domingo, 6 de julho de 2014

"Under the Skin" (Jonathan Glazer, 2013) Um evocativo, melancólico e misterioso conto de fadas!Impecavelmente montado e dirigido, não percam um dos melhores filmes de horror deste - ou de qualquer outro - ano!

2012 assistiu `a concepção do perturbador "As Senhoras de Salem", de Rob Zombie, um filme de horror extravagante e de difícil digestão que dividiu opiniões e foi largamente ignorado pelo grande público. Pessoas buscaram um filme de horror usual, mas se depararam com um suspense psicológico cheio de simbolismos e imagens agressivas. Parte saiu bastante decepcionada. Era impossível assistir ao filme e não reconhecer a bizarra influência de estilos tão distintos – câmeras e uso de trilha sonora remetiam a Stanley Kubrick; ritmo e erotismo, a Ken Russell, o diretor britânico de "Women in Love"; cores e extravagâncias ao Dario Argento dos delirantes anos 70. O arrecadado em bilheteria mal custeou os gastos para produzi-lo, porém "As Senhoras de Salem" veio a ter uma sobrevida exemplar no mercado de DVD. Se Rob Zombie queimou a oportunidade de se firmar como um cineasta comercialmente viável – nenhum grande estúdio lhe dará milhões para rodar o filme de sua escolha, vez que o seu estilo se provou bastante incomum, extravagante demais para a digestão do grande público – simultaneamente, agregou inestimável valor ao que ao verdadeiro artista mais importa. Mais interessante do que ser rotulado como financeiramente viável, Zombie parece preocupar-se mais em ser reconhecido como cineasta de visão. Todos os seus filmes, muito difíceis, denotaram preocupação com estilo e personalidade. Desde o primeiro, vê-se que o seu diretor é um artista metido na busca pelo aprimoramento do próprio olhar, as lentes dirigidas a suas próprias obsessões. De mais formas do que poderia citar, o que todo esse grupo conseguiu – Rob Zombie, Clive Barker, Brian De Palma, David Cronenberg, entre tantos outros – foi imbuir os seus filmes de elegância e senso de estilo. Por mais que não tenham sido inteiramente compreendidos pelo público, lhes deram a identidade que falta a diretores modernos. Com o lançamento do assombroso, ressoante "Under the Skin", os amigos podem adicionar o diretor Jonathan Glazer a esta seleta lista.

Há aproximadamente nove anos, o mesmo diretor rodou um filme cujos pontos fortes seriam aperfeiçoados para esta sua nova ficção científica. "Birth" foi lançado no começo de 2005, no Brasil, já sinalizando os traços da peculiar criatividade do diretor Glazer, que assim como acontece a todos os "autores", parece estar enraizada na influência dos mestres que vieram antes. Em tom, estilo e narrativa, "Under the Skin" difere de tudo o que os amigos já viram. Aqueles que o odiaram não pouparam críticas ao ritmo lento e `a "falta de sentido", quando da soma de suas partes. Ironicamente, ao afirmarem que "nada acontece" durante o tempo de projeção, parecem ter perdido a riqueza dos detalhes sobre os quais toda a atmosfera desse filme foi montada.

O filme não perde tempo, e já inicia visualmente instigante e cheio de mistérios: tudo o que vemos é uma luz na escuridão, na verdade uma estrela entrando em supernova, acompanhada por uma música de batida tétrica. Aos poucos, conseguimos escutar à voz de uma moça (que acaba pertencendo à protagonista). Ela não diz coisa com coisa, apenas fica repetindo letras, vogais e palavras, quase como um robô revisando a programação. Nova cena surrealista exibe algo semelhante `a acoplagem de um globo escuro, supostamente uma nave extraterrestre, a uma estrutura própria de aterrissagem. Vemos então um homem misterioso sobre moto correndo pelas auto estradas, até parar em uma curva deserta, na calada da noite, próximo a uma van, deixada preparada no acostamento. O cenário é bem desolador, abandono completo, a estrada banhada por aquelas luzes muito fracas, amareladas, de postes de rodovia. O motoqueiro salta a guard-rail e entra no mato. Ele reaparece segundos depois com um corpo sobre os ombros, e o guarda dentro da van estacionada.

