas, sadomasoquismo, fetiches, e uma série de outros aspectos muito perversos e desagradáveis da alma humana. Os "monstros", os cenobitas, eram "convidados de última hora", que ocasionalmente surgiam no plano de fundo, a serviço da trama principal, o triângulo amoroso entre Frank, Larry & Julia. Nada melhor do que as palavras do próprio escritor britânico para ilustrar o que pretendia com sua delirante fantasia. Em entrevista a Stephen Jones, disse "É sobre desejos, sobre pessoas desejando algo que não podem ter, e as consequências de desejos levados aos limites, e então através dos mesmos. Hellraiser é sobre um homem que faz um acordo com o Diabo – ou forças além de nossa compreensão – e então é despedaçado. Sua amante, que acontece de ser a esposa do irmão, decide assassinar homens para que seus nutrientes sejam transferidos para o amante. Ela o faz por amor. Há uma tendência de enfraquecer o horror, um desejo de suavizar os golpes. Eu espero que desta vez possamos mostrar algo muito agressivo. Hellraiser move-se rápido, é inteligente e cheio de imagens de demônios, casa assombrada, coisas voltando dos mortos... é uma história sobre amor após a morte". Não apenas os aspectos da trama diferem da norma, o tratamento que Barker dispensa a monstros também é único. O mestre falou, em entrevista a Phil Edwards: "Geralmente, em filmes do tipo, monstros não discorrem sobre sua condição – a condição de monstro. O que eu gostaria era que Frank declamasse linhas de diálogo em cena, mesmo em momentos românticos com Julia. Eu queria que Frank se portasse como uma pessoa que falasse sobre suas ambições e desejos, porque creio que aquilo que monstros têm a dizer sobre si é tão interessante quanto o que seres humanos têm. É por isso que em slash movies, e sinto que lhes falta toda uma metade das histórias. Essas criaturas simplesmente se tornam, de um jeito entediante, abstrações do Mal. O Mal jamais é algo abstrato. Mal é algo concreto, sempre particular, sempre percebido individualmente. Negar a essas criaturas a individualidade e o direito de falar, de expor suas colocações, é perverso – eu quero escutar o que  Diabo tem a falar. Eu gosto da ideia de que o lado sombrio tem seu ponto de vista". Ao discutirmos um "remake" de "Hellraiser", é de minha humilde compreensão que uma releitura da fonte só teria como funcionar pelo viés do cinema alternativo. Neste sentido, o orçamento do remake não deveria ultrapassar a casa dos 10 milhões de dólares, por exemplo, o que lhe daria longevidade no circuito de arte, onde o retorno financeiro seria garantido. O diretor deveria ser um sujeito completamente apaixonado pelo original – e inteiramente destemido. Falo de um artista com alma romântica que não tema pincelar a arte com as tintas carregadas de sua própria vida, traumas, obsessões e dores. Eu jamais soube muito sobre a carreira musical de Rob Zombie, o conheci unicamente pelos filmes, e sempre me impressionou seu tocante amor pelo gênero através das homenagens implícitas que permeiam cada uma de suas produções, a dedicação com que escala nomes consagrados do passado, hoje meio esquecidos, lhes dando a chance de brilhar novamente. Quando presto atenção na interpretação muito pessoal que Zombie fez de "Halloween A Noite do Terror" com as suas duas adaptações de 2007 & 2009, sei que somente um artista tão fiel às fobias de infância teria como emular a mágica que por ora só temos como encontrar nas páginas de um paperback qualquer de "The Hellbound Heart". Como alguém que ama o cinema e procura na escrita a vazão que eu teria adorado expressar em imagens & sons, eu imagino que dirigir um remake de "Hellraiser", para mim, representaria um sonho pelo qual eu faria tudo o que estivesse ao meu controle, menos abdicar das minhas ideias malucas para reimaginar a trama, em favor de limitações forçadas por um estúdio. Porque só há uma coisa mais adorável do que uma balzaca britânica aos 30 e poucos vestindo shoulder pads e fumando cigarros sensualmente enquanto seduz homens para matá-los a marteladas ou lhes drenar os nutrientes: uma Jennifer Connelly norte-americana balzaca aos 40 e tantos, vestindo os mesmos shoulder pads e fazendo um sotaque britânico ao falar coisas como "Are you sure this is what you want?", enquanto comete as mesmas atrocidades. Partindo da premissa de que a adaptação das obras de Barker oferece inúmeros desafios, os 3 filmes aqui analisados nos dão motivos para comemorar. Bem distintas em questão de tom, o ponto em comum das 3 produções é a forma sensacional como seus cineastas conseguiram enxergar a filosofia dos contos de Barker. Eles conseguiram transpor os limites das páginas para levar ao ecrã as imagens horrorosas das tramas macabras com apenas uma ou outra variação que não chega a agredir a originalidade dos livros. "Midnight Meat Train", "Dread" & "Book of Blood" foram concebidos muito próximos, entre 2008 e 2009, os diretores tendo buscado na coletânea "Books of Blood" as tramas perfeitas para nos aterrorizar com um tipo diferente de terror. Os 3 filmes serão analisados separadamente, mas sempre merecerão menção em diferentes momentos da resenha, para a compreensão daquilo que realmente pauta este trabalho, não exclusivamente 3 filmes, e sim as ideias mais amplas da obra de Barker.


Reza a lenda que as pessoas que ousam pegar o metrô em Nova York muitas vezes jamais são vistas novamente, e que é um estranho silencioso, sempre impecavelmente vestido e munido de uma valise onde carrega um enorme martelo, quem despacha os azarados. No início do filme, vemos um rapaz despertando sobressaltado dentro de um vagão. Ele pegou no sono, e portanto perdeu a última parada, é o último passageiro a bordo. Intrigado, levanta-se atrás de falar com o maquinista. Ele escorrega em um líquido viscoso no corredor e descobre sangue. Apavorado, o passageiro procura se levantar, e pela janela da porta que leva ao carro seguinte, enxerga um "açougueiro" trabalhando com seu martelo em um cadáver. Antes que consiga gritar, o filme corta para o título, "Midnight Meat Train".


Leon (Bradley Cooper, a apenas alguns anos antes do estrelato, já exibindo as melhores qualidades de um protagonista) é um fotógrafo amador em busca de um estilo próprio. Ele mora em um apartamento com a namorada Maya. Fascinado com a vida noturna nova-iorquina, seu agente Jurgis (Roger Bart) o apresenta a uma prestigiosa curadora da alta sociedade, Susan Hoff (participação especial da atriz Brooke Shields, que apesar de aparecer pouco, praticamente rouba o filme com sua típica vilã de obras de Clive Barker). Há uma cena interessante, Jurgis e Leon distraindo-se observando algumas das telas expostas, à espera de Susan Hoff, quando Jurgis dá uma dica ao amigo e pede que não mencione a namorada. "Susan gosta de empregados, jovens, homens, e solteiros", e depois de uma pausa, corrige-se "Quer saber? ela gosta de seus empregados jovens e solteiros", uma sugestão de que Susan é bissexual. Ela chega ao encontro, e quando Leon pede desculpas pelo atraso, Susan recomenda que jamais se desculpe por atrasos. "Eu soube que Basquiat era um gênio quando apareceu 3 dias mais tarde para o almoço!", brinca. Quando Leon coloca para a curadora os motivos pelos quais a fotografia o encanta, enquanto Susan passa a vista por alguns de seus trabalhos, Leon conta que deseja fotografar a verdadeira Nova York, de um jeito anteriormente jamais capturado. Susan comenta que ele está falhando. Para explicar seu ponto de vista, exibe a foto de um mendigo dormindo ao lado de um homem de negócios. O executivo parece incomodado. Susan descreve o registro como melodramático: o que realmente interessa as pessoas não é a escória ao lado de um homem de negócios, e sim a reação do executivo quando a escória o toca, justamente o que Leon deixou de fotografar. "Quando voltar ao coração da cidade, seja bravo, e continue fotografando. E então, me procure", Susan finaliza o encontro.

Leon decide se aventurar na estação de trem, altas horas da noite, para capturar miscelâneas da cidade que não dorme. Naquela primeira noite, estranhamente, é acordado por um pesadelo onde se vê dentro de um vagão com ganchos pendurados. É madrugada e a namorada dorme. Mesmo assim, Leon veste as roupas, prepara a máquina e procura as ruas. O diretor Ryuhei Kitamura retrata com invejável elegância a batida de Nova York, o ritmo após a meia noite, quando ainda há pessoas nas calçadas banhadas pelo neon. Leon desce pelas escadas ao metrô (a fotografia é impecável, o cineasta parece nos arrastar a uma jornada pela escuridão ao lado do protagonista, em meio a aquele ambiente muito estéril, frio, de enormes escadas rolantes e plataformas, onde não se sabe o que vai saltar dos cantos).

Leon acidentalmente topa com uma cena insólita aos pés da escada rolante, 3 homens de gangue aterrorizando uma modelo, os marginais com estupro em mente, quando Leon começa a tirar fotos. O líder se aproxima ameaçador, todavia o fotógrafo não retrocede. Quando o bandido está a um passo de alcançá-lo, Leon ordena que pare, e aponta para uma das muitas câmeras de vigilância da estação. Ao perceber que a ação da gangue está sendo registrada, o que pode lhes causar problemas, o marginal orienta os amigos a deixarem a moça em paz, e eles obedecem. A moça abraça o fotógrafo e o agradece. Bem humorado, Leon ainda bate uma última foto da modelo, quando ela está para embarcar no trem. A mulher sorri e entra, tendo a porta automática segurada por um cavalheiro que não enxergamos muito bem. Dentro do carro, visivelmente aliviada, ela veste fones de ouvido para se distrair com uma música, enquanto ao fundo vemos o cavalheiro sacar da mala um martelo para carne e se aproximar cautelosamente. Sem sobreaviso, o homem subitamente desfere um golpe na modelo, fazendo sua cabeça girar sobre o pescoço, em um ângulo irreal, matando-a instantaneamente.

Durante o café da manhã, Maya desperta com o rumor do namorado trabalhando na revelação dos filmes, e fica impressionada com a contundência das imagens. Naquela manhã, vemos o fotógrafo folheando o jornal na lanchonete onde Maya trabalha. Ali, fica horrorizado ao encontrar nas páginas policiais uma notícia envolvendo a modelo que salvara na noite anterior. Leon a identifica pela foto impressa. A manchete declina "Mulher desaparece nas primeiras horas da madrugada". Ele conta o inusitado fato para a namorada, e resolve procurar o distrito policial mais próximo. Uma detetive escuta a versão de Leon, mas parece meio descrente, até mesmo desconfiada do pobre fotógrafo, que só tem boas intenções. Apesar de meio desanimada quanto às observações de Leon, ela lhe fornece o cartão pessoal, e pede que ligue caso descubra fatos novos. Ao levar as fotos da noite anterior à Susan, ele finalmente ganha o respeito da curadora. Ao estudar os filmes, Susan parece perder o fôlego, e diz "Uau!". Leon ri e comenta "Você não parece o tipo de mulher que diz Uau tão fácil". Ela responde "E não digo mesmo. Desde o tempo de colégio". A performance dos dois atores cria uma certa tensão sexual entre os personagens, uma eletricidade que jamais compreendemos muito bem, mas que existe. Hoff promete que se Leon conseguir mais duas imagens igualmente fortes, o incluirá na vernissage que dará dali a 3 semanas.

Ao celebrar com Maya e Jurgis, à noite, depois que a lanchonete fecha as portas, Leon os agradece pelo suporte, e explica por que não pode ficar: Susan lhe pediu duas novas imagens poderosas, e ele não pode perder tempo. Longe dali, dentro do metrô, 3 executivos - dois rapazes e uma moça - parecem meio tensos, a garota em particular. Com as lendas urbanas envolvendo o metrô, altas horas da noite, só querem chegar logo a suas casas. Os rapazes não prestam atenção quando o cavalheiro bem vestido entra no vagão. O primeiro a morrer leva uma terrível marretada na nuca. A força do golpe lança um de seus olhos para fora do soquete. O segundo homem leva uma martelada no abdômen que o lança às alturas. A mulher sofre o pior destino, a cabeça separada do tronco quando a marretada encontra seu rosto. A cabeça voa longe, e por alguns segundos, ainda viva, ela tem consciência de que foi separada do corpo.


Enquanto isso, Leon vaga pelas calçadas de Nova York. Por uma razão qualquer, ele se senta em um banco diante da saída da estação de trem, quando um homem bem vestido, que na verdade se chama Mahogany, ganha sua atenção, ao emergir às ruas. Leon começa a segui-lo à distância, quando Mahogany dá pela presença do "" e ameaçadoramente detém o fotógrafo pelo braço. Leon enxerga o bizarro anel vestido pelo estranho, uma estrela de 8 pontas. Leon se desculpa com uma bobagem qualquer, e Mahogany o deixa partir. Mais cauteloso, ainda consegue acompanhá-lo até o hotel decadente onde Mahogany mora, no centro. Em um derradeiro instante, o misterioso cavalheiro ainda se vira e lança um olhar para o outro lado da rua, que faz Leon se arrepiar. A trama se complica naquela mesma noite, quando o rapaz revela as fotos. Ao revisitar os registros da ocasião em que a modelo desapareceu, Leon presta atenção na última foto tomada da mulher, quando ela sorriu antes de embarcar. A mão que segurou a porta automática exibe o mesmo anel de 8 pontas. Leon percebe que Mahogany era o homem dentro do vagão na noite em que a modelo desapareceu. A descoberta reforça a crença de que o estranho é o assassino.

