sábado, 1 de março de 2014

M. Butterfly ("M. Butterfly", 1993) Na metamorfose da lagarta à borboleta, David Cronenberg encontra o simbolismo perfeito para o horror da transformação.

Assombroso e deprimente thriller psicológico, "M. Butterfly", um dos filmes menos vistos de David Cronenberg, respeita a sua tradição como o mestre absoluto do horror inteligente, um dos mais corajosos e ousados cineastas contemporâneos, que jamais se afastou de sua visão, e preteriu a sedução do cinema comercial em nome de filmes de arte mais densos, difíceis e marcantes. Da mesma maneira que fez com "Gêmeos Mórbida Semelhança", Cronenberg nos traz uma assustadora história baseada em fatos reais, onde muito do horror permanece adormecido por trás de sorrisos e olhares a se interpretar, e a mais ardilosa e perigosa das armas é o apego. Vagamente inspirado nos eventos do caso Boursicot, "M. Butterfly" se passa em Pequim, China, nos anos 60, e reúne astro e diretor de "Gêmeos Mórbida Semelhança". Jeremy Irons interpreta René Gallimard, um diplomata francês que mergulha no pesadelo que o próprio criou, ao se apaixonar por uma artista de ópera oriental, Song Liling, na verdade espiã do Império Chinês.

O ano é 1964. René Gallimard é um funcionário da embaixada francesa que segue as regras e é mal visto pelos colegas por se portar como um indivíduo incorruptível. Em mais uma noite de diversão entre os funcionários do governo francês em Pequim, Gallimard atende `a apresentação da ópera na companhia de sua chefe Frau Baden (Annabel Leventon). O espetáculo exibido é o de Madame Butterfly, de Giacomo Puccini, sobre uma garota japonesa que se casa com um americano oficial da Marinha, que parte e jamais volta, causando-lhe a dor que a leva a cometer suicídio com uma espada. Após a performance, Gallimard se apresenta à atriz que interpretou a garota japonesa, Song Liling, e os dois conversam. Gallimard lhe diz que o seu desempenho o ajudou a enxergar a beleza da história, a tristeza de sua morte, puro sacrifício. Song Liling é uma mulher de opiniões fortes. Ela crê que o sucesso da peça deva-se à fantasia dos ocidentais, sobre a mulher oriental submissa matando-se em nome do amor por um cruel homem branco desapegado. As suas opiniões fortes permitem que Gallimard compreenda as suas próprias contradições, e o embaixador fica admirado com a perspicácia da artista. Os dois flertam, e ao se despedir, Liling o convida a aparecer novamente na Ópera, para "aprofundar-se na sua educação".

Gallimard é casado com Jeanne, uma européia mimada que vive resfriada e despreza a cultura chinesa. Pela interação entre marido e esposa, quando Gallimard veste o pijama e se junta a Jeanne na cama, percebe-se que a vê mais como uma amiga, por ela não nutrindo nenhum sentimento mais profundo de paixão. René é um homem cujas fortes emoções foram congeladas, a sua capacidade adormecida em um lugar inalcançável de sua alma. Ele não imagina como a sua vida virará de ponta cabeça, com a chegada de Song Liling. Depois do primeiro encontro, René fica obcecado com a história escrita por Puccini - a da mulher virtuosa matando-se por amor, em nome de um sujeito que não merece tão belo sentimento - e passa a visitar o centro cultural e artístico de Pequim. De informação a informação, consegue rastrear a casa de atrações onde Liling estará desempenhando a ópera de Puccini. René a visita nos bastidores, explicando estar ali para "aperfeiçoar a sua educação". Ele a acompanha na caminhada para a vila. Pela primeira vez, Liling sinaliza estar igualmente interessada. Ele pede a René que acenda o seu cigarro de uma maneira provocante, e ao voltarem a falar sobre a fantasia imperialista por trás da ópera, homens fascinados pela submissão da mulher oriental, diz que às vezes, o submisso também se sente apegado ao opressor. René a deixa na porta de casa, e ela o convida a visitá-la qualquer dia. Ao esperar pela carona em uma riquixá, uma típica carruagem chinesa de tração humana, distrai-se com um homem local apanhando com uma rede as mais belas mariposas. René toma uma das mãos, e fica encantado com a elegância da criatura, que eventualmente voa para longe.