Em uma cena bastante surreal, vemos que o corpo tirado pelo motoqueiro é o de uma mulher. No que parece o estéril, esbranquiçado interior de uma espaçonave, somos apresentados à protagonista, que no romance que originou o filme, escrito por Michel Faber, chama-se Isserley. Neste filme, A Extraterrestre não recebe nome, permanecendo uma grande incógnita, todavia para efeito de melhor explicação, eu a tratarei como Isserley, a personagem da atriz Scarlett Johansson. Isserley está nua e debruçada sobre o corpo da garota. Estranhamente, as duas são idênticas, e fica evidente que Isserley, a alienígena, pretende tomar a identidade da garota morta. Ela despe o corpo, veste as roupas e, depois de todo aquele demorado ritual, já vestida, põe-se a observar o cadáver. Em um dos primeiros momentos estranhíssimos, algumas lágrimas correm pelos olhos vidrados da garota morta. Isserley se agacha ao enxergar uma formiguinha, e fica encantada examinando-a, enquanto a mesma corre pelo seu dedo, ao sabor da luz muito branca que reina no interior daquele espaço - que novamente, suponho que seja uma nave extraterrestre.

Por um brevíssimo momento, quando o diretor nos "devolve" para "nosso mundo", para uma tomada externa da cidade - sobre a qual paira um céu lúgubre, cinza e fechado - vemos "dançar" (muito discretamente) por dentro das nuvens escuras as luzes de um OVNI, que logo desaparece, sem despertar atenção. Isserley desce as escadas de um hotel barato para apanhar a van deixada na calçada. O motoqueiro também é visto. Ele é o "chefe" de Isserley, e o veremos "nas redondezas", durante todo o filme, preparado para cuidar de imprevistos que possam atrapalhar a "sua missão". Isserley o vê partindo à toda velocidade, e também se põe em movimento. Ela se mistura muito bem a pessoas comuns em um shopping. Não há quem desconfie de sua verdadeira fantástica natureza. Ela compra os itens de que precisa para parecer mais atraente, e então vai "à caça".

Aí começa o mistério. Sublinhada por uma trilha realmente incômoda que eriça os cabelos, Isserley percorre as avenidas muito largas do monolítico centro comercial de Glasgow, Escócia. O diretor de fotografia Daniel Landin aproveita ao máximo o inestimável potencial do elegantíssimo cenário. Conhecida como a "Cidade Europeia da Cultura", o centro traz uma sucessão de lojas, pubs, restaurantes e prédios históricos, cujos design e arquitetura baseiam-se fortemente no estilo vitoriano, espetáculo à parte que dá ao lugar uma estranha sensação atemporal. Coadjuvadas pela trilha surrealista, as cenas rodadas naquelas avenidas e calçadas, cercadas por gigantes monolíticos sob o céu perenemente nublado, impõem ao filme uma bizarra atmosfera de sonho e fantasia. Em um primeiro momento, as interações de Isserley com os transeuntes parecem ordinárias e flertivas. Ela puxa conversa com rapazes que enxerga na calçada. Para o primeiro garoto, diz que está à procura da autoestrada. O solícito rapaz vai passando as direções, mas ela nem parece prestar atenção, só à espera da oportunidade para se aproximar melhor. Depois que termina, Isserley pergunta se o está atrapalhando. Algo na garota parece alertá-lo para a armadilha. Quando lhe pergunta para onde está indo, o rapaz responde "encontrar alguém", e educadamente se despede. Lamentavelmente, os outros homens que Isserley chamará à janela da van para "pedir direções" não vão resistir a seu charme. Esses vão se ferrar "de verde e amarelo".

A tarde vai passando, e começa a escurecer. Se Glasgow já parece uma cidade bonita mas lúgubre e melancólica, imaginem quando começa a anoitecer. A persistência de Isserley começa a mostrar resultados. Ela para num acostamento,  e ensaia a mesma ladainha para um rapaz que prontamente vai à janela do motorista para conversar, "Estou perdida, quero chegar à auto-estrada". Antes que o rapaz comece a passar direções, Isserley pergunta se ele está "à pé", e lhe oferece uma carona. Ele comete o terrível erro de entrar no carro. O rapaz vai logo adiantando que é solteiro, mora sozinho, e a sua casa nem é tão longe dali. Isserley vai dando corda para o cara se enforcar, e ele, todo alegre, achando que tirou a "sorte grande", vai contando sobre o que faz e o que quer da vida. É importante salientar que a direção fenomenal de Glazer, a atuação da atriz principal e a melodia de Mica Levi tornam até mesmo instantes aparentemente banais insustentáveis em tensão. Há "algo de errado" nestas situações, e o pressentimento de que algo de horroroso vai acontecer às pessoas que entraram no carro é esmagador. Os dois seguem o flerte, e o diretor corta para a próxima cena. Anteriormente, vimos que era fim de tarde; agora, noite fechada, e só há Isserley à vista. Novamente, a melodia esquisita de Mica Levi entra com toda a força, e mesmo que não tenhamos visto, podemos deduzir que ela fez algo tenebroso ao rapaz - assim como o fará a todos os outros que caírem na armadilha.