No dia seguinte, ao se preparar para o trabalho, Mahogany não percebe que Leon está do lado de fora, na calçada, o esperando. Desta maneira, o fotógrafo descobre que o elegante cavalheiro trabalha como açougueiro. Do mesmo jeito que o acompanhou durante o dia, Leon o faz durante a noite. Na estação, observa que o estranho jamais embarca nas linhas que partem mais cedo. Ele sempre espera pelo último trem. Quando Mahogany sobe na última linha, e Leon tenta acompanhá-lo, um policial o aborda e pergunta se pode vasculhar seus equipamentos fotográfico. Claro que Leon não se opõe, mas nisso perde a chance de continuar no encalço de Mahogany. Quem embarca no último trem é um valentão. Ao se deparar com o bem-vestido e caladão passageiro, ele "tira uma onda" com Mahogany, o desprezando: "É isso aí, cara, a vida é mesmo como uma caixa de chocolates", uma referência à semelhança entre o carrancudo açougueiro e o personagem Forrest Gump, em uma cena realmente engraçada que alivia um pouco a tensão. Ao dar as costas para Mahogany, o valentão é subitamente surpreendido por uma marretada nas costas. Inesperadamente, o homem parece não se intimidar, e parte para cima do açougueiro, que também toma uma surra. É o condutor do trem que ao escutar a comoção aparece no carro e "salva o dia", derrubando o homem com um tiro. Depois de tanto tempo fazendo vítimas no último trem, Mahogany parece dar sinais de cansaço, e o condutor lhe dá uma reprimenda.


Leon surpreende a namorada com uma aliança de compromisso, e eles fazem amor. O fotógrafo sofre um horroroso pesadelo, onde se imagina amarrado de ponta cabeça. Um assassino se aproxima e passa a faca na garganta. Leon vê a si mesmo como o próprio executor. Ele acorda gritando. Por algum motivo, ocorre-lhe  vasculhar o arquivo de jornais novaiorquinos. Em uma notícia datada de novembro de 1895, a imprensa escreveu sobre um homicídio cometido por um certo açougueiro. Leon acha esquisito. Pela lógica, seria impossível que o açougueiro do caso em 1895 e Mahogany fossem a mesma pessoa, certo? Ousado, Leon se infiltra no açougue com uma farda furtada. Em seu tacanho trabalho de espionagem, é flagrado por Mahogany. Por pouco o fotógrafo consegue escapar. Jurgis e Leon se encontram na lanchonete, e ao ver o amigo comendo um bife mal passado, o apetite do fotógrafo é renovado. Em casa, mapas e fotos espalhados no assoalho e parede assustam a companheira, que tem uma noção de como Leon está obcecado pelo estranho. Leon fez um levantamento de todos os desaparecimentos no metrô, datando do século XIX. Apesar de soar loucura, Leon acredita que Mahogany abduz passageiros desde 1895. Chorosa, Maya suplica para que o noivo se desapegue daquela busca assustadora. Apesar de tentar se comprometer, tudo em que consegue pensar é no açougueiro e o trem da meia noite. Brigados, somente fazem as pazes mais tarde, quando Leon aparece na lanchonete para se justificar. Lamentavelmente, agora é tarde: Leon passou de caçador a caçado, e repara pela vitrine que Mahogany o espia da calçada.


Leon segue Mahogany até a plataforma. Dois meninos entram no vagão e perguntam se o açougueiro deseja comprar chocolate. O fotógrafo, que está assistindo a tudo escondido no vagão anterior, fica na expectativa de que Mahogany ataque os dois. Para seu alívio, o vê apenas sacando alguns dólares para comprar guloseimas. Quando o trem começa a esvaziar, e o açougueiro crê erroneamente que são apenas ele e alguns caras no trem, inicia a chacina, testemunhada por Leon. O fotógrafo registra com suas lentes o macabro ritual inteiro, até ser visto. Leon parte em disparada, correndo de vagão a vagão, suplicando para que o maquinista pare na próxima plataforma, mas é apanhado em cheio e perde os sentidos. Ele acorda atônito, no subterrâneo, sem lembrança de como foi parar ali, e emerge no açougue, de manhã. Leon volta para casa com alguns ferimentos, deixando Maya assustada. Calado, o fotógrafo ignora a saraivada de perguntas da parceira. Ao se trancar no banheiro e examinar o peito, Leon encontra símbolos satânicos grafados na pele. Enquanto esteve no subterrâneo, teve um pesadelo surreal onde monstros semelhantes a répteis passaram as patas enormes e afiadas pelo seu corpo. Só um sonho?

Leon abre o jogo e conta à Maya o banho de sangue que aconteceu. O fotógrafo perdeu a câmera, e junto aos rolos de filme qualquer prova das coisas apavorantes testemunhadas no trem. Decidida a agir por conta própria, Maya usa como ponto de partida uma foto onde à frente de Mahogany lê-se o nome do hotel onde o açougueiro mora. Ela pede a ajuda de Jurgis, que se une à amiga com o intento de entrar no apartamento de Mahogany para recuperar a câmera. Como o açougueiro está saindo para o trabalho, Jurgis e Maya acham que não terão problema. Ao vasculhar as gavetas do quarto, Maya encontra as mais esquisitas ferramentas. Mahogany regressa ao apartamento silenciosamente. No guarda roupa da suíte, entre os ternos, Jurgis encontra a máquina fotográfica. Mahogany surge às costas de Jurgis e o rende com um golpe. Bulindo em tickets antiquíssimos, Maya encontra um folder com horários que remonta ao ano de 1911. O noivo tinha razão, o açougueiro atua na região dos metrôs há séculos. Ao constatar que Jurgis não está respondendo a seus chamados e pressentir que Mahogany se encontra ali dentro, Maya foge correndo.

De posse do cartão de visitas da detetive, Maya a procura no distrito policial. A detetive não tem boas novas: ao visitar o hotel, encontrou o apartamento abandonado, como se ninguém jamais tivesse morado ali. Apesar de confidenciar seus temores convincentemente, Maya não tem a Polícia a seu favor. A detetive explica que Maya e Jurgis invadiram propriedade particular. Só por aquela razão, se desejasse, a detetive teria base para detê-la por uma noite. A vernissage é um sucesso, mas Leon parece não se importar. Embora Susan Hoff tente seduzi-lo, Leon deixa o encontro, determinado a voltar à estação. Convencida de que ninguém os ajudará, Maya regressa à lanchonete para apanhar sua arma de fogo. Da calçada, liga para o apartamento e deixa um recado na secretária eletrônica, revelando o que se sucedeu a Jurgis. Previamente, Maya mencionara à detetive um livro de notas onde constava registrada a "carreira" de Mahogany ao longo dos séculos. Subitamente, quem surge das sombras é a detetive, e quando ela pede que Maya entregue o livro de notas, a moça aponta o revólver, convencida de que a mulher faz parte da sujeira. A detetive revela o paradeiro de Jurgis: ele estará no trem que parte às 02:00 da madrugada.


Antes de descer para a estação, Leon visita o açougue e se mune de toda sorte de facas. Sozinho dentro do trem, Maya não imagina o risco que a ronda. Leon desce ao ponto dos túneis onde acordou da última vez, e enxerga a aproximação do trem. Utilizando-se de um gancho, prende-se ao último carro, e eventualmente consegue entrar. Enquanto isso, Maya visita um vagão cheio de corpos nus dependurados. Jurgis encontra-se no meio daqueles corpos, ainda vivo e bastante confuso. Maya aponta o revólver para Mahogany. Nervosa, erra os disparos. O açougueiro lança sua marreta e consegue acertá-la no dorso, tirando seu equilíbrio. Antes que consiga desferir o golpe fatal, Mahogany é interrompido por Leon. Eles dão início a um dos duelos mais sanguinolentos imagináveis, Leon armado com uma peixeira, Mahogany com o martelo. Como o corredor encontra-se abarrotado de cadáveres, a cada golpe errado, lâmina e martelo penetram coxas, braços, arrancam cabeças... uma sequência grotesca que nada deve a filmes como "Conan O Bárbaro". A câmera do diretor Kitamura é fluida, e captura a ação com movimentos suaves e incessantes, ora dentro do vagão, ora passeando em torno do carro. Por pouco, Mahogany não corta o pescoço de Leon, que detém o golpe com o antebraço, atravessado pela lâmina da peixeira. O fotógrafo puxa uma outra faca menor e a crava no pé do açougueiro. As portas automáticas se abrem, e o trem encontra-se à toda velocidade. Leon tenta chutá-lo para fora, mas Mahogany se sustenta ali dentro, desferindo um golpe que acerta Jurgis no abdômen e rasga sua barriga, expondo os intestinos.

Leon consegue tirar o equilíbrio de Mahogany ao esmigalhar seus dedos com uma martelada. O açougueiro acaba lançado para fora. O trem estaciona em um aterrorizante lugar do subterrâneo. O condutor aparece e educadamente solicita que Leon e Maya se afastem da carne. O casal testemunha a chegada de criaturas que confraternizam nos vagões para fazer um banquete com os cadáveres. Tão chocados estão, não percebem de imediato que Mahogany ainda se encontra vivo. O açougueiro investe contra Leon, e eles lutam usando como armas tudo o que conseguem encontrar, como ossos e crânios. Leon perfura o abdômen de Mahogany com um pedaço de fêmur talhado, e então arranca o osso da barriga para cravá-lo mais acima, na garganta do açougueiro. É o fim de Mahogany. Antes de morrer, ele dá as boas vindas a Leon. Após o duelo, o condutor oficializa a "transmissão" do cargo. A partir de agora, Leon será o novo fornecedor de carne para os monstros do subterrâneo de Nova York.


O condutor extirpa e devora a língua do novo empregado, para mantê-lo aprisionado ao silêncio, e depois apunhala Maya na altura do peito, arrancando seu ainda palpitante coração. Tempo depois, vemos um cavalheiro finamente trajado, arrumando-se com esmero para o primeiro dia de trabalho. A detetive que vimos no início do filme lhe entrega uma caderneta com os horários dos trens. Ele apanha a maleta e parte. A câmera revela que o novo açougueiro a serviço dos monstros é Leon. Com o desfecho, o filme nos convida a considerar o passado de Mahogany: será que ele sempre foi um monstro? Ou, há dois séculos atrás, foi um homem tão comum e inocente quanto Leon, arrastado àquela posição pelas criaturas das trevas, tendo perdido a humanidade através dos séculos?


Uma das melhores adaptações para uma obra de Clive Barker, "Midnight Meat Train" é um impecável suspense. Ainda que reúna as peculiaridades difíceis e indigestas do escritor britânico, o filme funciona muito bem individualmente como thriller moderno, digno das melhores salas de cinema. Dirigido por Ryuhei Kitamura, o cineasta conseguiu energizá-lo com uma energia cinética que lhe valeu elogios de Barker, usualmente cético quanto a adaptações cinematográficas, quando não regidas pelo próprio. Como poucos filmes fizeram antes ou mesmo desde então, este suspense nos levará através da noite novaiorquina durante a "hora morta", a partir de meia noite. Com muita habilidade, familiarizado à atmosfera, o diretor Kitamura evita os pontos mais famosos da cidade que nunca dorme, afinal de contas já cansamos de vê-los em tantos outros filmes. Kitamura sabiamente prefere calçadas, ruas decadentes e vazias, e a estação de trem, o lugar que pela maior parte do tempo ocupa o plano de fundo. Tendo chamado atenção pela brutalidade envolvida, curiosamente, são nos mais graciosos instantes, dados na calada da madrugada, que "Midnight Meat Train" nos envolve com a simulação de que somos cúmplices de uma jornada. Muitas vezes, quando "pouco" acontece, na verdade "muito" está se desenrolando. Como qualquer ator experiente dirá a um inexperiente, o veterano o aconselhará: "faça menos". A raiva e a extravagância são ciladas onde muitos caem, vez que emoções fáceis de serem acessadas. Os medíocres sempre pensam em tintas fortes antes de interpretarem. A extravagância não os torna melhores atores, e sim a facilidade com que se expressa dor ou outro sentimento quando nada se precisa afirmar. Eis a qualidade de um grande ator. Vejam, por exemplo, a maestria com que "w Delta z" (foto), um suspense que sempre revisito e utilizo como referência nas resenhas, utiliza o silêncio e quietude a favor da trama. O diretor Tom Shankland não precisa se preocupar com nada a não ser manter a câmera nos atores principais, Stellan Skarsgard & Ashley Walters, para criar momentos que te sugam para dentro do dilema vivido pelos personagens. Na história, Stellan Skarsgard interpreta um tira desiludido que já viu quase tudo na carreira, até que os membros de uma gangue local passam a aparecer mortos como moscas. Ashley Walters vive um delinquente que serve como informante do tira. À medida que se aprofunda nas investigações, o detetive monta as peças do quebra-cabeças que remete a um caso de estupro & homicídio ocorrido alguns anos antes, envolvendo os membros da mesma gangue. De toda sorte, há um instante em que os dois conversam no píer, e baseado apenas em discrição, o diretor só precisa manter a lente nos rostos dos artistas, enquanto eles desempenham as poucas linhas de diálogo de um jeito que arrepiará seus cabelos. "Eu acho que é ela, Daniel. Eu acho que é a Jean Lerner". Para os amigos que ainda não assistiram a "w Delta z" e preferem descobrir o segredo, peço que se abstenham de ler o trecho a seguir. Para aqueles que não se importam, vocês devem saber que a Jean Lerner do diálogo, a personagem interpretada por Selma Blair, foi a moça impiedosamente estuprada e sodomizada pela gangue (tendo sido inclusive violada com uma garrafa por parte da única mulher no grupo, uma viciada em crack). Torturada pelos assaltantes, eles puseram um revólver em suas mãos e lhe deram uma escolha. Se apertasse o gatilho e estourasse os miolos da mãe, a gangue a deixaria viva. Se não quisesse efetuar o disparo, poderia cometer suicídio ao invés de atirar na mãe, e a idosa seria poupada. Em estado de choque, Jean aperta o gatilho, mata a mãe, e, conforme prometido, sai viva. O tira interpretado por Stellan Skarsgard foi quem originalmente atendeu a ocorrência, o homem por quem Jean veio a desenvolver um bonito sentimento de amizade. Ashley Walters interpreta um rapaz inconsequente que esteve presente na casa durante o assalto, mas não tomou parte na ação. Ele era basicamente um jovem que se envolveu com a turma barra pesada. A gangue o induziu à situação sem que ele imaginasse o que ocorreria. Quando assistiu à brutalidade, por temor ao líder da gangue, não foi capaz de confrontá-lo, e nada fez para evitar o crime. Uma questão envolvendo provas viciadas acaba pondo os assaltantes na rua. Na noite do veredito, Jean presta uma visita ao tira para agradecê-lo pelo empenho, mesmo que os estupradores não tenham sido condenados. Através da janela, ela flagra o policial e o rapaz em um encontro romântico. O tira passou a vida "no armário", e Jean descobre seu segredo mais íntimo. Por mais revoltado que se sinta em relação à selvageria praticada contra Jean, ele sabia que se o caso fosse a julgamento, o namorado seria arrastado para a sujeira. Assim, para inocentar o amante, o tira "batizou" as provas, fez secretamente uma grande bagunça na cena do crime, de modo que as mesmas não "colassem" durante o julgamento. Apesar de ter salvado o namorado, lamentavelmente permitiu que os verdadeiros culpados saíssem pela porta da frente do tribunal. Quando o tira deduz que o autor dos assassinatos em série é a moça, sabe que junto ao namorado consta da lista negra de Jean Lerner. Triste, borrado e angustiante, "w Delta z" decola nos momentos mais quietos, quando muito pode ser revelado por um mero olhar ou inflexão. Na conversa no píer, o diálogo cria o presságio para o fim dos dois protagonistas no curso do terço final da trama. A ferramenta do "menos por mais" também vale para outros aspectos envolvidos na feitura de um thriller, não apenas para atuação. Na sucessão sem fim da ação, um diretor põe em risco a disposição das pessoas em se investirem. Quando as trata como seres inteligentes, o diretor sabe que há ouro por trás do comedimento e da eficiente criação e sustentação de atmosfera. Voltando a "Midnight Meat Train", Ryuhei Kitamura prefere estabelecer momentos intrigantes observados na calmaria aparente de estações à meia noite, passeios públicos pouco iluminados pelo fraco amarelado projetado pelos postes das partes mais desfavorecidas do centro. Ele recria no celuloide a magia que nas páginas dos livros, no texto dos contos, consagra Clive Barker como o artista mais criativamente abençoado nascido no século XX, o homem que veio para segurar a tocha deixada por Edgar Allan Poe. Por mais que Kitamura e time não meçam esforços para conceber imagens memoráveis (aos montes), será pela simplicidade de coisas como Mahogany lançando um olhar ilegível para Leon, do outro lado da rua deserta, diante do hotel decadente onde mora, que "Midnight Meat Train" deixará muita saudade a quem o vir uma única vez. No começo do filme, Brooke Shields fala algo sobre capturar o coração da cidade, a verdadeira Nova York. O diretor de fotografia Jonathan Sela banha as cenas internas com o atraente neon do film noir, e as tomadas externas com o desespero & desolação que nos remetem à busca do detetive Harry Angel em "Coração Satânico", de Alan Parker. Sim, Susan, a verdadeira Nova York foi capturada.


