terça-feira, 31 de março de 2015

"The Babadook" (Jennifer Kent, Austrália, 2014) A dor da perda como o pior dos monstros.

Em uma noite há 7 anos, Amelia (Essie Davis) e seu marido corriam desesperadamente pela estrada, e não era para menos: ela estava em trabalho de parto, e o marido temia que não chegassem a tempo ao hospital. Tragicamente, um carro os colhe no caminho. Apesar de perder o marido e sofrer ferimentos, Amelia escapa com vida, e o bebê nasce sadio. Ela o chama de Samuel. O filme abre com um flashback da terrível noite do acidente automobilístico, e ao final da sequência, vemos Amelia "retornando para o corpo", ou melhor, "caindo de volta" `a cama, onde acorda do pesadelo. O filhinho Samuel a desperta com as reclamações usuais. Ele afirma que há um monstro no armário. Acostumada com os temores do menino, Amelia lhe mostra que não existe coisa alguma sob a cama ou dentro do armário. Ela lê uma historinha e o leva para dormir no seu quarto.

A vida de Amelia obviamente não é fácil. Ela trabalha como cuidadora em um asilo para idosos. Todas as manhãs, precisa sair muito cedo de casa, e ainda encontrar tempo para dar atenção ao menininho. Dono de uma riquíssima imaginação, Samuel bola as "armas" mais incríveis com seus brinquedos e bugigangas, em preparação para quando o "Babadook" aparecer. Aprendemos que a raiz de todos os males da criança sintetiza-se na figura do monstro a quem Samuel chama "Babadook". Samuel também gosta muito de mágica, e antes que a mãe o leve para a escola, lhe apresenta seu mais novo truque. Ao ser abraçada com muito carinho e um pouco mais de força, Amelia reage aborrecida, mas imediatamente parece arrependida por perder o temperamento. Apesar de amá-lo, aqueles 7 anos desde o acidente certamente começaram a pesar sobre seus ombros.

O comportamento de Samuel também não tem ajudado a harmonia em casa. Amelia é chamada pela direção do colégio quando seus professores encontram uma arma branca nas mãos do menino. A coordenação sugere a visita de uma assistente social, mas algo no tom dos diretores a deixa profundamente ofendida. Amelia interrompe a conversa, promete tirar o filho do colégio e deixa os supervisores falando sozinhos ao se retirar da reunião. Em um tocante cena, testemunhamos a inocência de Samuel, quando ao ser levado pela mãe para as compras, começa a conversar com uma menina, e a mãe da garotinha se aproxima para irem embora. Ela diz para a garotinha algo nas linhas de "Vamos, filha, seu pai está nos esperando", e Samuel observa inocentemente "Meu pai mora no cemitério". Ele segue falando sobre as circunstâncias da morte do pai. A mulher escuta a tudo pega de surpresa, e reage com compaixão, claramente tocada pela espontaneidade da criança.  Ao deixar, declara "Sua mamãe tem muita sorte de tê-lo".

Amelia o leva ao parquinho, onde encontra a irmã Clare. Não sabemos muito sobre o passado das duas, mas já que se passou tanto tempo desde a morte do marido, deduzimos que Clare cansou das necessidades da problemática Amelia. Sente-se uma hostilidade no tom com que Clare se dirige `a irmã. Clare explica que, diferente dos outros anos, pretende realizar o aniversário de Ruby separadamente ao de Samuel. Amelia reage com aceitação, mas Clare soa genuinamente ressentida, reiterando que só queria que Amelia fosse feliz novamente. Enquanto brinca no parquinho, Samuel exclama que quando o monstro vier, esmagará a sua cabeça. Clare assiste a tudo com uma expressão incomodada. Distraídas, as duas irmãs não veem quando Samuel escala um brinquedo mais alto e quase cai.