Isserley não deu a noite por encerrada. Um cara chamado Andy, por exemplo, escapa por pouco. Todo encantado, ele passa direções e responde às perguntas da sedutora motorista, quando alguém o chama da esquina. Isserley se assusta, talvez temerosa em ser reconhecida, e acelera. A próxima vítima entra no carro, e pela primeira vez, o filme nos mostra a natureza dos horrores sofridos pelos abduzidos. Isserley leva o garoto a uma casinha estreita de alguma rua dilapidada de Glasgow, obviamente sob pretexto de sexo. É difícil explicar racionalmente uma sequência tão surreal e incomum, mas creio que a casa para onde Isserley os leva seja um "portal" para a nave. Eles entram em um salão absolutamente gelado e escuro, e Isserley começa a tirar a roupa, recuando convidativa. O rapaz também se livra das roupas e avança, sem se dar conta de que parece estar entrando em uma superfície de material gelatinoso, até ser completamente envolvido, enquanto Isserley segue recuando, na superfície, até que a sua vítima esteja completamente envolvida e imobilizada.

O filme não oferece explicações, mas a missão de Isserley é abduzir homens para entregá-los aos outros extraterrestres, que submetem as vítimas a um período de engorda para depois os mutilarem. No planeta de onde as criaturas vêm, carne humana é uma iguaria de luxo, e de tempos e tempos, os extraterrestres retornam à Terra e usam os serviços de Isserley para atrair mais vítimas para engorda e sacrifício. Na versão cinematográfica, somos apresentados ao superior de Isserley, o homem na motocicleta, e muito rapidamente vemos a aeronave alienígena entre nuvens pesadas, mas nada mais nos é revelado sobre a natureza da civilização extraterrestre.

As pessoas que saíram impressionadas com o clima tétrico do filme parecem mencionar a mesma cena, que se dá em seguida. Isserley se interessa por um rapaz que está mergulhando mais próximo aos rochedos de uma praia. Não muito distante, há uma família - um senhor, sua esposa, uma criancinha e o cachorro - divertindo-se às margens do mar. Na Escócia, as praias são de cascalho, e a corrente pode se tornar perigosíssima para quem não está habituado à força com que as marés arrastam a tudo quando o mar recua. Isserley usa o script de sempre na abordagem - "Sabe se há lugares bons para se surfar por aqui?", "Você não é daqui?De onde é?", "Por que está na Escócia?". Nisso, o homem dá pelos gritos desesperados da mulher. O cachorro está sendo arrastado pela corrente, e ela se jogou ao mar para tentar salvar o animal. É claro que esse terrível acidente engatilhará um efeito dominó tenebroso: a mulher se jogou na água, para salvar o cão; agora, o marido mergulhou para resgatar a mulher. O rapaz que conversava com Isserley - familiarizado com aquela turbulenta praia - assiste a tudo com muita apreensão e resolve agir. Ele deixa Isserley ali, parada, e avança para o mar, para ver o que pode fazer para desarmar a volátil situação.