Entre os outros dois filmes estudados neste trabalho, "Midnight Meat Train" tem tudo para ganhar a predileção das pessoas que associam Barker a "Hellraiser" mais automaticamente. Novamente, nesta sua trama, "Midnight Meat Train", por trás da aparência da normalidade, Barker se diverte criando uma sociedade paralela, um espaço onde túneis de metrô construídos há mais de um século para servir à cidade que jamais dorme coexiste com o portal através do qual criaturas fantásticas demais para serem descritas vêm apanhar a "comida" trazida pelo condutor & açougueiro do último trem. Nenhum escritor consegue conceber tão bem bizarrices tão absolutas, ao mesmo tempo em que consegue retratar com sobriedade e até poético romantismo as pessoas que habitam a superfície, um mundo ordinário e sem novidades, que entre rachaduras de calçadas está pronto para assaltar seus personagens com as reviravoltas mais fantásticas imagináveis, seus monstros conjurados pelas mais inconfessáveis facetas da psique de gente psicologicamente danificada - em "Hellraiser", a incessante busca de Frank por prazeres sem limite, em "Midnight Meat Train" a ambição que arrasta Leon ao labirinto abaixo de Nova York onde um perigosíssimo maníaco desce martelos sobre cabeças com a mesma paixão com que a Julia de "Hellraiser" "processava" a "carne" para levar "comida" ao amante que é uma poça de pus, sangue e músculos em um chavascal mantido longe dos olhos do marido traído, no sótão. Em "Hellraiser", para além das janelas da casa em Ludovico Street, londrinos continuam seguindo com suas rotinas corridas, em "Midnight Meat Train", acima dos trilhos, perdura um mundo em suspensão, na calada da madrugada, onde luzes de neon emanam de vitrines em downtown Manhattan.


As atuações unanimemente sólidas tornam complicado pinçar uma performance para rotulá-la como a definitiva. Vinnie Jones e seu jeitão "hooligan britânico" pintam seu Mahogany de um estoicismo que nos faz pensar em Arnold Schwarzenegger no primeiro "Exterminador do Futuro". Apesar de marcar presença na maior parte das cenas, Vinnie Jones precisa de algo mais que linhas de diálogo para mostrar a que veio. Sem explicar razões, Mahogany deixa que as ações atestem sua conduta, e Vinnie Jones utiliza muito bem olhares petrificadores que o definem como o monstro em controle, comandando respeito mesmo ao se limitar a lançar um olhar do outro lado da rua, para Bradley Cooper, em frente a um atemporal hotel perdido ali no meio do nada, entre vias primordialmente transitórias, onde ninguém é de ninguém. Brooke Shields (foto, ao lado de Burt Reynolds, no início dos anos 80, quando ambos ainda estavam no topo de seus jogos), hoje tantas décadas após seu ápice, quando não comanda a mesma atenção que um dia o fez, no auge da beleza, personifica a típica femme fatale  de ego fragilizado que Barker adora escrever, e suas poucas cenas onde aparece jogando com a cabeça sugestionável de Bradley Cooper são uma delícia de se assistir.

Com uma trama envolvente e um elenco de primeira, Ryuhei Kitamura poderia ter feito ainda melhor se apenas tivesse conseguido afastar a extravagância do derramamento de sangue. Inicialmente, a violência apenas casualmente mostra a cara feia durante a primeira metade da trama, que se desenrola como um suspense estilo Hitchcock, porém, depois, descamba para a escatologia completa em um clímax recheado de facadas, golpes de martelo, ossos perfurados e toda espécie de crueldade gráfica, minando o conjunto da sofisticação da primeira hora. As melhores versões cinematográficas de obras & textos de Clive Barker homenagearam um tipo de maldade embrulhado pelo erotismo, uma brutalidade não exatamente patente, apenas inflamada por vias secundárias, pela ferocidade que só se pode compreender alegoricamente, aos poucos e indiretamente. "Hellraiser" não precisa explorar a facada que Frank desfere em Julia, quando este a trai, ao final, no entanto sua agressividade visceral não se reporta à lâmina que a penetra na linha do abdômen, mas ao choro de dor e absoluta tristeza que ela emite ao compreender que seu amor foi apenas usado pelo amante cafajeste de magnético charme, por quem morreria eternamente se ele apenas voltasse a pedir. "Hellraiser 2 Renascido das Trevas" tratou a violência semelhante e até criou um padrão próprio: concebeu imagens abstratas e surreais de pura maldade (a forma em tetraedro prateado em permanente giro sobre um labirinto infinito, a que chamamos de "Leviatã"), e retratou a morte com a mesma ousadia maliciosa que Barker fizera com o anterior (a morte do jovem psiquiatra nas mãos de Julia pela via da drenagem, retratada em um simples movimento de câmera que prefere filmar a comoção apenas vagamente, e deixar que o choro da vítima e as listras de sangue escorrendo das narinas e de um dos ouvidos transmitam uma batelada de informações pelo tempo de duração do horroroso processo). "Midnight Meat Train" é um festival de duelos de armas brancas que chega a superar a violentíssima meia hora final de "Hunted", de William Friedkin, onde o clímax também se dá com a disputa entre dois homens altamente treinados em artes marciais e munidos de facas. Não resta dúvida que o diretor Kitamura é um talentoso cineasta com contribuições fantásticas ao já riquíssimo manancial de Clive Barker, o tipo de mente astuciosa apropriada para traduzir a prosa do escritor britânico para em imagens em movimento, no entanto, e aqui humildemente ofereço meu reparo pessoal, imagino que o resultado teria sido ainda mais poderoso se tivesse exercitado a elegância estilística de um Brian De Palma, por exemplo. Claro que em determinado momento as cortinas teriam de ser abertas, evidente que precisaríamos enxergar os monstros, sangue tinha de ser derramado, mas por que não indiretamente? Na seara da discrição é onde resta preservado o mistério, e um filme de horror jamais deve permitir que o mistério se vá. Não podemos olvidar, contudo, do engenho de Ryuhei Kitamura, mais um artista com arrojadas visões importado por Hollywood, a exemplo do que foi feito antes com Hideo Nakata ("O Chamado") & Masayuki Ochiai ("Imagens do Além").

Lançado em 19 de julho de 2008, no Festival de Fantasia de Montreal, público & crítica o receberam muito bem. Barker vocalizou seu desapontamento com a Lionsgate, que adotou uma estratégia de mercado mais cautelosa: limitou "Midnight Meat Train" `a exibição em apenas 100 salas de cinema, ao invés de lhe permitir uma maior abertura, e logo o relançou no mercado de DVD. Independente dos percalços enfrentados, o filme inaugurou um período que, esperamos, veio para ficar. Novas histórias da coletânea "Books of Blood" foram optadas para adaptações cinematográficas. Quase um ano após o lançamento de "Midnight Meat Train", foi a vez de "Dread" nos oferecer uma visão muito interessante de um dos seus mais horripilantes contos.


O universitário Stephen Grace (Jackson Rathborne) conhece casualmente um misterioso rapaz chamado Quaid (Shaun Evans) quando este lhe pede um cigarro. Os dois já tinham se cruzado anteriormente na classe de Filosofia. Quaid despreza a teoria ministrada pelos professores, crê que Filosofia passa obrigatoriamente por um conceito a que batizou de "a Besta". Para Quaid, a Besta pode ser lida como a real natureza do medo, que apesar de distinto para cada pessoa, está intrinsecamente associado à condição humana. Quando nascemos, nossos destinos foram selados, afinal vamos todos morrer um dia, e no entanto este medo nos acompanha mais ou menos palpitante no curso da vida. Quaid o convida a tomar cerveja no pub do campus, e naquele primeiro encontro Stephen revela que perdeu o irmão quando tinha apenas 15 anos, vítima de um acidente automobilístico. Apesar do trauma, Stephen revela que não teme a morte como consequência da tragédia pessoal. Nas suas próprias palavras, ele crê que vive uma existência muito banal. Quaid mora sozinho em uma casa na Pilgrim Street, e aprendemos que toma remédios para dormir. Enquanto cumpre seu ritual de pílulas, o vemos sofrendo flashbacks que remontam à infância. Quando pequeno, testemunhou o assassinato dos pais. O traumático encontro envolveu um estranho munido de machado, que bateu à porta e sem oferecer maiores explicações os trucidou sem dar chance de defesa. A mãe inclusive foi quem mais sofreu, morta com um golpe que dividiu a face em metades. Quaid jamais entendeu por que ao invés de matá-lo o invasor apenas parou diante da criança aterrorizada, exibiu o machado e afirmou "Eis a sua mãe, a sua mãe não passa disso", erguendo a cunha e a lâmina cheias de sangue e fios de cabelo.

No campus, a melhor amiga de Stephen é uma tímida garota chamada Abby (Laura Donnelly). Ela conta que um rapaz esteve à procura de Stephen mais cedo. Trata-se de Quaid, que o convida a visitar sua casa naquela noite para conversarem a respeito de uma proposta sobre a qual nada acrescenta. Quando a garota gentilmente se despede com "Foi um prazer conhecê-lo", Quaid responde "Bela marca de nascença, por falar nisso". Apesar de inteligente, feliz, bonita e saudável, Abby carrega um sinal de nascença que ocupa parte do rosto, e embora os colegas não façam diferença, a moça sofre com aquela pouco importante imperfeição. À noite, Stephen o encontra compenetrado no porão com sua arte. À vontade, pinta uma modelo que se exibe nua sobre um colchão, para o prazer do estudante. Quaid interrompe a sessão para tratar de negócios com Stephen.


Ele explica que gostaria de desenvolver um estudo sobre o medo. Teriam acesso aos equipamentos necessários através do programa estudantil, e o tema parece perfeito para a tese de Stephen. Por alguma razão, o rapaz menciona que no verão em que seu irmão foi morto, ele havia comprado o carro que o mataria. Stephen conta que apesar de não ter desabafado quando a tragédia aconteceu, o primeiro pensamento foi que podia ter estado ao lado do irmão. Ao perceber que o medo também faz parte de sua vida, ele topa a empreitada. Quaid e Stephen partem para comemorar e uma boate underground onde conhecem duas garotas e as levam para casa. Por vários momentos, o diretor Anthony DiBlasi insinua uma desagradável tensão homoerótica entre os dois. Primeiro, quando foi vê-lo em casa pela primeira vez, Quaid praticamente tomou banho na frente de um constrangido Stephen, e agora, ele pratica sexo oral em uma garota que conheceu no clube, ali na cama próxima ao sofá onde o amigo fica com outra menina.