A vizinha, uma simpática velhinha, nutre especial carinho por Samuel. Talvez pela experiência de vida consiga enxergar a dor que impera na casa ao lado. O primeiro sinal da presença de uma força desconhecida no lar de Amelia se dá quando observa o animal de estimação, um cachorrinho, arranhando a porta que dá para o porão.  Naquela noite, Samuel mostra `a Amelia o livro escolhido para a leitura antes de dormir. Ela não se lembra de tê-lo visto na estante anteriormente. O livro se chama "Mister Babadook", obedece o formato de obras infantis em relevo (cada página, quando aberta, revela uma montagem, as figuras ganhando vida pelo mero ato de folhear), e apesar de dirigido a crianças, seu conteúdo soa sinistro. A história revolve o tal "Babadook", um monstro de cartola que só pode ser visto desde que você realmente preste atenção. Todos estes detalhes - Amelia não se recordar de um livro que existia na sua própria estante, a necessidade de se observar com atenção para se individualizar o "Babadook" - serão importantes, mais tarde. Samuel cai no pranto, assustado com o "Babadook". Amelia o consola e o põe para dormir. Intrigada, depois que o menino dorme, apanha o livro para uma segunda vistoria. Para sua surpresa, há folhas em branco, como se o final da história do "Babadook" estivesse para ser escrito. Também digno de nota, não há referências no corpo da obra - editora, autor, absolutamente nada. Até onde se sabe, a história pode ter sido ilustrada por um artista anônimo.

Samuel assusta a mãe saltando sobre a cama e exclamando que o "Babadook" apareceu no quarto. Amelia o conforta até fazê-lo dormir, porém de alguma forma aquela história também começa a afetá-la. Quando vai deitar, uma pancada vinda da porta a deixa ligeiramente enervada. O trabalho que Samuel dá acaba por lhe custar preciosas horas de sono. Ela chega um pouco mais tarde no asilo de idosos. Robbie, um colega de trabalho, procura se aproximar de Amelia. Genuinamente preocupado com a amiga, parece interessado em envolvimento amoroso. Em um turbulento momento da vida, porém, Amelia não parece inclinada a recomeçar a vida sentimental. Distraída, somente mais tarde dá pelas 10 ligações da irmã. Ao chegar `a casa de Clare, encontra o menininho sentado no jardim, e Clare com Ruby no colo. Clare explica que o menino assustou a filha com suas histórias sobre "Babadook". O menino desafia a tia e retruca que o monstro é bastante real.

Em casa, o comportamento de Samuel piora. Ele furta a chave do porão e apanha um porta-retratos com fotos do pai. O menino está criando uma espécie de armadilha, e vestindo a capa de mágico, brinca com espoletas enquanto brada para seu cachorrinho como derrotará o monstro quando este finalmente der as caras. Robbie presta uma visita e traz flores para Amelia. Ele não tinha noção da gravidade dos problemas no lar, mas uma vez ali, compreende que Amelia tem razões de sobra para sempre parecer triste. Quando Samuel aparece e Robbie lhe entrega um presente, o menininho desata a explicar que odeia a mãe por não deixá-lo mexer nas coisas do pai. Ao examinar o porão, Amelia o encontra ornamentado com as fotos do falecido marido, tiradas do álbum. Certa de que o livro tem mexido com a cabeça do menino, Amelia rasga "Mister Babadook" e arremessa os pedaços na cesta de lixo do jardim.

Amelia e Samuel comparecem `a festa de aniversário de Ruby. A presença dos dois parece motivo de desagrado para Clare, e até mesmo suas amigas a olham diferenciado. As duas irmãs procuram se entender, mas apenas pioram as coisas. Amelia a acusa de jamais se importar, e Clare responde com lágrimas nos olhos que não é verdade, apenas não tolera ficar perto do menino, a quem julga uma grave ameaça. Amelia reage profundamente ofendida. Nisso, atazanado pela menina chata na casinha da árvore, Samuel a empurra e Ruby machuca o nariz, o que efetivamente azeda a festa e faz com que Amelia resolva partir com o filho. No caminho para casa, o menino sofre convulsões dentro do automóvel, insistindo que o monstro se encontra ali.