A força avassaladora da cena reside em quão banal tudo acontece, em como nossas vidas não se diferenciam de um sopro; uma hora estamos aqui e somos imortais, no minuto seguinte, a escuridão. Ali estavam homem, mulher e criança, e em um programa aparentemente inofensivo, agora todos estão sendo puxados para uma morte horrível. Revelando a sua natureza alienígena, Isserley testemunha a tudo com muita frieza, sem mostrar uma única reação que se assemelhe a compaixão ou terror. O diretor Jonathan Glazer captura o momento à distância, seus personagens meros pontinhos de nenhum valor diante da energia com que o mar, depois das rochas, os arrebata implacavelmente para dentro. O mergulhador consegue salvar o homem, mas infelizmente mulher e cachorro se afogam. Os dois chegam às margens exaustos, o marido inconsolável e aos prantos. O mergulhador nem tem como segurá-lo, quando, movido pelo desespero, insiste em retornar para o mar, até inevitavelmente acabar carregado pela corrente que já lhe custou esposa e cachorro. Ali um pouco acima do quebra mar, o bebezinho fica chorando assustado, obviamente sem compreender a extensão dos eventos. Isserley se aproxima do mergulhador, arfando por ar na beirada, e o golpeia com uma pedra, para desacordá-lo. Depois, sem atenção alguma quanto ao destino da criancinha inocente, Isserley apanha a caça pelos pulsos e a arrasta dali para a van, deixando o bebê entregue a um destino incerto, a alguns metros do mar revolto. O choro da criança, ali tão vulnerável, enquanto a alienígena vai embora sem lhe conceder um só olhar, é de partir o coração. Anoitece, e quem aparece pela praia fria e deserta é o superior de Isserley, o estranho sujeito da moto. Você é levado a pensar, ao menos por um breve momento, que a criatura teria compaixão e ao menos levaria a criança para um lugar seguro, mas o estranho limita-se a apanhar o casaco de Isserley - isso mesmo, ele foi apanhar o casaco da colega, nenhuma importância dada `a vida do bebê - e partir.

Nas imediações do aeroporto, Isserley bate os olhos em uma potencial vítima fácil, e o segue pelas calçadas. O rapaz atravessa a rua, mas ela parece hesitar. Isserley está voltando para a van, quando um grupo de garotas praticamente a seguram pelo braço, e a levam consigo para a nightclub onde a sua presa acabou de entrar (dentre as muitas semelhanças entre o cineasta Jonathan Glazer e o homem que o inspirou, Stanley Kubrick, esta cena parece uma homenagem direta ao filme de Kubrick "De Olhos Bem Fechados", quando o protagonista está caminhando altas horas por calçadas muito largas, e um grupo de jovens baderneiros praticamente o jogam para fora ao passar). Isserley nunca esteve dentro de um nightclub, e fica impressionada com a música e o jogo de luzes que torna o interior um labirinto inconstante. Ela reage tensa, mas acaba reencontrando o garoto que vira na calçada. Seduzido, ele não oferece resistência, e é atraído para o mesmo lugar sinistro onde os rapazes anteriores foram imersos. Diferente do que ocorreu anteriormente, desta vez, vemos o processo com impressionante riqueza de detalhes. Isserley tira as botas e as roupas, e segue recuando, de modo que o rapaz nem se dê conta de que está submergindo no meio alienígena à medida que avança.

Dentro do meio, a pessoa tem como respirar, porém permanece em suspensão, em um espaço muito escuro e abstrato, que parece infinito. É apavorante, porque uma vez submersa, a nova vítima vê o homem pego anteriormente - o mergulhador golpeado na praia - submetido ao processo de engorda, há mais tempo. Os dois ficam pairando naquele meio, frente a frente, separados por alguns metros. O mergulhador ainda consegue estender a mão para a nova vítima, como que pedindo socorro. O silêncio é absoluto, o que torna tudo ainda mais inquietante. Subitamente, o mergulhador tem o seu interior "aspirado". Ele literalmente murcha, carne, ossos e músculos drenados em um sopro, restando somente a pele, que então tremula como fantasia ao sabor do vento.

Isserley segue na van em busca de mais vítimas. O tráfego vagaroso a prende um pouco no semáforo, atrás de uma porção de carros. Um rapaz bate à janela da van com uma rosa - um sujeito, na outra mão da avenida, comprou-a para Isserley, encantado pela sua beleza. A extraterrestre recebe a rosa, mas então percebe que há um pouco de sangue nos dedos, provavelmente um ferimento menor durante a abdução da noite anterior. Mais tarde, em algum outro ponto de Glasgow, Isserley escuta no rádio que o corpo de um homem foi encontrado por um turista em uma praia perto de Arbroath, mas a esposa e filho seguem desaparecidos. É revelado que o morto era professor universitário em Edimburgo. A rádio também revela a identidade da esposa. Quando Isserley tropeça na calçada, as pessoas mais próximas imediatamente a ajudam a se levantar. Inesperadamente, um rascunho de consciência começa a brotar de dentro de seu ser, como se estivesse se tornando, aos poucos, mais humana.