Com o intento de realizar um projeto de qualidade, Stephen convida a amiga Cheryl (Hanne Steen) para a vaga de editora do curta-metragem. Ao escutar aquela conversa sobre medo, Cheryl acha o conceito bem intrigante, e embarca no projeto. Diligentes, preparam a sala onde conduzirão as entrevistas, e espalham panfletos, convidando colegas a prestarem depoimentos. Depois de uma série de entrevistas, Quaid parece desanimado. O que as pessoas lhe trazem são temores bobos, infundados. O universitário está em busca de algo tão profundo e severo quanto o crime que testemunhou na infância. À mesa de uma lanchonete, Stephen e Cheryl parecem curtir a companhia um do outro, a moça particularmente investida. Ela solta um discreto comentário sobre sua história pessoal, que terá ressonância logo mais, ao afirmar que o hambúrguer do colega tem um jeito de embrulhar seu estômago. Cheryl odeia carne.


Quaid comporta-se ranzinza quando o casal volta para casa, para a edição do projeto. Os rapazes têm uma briga de empurrões, e Cheryl tranquiliza os ânimos. Também desapontada com a natureza dos depoimentos tolos que capturaram a semana inteira, a moça revela que tem algo muito íntimo e doloroso para revelar, e pede que os amigos preparem as câmeras. Cheryl explica que nasceu e cresceu em uma cidadezinha ao norte de Nova York. A mãe trabalhava em um mercadinho, o pai em um grande açougue. Ele chegava tarde do trabalho, de modo que ao voltar, a esposa estava sempre dormindo. Cheryl se recorda da batida que as botas faziam ao forçar as tábuas do assoalho. O fato é que por toda a infância e adolescência, o pai a forçava a manter relações sexuais, e quando a estuprava, o odor de carne assaltava as narinas. Hoje, mesmo tantos anos depois, Cheryl ainda não consegue aturar o fedor de carne. Quaid a elogia pela coragem de "tocar a Besta", revelar seu mais inconfessável segredo. Quando ela tenta conseguir de Quaid confiança para se abrir, o rapaz prefere deixar a sala e fugir do confronto. Ele ainda não consegue conversar a respeito do que houve com os pais.

Determinado a vencer os medos, em um impulso, Quaid joga as pílulas fora, e tenta se preparar para uma noite normal de sono. Stephen se despede do amigo. Ele dormirá em um outro cômodo da casa. Naquela noite, Quaid escuta pisadas vindo de baixo. Ele reencontra o homem com o machado, o sujeito que estraçalhou seus pais, trabalhando no cadáver do pai, decepando-o aos poucos, enquanto um Quaid ainda criança brinca ao lado da mãe morta. Convicto de que retornou para pegá-lo, Quaid grita por Stephen e avisa que o assassino se encontra dentro de casa. Ele subitamente desperta aos gritos, percebendo que não passou de um pesadelo. Apesar de pedir a Stephen que volte a dormir, o rapaz não quer saber, e exige que Quaid conte o que o atormenta. Ele decide falar a respeito de seu passado sombrio. Ao terminar de explicar como os pais morrerem, diz algo nas linhas de que tratou de fugir, "e tenho fugido desde então".

Stephen está arrumando os livros na estante da biblioteca, quando Abby se aproxima para conversar. Ela revela que Quaid a procurou naquela manhã para convidá-la a posar nua. Lisonjeada, Abby recursou, mas parece tocada pelo interesse que supostamente despertou em Quaid. Os 3 conhecem um garoto chamado Joshua. Entre todas as pessoas que entrevistaram, Joshua é o único que lhes dá uma genuína história de trauma. Quando criança, foi atropelado por um automóvel, e o acidente lhe custou a audição por um determinado período. Ele explica que foi assustador, ver aquelas pessoas a sua volta falando sem que conseguisse compreender coisa alguma. Joshua se sentia à parte, em uma versão alternativa e silenciosa da realidade. Mesmo depois que a audição voltou, explica que passou um tempo preocupado se a perderia novamente. A confidência de Joshua toca Quaid de forma especial.

Quaid visita o clube de strippers onde escolhe as mais belas garotas para posar para seus quadros. Enquanto uma moça dança sedutoramente a sua frente, só consegue prestar atenção em um homem do outro lado do palco, ao fundo, o maníaco que trucidou seus pais. Claro que Quaid está enxergando coisas, concebidas exclusivamente pela sua imaginação. Aterrorizado, deixa o clube. A relação entre Stephen e Cheryl se estreita, e ela lhe dá um relógio de presente para compensar aquele que Quaid quebrara quando os dois haviam brigado. Stephen não sabe ainda, porém quem nutre sentimentos por sua pessoa é a amiga platônica Abby. Ela comenta que adoraria participar do projeto, prestar seu depoimento, no entanto só se sente confortável se falar para Stephen, e não para Cheryl ou Quaid. Previsivelmente, o trauma de Abby envolve a marca de nascença no rosto. Ela fala que a primeira vez que compreendeu a extensão do problema foi quando um coleguinha de turma lhe perguntou o que havia de errado com a face. Durante o encontro, bastante emocional, Abby se levanta e abre o robe. Ela se diz apaixonada por Stephen, mas não sabe que ele está comprometido com Cheryl. O rapaz procura explicar que seu coração pertence a uma outra pessoa, por ora.

Stephen não aprendeu a lição. Ele procura Quaid e inocentemente conta tudo o que aconteceu entre os dois. Na manhã seguinte, Quaid visita o quarto da garota e os dois conversam. Ele afirma que a acha sexy, e aos poucos ganha sua confiança. Quaid a seduz, eles se divertem em uma boate e depois fazem amor. Em uma montagem exibida simultaneamente à noite na boate, vemos que Stephen e Cheryl finalmente ficaram íntimos. Eles têm uma noite de amor na praia. A relação entre Quaid e Stephen fica fragilizada quando os dois trocam acusações, depois que ele expulsa uma garota a quem flagrou dando um depoimento mentiroso. Cego de fúria, Quaid quebra os equipamentos com golpes de taco. Cheryl e Stephen viram o suficiente, e partem. Antes de deixar a casa, Stephen dá um murro na cara de Quaid.

Na mesma noite, ele procura Stephen, quando ele está a caminho do prédio do dormitório. Quaid deseja se desculpar, e Stephen, que sempre dá novas oportunidades a um sujeito claramente instável, aceita uma carona.O papo não custa a voltar ao dilema do medo. Quaid pisa no acelerador, com o intento de reproduzir o cenário da morte do irmão, de modo que Stephen vença seu medo. Por pouco eles não se acidentam. Stephen salta do carro, e pede para que Quaid não o procure mais. Cheryl não tem a mesma sorte. Enquanto Quaid volta para casa, ela, que voltou para recolher os equipamentos quebrados, se depara com o porão onde ele conserva suas perturbadoras pinturas. As pinturas unanimemente retratam mulheres deformadas por ferimentos provocados por machado. Cheryl tenta não transparecer medo quando Quaid a encurrala, mas o colega a prende ali dentro.

Quaid prepara o porão para seu experimento. Ainda não sabemos o que fará à Cheryl. Stephen falha miseravelmente nas tentativas de contactá-la. Abby procura Stephen para fazer as pazes. Já que entrará de férias na manhã seguinte, não quer partir brigada. Eles voltam a ser amigos, mas ao deixarem a sala juntos para investigar de que se trata uma certa comoção no hall, descobrem a exibição de um vídeo que Quaid deixou por ali. Ele fez imagens de Abby em seu mais vulnerável momento, e exibe uma pintura que fez da garota. No vídeo, Quaid surge com um pincel e passa tinta preta no rosto da figura. Ele mostra um cartaz onde se lê "Essa é a sua realidade, você jamais será normal". A moça fica bastante consternada e foge, humilhada. Obcecada em se livrar do sinal, entra em uma banheira com produtos químicos de limpeza. Ainda faz uma ligação para Stephen para revelar seu intento. Em um outro lugar, Quaid atraiu o inocente Joshua para uma cilada. Com uma pancada, desacorda o rapaz. Quaid pretende filmá-lo enfrentando seu maior temor. Ele incapacita a audição do garoto estourando seus tímpanos, de modo que Joshua seja assaltado pelas recordações da infância, do acidente que custou um dos sentidos. Depois de se divertir bastante com o horror do inocente garoto, ele o deixa em uma viela qualquer, atordoado.

Stephen chega desesperado ao dormitório da melhor amiga, e a encontra coberta de sangue, vagando pelo corredor. Desesperado, a abraça e cobre, e grita para que tratem de chamar uma ambulância. Joshua desperta em um leito de hospital, profundamente traumatizado com as malvadezas de Quaid. Confuso após a experiência, Joshua só pensa em vingança. Stephen também tem vingança em mente, e conhecedor do trauma de Quaid, resolve acertar as contas da maneira apropriada. Ele põe as mãos em um machado, e entra na casa disposto a matá-lo. Ao ver Stephen com a arma, Quaid é bombardeado por lembranças e foge para o quarto.

Apesar de inicialmente furioso, Stephen não traz dentro de si a mesma natureza predatória de Quaid. Ao vacilar por um momento, é rendido pelo colega, que exibe um revólver. Com uma coronhada, o põe para dormir. Ao despertar, Stephen se vê amarrado na cadeira, na sala de projeção. Quaid exibe imagens de Cheryl aprisionada dentro do porão. Quaid explica que forçou Cheryl a enfrentar seu maior medo, o sabor e o cheiro da carne. Quaid a deixou presa por muitos dias, e documentou o processo com suas câmeras. Por um tempo, Cheryl resistiu, determinada a não tocar a carne que ironicamente se tornava mais repugnante com o avanço da semana, vez que as moscas punham os ovos e o bife começava a se decompor. Finalmente, Cheryl acaba cedendo e mordendo a carne salpicada de ovos, enfrentando seu temor mais incrustado.


Durante a exibição do filme, Quaid escuta uma movimentação do lado de baixo. É Joshua, bastante confuso, quem apareceu por ali. Ele topa com o machado que Stephen deixou no chão, e se apodera da arma. Stephen desce as escadas, ignorante quanto ao risco que corre. Vagando pelos corredores em busca da saída, Stephen é subitamente golpeado acidentalmente por Joshua, que enterra o machado de maneira a dividir a caixa torácica em duas partes e romper uma importante artéria. Stephen morre instantaneamente, e Joshua é assassinado com um tiro na cabeça efetuado por Quaid. Ao escapar impune de suas maldades, ele arrasta o corpo de Stephen para o porão. Cheryl ainda está morando ali dentro. Quaid avisa que se ela quiser sobreviver, agora precisará consumir o cadáver.

Das 3 produções tratadas na resenha, "Dread" é o "patinho feio", o que não significa que eu o considero um filme fraco. Ao contrário, excelente suspense, "Dread" só expõe suas carências aos olhos dos leitores do conto homônimo publicado no 2° volume de "Books of Blood". Encorajado pelo suporte incondicional de Clive Barker, o diretor Anthony DiBlasi promoveu algumas mudanças na estrutura do enredo, alterações que ao menos ao meu ver não o serviram tão bem quanto se imaginava. Teríamos um filme mais interessante se as linhas do romancista tivessem sido encenadas do jeito que lemos no livro. Barker, todavia, parece pensar diferente. Em entrevista a Phil & Sara Stokes, Clive elogiou a nova reimaginação cinematográfica, afirmando: "Ele (o diretor Anthony DiBlasi) expandiu os personagens e tornou o tom mais sombrio, para falar a verdade. Eu creio que por mais sombrio que o conto seja, está ainda mais agora. Eu creio que o filme será mais macabro que o conto. No filme, você não está mais dentro da cabeça dos personagens da mesma maneira que no conto. Você lhes assiste de fora, e há tanta crueldade e loucura. Todos que assistirem ao filme se perguntarão 'o que será que Quaid descobriria dentro de mim? Eu sobreviveria aos meus medos?'. É bastante diferente do que acontece com Jogos Mortais. Primeiro, claro, porque eu escrevi o conto 20 anos antes! A premissa de Jogos Mortais difere da minha história. (Jogos Mortais) trata de uma premissa de vingança. Quaid, a seu turno, está essencialmente pesquisando o medo, ele pesquisa a natureza do horror, Jigsaw em Jogos Mortais não está interessado nisso, ele está interessado em ver os espíritos das pessoas quebrarem. Uma das cenas mais memoráveis em Dread é a da carne, a menina que odeia o cheiro de carne e é enclausurada com um bife que lentamente está se decompondo e parecendo mais repulsivo. À medida que os dias se passam e ela se desespera, você percebe que sua chance de sobreviver, comer o bife, está ficando cada vez mais degradante. Isso não é algo próprio a filmes do estilo Jogos Mortais. Eu não sei o que Jogos Mortais faria no lugar - provavelmente algo como colocar uma bomba na comida. Eu gosto de pensar em Dread como um filme de horror elegante. Eu também perdi minha audição por um determinado período em minha vida, e também tenho ojeriza a certos tipos de carne, a ponto de me dar ânsia de vômito pelo simples odor".