O pediatra não consegue individualizar um problema específico com a saúde de Samuel. Ao contrário, ele pensa que os sintomas se devam a um generalizado quadro de ansiedade. O médico receita antidepressivos. `A noite, Samuel conversa com a mãe e, choroso, explica que não quer que Amelia morra. Ela minimiza seus temores e lhe dá um calmante. Na manhã seguinte, uma batida na porta chama a atenção de Amelia. Ao abrir, não há ninguém ali… Apenas o livro, "Mister Babadook", que alguém não apenas se deu o trabalho de emendar as páginas de volta, como também escrever nas folhas em branco, exibindo, em gravuras, a tirinha de uma mulher enlouquecida matando o cachorro e o filho, e depois cometendo suicídio com uma faca. Amelia fica apavorada. Naquela mesma manhã, recebe a ligação de alguém que não se identifica, apenas murmura, com uma voz sinistra, "Ba-ba-dook-dook". A polícia não a leva muito a sério quando insiste que ela e o filho estão sendo vítimas de um stalker. Em seu frágil estado psicológico, Amelia enxerga uma capa e cartola penduradas, e imediatamente as associa`a figura do "Babadook". Ela deixa a delegacia sem formalizar queixa.

Quando Amelia volta para casa, no final da tarde, encontra o filho com a velhinha que mora ao lado. Samuel se dá muito bem com a idosa, a única pessoa com sensibilidade e paciência para escutar tudo o que ele tem para dizer. Naquela tarde, Amelia recebe a visita de dois assistentes sociais. Apesar de se esforçar para aparentar normalidade, não consegue mascarar a atmosfera de tensão e tristeza que permeia o ambiente. A primeira vez que o "Babadook" se materializa diante dos olhos de Amelia, ela está lavando louça, com uma expressão cansada e distante. Ao lançar o olhar para a janela da vizinha, enxerga muito rapidamente o "Babadook" em um canto escuro da sala da vizinha. Ao piscar os olhos, Amelia não encontra a figura de cartola mais por ali. Na mesma noite, a figura macabra presta uma visita. Amelia enxerga aquele corpanzil envolvido pela escuridão se insinuar pelo quarto, subir para o teto, e repentinamente cair sobre seu corpo enquanto parece em transe. Ao vencer o transe, Amelia liga as luzes, desperta o menino, e o carrega no colo para a sala. O intento é o de permanecerem acordados, livres da influência daquela entidade inexplicável. 

Acredita-se que todo filme de Terror tenha um momento definitivo pelo qual passa a ser celebrado. Em "O Exorcista", a cena mais contundente se dá quando Karras sonha com a mãe ascendendo para as calçadas do Brooklyn, pelas escadas do metrô, ao menos por um breve instante, e o jovem padre gritando desesperadamente para que o espere. A velhinha volta a descer, desaparecendo de seu campo de visão. Friedkin roda a cena subtraindo-lhe qualquer som, o que a torna ainda mais notável. No caso de "The Babadook", penso que a cena a seguir permanecerá na minha mente por muitos anos. Amelia senta-se na sala, disposta a aguentar a noite acordada, e a partir de determinado momento as imagens que se sucedem na TV passam a fazer menos e menos sentido. A sequência de imagens em preto e branco reflete o frágil estado mental de Amelia, quando assistimos a cenas muito borradas, tais quais as de um filme da Era do Cinema em Preto & Branco, onde um mágico realiza truques e revela a figura antiquada, mesmo patética e triste, do "Babadook".

Amelia perde mais um dia de trabalho, e na manhã seguinte, também a paciência com o filho. Cheia de remorsos, tenta fazer as pazes com o garotinho. Ela se esforça para ter um dia normal com o menino, até mesmo o levando para tomar sorvete. Na sorveteria, a algazarra de crianças com os pais na mesa ao lado a ajuda a pensar em dias mais ensolarados. Na volta para casa, Amelia bate o carro, nada muito grave, mas o suficiente para deixá-los mais atordoados. Eles retomam o caminho para casa antes que o motorista do outro automóvel pergunte se estão bem. A velhinha que mora ao lado os vê quando retornam, e sente que o menino corre perigo. Força dos calmantes, Amelia não demora a cochilar, e quando desperta, de madrugada, tem a atenção capturada por rumores de vozes chegando da cozinha: Samuel está conversando com a vizinha pelo telefone, obviamente falando de suas preocupações e o medo de que a mãe atente contra sua vida. Amelia toma o telefone e desculpa-se com a senhora, pedindo que não se preocupe com a fértil imaginação do garoto.