Naquela noite, Isserley estaciona a van ao lado de um homem solitário de capuz, a caminho do supermercado Tesco. Ela o encontra em um ponto muito ermo da cidade (pode-se mesmo escutar o rumor vindo dos trilhos próximos), e oferece carona. Meio a contragosto, o homem acaba aceitando. Dentro da van, ele tira o capuz e revela o rosto deformado. O homem é portador de uma doença congênita conhecida como "Neurofibromatose". O seu rosto acabou desfigurado por causa dos tumores subcutâneos hipertrofiados que provocam incomum inchaço. Isserley parece não se assustar com a aparência. O homem explica que só costuma ir a Tesco àquelas horas, vez que dificilmente há outras pessoas por perto, e ele não precisa suportar os olhares cheios de julgamento que lhe são dirigidos. Apesar de sua natureza extraterrestre, Isserley, ao contrário dos humanos, enxerga beleza naquele homem. Ela elogia as suas mãos e diz que são bonitas. Aos poucos, Isserley vai quebrando a sua resistência. Ela diz que sabe que o estranho a acha bonita, e que não há problema algum em admitir. Segurando as suas mãos, as leva para o rosto, para que possa tocá-la melhor.

Isserley o leva para a casa deserta onde abduz as pessoas. Fascinado pelos seus encantos, o estranho começa a ficar nervoso, mas novamente ela consegue contornar toda a resistência. "É um sonho, estamos sonhando", procura tranquilizá-lo, após tirar a roupa. Diferente do que ocorreu das outras vezes, porém, Isserley reluta, e decide salvá-lo. Na manhã seguinte, nós a vemos deixando o lugar, permitindo que o homem escape da morte. Há um breve instante quando Isserley se olha demoradamente no espelho. Ao demonstrar compaixão, está se tornando a sua própria fantasia. Piedade não é um conceito de sua natureza extraterrestre, no entanto ela não quer mais machucar as pessoas. O gesto de Isserley trará consequências graves para si.

Furioso, o seu "chefe" aguarda pela chegada do homem deformado no quintal de casa, e assim que o rapaz consegue voltar, confuso, dá de cara com o motociclista, que o elimina imediatamente. Do outro lado da calçada, uma senhora assiste ao motociclista jogando o corpo no porta-malas do carro e partindo à grande velocidade. Isserley segue na van, pelas autoestradas, até que uma névoa muito espessa a detém. Ela abandona o veículo no acostamento e se enfurna no meio da neblina. Não se pode ver mais de um metro à frente, tamanha a intensidade. Em um take de tirar o fôlego, o cineasta nos mostra, por lentes muito amplas e distantes, os dois mundo e o ponto onde se encontram - de um lado, a autoestrada ainda com boa visibilidade, um pouco adiante, o "limbo" onde a claridade é sufocada pela bruma. O take parece representar simbolicamente o estado mental da vilã. Se anteriormente Isserley cumprira o seu dever com louvor, levando uma porção de sujeitos desavisados e carentes para uma cilada de morte, agora descobriu uma humanidade que jamais fez parte de sua essência, mas que encontrou o jeito de cativá-la.

Isserley começa a perambular por aquela região mais distante e isolada da Escócia, aos pés de serras muito altas. Em uma cafeteria à beira do lago, permite-se experimentar o simples prazer de um pedaço de bolo. Caminhando às margens da estrada daquela cidadezinha, chama a atenção de um cavalheiro local, que a orienta a aguardar o ônibus no ponto. Dentro do ônibus, ele puxa conversa com Isserley. Preocupado, percebe que ela não está bem e se oferece para ajudar. Isserley aceita a mão que lhe é estendida, e o homem a leva para casa. Ela é muito bem recebida. Enquanto lava pratos, o homem liga o rádio e, ao som da música, Isserley é vista batendo os dedos ritmicamente na mesa, como se estivesse apreciando o som. O seu corpo também desperta para a própria sexualidade. O homem a acomoda no quarto de hóspedes e lhe traz chá, deixando-a à vontade. Isserley se despe diante do espelho e examina cuidadosamente as curvas, os seios e a genitália. Ela parece estar mais à vontade com a sua fantasia de humana.