Não obstante minha reverência à opinião de Barker, penso de maneira distinta. Creio que a intenção do cineasta movia por uma modernização da trama, acomodação ao ritmo menos letárgico dos filmes de hoje, principalmente considerando que o conto foi concebido no início dos anos 80, e a versão para cinema buscava atender um público alvo que hoje se encontra na casa dos 20, e portanto não reage com muita benevolência à ambientação mais clássica, a uma história mais psicologicamente profunda. Ainda que as mudanças tenham furtado dos personagens o charme que naturalmente emana tão fácil das páginas de "Books of Blood", o produto final parece polido e estiloso, o que faz de "Dread" um exemplar muito superior a similares como "Eu Sei o que Vocês Fizeram no Verão Passado". O cineasta explicou melhor suas intenções em entrevista a James Grainger, quando traçou um paralelo entre os elementos que no conto compunham sua espinha dorsal e o sentido a que DiBlasi tentava levar sua versão: "A história está centrada nessa gente que você encontra diariamente, e por isso Dread é um dos contos mais apavorantes do Clive. Ensina que monstros nem sempre nascem, muitas vezes são criados pelas circunstâncias. E eles, monstros, andam entre a gente e geralmente parecem conosco. Eu categorizo Dread como uma trama clássica de rito de passagem. Os protagonistas veem-se naquela idade em que tentam encontrar um atalho para a fase adulta".

No frigir dos ovos, DiBlasi conseguiu utilizar como sustentáculo para sua aventura uma trama mais macabra do que a média, difícil de se vender, para, a partir da mesma, desenvolver o suspense que embora superior a similares, sacrifica a originalidade de Barker em favor de elementos mais apetecíveis ao grande público, nominalmente o romance entre herói e mocinha, na obra literária inexistente, e a criação de muitos pequenos "draminhas" paralelos que estorvam a soma das partes. A discussão acerca dos pontos não tão bons do filme demanda que eu me reporte ao conto, de modo que as distinções pareçam mais explícitas.


O conto "Dread" foi lançado entre os anos de 1984 & 1985. Tudo o que se vê de modernizado no filme foi uma tentativa do diretor de tornar a trama misteriosa um suspense mais acessível. Se visto a salvo das cobranças dos puristas, o filme merece elogios. Prende a atenção, e consegue esticar uma premissa simplista ao longo do tempo de projeção. Para os entusiastas de Barker, no entanto, muita coisa parece perdida no "salto". Não é a primeira vez que o problema acontece. Tomem como exemplo "A History of Violence", o filme de David Cronenberg. Quando o vi no cinema, em 2005, eu o achei fantástico, um retorno à velha boa forma do mestre do horror orgânico, o homem de cuja mente haviam brotado coisas como "Dead Ringers" & "M. Butterfly". 5 anos mais tarde, quando tive acesso à fonte, a graphic novel homônima escrita por John Wagner e ilustrada por Vince Locke, a minha estima pelo filme decresceu alguns pontos (apenas um pouquinho). Começou por "o melhor filme do ano" quando deixei a sala de cinema em 2005, e terminou com "poderia ter sido muito, muito melhor", em 2010, depois que adquiri a graphic novel na amazon e a li de cabo a rabo. O trabalho de Wagner me marcou tanto, a melancolia de sua bela trama trazida à vida em páginas de elegante preto e branco e traçados rabiscados de Vince Locke, que muito devo aos dois a história que eu escrevi mais tarde, "Nosebleed", diversos aspectos que me tocaram naquelas folhas gastas, amareladas pelo tempo, e que Cronenberg infelizmente não se permitiu enxergar. Mais recentemente, eu compreendi a charada. Como genial artista, Cronenberg nunca teria deixado de identificar a mágica nas páginas ilustradas por Locke. Ocorre que em uma entrevista ele confessou que jamais lera a graphic novel. Em linhas simples, quando sentou na cadeira de diretor, recebeu um roteiro com tudo pronto, uma adaptação finalizada, de forma que não se incomodou em ir atrás da fonte. Nisso, Cronenberg perdeu, e muito. O filme faz parte da minha seleta lista de favoritos, porém se o cineasta tivesse lido e compreendido as ideias de Wagner pertinentes à tristeza das circunstâncias - a vovó do personagem principal, uma idosa doente do coração, o melhor amigo Richie, que arquiteta um assalto ao restaurante onde os mafiosos se reúnem quando ele e Joey são só dois adolescentes no bairro, os prédios pequenos e bem decadentes do Brooklyn em um verão particularmente escaldante - a versão cinematográfica teria arrebatado a maioria dos principais prêmios da Academia naquele ano. Quanto a "Dread", o conto, o romance "água com açúcar" entre Cheryl & Stephen que vemos no filme jamais existiu. Não há menção a projeto estudantil algum sobre medo. Quaid, o vilão, apenas engata uma amizade com Stephen, um rapaz muito inocente que paga caro pela ingenuidade. A atriz Hanne Steen compõe uma mocinha durona e difícil de quebrar, todavia, no conto, é uma moça esnobe e orgulhosa que apesar de fingir odiar Quaid, vai para a cama com ele na primeira oportunidade, quando ele dá o bote que a faz engolir o orgulho e aprender uma lição. Antes que Quaid faça mal à moça, Stephen experimenta o "... curioso pressentimento de que Quaid estava cortejando Cheryl por suas próprias e misteriosas razões. O sexo não era o que atraía Quaid, estava certo disso. Tampouco era seu respeito pela inteligência de Cheryl o que o fazia mostrar-se tão atento. Não, de algum modo, a estava encurralando, isso era o que lhe dizia seu instinto. Estava preparando Cheryl Fromm para a morte". Adiante, o mestre Barker descreve:

"Não era difícil apreciar. Na foto seguinte, estava de pé, tranquila, com os olhos longe da tentação da comida, todo seu corpo tenso ante o dilema.

- Você a está matando de fome.

- Pode-se suportar facilmente 10 dias sem comer. Os gordos são frequentes em qualquer país civilizado, Steve. 6 por cento da população britânica está obesa do ponto de vista clínico em um momento ou outro. De qualquer forma, ela estava muito gorda.

Dezoito (nota deste resenhista - o número reporta-se, no conto, à ordem em que as fotos estão sendo apresentadas a Stephen): a garota gorda está sentada no canto do quarto, chorando.


- Aí começou a ter alucinações. Pequenos tiques mentais. Acreditava sentir algo no cabelo ou no dorso da mão. Às vezes, ficava olhando para o ar sem ver nada.


Dezenove: lava-se. Está nua até a cintura, tem os peitos cheios, a cara desprovida de expressão. A carne de boi apresenta um tom mais escuro que nas fotos anteriores.


- Lavava-se com regularidade. Nunca passavam 12 horas sem que se asseasse da cabeça à ponta dos pés.

- A carne parece...
- Passada?
- Escura.
- Faz calor no quarto, e há algumas moscas com ela. Encontraram a carne e depositaram seus ovos. Sim, está maturando perfeitamente.
- Isso fazia parte do plano?
- Claro. Se a carne lhe enojava quando estava fresca, qual não será sua repugnância ante uma carne podre? Este é o ponto crucial de seu dilema, não? Quanto mais espera para comer, mais nojo lhe dará o que tem para alimentar-se. De um lado está presa por seu horror da carne, e de outro por seu terror da morte. Qual dos dois cederá primeiro? Steve estava tão preso como ela. Por um lado, esta brincadeira começava a ficar muito pesada, e o experimento de Quaid se converteu em um exercício de sadismo. Por outro lado, queria saber até onde chegaria a história. Havia algo sem dúvida fascinante em ver uma mulher sofrer.

As 7 fotos seguintes - 20, 21, 22, 23, 24,25, 26 - refletiam a mesma rotina. Dormir, lavar-se, fazer as necessidades, olhar a carne. Dormir, lavar-se... e logo veio a 27.


- Está vendo?


Ela agarra a carne. Sim, agarrava-a, com a cara cheia de horror. A pata de boi parece mais que passada, está salpicada de ovos de mosca. Torcida. Na fotografia seguinte tem a cara afundada na carne. Steve acreditou sentir o sabor da carne podre na garganta. Sua mente imaginou um fedor apropriado e criou um molho de podridão para saborear com a língua. Como Cheryl pôde fazer isso?


29: está vomitando na caixa do canto do quarto. 30: está sentada e olhando a mesa. Está vazia. Atirou a jarra d'água contra a parede. O prato está quebrado. O boi está atirado ao chão em um atoleiro putrefato. 31: dorme. Tem a cabeça escondida entre os braços. 32: está de pé. Olhando outra vez para a carne, desafiando-a. A fome que sente está aparente no rosto. O nojo também. 33: dorme.


- Quantos dias agora? - perguntou Steve.

- 5 dias. Não, 6. 6 dias.

34: é uma forma imprecisa que aparentemente se equilibra contra uma parede. Ou melhor, a golpeia com a cabeça, Steve não pôde distinguir. Não tinha nenhuma intenção de perguntar. Algo nele não queria saber. 35: dorme de novo, desta vez debaixo da mesa. O saco de dormir está em pedaços, farrapos de roupa e partes de estopa cobrem o quarto. 36: fala com a porta, a quem está do outro lado, sabendo que não obterá resposta. 37: come a carne rançosa. Senta-se tranquilamente sob a mesa, como um homem primitivo em sua cova, e morde a carne com os incisivos. Seu rosto volta a ficar sem expressão, todas as suas energias se concentram na decisão que tomou. Comer. Comer até que a fome desapareça, até que a angústia de seu estômago e o enjoo de sua cabeça desapareçam. Steve contemplou a foto.


- Ela me surpreendeu. - comentou Quaid. - o súbito de sua derrota. Em um momento parecia estar tão resistente como sempre. O monólogo que recitou em frente a porta era a mesma mescla de ameaças e desculpas que proferia dia sim dia não. E então veio abaixo. Assim, de repente. Sentou-se sobre a mesa e comeu a carne até o osso como se fosse um prato fino.

38: dorme. A porta está aberta. Entra luz. 39: o quarto está vazio. 

- Para onde foi?
- Desceu as escadas. Entrou na cozinha, bebeu vários copos d'água e se sentou em uma cadeira 3 ou 4 horas sem dizer uma só palavra.
- Falou com você?
- Como no passado. Quando começou a sair de seu estado amnésico. O experimento tinha acabado. Não quis lhe fazer mal.
- O que ela disse?
- Nada.
- Nada?
- Absolutamente nada. Durante muito tempo acredito que nem sequer percebeu que eu estava no quarto. Depois cozinhei umas batatas e ela comeu.
- Não tentou chamar a polícia?
- Não.
- Nada de violência?
- Nada. Sabia o que eu tinha feito e por quê. Não foi premeditado, mas tínhamos falado de experimentos parecidos em conversas abstratas. Na realidade não tinha sofrido nenhum dano. Talvez tenha perdido um pouco de peso, mas isso foi tudo.
- Onde ela está agora?
- Foi embora no dia seguinte. Não sei para onde.
- E o que tudo isso demonstrou?
- Absolutamente nada, mas me deu um interessante ponto de partida para minhas investigações.
- Ponto de partida? Foi só um ponto de partida?

Havia um asco manifesto no tom que Steve empregou com Quaid.

- Stephen...
- Podia tê-la matado!
- Não.
- Ela podia ter enlouquecido. Desequilibrada para sempre.
- Possível, mas improvável. Era uma mulher de muito caráter.
- Mas você pôde com ela.
- Sim. Era um passo que estava disposta a dar. Tínhamos falado que enfrentasse o seu medo. Assim aí estava eu, permitindo que Cheryl fizesse justamente isso. Nada importante, na realidade.
- Obrigou-a a fazê-lo. Senão, ela não teria passado por isso.
- Certo. Foi instrutivo.
- Ou seja, agora é professor.

Steve teria desejado evitar aquele tom sarcástico, mas não pôde. Sentia-se invadido pelo sarcasmo e a cólera, e experimentava um pouco de medo.

- Sim, sou professor. - Quaid observou Steve, de soslaio. - Ensino terror às pessoas".

DiBlasi teceu um roteiro que intrincou desastradamente uma trama perfeita em sua sádica simplicidade. A estrutura do conto de Barker é clara: primeiro, Quaid realiza o experimento da carne com Cheryl, a deixa partir (diferente do filme, onde Quaid a aprisiona no cativeiro para sempre), depois rende Stephen e o submete a seu próprio medo. Lembram que no filme há um rapaz chamado Joshua, com o horror de ficar surdo novamente? Pois no conto original, o temor diz respeito a Stephen, não há nenhum Joshua. Quaid se diverte com o medo do rapaz, aprisionando-o em um duto claustrofóbico, cobrindo olhos e ouvidos para, com o tempo, simular o horrível sentimento da sinestesia. Quaid o solta, mas Stephen fica louco. Regressa para a casa em Pilgrim Street e trucida o rapaz a machadadas, dando-lhe um gosto de seu próprio medo. A sequência de eventos pode parecer simplista, contudo não lemos um conto aterrorizante ou assistimos a um suspense de roer as unhas apenas pelo final da jornada. Nós o fazemos pela execução. A execução da caneta de Barker é impecável, sua prosa memorável descrevendo imagens que ao invés de flagradas por câmeras, quando concebidas apenas no fértil terreno da criatividade, tornam-se mais apavorantes pelo abstracionismo envolvido. Vejam o trecho a seguir, que se dá quando Stephen acaba de ser absolvido de seu cárcere, a maneira como Barker descreve o colapso mental, e os detalhes sórdidos, como o fato de Quaid reaparecer vestindo uma máscara de Mickey Mouse, coisinhas aleatórias que nos agridem e terminam de arruinar a mente alquebrada do personagem, finalmente rendido à loucura:

"Quando por fim a luz apareceu, levantou o olhar para a pessoa que estava na porta, com uma máscara do camundongo Mickey, e sorriu. Foi um sorriso de menino, de agradecimento para com seu salvador engraçado. Deixou que o homem o agarrasse pelos tornozelos e o tirasse de rastros da grande habitação redonda em que estava curvado. Tinha as calças molhadas e sabia que se sujara enquanto dormia. Mas por isso mesmo o camundongo divertido lhe daria um beijo ainda maior. A cabeça dançava sobre os ombros quando o tirou da câmara de tortura. No chão, ao lado de sua cabeça, havia um sapato. A uns dois metros e meio acima dele se encontrava o ralo de que tinha caído. Aquilo já não significava nada para ele. Deixou que o camundongo o sentasse em um quarto iluminado. Deixou que lhe devolvesse a audição, embora na realidade não a queria para nada. Era divertido contemplar o mundo sem som, o fazia rir. bebeu um pouco de água e comeu um pouco de bolo doce. Estava cansado, Queria dormir. Queria a sua mãe. Mas o camundongo não parecia compreendê-lo, assim chorou e chutou a mesa e atirou os pratos e as taças ao chão. Logo correu para o quarto contíguo e atirou para o ar todos os papéis que encontrou. Era bonito vê-los voar para acima e cair revoando. Alguns caiam para baixo, outros para cima. Alguns estavam escritos. Outros eram fotos. Fotos horríveis. Fotos que lhe causavam uma sensação muito estranha. Absolutamente todas as fotos eram de gente morta. Algumas, de meninos pequenos, outras, de meninos já crescidos. Estavam caídos ou meio sentados, e tinham profundos cortes no rosto e no corpo, cortes que revelavam algo asqueroso, uma espécie de confusão de pedaços brilhantes e pedaços que supuravam. E ao redor dos mortos havia uma pintura negra. Não eram manchas definidas, mas salpicadas, com impressões digitais e marcas de mãos e tudo muito caótico. Em 3 ou 4 fotos se via o instrumento que tinha realizado os cortes. Sabia como se chamava. Machado. A cara de uma mulher tinha um machado afundado quase até o cabo. Havia um machado na perna de um homem, e outro atirado no chão de uma cozinha junto a um bebê morto. Aquele homem colecionava fotos de mortos e de machados, coisa que a Steve pareceu estranha. Essa foi sua última ideia até que o aroma muito familiar do clorofórmio invadiu sua cabeça e ele perdeu a consciência".