Furiosa, Amelia apanha uma faca de cozinha e corta o fio do telefone. A situação está prestes a sair dos trilhos. O menino apenas finge tomar as pílulas para dormir, porque sabe que a mãe o matará se pegar no sono. Amelia tem visões horrorosas. Ela enxerga o filho com a garganta cortada, o corpinho estirado no sofá. Por um momento, desespera-se ao acreditar que finalmente matou o menino em um momento de loucura, porém percebe se tratar de uma alucinação. Ela sofre outras visões, como por exemplo assiste a uma reportagem na TV sobre o bárbaro homicídio de uma mãe que matou filho e cachorro, e foi morta a tiros quando os policiais atenderam a ocorrência. Durante a reportagem, enquanto enxerga policiais retirando os corpos, há uma mulher sorridente por trás das cortinas, a própria Amelia, com um sorrisinho malicioso. Claro que Amelia desperta da alucinação, mas entende que está perdendo a sensatez.

Atraída ao sótão, ela pensa enxergar o falecido marido, até compreender que se trata do "Babadook", tendo adotado a forma do rapaz para brincar com sua cabeça. Amelia se refugia no quarto, mas nada parece manter o "Babadook" do lado de fora. A criatura toma posse de sua mente, e Amelia mata o cachorrinho. Certo de que a mãe também o matará, Samuel utiliza as armadilhas preparadas para o "Babadook" para incapacitá-la. Ele a atrai ao porão, e Amelia tropeça em uma corda propositalmente deixada nos degraus. Samuel a amarra, e suplica que a mãe resista aos impulsos homicidas provocados por aquela energia ruim. Enquanto estrangula o filho com as próprias mãos, Amelia reganha a humanidade quando o menininho afaga carinhosamente seu rosto. Amelia vomita um líquido negro, a representação do "Babadook" que tomara morada dentro de seu corpo. Em um confronto final, Amelia desafia o espírito e ordena que deixe aquela casa. Ao expulsá-lo de sua vida, o demônio parece retroceder ao porão e se esconder ali dentro. Ao chão, caem pesadamente casaco e cartola, as vestes do "monstro". Samuel e Amelia finalmente foram deixados em paz.

Algum tempo se passa. Amelia voltou a ser uma mulher bem humorada e bonita, interessada no trabalho e no futuro de sua família. Depois de muito tempo, o sorriso finalmente retornou a seu ainda jovem rosto. Samuel conservou a mesma doçura, e parece cheio de ânimo e sonhos. Mãe e filho comemoram o aniversário com a presença da velhinha que mora ao lado e agora se tornou parte da família. Samuel mostra `a mãe um truque novo, fazendo surgir uma pomba branca, e a mãe fica realmente impressionada. Vemos Amelia e Samuel catando minhocas no jardim, e depois a mãe descendo ao porão. Aprendemos que apesar de o "Babadook" ter deixado a família em paz, e tomado morada no porão, A Coisa precisa ser alimentada de vez em quando. Amelia deixa o porão e se reúne ao filho no jardim. Eles estão em paz e mais unidos do que nunca.

Tendo colecionado indicações aos prêmios mais importantes do cinema fantástico de 2014, talvez o maior legado de "The Babadook" não seja nenhum desses merecidos reconhecimentos de crítica, mas as generosas palavras de ninguém menos que William Friedkin, um dos mais importantes cineastas, diretor de "O Exorcista", que sobre "The Babadook" escreveu, em seu twitter: "Jamais vi um filme tão aterrorizante quanto este!". Dirigido por Jennifer Kent, uma diretora praticamente estreante, esse perturbador thriller psicológico pulsa com a energia que aos filmes de suspense de grandes estúdios parece rarear a cada nova tentativa. Neste espaço de um ano, "The Babadook" permanece como um dos filmes mais comentados de 2014/2015, ao lado de um outro, igualmente intrigante, sobre o qual tecerei comentários ao final da resenha, chamado "It Follows". Por ora, fiquemos com "The Babadook".