Tão apaixonado o rapaz se mostra, na manhã seguinte, quando estão passeando pela floresta, coloca-a no colo apenas para que não molhe as botas. Ele a leva a um lindo, enorme castelo, onde a ventania açoita muito intensa. Apesar de temerosa, Isserley suprime os medos e o segue por aquele emaranhado de passagens e torres. Ao final, ele a parabeniza pela sua coragem, "Você conseguiu". À noite, eles fazem amor. Enquanto tudo isso acontece, extraterrestres do mesmo planeta de Isserley estão percorrendo a costa da Escócia, com a missão de trazê-la de volta, custe o que custar.

No dia seguinte, Isserley desperta muito cedo, sem o conhecimento do cavalheiro que a havia levado para casa e parece amá-la, e volta para a floresta onde, lamentavelmente, vem a se perder. Ela encontra o trabalhador de uma madeireira, que a aconselha a não entrar muito pela trilha, pois corre o risco de se perder. Isserley vai parar em uma cabana reservada a visitantes que precisem se albergar da chuva ou contar com suas facilidades, em caso de emergência. Ela acaba cochilando, mas é acordada pelo mesmo operário, que a havia rastreado. O seu intento é estuprá-la. Isserley corre, mas infelizmente é apanhada mais à frente. Durante a luta, o homem a corta nas costas, revelando parte de sua verdadeira natureza alienígena, escondida sob a pele. Horrorizado, o agressor foge. Isserley vai se despindo muito lentamente da fantasia. Em sua forma natural, ela tem traços muito suaves e femininos, e mais se assemelha a uma graciosa sombra. Por um tempo, fica ajoelhada, contemplando a forma humana que vestiu, com um olhar triste. O estuprador retorna, e joga gasolina nas suas costas. Isserley se levanta e começa a cambalear, mas o homem ateia fogo em seu corpo, antes que possa escapar, pondo fim a sua existência. No final, as suas cinzas ascendem junto à neblina, subindo pelos pinheiros e desaparecendo no meio do nada, como se a extraterrestre jamais tivesse existido.

Filme triste, difícil e sombrio, sem dúvida um resgate de todos os elementos que fizeram dos anos 60-70 a grande época da ficção científica. Se há muitos anos o gênero tem se perdido em efeitos especiais, "Under the Skin" redime o mágico prazer de se sair para a sacada à noite para contemplar estrelas. A obra de Jonathan Glazer veste e transpira elegância, a começar pelo seu belíssimo poster retrô. Rodado na Escócia, "Under the Skin" sobressai-se dentre os demais filmes de arte por mesmo em meio a tanta dor e pessimismo, comuns ao estilo, conseguir sintetizar em alguns instantes muito passageiros uma "amarga doçura", que beira datado, ingênuo e adorável romantismo. Tão sombrio quanto o céu cor de chumbo ou as noites muito escuras que pairam sobre os personagens durante todo o tempo de projeção, são em momentos discretos como quando Isserley elogia as mãos do homem deformado ou o cavalheiro a põe no colo apenas para que ela não molhe os pés em que o filme realmente decola. Apesar de não temer desagradar, o diretor também não receia injetar alguma humanidade, que para os esnobes pareceria piegas.

E esse, a meu ver, é o único ponto que deixa a desejar. Glazer poderia ter utilizado o segmento final - quando Isserley se vê na cidadezinha aos pés das serras e conhece um gentil cavalheiro local - para nos brindar com aquilo pelo que muitas pessoas procuram filmes. Sabemos que o cinema nos permite o final feliz, os instantes de pura magia que a vida na maioria das vezes nos nega, e essa é parte da atração que o torna uma experiência transcendental. Filmes de arte fogem à regra ao evitar a saída mais formulaica do final feliz - que comercialmente rende - todavia assim como acontece a fórmulas fáceis, devemos lembrar que também o pessimismo exacerbado parece atrapalhar o resultado. Com todo o respeito ao que o talentoso diretor fez com seu excelente filme, humildemente creio que se ele tivesse ousado sonhar, a doçura teria funcionado a favor da obra. O excesso - sacarose, isso sim - prejudica, simplifica, elimina a profundidade do trabalho; ao mesmo tempo, apesar de sacarose fazer mal, doçura jamais o fez. Filmes aclamados como "Cinema Paradiso" são atemporais em sua propriedade de arrancar lágrimas, no entanto jamais deixaram de tratar as reviravoltas de suas histórias com um tipo de discreta doçura que apenas os tornou mais saudosos e queridos. Assim sendo, sinto que o diretor Glazer procurou o desfecho rápido justamente quando o filme chegava a seu segmento mais promissor, com a história de amor de Isserley com o morador local que, salvo engano, sequer recebe nome. Aí, havia muito potencial, lamentavelmente inexplorado, e vez que não há nada de vergonhoso em doçura, "Under the Skin" desperdiça a oportunidade de se aprofundar na questão sobre o que nos torna humanos - o amor, principalmente - quando o roteiro cria a ocasião perfeita para tanto. Muito embora não ache que o diretor devesse ter preterido o final a favor de uma feliz conclusão, estou convicto de que um melhor desenvolvimento no "meio de campo" teria tornado esta empolgante, diferente ficção científica um clássico absoluto, em todos os sentidos.