Note-se ainda que no mesmo conto, jamais se escuta da boca de Quaid que ele viu os pais assassinados a machadadas. Ao contrário, e brilhantemente, Barker apenas cita a obsessão do rapaz, encapsulada nas fotos de gente morta a machadadas. Para bom entendedor, meia palavra basta. Barker não precisa declinar. A menção de fotos e mais fotos colecionadas por Quaid sugerem as coisas horrorosas pelas quais passou quando criança. Ao render minha homenagem a "History of Violence", de Wagner, ao explicar como a melancolia da graphic novel me inspirou a escrever "Nosebleed", passa por uma questão de princípios também citar a maneira que a imaginação de Barker respingou na expressão da minha escrita. Do conto "Dread", as imagens que permaneceram comigo - Quaid com a máscara de Mickey Mouse, Stephen retornando com o machado em mãos e a descrição dos golpes, a sequência de estruturas ósseas que a cunha rompe - foram mais ou menos reproduzidas nos dramas de meus próprios personagens. Quando Robyn regressa para a casa do ex-namorado pintor que descobre ter lhe transmitido AIDS, ela veste a máscara de Mickey Mouse para tornar sua aparição ainda mais atormentadora ao subir as escadas. O erotismo elegante com que tentei guiar o enredo a uma seara mais adulta e sombria não saiu apenas das impressões que os filmes mais antigos de Cronenberg depositaram sobre meus ombros, já em tenra idade, quando ainda era criança e não tinha ferramentas psicológicas para absorver coisas como "Dead Ringers", mas também da escrita do próprio Barker, em muitos de seus contos, sobretudo "The Life of Death", quando Elaine Rider redescobre a própria sexualidade ao estudar o corpo nu em frente ao espelho, após uma aventura nas catacumbas logo abaixo de uma igreja que está para ser derrubada, ou quando "Jacqueline Ess" sutilmente ameaça Titus Pettifer de morte, apenas nas entrelinhas, enquanto o faz chorar como um bebê. Sobre erotismo, teremos oportunidade de compreender melhor como Barker o utiliza magistralmente quando passarmos para a análise de "Book of Blood".

Com uma fotografia saturada que enverga a atmosfera pelo peso, "Dread" jamais determina em que lugar se passa, no entanto a ambientação de tonalidades mais agressivas e o campus de linhas góticas, tão características da meca de estudos do Reino Unido, Oxford, parece sugerir que o drama se desenrola na Inglaterra, uma grata escolha, vez que o ritmo, o erotismo, a violência e a melancolia das histórias de Clive Barker encontram no Velho Mundo o solo ideal para fecundar. Algo na paleta de cores de "Dread" me sugeriu alguma familiaridade, e ao pesquisar os nomes nos créditos, vi que a fotografia se deve a Sam McCurdy, o homem por trás do visual das principais obras de Neil Marshall, talvez o grande nome do horror britânico, diretor de "Dog Soldiers", "The Descent" e o incompreendido "Doomsday", onde reciclou seu amor pelas ficções de John Carpenter e o gênero punk apocalíptico que regeu as produções italianas exploitation de um período bem maluco na primeira metade dos anos 80.


Em "Midnight Meat Train" vimos como Clive Barker falou sobre sociedades secretas e um mundo paralelo de magia, nos moldes de "Hellraiser". Em "Dread", ele descreveu personalidades psicopáticas e o joguinho onde o sexo é a moeda. Em "Book of Blood", seremos apresentado ao erotismo sensual que sublinha o ato da morte. Um andarilho muito debilitado encontra-se em uma diner de beira de estrada tentando se alimentar. Ele parece ferido e não fala muito. Um homem chamado Wyburd (Clive Russel) o observa de perto, à espera do momento certo para dar o bote. Quando o rapaz se aproxima do caixa para pagar, o estranho "vai a seu socorro", fingindo estar ali para ajudá-lo. Ele o auxilia a entrar no carro, e guia até uma cabine afastada, em uma região de bosques. Wyburd revela que é um mercenário, a serviço de uma mulher rica chamada Mary Florescu (Sophie Ward). Quando o rapaz desperta, vê que foi amarrado. O mercenário conta que a cliente lhe pagou um bom dinheiro para extrair a pele do garoto, que se chama Simon McNeal (Jonas Armstrong). Frio e indiferente, o mercenário não parece dar a mínima para o destino de Simon. Ao prestar atenção ao corpo todo grafado por palavras, pede que Simon conte sua história antes de ser morto. Simon começa: "Os mortos têm estradas, estradas que levam a intersecções, e intersecções que entram em nosso mundo, e se você se encontrar em uma dessas intersecções, tem que parar e escutar, porque os mortos têm histórias para contar". O filme então volta ao passado, para nos explicar como aqueles personagens foram parar ali.

Em uma determinada casa na Inglaterra, tida como um dos endereços mais assombrados da Europa, vemos um casal batendo à porta do quarto da filha, aterrorizado com os gritos da menina. Uma força invisível a sacode para todos os lados. Quando finalmente conseguem pôr a porta abaixo, os pais encontram a menina morta. Mary Florescu é uma professora de parapsicologia fascinada com a residência. Depois que os pais da menina morta põem a casa à venda, Mary e seu parceiro Reg decidem usá-la para o experimento. Obcecada com fenômenos paranormais, a professora acredita que o lugar finalmente lhe dará provas da existência do sobrenatural. A propriedade pertenceu originalmente a J.J. Tollington (participação especial de Doug Bradley, o Cabeça de Pregos de "Hellraiser"), um empresário milionário que a comprou na época da grande depressão. Tollington era um ocultista que se julgava capaz de conversar com os mortos. Reza a lenda que Tollington foi morto em uma sessão espírita, arremessado contra a parede com tanta força que morreu de hemorragia. Uma mensagem foi deixada em sangue na porta do armário, "Não zombe de nós". Semelhante mensagem também foi encontrada no quarto da garota assassinada. Mary afirma que a adolescente também costumava levar os amigos para tentar contatar espíritos. Mesmo naquela primeira visita de Reg e Mary, coisas estranham ocorrem. Os pisos rangem com tábuas velhas e gastas, e a porta do armário subitamente se fecha sozinha.


Simon McNeal é um jovem introvertido que se matricula na turma da professora Florescu. Sempre reservado, o rapaz chama a atenção da mulher mais velha. Uma noite, em um pub do campus, Reg e Mary conversam sobre o potencial da casa assombrada. Ela soa meio desencantada, e naquela mesma noite chuvosa, ao pegar o carro, enxerga o rapaz voltando solitariamente para casa a pé. Quando ela lhe oferece carona, Simon diz que é melhor não, e recomenda que tenha cuidado. Minutos depois, a professora quase sofre um acidente na estrada. Em casa, ela analisa a ficha de Simon enquanto toma um drinque. Ela não apenas ficou chocada com a intuição do garoto, como está genuinamente interessada em saber mais sobre seu passado. Na manhã seguinte, enquanto caminha com Reg, Mary afirma que quando criança Simon sofreu um terrível trauma: seu irmão caiu com a picape dentro de uma vala e atravessou o para-brisa de cabeça. Simon "viu tudo" na mente, pois simplesmente entrou na cozinha e contou aos pais que Steffan, o irmão, estava morto, quando nem tinha como saber. A professora crê que Simon possa ser útil na condução da pesquisa.

Ao término da aula, Mary convida Simon para conversar. À mesa do pub, o rapaz explica que as visões simplesmente lhe ocorrem, sem sobreaviso. Aos 11 anos, vizinhos passaram a visitar a casa dos pais, tomando-o como clarividente. Para amenizar o tom da conversa séria, Simon coloca uma moeda na jukebox, e ao som de uma música romântica, a tira para dançar. Embora inicialmente constrangida, Mary acaba se abrindo à presença do rapaz. Pela primeira vez ela cita a casa de Tollington, e o convida para trabalhar no caso. Mary o aconselha a não desperdiçar o dom e pede que a ajude a compreender o que aconteceu naquele lugar. Mais tarde, de volta ao flat, Mary desperta com risadas e peraltices de crianças, vindas do jardim. Ao investigar pela janela, enxerga meninas brincando de roda. As crianças deixam a brincadeira e a encaram de um jeito esquisito, antes de desaparecerem. Mary e Reg já estão movendo seus equipamentos para dentro da casa de Tollington. Reg parece aborrecido com a ideia de trazer uma terceira pessoa e Simon o escuta quando ele tece um comentário maldoso.


Enquanto realizam a mudança, os dois rapazes que movem os equipamentos tem "um encontro" com a força sobrenatural. Ocorre que estão somente brincando, pregando uma peça. Um dos rapazes da mudança é interpretado por Simon Banford, veterano de outros filmes de Clive Barker: ele fez o papel do cenobita gorducho de "Hellraiser 1 & 2" e uma das criaturas de Mídia em "Nightbreed". Antes de se recolher, Mary tem algumas palavras com McNeal. Ele ficará no quarto onde as atividades são mais intensas, enquanto Mary dormirá no quarto abaixo. A caminho da porta, a professora o enxerga se despindo de relance. Ela parece sexualmente atraída, e ao se dar conta da atração, o garoto atiça o jogo. Ao cruzar com Reg nos corredores, ele comenta intrigado para a professora que os microfones não estão capturando sequer ruídos de outros bichos, tão comuns em uma propriedade antiga. É como se ratos e baratas tivessem deserdado o lugar. Praticamente, há câmeras instaladas em todos os cômodos. Naquela madrugada, vestindo apenas camisola, Mary aparece no quarto para checar Simon. Quando está para fechar a porta, o garoto anuncia que está acordado e diz "também não consigo dormir". Ele se queixa de febre, desculpa perfeita para que Mary se achegue à cama para cuidar dele. Mary comenta que quando criança, a mãe costumava lhe dar leite quente, o que imediatamente remediava a insônia. Simon explica que quando não consegue adormecer, costuma se masturbar. Ele guia a mão da professora por sob os lençóis, e eles começam a fazer sexo. Tudo se revela um sonho, produto do inconsciente de Mary, que secretamente alimenta desejos pelo menino. Os seus gemidos ali sozinha na cama despertam a atenção de Simon e ele pergunta se a professora se sente bem. Envergonhado, ela responde que sim, e pede para que feche a porta.

Na primeira reunião do dia, Reg coloca suas preocupações. Como especialista em investigações do tipo, e reverente à formação acadêmica de Mary, Reg crê que não há lugar naquela casa para Simon. Mary responde que o jovem a ajudará a abrir a casa, a que o empregado comenta "Espero que a ajude a abrir somente a casa", em referência à real atração sexual entre o rapaz e a professora. Mary não aceita a observação, e afirma que se ele não está satisfeito com a forma como conduz os trabalhos, pode deixar. Reg se encontra na sala de controle, atento aos 4 monitores, quando escuta um sussurro distante perguntando "O que está fazendo?". Ao investigar um dos corredores, Reg escuta mais vozes, sussurros e batidas na porta, o rumor de comoção que não consegue entender bem. As vozes subitamente silenciam, e embora creia ter capturado o fenômeno, ao reportar o aterrorizante encontro à Mary, descobre que nada foi gravado. Repentinamente, os dois escutam os gritos de Simon, que se diz preso. Ao entrarem no quarto, o encontram com o peito cortado. Apesar de chocado, Reg procura manter-se frio e lógico. Dentro do closet, encontra terríveis palavras grafadas, coisas como "Eu sou a morte" e "Eu sirvo o inferno". As palavras inesperadamente se inflamam, tocadas por chamas que rapidamente se apagam. Reunido com Reg na cozinha, a professora tenta fazer sentido do ocorrido. O assistente fala que de fato jamais viu algo semelhante, no entanto lembra que tampouco sabe como David Copperfield faz um elefante desaparecer. Seu ponto é que o menino pode estar por trás dos fenômenos. Uma encenação.