Em uma Era onde o cinema tem sido mais sobre sustentação visual do que histórias sobre seres humanos, a diretora Jennifer Kent conseguiu realizar um feito realmente monumental: ela contou uma história muito apavorante, mas também sensível, que apesar de não temer nos arrastar a uma jornada muito sombria, não tem vergonha alguma de tratar com muito carinho sua espinha dorsal, o amor de um filho pela mãe e como tentam sobreviver ao assédio de uma presença misteriosa, na verdade uma representação das devastadoras consequências do luto. "The Babadook" conta com a performance de uma carreira por parte da veterana Essie Davis, e revela o talento do maravilhoso Noah Wiseman. As pessoas mais velhas que assistiram a "O Sexto Sentido" nos cinemas em 1999 e saíram encantadas com a performance de Haley Joel Osment não sabem o que lhes é reservado com "The Babadook". Pouquíssimas vezes no cinema de Horror a infância foi retratada com tão agridoce realismo. A devastadora atuação de Noah Wiseman estilhaçará seu coração como uma marretada contra uma vulnerável película de vidro. "The Babadook" levou um banho de indicações a prêmios importantíssimos, desde New York Film Critics Circle ao notório Saturn Awards (o mais respeitado prêmio concedido a obras do gênero Horror), a maioria das indicações revolvendo as poderosas performances de Essie Davis & Noah Wiseman.

Como poucos diretores conseguiram antes, Jennifer Kent fez do tom minimalista de "The Babadook" seu maior trunfo. Com modestos efeitos especiais - e mesmo assim aqueles existentes básicos e elementares - são as escolhas de Kent por takes e música que dão `as suas cenas a sobrevida que o tornará um filme memorável e comentado, anos por vir. Mais do que nunca, a simplicidade da combinação de uma cartola com casaco prova-se muito mais contundente e ressoante que imagens exageradas concebidas por efeitos especiais extravagantes. Como os grandes diretores de Horror certamente atestariam a seu favor, Clive Barker com os cenobitas de "Hellraiser 1&2" & Spielberg com o Tubarão do filme homônimo, Jennifer Kent não poderia ter feito melhor escolha do que empurrar seu monstro para um cantinho do enquadramento, até mesmo mantê-lo imerso em sombras, exibindo o mínimo para mover o enredo. A força das imagens reside no mistério, e nada feriria mais o mistério do que excessos, do que a falta de refinamento e elegância.

Em se tratando de um drama muito sério sobre as consequências do luto, fundamentado sobre imagens & simbolismos, qualquer variação imprópria na percepção da ameaça tornaria o conjunto menos impactante ou até mesmo tolo. Aqui, mais do que nunca, vale a tese de que "Menos é mais". O "Babadook" parece aterrorizante, não em uma riqueza de detalhes esdrúxulos, e sim na sua datada, antiquada e macabra representação teatral. Ele mais se assemelha a um Nosferatu sorridente de cartola, uma aberração circense e atemporal, nada mais do que o somatório de todas as frustrações e tristezas de sua heroína, que calha de se materializar naquela "Coisa" da qual a mãe jamais conseguirá totalmente se dissociar. Por esse viés, poderíamos interpretar o "Babadook" como as lembranças do marido, alimentadas pelo luto de Amelia. Interessante que o casaco e a cartola caídos sobre o assoalho, que ao longo do filme caracterizaram a figura do "Babadook", sejam, em última análise, parte do espólio do falecido marido, roupas deixadas para trás, após sua trágica morte. Lembram-se quando falei sobre o livro infantil "Mister Babadook", deixado na porta de casa?Durante o filme, descobrimos que um dos trabalhos de Amelia, antes da depressão, era o de ilustradora. Ora, foi ela quem escreveu "Mister Babadook", ela quem o deixou na porta de casa!Este filme não deve ser visto de modo literal, exige interpretação.