Esteticamente, "Under the Skin" talvez seja o mais deslumbrante filme que veremos todo o ano. A maioria de suas imagens parece saída das telas de um caprichoso pintor, porém incrivelmente, com o espetacular cenário que tinha a sua disposição, tudo o que a equipe precisou foi de um diretor de fotografia com senso de estilo. Quando assisti ao filme e pensei sobre a sua maravilhosa atmosfera, automaticamente me recordei de "w Delta z", outra máquina de suspense cujo pilar é a sustentação da atmosfera. Ao pesquisar sobre locação, compreendi por quê parecem tanto, em termos de fotografia. Ambos os filmes foram rodados nas ruas de Glasgow, sendo que no caso de "w Delta z", o cineasta Tom Shankland a usou "anonimamente", vez que seu suspense se desenrola nos Estados Unidos. O céu lúgubre e as autoestradas largas cheias de mistério não deixam dúvida, porém, que estamos falando do mesmo lugar.

Conforme já colocado parágrafos acima, o suspense deve muito à melodia triste e assombrosa que Mica Levi compôs para os mais importantes momentos. Essencialmente abstrata, a trilha serve como luva ao estranho mundo surreal onde a história é ambientada, encapsulando a proposta de alienação que a vilã - e nós também, por tabela - experimentamos pelas calçadas e ruas que, embora aparentemente comuns, parecem saídas de um sonho. Ao escolher entregar a carta na manga aproximadamente após meia hora de projeção, o diretor confia às cenas aparentemente banais o desafio de criar momentos de eriçar os cabelos. O poder da sugestão, subestimado por tantos que creem precisar de efeitos especiais e sanguinolência para criar horror, não exige mais que a melodia triste de Levi, por exemplo, ou a performance de Scarlett Johansson. Como vilã, vê-se toda a letalidade através da fachada, do mesmo jeito que venezianas deixam passar, aqui e acolá, alguma réstia de luz. São em seus gestos mais ordinários, sorrisos entre flertes, olhares mais prolongados, quando somos lembrados que Isserley é a predadora, e os homens, sua presa. Ao mesmo tempo, agrada-me o fato de Isserley "redimir-se": apesar de pessoas ingênuas terem sido arrastadas para mortes horríveis, ela desenvolve a consciência que primeiro lhe incitou a salvar o homem desfigurado e, mais tarde, a apaixonar-se por um cidadão de uma cidadezinha interiorana. É essa contradição que para uma excelente atriz representa prato cheio, o tipo de desenvolvimento de personagem que me agrada: a vilã sem compaixão acaba por transformar-se pela força do amor, e quando se vai, deixa saudades. A cena final até nos traz algumas lágrimas - o seu destino é muito trágico - todavia, jamais lamentaríamos por Isserley se não tivéssemos nos interessado o suficiente. Quanto a isso, só há duas pessoas a agradecer, quais sejam a talentosa atriz e o roteirista que soube destrinchá-la.

Assim como "As Senhoras de Salem" anteriormente, esteticamente, o filme evoca o estilo do diretor Stanley Kubrick. Não é a primeira vez que Jonathan Glazer sugere sua admiração pelo cineasta. "Birth", de 2004, era recheado de takes muito iluminados e truques de câmera realmente impressionantes em sua capacidade de reproduzir os elementos que haviam tornado os filmes de Stanley Kubrick trabalhos realmente impactantes. Mesmo a abordagem estéril e abstrata de elementos mais fantástico nos faz lembrar de "2001 Uma Odisseia no Espaço". Simultaneamente, o elemento mais ordinário e comum é tratado com o olhar distanciado e frio que imprime a cenas como as em que Isserley está dirigindo pelas ruas de Glasgow estranha sensação de dissociação ao sabor da luz do dia. Os amigos que apreciam a ficção científica nos moldes com que é produzida hoje devem entrar em "Under the Skin" certos de que o filme de Jonathan Glazer mais convida à reflexão do que ao entretenimento. Com ritmo muito parecido ao de "Solaris", de Andrei Tarkovski, "Under the Skin" não tem a pretensão de divertir, mas exige contemplação e entrega total, bem como uma belíssima pintura o faria.