Mary está dormindo no sofá da sala quando desperta com a voz de uma criança chamando o pai. Ao verificar o quarto de Simon, agora desocupado pelo hóspede, Mary flagra Reg colhendo material para a perícia. A professora leva as pistas para Nigel, um amigo do laboratório. No campus da universidade, Mary enxerga o jovem Simon, a uma certa distância. Ela o vê entregando dinheiro para um rapaz e recebendo um pacote em troca. Com a supervisão de Mary, Reg vasculha a mala do garoto sob o olhar do próprio, que nunca gostou da intromissão do homem mais velho. Mais tarde, distraída com sua leitura, Mary não percebe pelo monitor que Simon está passando mal. Reg nota a oscilação de tensão elétrica, e a casa começa a sacudir. Do quarto de Simon, chegam vozes do rapaz e de pessoas zangadas. Simon suplica para que o deixem em paz, pois jamais escarnecerá os mortos novamente. Desnudo no chão, Simon é encontrado coberto de sangue. O adolescente aterrorizado murmura que "dessa vez foi real, não foi como antes". Reg se depara com linhas e mais linhas escritas ao longo das paredes, sangue usado como tinta. As caligrafias diferentes indicam que muitas pessoas estiveram por ali. Dentro do armário, o aviso: "não insulte os mortos". Reg vota para que deixem a residência, Mary acha que a sensibilidade do garoto está canalizando a vinda dos espíritos.

A professora cuida das feridas do menino, e Simon abre o jogo. Ele quer que Mary compreenda: naquela noite, as manifestações espirituais foram genuínas. Mary responde que o adolescente foi o milagre que deu voz aos mortos, e o mundo inteiro precisa saber que há algo mais além da morte. A tensão sexual finalmente se torna insuportável, e eles fazem amor. Uma libélula se insinua para dentro do quarto, despertando a professora, que inicialmente parece sofrer de um estado de paralisia noturna. Mesmo acordada, não consegue se mover. Escuta vozes distintas, uma pessoa se queixando de que não fora sua hora, outra que conta ter sido levada ao bosque para morrer. Mary é levitada por uma força invisível e carregada à janela, de onde enxerga espíritos de crianças brincando na fonte. Reg exibe imagens realizadas pelas câmeras, sem que ela consiga entender o que aconteceu. Simon pergunta à professora por que o chafariz lhe parece um lugar tão importante. Mary explica que aos 10 anos, houve um tempo quando começou a acordar de madrugada, atraída por risadas e brincadeiras de um chafariz parecido, que estaria sempre jorrando ao receber crianças que não conhecia. Estranhamente, todas as manhãs, Mary constatava que o mesmo se encontrava seco, intocado pela água. Tempo depois, quando a prefeitura pôs o chafariz abaixo em favor de um novo projeto, os pedreiros encontraram o corpo de uma menininha, enterrado sob a fonte. A menina havia sido estuprada, torturada e morta por um homem que morava na mesma rua, sua identidade exposta graças ao exame de DNA. Quando a polícia finalmente pôs as mãos no maníaco, ele já havia feito novas vítimas, todas crianças. Ainda hoje Mary se sente arrependida, pois se tivesse contado sobre suas visões aos pais mais cedo, talvez o homem tivesse sido detido antes de ter matado as crianças. Reg procura consolá-la, e eles se abraçam.

Por ora, Mary resolve se afastar da casa de Tollington, para descansar, no entanto mesmo em seu flat escuta vozes de crianças. Ao averiguar, vê que Simon a seguiu até ali. Do mesmo jeito que a professora fez antes, agora é Simon quem deseja se abrir. Apesar de suas inexplicáveis experiências, como quando previra a morte do irmão, o rapaz crê que perdeu a habilidade aos 13 anos. Ao topar a aventura, a sensibilidade de Simon foi reavivada. Ele jamais teve um contato tão palpitante com o sobrenatural. Ele não apenas vem apreciando o renascimento de seu dom, também não quer se afastar da professora. Os dois se envolvem romanticamente, e o livro de Mary, sobre as experiências na casa de Tollington, é lançado para absoluta aclamação de público e crítica. O casal é abordado por duas senhores com cópias. Enquanto Simon assina as contracapas, Mary recebe uma ligação de Nigel. O resultado da perícia finalmente saiu. O material indica pólvora em sua composição, uma pólvora bastante utilizada em truques antigos de mágica. Mary não quer acreditar que o namorado foi capaz de enganá-la. Confrontado com as provas, entre elas carvão e enxofre, o rapaz admite envergonhado que forjou parte das manifestações. Vejam que ele admite a encenação de apenas parte das manifestações, ou seja, houve coisas esquisitas que em nada foram simuladas. Mary recebe a verdade com muita dor, e o que mais a magoa é o fato de ele ter sido capaz de afrouxar os pinos dos pneus, naquela noite chuvosa. Simon tenta fazer as pazes, insiste que na segunda experiência o que aconteceu foi real, mas Mary não quer saber.

Confrontada com a solidão depois que Simon parte, Mary sente saudade e bebe para anestesiar a dor sentimental. A garrafa é atirada no chão por uma força invisível. Ao escutar vozes semelhantes a preces no andar onde Simon dormia, a professora tem a visão de um elegante cavalheiro, Tollington na verdade, presidindo uma sessão espírita, e sendo morto. Ele também enxerga em flashbacks a morte de uma menina, filha do casal que morou ali pela última vez. Reg apresenta à Mary uma variedade de itens que o rapaz usou para seus truques. O assistente acredita que tudo o que houve na casa não passou de sugestão. Simon aparece na porta, molhado de chuva. Ele reitera que não é um charlatão, e que a casa lhe devolveu o dom de se comunicar com os espíritos. Ele se despe e sobe as escadas, em direção ao quarto, avisando que finalmente lhes dará a prova de que a casa de Tollington é assombrada. Isolado dentro do cômodo, Simon é assaltado pelos espíritos, que riscam suas mensagens no corpo, talhando recados sem se importarem com suas súplicas. Mary e Reg têm uma visão aterradora dos fantasmas, milhares deles, alguns descendo as escadas em fila, muito lentamente. Reg perde o equilíbrio e cai do segundo andar, quebrando o pescoço e morrendo instantaneamente. Ao abrir a porta, a professora vê que o quarto "deixou de existir". À frente, há uma sombria encruzilhada tomada por almas, espíritos esperando para grafar suas mensagens no corpo de Simon. Ele implora por ajuda, mas Mary parece mais interessada nos recados que os mortos têm para dar. Mary se ajoelha ao lado de Simon e diz "Eles esperavam por alguém que ouvisse suas histórias". Ela lança um olhar para os milhares de espíritos e afirma que passará suas queixas ao mundo. O quarto recupera a aparência normal, e a fenda entre os dois mundos é selada.

Mary salva a vida de Simon, e o aprisiona para usá-lo como interface para que os mortos rabisquem suas histórias. Foi por isso que ele fugiu de Mary. Agora, a trama volta ao presente, para a cabana onde o garoto foi aprisionado por Wyburd. Quando chega a hora de o mercenário executar o serviço, Simon pede para que ele seja rápido. Crente de que tudo terminou bem e receberá uma fortuna, o mercenário resolve esperar Mary por ali na cabana, até que o lugar começa a ser invadido por um fluxo constante de sangue, vindo da maleta onde o mercenário estocou a pele. Aprisionado dentro da cabana, ele morre afogado em um rio de sangue. Quando Mary chega, não há sinal de sangue, mas o mercenário jaz morto no chão. A professora se apodera do tecido que é a pele de Simon, ainda grafado por mãos invisíveis em um processo constante de transformação, tal qual uma lousa. Ao final, vemos o espírito do garoto se juntar às almas do limbo.

O mais sóbrio e elegante dos filmes recentes baseados em fantasias de Clive Barker, apesar de não tão extravagante ou violento quanto "Dread" & "Midnight Meat Train", "Book of Blood" goza da elegância que fez do primeiro "Hellraiser" uma obra tão íntima, querida e ressoante. Dirigido por John Harrison, um cineasta que mostrou competência nas rédeas da ambiciosa adaptação de "Duna", de Frank Herbert, para a televisão, e com um elenco desconhecido de competentes atores, que dá à produção arestas quase teatrais, "Book of Blood" estreou no festival de Hamburgo de 2009, portanto o último dos 3 filmes analisados por este trabalho. Passou algumas semanas em cartaz, em salas de cinema no Reino Unido no final daquele ano, e chegou ao Brasil muito quieto, como "Livro de Sangue", lançado diretamente no mercado de DVD pela PlayArte, o selo que atualmente lança o que há de melhor no gênero.


Desprovido da ferocidade & sanguinolência de "Midnight Meat Train", nem de longe tão violento quanto "Dread", o filme de John Harrison é um "slow burner", que em sua hora e meia de projeção me fez pensar nas saudosas, há muito extintas produções da Hammer, o símbolo máximo do horror europeu entre os anos de 1934 e 1979, quando assistimos aos tempos áureos de Drácula, Frankenstein e a Múmia, em filmes que se vistos hoje nos remetem ao período em que o gênero gozava de requinte. Em termos de atmosfera e proposta, "Book of Blood" reúne as melhores qualidades do subgênero "casa mal-assombrada". Não obstante a maioria associe o fantástico "Invocação do Mal" ao referido subgênero, em que pese sua supremacia sobre os filmes de horror mais novos, a obra de James Wan nos acerta com uma velocidade que não parece própria das antiquadas e melancólicas produções da Hammer. Se coisas como "Invocação do Mal" & "Sobrenatural" nos seguram na beira da poltrona roendo unhas, filmes como "Book of Blood" nos convidam a acomodar as costas: não nos fazem roer unhas, porém, gradualmente, nos envolvem como lençóis molhados, e a sensação de tragédia e confusão trabalha sem pressa para crescer em nossos corações. Em horrores do tipo, como "Hellraiser", não há de se falar em sustos ou trilhas espalhafatosas, não funciona por esse viés. As tramas preferem nos capturar mais sutilmente, de uma maneira que não sintamos. Só vamos nos dar conta quando a sucessão de cenários macabros se tornou atordoante demais para que possamos organizar uma reação. Em "Sobrenatural" & "Invocação do Mal", as cenas impactantes tornam a leitura de nossas batidas um gráfico semelhante ao de abalos sísmicos: em "Sobrenatural 2", a "Mãe de Parker Crane" costuma aparecer do nada e literalmente se materializar na frente da personagem de Rose Byrne para gritar "Não ouse!" e nocauteá-la com tapas. Em "Invocação do Mal", Patrick Wilson & Vera Farmiga conversam nas cercanias da propriedade assombrada da família Perron, quando ao pararem ao lado de uma árvore muito alta, a câmera de James Wan nos revela que pelo ponto de vista da atriz, há pés pendurados acima dos ombros de Patrick Wilson, o espectro de alguém que morreu enforcado naquele lugar. Em "Hellraiser", "Book of Blood" e por que não o restante da obra de Clive Barker, ou mesmo nos thrillers psicológicos dirigidos por Brian De Palma no auge de sua força criativa, nos anos 70 & 80, ou em parte dos filmes que tornaram Roy Scheider astro, como "Last Embrace", de 1979, acompanhar o desenrolar da trama não difere de virar as páginas de um romance altamente envolvente. Você quase torce para que a diversão não acabe tão cedo, e geralmente, quando termina, precisa revisitar o filme (ou livro) para resgatar a eletricidade que conseguiu tão bem criar, não em instantes pontuais, mas na soma de suas melhores qualidades. Mesmo que exija um investimento inicial, "Book of Blood" compensa a atenção dedicada, e o retorno se dá pelo melhor rendimento, não o rendimento do choque, e sim gradualmente, em cenas pequeninas e interessantes que vão se somando para conceber a proposta de tragédia e fatalismo que envolve os corajosos exploradores da "Casa de Tollington".

Exemplo das pequeninas e interessantes cenas podem ser encontrados aos montes. A visão das crianças brincando à noite ao redor do chafariz, o segredo que conecta o passado de Mary Florescu aos espectros, o trabalho que Simon dedica às artimanhas secretas para criar apenas em um primeiro momento as provas tão desejadas por Mary, e logo mais se mesclam e são engolidas pelas manifestações muito reais de atividades paranormais, quando os investigadores descobrem que o lugar é uma "encruzilhada" no outro plano, no limbo, ponto de peregrinação frequentado por espíritos, milhares deles, todos os dias. Apimentado por um perspicaz erotismo elegante, sensual e gótico que também sublinha os contos de Barker, "Book of Blood" decola pela química entre Jonas Armstrong & Sophie Ward, e a sensibilidade com que o diretor John Harrison se delicia com o jogo de sedução entre professor & aluno, incrementando a tensão sexual até que ambos não vejam alternativa que não dar vazão à expressão de um insuportável desejo carnal, além de suas capacidades humanas negar a rendição ao pecado. Ao traçarmos um paralelo  entre Sophie Ward & Clare Higgins, as duas parecem mais semelhantes do que poderíamos imaginar. Em "Book of Blood", a professora Mary Florescu (Sophie Ward) começa como uma personagem frígida, movida por obsessões pessoais. Em "Hellraiser", Julia (Clare Higgins) apenas cumpre com o papel de esposa e madrasta ao se mudar com o marido para a casa anteriormente ocupada pelo cunhado, mas esconde por trás da fachada de contentamento a tristeza e insatisfação de acompanhar um homem que já não ama. No curso das duas tramas, a sensualidade vulcânica dessas mulheres maduras, que já há algum tempo perderam seu ápice, o esplendor com que comandavam as atenções masculinas ao entrarem em um salão, por exemplo, emerge através da concretização de desejos proibidos catalisados pelos seus piores verdugos, as respectivas inseguranças. À medida que as obsessões estorvam o senso de julgamento dessas "princesas sem reino", Mary & Julia gradualmente vão abrindo precedentes cada vez mais perigosos, para justificar desde o sexo com adolescente (no caso de Mary) e transas com o cunhado (no caso de Julia) ao esfolamento do estudante & parceiro sexual (no caso de Mary) e homicídios a marteladas no crânio por parte de Julia. Em entrevista a Paul Kane, Barker explicou as similaridades entre as personagens: "Era muito importante que tivéssemos dois artistas absolutamente destemidos, em termos de não temerem expor seus sentimentos ou corpos, e fomos abençoados. Primeiramente, tínhamos dois jovens bonitos, duas pessoas absolutamente destemidas em termos do que apresentar para as câmeras. Eu duvido que haja um filme de horror tão sexy quando este... eu tenho noção de que Mary tem algo em comum com Julia, que ela é uma mulher que tem uma vida amoroso disfuncional,  e estende a mão em busca do conforto de alguém a quem possa amar e confiar, apesar de este parceiro se mostrar um mentiroso e farsante. Eu penso que é interessante".