Creio que o filme se prove uma experiência ainda mais valiosa para as pessoas que se prepararem para enxergá-lo além das aparências. Apesar de aterrorizante, não é pela pretensa existência de um bicho papão onipresente que a história agride, e sim pelo reflexo muito real do fraturado psicológico de uma mulher atravessando um severo colapso nervoso. Poucos filmes de Horror elegeram o luto como plano de fundo para suas tramas. Eu me recordo de "O Segredo do Lago Mungo", porém de nenhum outro que o tenha feito com a mesma propriedade. Talvez por oferecerem muito trabalho para seus diretores, que precisariam dar um jeito para que Horror & Luto se complementassem coordenadamente, obras do tipo aconteçam apenas raramente. Assim como ocorre com "O Segredo do Lago Mungo", "The Babadook" merece elogios pela facilidade com que cria momentos realmente inesquecíveis, e pela dignidade com que trata seus personagens. Por soarem muito honestos e falíveis, por se portarem como gente como a gente, o filme se torna cada vez mais desesperador, porque diferente do que ocorre com tantos outros thrillers, por essa mãe & filho em particular aprendemos a nutrir muito carinho e lhes desejar o bem. Em termos de estrutura, semelhante trama pode ser encontrada nas páginas de "O Iluminado", de Stephen King, que com sua genialidade criou uma história nos mesmos moldes, também sobre doenças mentais, também sobre os devastadores efeitos de uma energia malévola atuando na psique de pessoas vulneráveis, e a tocante história de amor entre pais falíveis & filhos emocionalmente instáveis.

Similarmente ao que ocorre em "The Babadook", King desenrola a história de Horror sobre um hotel construído em território indígena, na remota região das Serras Nevadas, utilizando como espinha dorsal o drama familiar. Jack Torrance ama o filhinho Danny mais do que a própria vida, mas, vulnerabilizado pelo alcoolismo, não demora a ser arrastado a um turbilhão de confusão mental e maldade, graças à energia ruim preponderante no lugar. No filme de Stanley Kubrick, que Stephen King não gosta, o amor entre pai & filho quase passa despercebido, pelo fato de Kubrick ter preterido o tema em favor do exercício de estilos. Stephen King chegou a produzir uma minissérie em 1997 porque desejava que seu romance fosse traduzido mais literalmente para as telas. Na excelente minissérie, o cerne da obra literária de King resta preservado, de modo que o produto final, embora não tão extravagante e estilístico quanto o filme de Kubrick, goza da redenção que ao original de 1980 faltou. A jornada dos dois protagonistas - Amelia em "The Babadook" & Jack Torrance em "O Iluminado" - se dá em meio a um vívido, insano imaginário de demônios & fantasmas, que logo os joga `a beira de um precipício que dá para a insanidade. Uma vez que a barreira é ultrapassada, não há volta, a irretroatividade da tragédia muito bem encapsulada pelo infanticídio, a ameaça a pairar sobre suas cabeças durante todo o filme/romance. Enquanto no livro de Stephen King o "Babadook" de Jack Torrance é a tentação do alcoolismo, no filme de Kent o monstro toma forma na dor da perda e as implicações da ausência do marido na criação do filhinho, uma criança doce de fértil imaginação que infelizmente tem de pagar caro pela tragédia/pecados dos adultos. Os dois heróis são pais falhos, comuns. Muitas vezes, Torrance & Amelia soam estúpidos e agem como irresponsáveis, todavia no instante seguinte desmancham-se em poças de dor ao se debulharem em lágrimas para suplicar perdão aos filhos. Mesmo que os odiemos, o fazemos apenas por um curto espaço de tempo, porque logo nos é lembrado que afinal de contas são humanos passíveis de todas as falibilidades, e amam seus filhos mais do que a si mesmos.