O elenco se sai muito bem, a atriz Scarlett Johansson dando sua melhor performance em anos, tendo como aliado um diretor que praticamente lhe confiou as rédeas do filme. Tamanha a crença de Glazer em sua  capacidade dramática, pode-se contar nos dedos as cenas de diálogo. Ao contrário, ela precisa apenas de olhares e expressões para acessar o universo de emoções pelas quais a sua personagem passa. Somente uma artista talentosa poderia dar vida a personagens tão diferentes. Se os amigos se acostumaram a vê-la como a garota doce e de bom coração que se apaixona por um viúvo, de "Compramos um Zoológico", se surpreenderão com a facilidade com que precisa de pouquíssimo para assustar. Assim como Selma Blair em "w Delta z", o extraordinário do desempenho reside nos detalhes. Ali, dentro da van, com sorrisos e flertes inofensivos, Scarlett Johansson é de arrepiar os cabelos da nuca.

Possivelmente, demore algum tempo até que algum outro filme igualmente desafiador assalte as salas de cinema, mas isso não nos impede de torcer, pois ainda teremos muito suspense até o final do ano!Agora em julho, chega aos cinemas "Uma Noite de Crime 2", que parece potencializar o horror do primeiro ao levar o suspense para as ruas, quando o carro de um casal dá o prego bem no feriado do "expurgo anual", e os dois precisam lutar com ferocidade para sobreviver à noite do ano em que todo tipo de crime é permitido. Falando em "Uma Noite de Crime", lembro-me de Lena Headey, a atriz principal do filme original. Acho que os amigos ficarão felizes de saber que Lena Headey foi contratada para atuar no filme "Jacqueline Ess", baseado no conto do mestre Clive Barker. Creio que já discorri bastante sobre o quanto o admiro. "Jacqueline Ess" foi um de seus contos mais marcantes, a história de uma mulher aos quarenta e poucos que sofre de depressão e se vê atolada em um casamento sem amor com um homem que a trai, e que ao sobreviver a uma tentativa de suicídio, descobre propriedades telecinéticas sobre a matéria. Ela arrebenta o marido com o poder da mente, e se aproxima de um advogado chamado Oliver, velho colega do falecido, que vem a perdidamente se apaixonar pela protagonista. Ele a ama tanto, aceita perdê-la quando Jacqueline se vai. Interessada em aprender sobre poder e como exercitá-lo, ela deixa o advogado e se envolve com um homem de negócios bilionário chamados Titus Petiffer. O secretário mais próximo de Petiffer começa a investigar, e descobre o passado macabro de Jacqueline, mais especificamente o misterioso e brutal assassinato do marido. Jacqueline abandona Titus que, temeroso de seus poderes, envia seus mercenários para rastreá-la. Jacqueline derrota a todos e desaparece. Oliver, que jamais a esqueceu, não desiste de encontrá-la, até finalmente rastreá-la até Amsterdã, onde Jacqueline assumiu nova identidade e vive como uma notória prostituta cujas habilidades são de amplo conhecimento na noite do submundo europeu. A história de Barker, extremamente cinematográfica, dá de mãos beijadas todo um potencial fora de série que poderá ser traduzido em um suspense atmosférico inesquecível. Resta-nos esperar e torcer!

Enquanto todos esses filmes de horror promissores não veem, fiquem com "Under the Skin", a ficção científica lenta e difícil que ao final acredita no romantismo, e nos apanha de surpresa ao nos convidar a derramar algumas lágrimas pelo fim de sua aterrorizante, mas finalmente humana vilã. Conforme o seu poster vintage sugere, e o filme apenas confirma mais tarde, depois de "Under the Skin", quando forem à sacada para buscar o céu à noite, enxergarão as estrelas com renovado romantismo e mistério, uma nova espécie de olhar que somente algo tão profundo e evocativo como a imagem melancólica e glacial de Isserley pode provocar.

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