"Book of Blood" foi filmado em Glasgow & Edimburgo, e conforme a intrigante ficção-científica "Under the Skin" fizera antes, atesta o infinito potencial de sua gélida e lúgubre paisagem para acomodar aventuras aterrorizantes. Como mais legítimo sucessor de Edgar Allan Poe, Barker jamais honraria seu antecessor se não soubesse trabalhar a melancolia gótica do atormentado poeta que, diga-se de passagem, em vida, apesar de escrever sobre terror, amava gatos e os recolhia das ruas: acredita-se hoje, aliás, que Poe morreu de raiva humana. Aqui, servido pelo cinza da Grã-Bretanha como plano de fundo, John Harrison ambienta um filme de fantasma no melhor estilo Hammer. Apesar do tempo de projeção relativamente longo, principalmente levando em conta a menor escala dos dois contos usado como fundamento, "On Jerusalem Street" & "Book of Blood", ao rechear as lacunas entre as cenas assustadoras com a fotografia que o torna visualmente charmoso e interessante, Harrison jamais deixa sua obra perder fôlego, desde que o tomemos pela sua natureza de criativo experimento, justaposição de dois momentos distintos da história do cinema britânico, a Era de Ouro da Hammer & a nostalgia que impeliu um cineasta a renovar velhas fórmulas em tempos modernos, para servir o público cujo gosto tende para algo mais dinâmico.

não há nada de errado com o sentido para o qual o cinema moderno caminha (ou corre). Acontece que mesmo os jovens cinéfilos que por alguma razão chegaram a este blog fariam melhor dando uma oportunidade ao que veio anteriormente. Há um mundo maior do que aquele que vocês hoje veem nas salas de multiplex. O acesso praticamente ilimitado à informação torna a busca dos jovens de hoje muito mais simples de quando eu tinha 14 anos, por exemplo. Para conseguir assistir à fita em VHS de "Gêmeos Mórbida Semelhança", com o selo da extinta F.J. Lucas, lembro que tive de insistir para a minha mãe por um bom tempo. Foi meu presente de aniversário de 15 anos! Evidentemente, uma porção de coisas da história escapou da minha compreensão infantil de mundo, à época. O mesmo ocorreu com "Estranhos Prazeres". Por mais que uma criança não consiga processar 90% da sutil filosofia embutida e macabra daquelas tramas tão apavorantes, as imagens fortíssimas queimaram em minhas recordações. Não bastasse a atual simplicidade de acesso à informação, clássicos do passado ganham nova roupagem em espetaculares edições em blu-ray que nos abrem as portas para um mundo mais rico que jamais pensávamos existir. Mais recentemente, tive a satisfação de adquirir o blu-ray de um de meus filmes preferidos da infância, dirigido por Barker, "Nightbreed" (foto), baseado em seu romance "Cabal": tê-lo com uma qualidade superior de imagem & áudio bastaria para torná-lo um item obrigatório na minha coleção, mas os caras da Shout Factory, que tornaram a edição possível, foram mais além. Eles intercederam junto ao estúdio que tinha o corte original, a versão integral de Barker, e restauraram os negativos de modo a nos apresentar sua versão, livre dos severos cortes com que a produção chegou aos cinemas em 16 de fevereiro de 1990. Agora, os blockbusters são concebidos aos olhos dos fãs, e foi a interação da internet que derrubou obstáculos entre estúdio e consumidor. Produtores & astros sabem o que as pessoas que fazem filas ao redor do quarteirão do cinema querem, e assim o verão sempre se torna a temporada dos sucessos. Não poderíamos ter imaginado jamais, porém, que até os filmes antigos rodados na "época do mistério", quando não havia internet e pouco se sabia sobre sua concepção, retornariam com semelhante interatividade, graças aos fãs apaixonados que justificam os esforços de selos como o da Shout Factory em resgatar as lembranças. Contraditoriamente, ainda não sei como me sentir a respeito da suposta transparência. Se por um lado é fantástico conhecer pelo avesso coisas que um dia foram as mais importantes de minha vida, por outro, a falta de limites inerente à obtenção de informações arranca de nossas mãos uma das mais caras bênçãos: a incógnita envolvida em não se conhecer inteiramente algo que por razões alheias você amou tanto quanto amava a si.

Hoje, recuperar o negativo de um filme de quase 20 anos atrás para relançá-lo em Blu-Ray é apenas uma amostra do que os fãs são capazes de pôr em movimento. Há um magnífico documentário chamado "Leviathan: The Story of Hellraiser and Hellbound: Hellraiser II", fruto do interesse das pessoas pelos dois filmes, que financiaram o projeto e produziram uma obra de quase 8 horas de duração. Para os fãs dos dois clássicos, que através dos anos precisaram aprender sobre sua concepção por fontes variadas, o documentário foi a concretização de um sonho, repleto de lembranças maravilhosas da turma por trás da feitura, desde os artistas (Clare Higgins, Imogen Boorman, William Hope, Doug Bradley, Ken Cranham, entre outros) aos técnicos que criaram o imaginário sensual e apavorante dos seres sadomasoquistas, o labirinto, e Leviatã, o "Deus da Fome, Carne e Desejo". Os fatos são riquíssimos. Por mais que tenha protagonizado dois dos filmes mais importantes do Horror, Clare Higgins jamais assistiu a nenhuma das aventuras de uma só vez, pois morre de medo de terror!Ela o conhece por partes, justamente pela natureza brutal de sua performance. Ken Cranham estava fazendo uma peça no teatro em Londres com o ator Gary Oldman, que ficou com uma pontinha de inveja, pois sempre quis trabalhar no gênero. Curiosamente, anos mais tarde, Oldman teria sua chance em "Drácula de Bram Stoker". Imogen Boorman fala sobre como gostou de trabalhar com Ashley Laurence e entre muitas recordações engraçadas da colega, revela que não tem histórias a contar sobre Clare, já que as duas pouco conversaram durante as filmagens, o que não é por menos, pois Clare Higgins interpretava Julia, a vilã, e Imogen a mocinha autista amiga da heroína. O set parecia dividido, portanto, em dois times: um do Bem (Ashley Laurence como Kirsty, Imogen Boorman como Tiffany, William Hope como o psiquiatra) & outro do Mal (Clare Higgins, Cranham, Doug Bradley como o Cabeça de Pregos e o restante da turma dos cenobitas: Barbie Wilde, Nicholas Vince & Simon Bamford). William Hope rememora que na época também estava com uma peça de teatro quando seu agente ligou oferecendo o papel de Kyle. Hope não pensou muito a respeito. Como jovem ator, quanto mais oportunidades de trabalho, melhor. Ele literalmente terminava o trabalho na peça todas as tardes e saia do teatro direto para os estúdios Pinewood. A agressividade que emanava do roteiro era tão avassaladora, ele relembra na entrevista, que durante os intervalos, ele e Cranham brincavam de todas as maneiras possíveis, mais como uma forma de aliviar suas cabeças da violência psicológica incomum forçada goela abaixo sempre que o diretor Tony Randel dizia "Ação". Na versão final, Kirsty & Kyle são apenas amigos platônicos, mas Randel chegou a filmar uma cena em que angustiados pelo que está por vir, os dois se beijam. Hope conta que como um cineasta bastante técnico, Randel não teve a sensibilidade para criar uma atmosfera que tornasse a feitura da cena mais fácil, de sorte que Hope e Laurence tentaram apenas uma vez, e como a filmagem não saiu legal, acabou cortada. A reminiscência mais divertida de Hope refere-se a um dia quando a sogra o visitou em Londres com seu sobrinho pequeno. Quando o menino soube que o tio estava trabalhando em um filme de horror, pediu para acompanhá-lo em um dia de trabalho. Hope atendeu o pedido, e levou a sogra e o menino. Adivinhem a cena realizada naquele dia? A da ressurreição no colchão, Julia só músculos e carne ressurgindo de dentro do colchão, envolvendo com pernas e braços o doente mental que está morrendo de hemorragia após ter se estraçalhado com um bisturi, e se alimentando da pobre vítima, enquanto Kyle assiste a tudo, detrás da cortina. A sogra não gostou do que viu, mas o menino o achou o melhor tio do mundo! Retomando o tema da descoberta, jovens de hoje quiçá interessados no que o mundo conheceu de melhor há apenas algumas décadas, é válido lembrar que os mestres atuais, homens como James Wan, diretor de "Velozes & Furiosos 7" & "Invocação do Mal" que vocês devem conhecer, aproveitaram muito do que viram naquilo que hoje escapa aos olhos de quem tem a vida inteira pela frente. Eu fico surpreso quando um adolescente ou mesmo uma pessoa aos seus 20 e poucos cita o talentoso cineasta Quentin Tarantino como seu diretor favorito, porém jamais ouviu falar do cinema exploitation dos anos 70, não faz ideia do que formou esse cineasta em particular, do que moldou sua forma de enxergar o mundo. Todo processo de estudo sempre parece delicioso, e se uma educação na história do cinema soa como um passeio que você adoraria fazer, imagine-o com os recursos de hoje, quando você pode ver o filme e depois assistir às pessoas envolvidas com a execução falando sobre tornar possível um mundo infinito de sonhos!


Eu gostaria de terminar a resenha fazendo referência a dois excelentes filmes de terror em vias de chegarem aos cinemas. Eu escrevi anteriormente sobre o primeiro, "Knock Knock", a respeito de um arquiteto assediado por duas psicopatas depois que a esposa e filhos partem para passar o fim de semana fora. Dirigido por Eli Roth, o filme ganhou um título para o lançamento no Brasil no próximo dia 17 de setembro, "Bata Antes de Entrar". Na semana passada, o estúdio lançou o material publicitário para a divulgação, entre eles os fantásticos pôsteres conceituais, que nesta oportunidade gostaria de apresentar. O tipo de coisa que deixaria Brian De Palma com inveja, "Bata Antes de Entrar" denota o amadurecimento do cineasta Eli Roth, notório pela sanguinolência, aqui realizando seu trabalho mais contido e eletrizante, estrelado por Keanu Reeves (o arquiteto), Lorenza Izzo (esposa do diretor na vida real) e Ana de Armas, as duas atrizes nos papéis das assassinas. Por fim, permitam-me sugerir que fiquem de olho em um horror chamado "The Witch", ou "A Bruxa", que causou comoção por onde passou. O filme dirigido por Robert Eggers estreou no festival de Sundance este ano e seguiu recebendo elogios nos festivais de Melbourne & Toronto. Rodado em pequena escala, "The Witch" tem tudo para se tornar um novo "Corrente do Mal", outro horror independente que se tornou um estrondoso sucesso. "The Witch" conta a história de uma família de puritanos no Século XVII, expulsa da vila por razões que no curso do filme permanecem misteriosas. Composta pelo pai, mãe (que sofre de problemas graves relacionados à depressão) e 5 filhos (o mais novo um bebezinho), a família precisa recomeçar na vastidão de New England, às margens de um enorme bosque. Um dia, enquanto vigia o irmãozinho, a filha adolescente se distrai por um segundo, e ao abrir os olhos, não encontra mais o bebê. À medida que ao insucesso da colheita e percalços da vida em plena natureza selvagem soma-se o desaparecimento do bebê, os membros da família começam a se voltar uns contra os outros, enquanto uma força macabra da floresta próxima parece assediá-los, antevendo cada passo. Referido como macabro e genuinamente arrepiante pelas pessoas que o viram, "The Witch" parece se conduzir com um estilo mais elegante, cerebral e psicologicamente devastador, nas linhas de "Anticristo", de Lars von Trier, e, claro, "Lords of Salem", de Rob Zombie. Deixo o trailer para os amigos. Com uma data programada de estreia apenas muito vaga (o estúdio A24 apenas se comprometeu a lançar a obra em 2016), por um tempo, o trailer será tudo o que teremos para amenizar nossas ansiedades! Se me permitem a recomendação, prestem atenção na trilha que sublinha o trailer, e vejam como melodia & sutileza são próprios a apenas os mais amedrontadores filmes de horror. Aqui, neste trailer, mal há cenas violentas. No entanto, a panorâmica aterrorizante de um amplo bosque, o olhar preocupado que o marido dispensa à mulher, uma senhora mais madura que sofre de problemas psiquiátricos, quando ela se atira na cova que ele está preparando para um dos filhos mortos, o garotinho brincando e reproduzindo o balido da cabra, e o pé de uma mulher nua, na verdade uma das bruxas do convento, se insinuando para fora da cabana no meio da floresta nos assaltam pela garganta, apenas pela força da sugestão. O mistério é a metade do caminho.
Todos os direitos autorais reservados a A24. O uso do trailer é para efeito meramente ilustrativo desta resenha.