Também em análogo, ambas as histórias se permitem uma espécie de redenção depois de tanta dor. No romance de Stephen King, Torrance conta com um último momento, um instante de lucidez, quando silencia as vozes que o deixavam louco, diz ao filho Danny que sempre vai amá-lo, pede para que o menininho corra, e morre heroicamente ao subir a temperatura da caldeira para mandar o hotel amaldiçoado pelos ares. No filme de Jennifer Kent, os afagos de Samuel conseguem acender dentro de sua cabeça perturbada uma centelha em meio `a loucura, e o amor de mãe finalmente consegue expurgar o demônio "Babadook", na verdade o imponderável sentimento da solidão, pondo termo ao pesadelo de assombrações e imagens tenebrosas. No desfecho escrito especialmente para a minissérie produzida por King, o autor deixa explícito o peso do relacionamento entre pai & filho na fonte original, porque conclui com uma cena alguns anos após os eventos no Hotel, quando aprendemos que Danny está se formando com louvor. Apesar das angústias da infância, cresceu para se tornar um homem estudioso, bem humorado, gentil e de muito valor. Na audiência, assistindo `a entrega do diploma, vemos a mãe Wendy e o velho Hallorann (o único amigo de Danny, quando criança, durante a aventura no Hotel). Danny é chamado para recebê-lo, as pessoas presentes aplaudem, e há um brevíssimo instante quando sente a presença do pai. Danny olha, e de fato enxerga o fantasma do pai Jack, jovem e feliz, livre daquela energia horrorosa do Hotel. Cheio de orgulho e com os olhos marejados, o fantasma do pai diz, "Belo trabalho, doc". Com um momento tão doce e emocionante assim, King sinaliza que apesar de ter se empenhado em nos apavorar durante a jornada, desde o começo seu objetivo foi o de encontrar mesmo em meio ao Horror lugar para compaixão e esperança. O olhar assertivo que King dedica `a inocência da infância ganha semelhante vida em carne e osso pela performance de Noah Wiseman. O grande James Wan, a quem eu costumo nominar de "O Novo Steven Spielberg", porque creio que se consagrará como uma das mais importantes forças criativas de Hollywood na próxima década, soube retratar o mundo sempre mágico e por vezes aterrorizante da infância com "Sobrenatural 1 & 2", mas a figura triste de Samuel é ainda mais impactante do que as crianças de "Sobrenatural", possivelmente porque o filme de Jennifer Kent, menor em escala, fundamente-se em traumas mais dolorosamente humanos e próximos `a nossa realidade, enquanto o de Wan tome a liberdade de sonhar mais além. Ainda sobre "The Babadook", em que pese sua trama depressiva por natureza, Jennifer Kent a fecha com uma bela, realista conclusão. Parece-me que ao indicar que o "Babadook" ainda toma morada naquela casa, em algum lugar escuro do porão, respeitando o acordo de não mexer mais com as vidas de Samuel & Amelia desde que alimentado de vez em quando, Kent está nos mostrando que na verdade foi a depressão de Amelia o "monstro" empurrado para o porão, para o lugar de difícil acesso. Em distintos momentos da vida, todos nós passamos por perdas ou experiências terríveis, e não obstante as marcas deixadas, conseguimos empurrar a amargura para um ponto menos acessível de nossas almas, afastar tais recordações ou frustrações para um canto mais remoto de nossos corações, de modo a nos permitirmos a felicidade e o prazer pelas coisas boas do dia a dia. Torna-se novamente possível planejar o futuro, e seguir em frente com nossos projetos, mesmo levando-se em conta tudo o que passou. O ser humano guarda uma capacidade impressionante para recomeçar e perseverar, e "The Babadook" apenas reitera a resiliência do espírito para a superação. Amelia sofreu, e provavelmente carregará consigo uma pequenina parte daquela amargura, que pode ser rastreada `a noite do acidente automobilístico. Acontece que finalmente foi capaz de empurrar a tristeza para um porão, um lugar mais discreto de seu coração, para finalmente focar-se nas coisas boas da vida. Ela ainda é jovem, despertou o interesse de um rapaz de valor, o colega de trabalho - eis a possibilidade para recomeçar uma nova família e viver inéditas experiências ao lado de um companheiro - e o seu filhinho é uma inocente, doce criança de imaginação fértil e inteligência fora do comum, que certamente construirá um amanhã ainda melhor para si. A dor da perda de Amelia pode ser devastadora, mas os motivos para voltar a sorrir são ainda maiores. 

Acho que se pensarmos em nossas infâncias, nos lembraremos que então o mundo parecia bem maior. Quando crianças, nossos sentidos estão tão aguçados que somos receptores, amplificadores, absorvemos tudo o que nos cerca como esponja, nada escapa `a percepção. A passagem dos anos chega para amortecer a maneira como as ações dos adultos reverberam nos nossos ossos, até porque nos tornamos tão adultos quanto eles. São poucos os filmes que capturaram a infância em toda sua glória, em todos suas pequenas alegrias e incomensuráveis desencantos. A história de "The Babadook" abre um canivete suiço de possibilidades perfeitas para que seus protagonistas explorem o fértil terreno da infância, desde as dores de se crescer sem a referência paterna aos monstros originados pela somatização de tantas angústias. Não obstante o elemento fantástico, esta é uma história com que muitas pessoas poderão vir a se identificar, seja na qualidade de pai, seja na da criança que todos um dia fomos, perdida em um mundo cheio de mistérios, o universo interpretado e rearranjado pela mente infantil. Guillermo del Toro conseguiu trabalhar o tema como tempero para a fórmula, dando a sua história de fantasmas "El Espinazo del Diablo" uma relevância ainda mais pronunciada e trágica do que a teria em diferentes circunstâncias. Ao recontar os eventos acerca do misterioso desaparecimento de um menino e a forma como seu espírito passa a assombrar um orfanato perdido no meio de um escaldante deserto na Espanha, tudo visto através da perspectiva das crianças que habitam aquele mundo, durante a Guerra Civil, del Toro prefere enxergar o elemento sobrenatural filtrado pelo mais gentil, romântico e fantástico prisma infantil, o que torna o resultado muito mais cativante. "The Babadook" acessa semelhante energia, um conto triste e sombrio sobre fantasma, visto sob a perspectiva de uma mãe doente e seu filhinho impressionável, duas pessoas sozinhas em um mundo enorme que nos faz pensar na inconstância e efemeridade da vida.

Amigos, gostaria de concluir a resenha mencionando um filme que certamente os interessará. Trata-se de "It Follows", a ser lançado no Brasil como "Corrente do Mal". Este pequeno thriller independente vem ganhando prêmios pelos festivais de cinema por onde tem passado, talvez o mais importante o grande prêmio dos críticos para seu diretor David Robert Mitchell, no festival de Cannes do ano passado. Elogiado pelo seu estilo retrô, desde trilha sonora com sintetizadores `a atmosfera, o filme tem sido descrito como uma homenagem aos climáticos, saudosos suspenses dos anos 70/80. Não por menos, "It Follows" venha merecendo insistentes comparações com o primeiro "Halloween", de John Carpenter. "It Follows" traz uma premissa muito intrigante, assim como "The Babadook" tratando seu monstro com o abstracionismo que o torna aberto a um leque de inteligentes e interessantes discussões. O filme fala sobre uma garota que após sua primeira noite de amor, herda uma "maldição", uma entidade que se materializa como uma pessoa na multidão, por exemplo, e te segue ameaçadoramente. A garota reúne seus amigos com o intento de desvendar o segredo da maldição e escapar de seu destino. Bastante aclamado, as pessoas têm discutido bastante sobre o simbolismo envolvido, que parece uma metáfora sobre doenças venéreas, ou até mesmo algo maior. Enquanto a tese de doença venérea soa aplicável ao quebra-cabeça, graças `a ligação entre sexo desprotegido e AIDS, você também poderia interpretar a "Coisa" por um viés mais amplo, como a soma das coisas que você fez, e na época pareceram inconsequentes, e que encontraram um jeito de voltar para te morder. Por esse enfoque de causa/consequência, a interpretação obedeceria as linhas do que Stephen King escreveu no seu romance "Pet Sematary", quando o personagem de Jud Crandall, o velho conhecedor da magia reinante naquela terra indígena e quem primeiro orienta o médico Louis Creed a enterrar o gato Church no "Cemitério Maldito", para trazê-lo de volta, diz "Um homem planta o que pode, e colhe aquilo que planta… E tudo o que é seu encontra um jeito de voltar para você".