Enquanto está dormindo, Jeanne vasculha os bolsos do paletó e das calças do marido, cheia de suspeitas. Gallimard conta uma mentira qualquer sobre onde esteve na noite anterior. Ele retorna à vila, e toda a tensão sexual entre o europeu e a chinesa finalmente transborda. "Há um elemento de perigo em sua presença", Liling diz, referindo-se ao fato de René ser um embaixador francês casado. A cultura chinesa, conforme Liling, traz as raízes fincadas em um passado muito longínquo. A sua nação é essencialmente tradicional, e tudo guarda significado. Envolver-se com um europeu provocaria reações que nenhuma das partes seria capaz de imaginar. Ao entregar a xícara de chá ao europeu, as suas mãos se tocam. Os dois se beijam apaixonadamente, incapazes de resistir `a atração da carne.

René e Jeanne comparecem a uma festa na casa de um dos servidores da embaixada. Ele é acostado por quatro colegas, que sutilmente demonstram toda a antipatia pelos seus modos na repartição. Eles estão furiosos com o preciosismo de René, que tem dedurado os gastos excessivos e indiscrições dos colegas ao governo em Paris. Isolado, senta-se ao lado da esposa, no banco do piano, e a sua mente volta a divagar sobre Song Liling. René crê que seja prudente afastar-se por um tempo. Seis semanas se passam, até receber uma carta de Liling, contando sobre o quanto sente a sua falta. "Minha audiência sente falta do diabo branco por entre a névoa", escreve. No trabalho, os apelos de Liling deixam Gallimard dividido entre desejo e dever. Naquela manhã, René é chamado para uma reunião com o embaixador Toulon (Ian Richardson), que traz novidades. A França estará revitalizando a divisão de inteligência, face a turbulenta época que a China atravessa, e Toulon crê que não há ninguém melhor do que Gallimard, incorruptível e correto, para a posição de vice cônsul. Com essa maravilhosa novidade, René resolve ceder ao desejo, e procurar Song Liling, para lhe contar a notícia.

Ainda ressentida, Liling reage com frieza. René diz a Liling que quer ficar com ela. "Você é a minha borboleta?", René pergunta. Ele começa a recitar trechos de suas cartas, e Liling fica envergonhada, dizendo-se arrependida por ter entregado tão facilmente seu coração. Ele se ajoelha aos pés de Liling e a abraça, insistindo na questão. Song diz que sim, será a sua borboleta, e os dois se beijam apaixonadamente. Apesar de se abrir a suas investidas, Song pede para que René não a devasse daquela maneira, pois jamais esteve com um homem antes. Ela pede para manter o vestido. "Saiba que estamos agora adentrando no mais proibido dos amores, e eu temo pelo meu destino", fala, antes de ceder a seus encantos.

René assume a posição de vice cônsul, e reúne-se com os colegas, agora subordinados, meio que para apaziguar os ânimos, convidando-os a um melhor relacionamento. René e Liling, agora metidos em um tórrido romance, encontram-se aos pés da muralha da China, uma das sete maravilhas do mundo, que vista pelas lentes de Cronenberg chega a tirar o fôlego em razão de sua grandiosidade, uma construção erguida por mãos humanas, enorme e infinita, cortando montanhas como um traçado em direção ao infinito. Song pergunta a René por que a escolheu, logo ela, quando sua esposa europeia é uma linda mulher loira de olhos azuis atraente e cobiçada pelos demais agentes da embaixada. Gallimard explica que somente Song Liling encarna com perfeição a fantasia de "Madame Butterfly", a mulher de virtudes que por amor foi capaz de abdicar de seu mais precioso bem, a vida. O clima na embaixada é de paranoia. O Governo Chinês começa a desconfiar dos franceses, e Embaixador Toulon manda seus funcionários vasculharem os escritórios em busca de escutas. Eles encontram várias, inclusive sob os tapetes. Toulon conta a Gallimard que em razão de não disporem de inteligência na França, os norte americanos pediram aos franceses que cumpram a função de "olhos e ouvidos" dos Estados Unidos. O Presidente Lyndon Johnson estuda bombardear o Vietnã do Norte e o Laos, mas precisa antever como os chineses se comportariam em caso de conflito naquela região, e para isso precisam dos espiões franceses. Refletindo o seu caso de amor com Liling em sua compreensão da geopolítica, René diz que os chineses não se importariam tanto "Não dão a mínima para Ho-Chi-Min. Os chineses, bem no fundo, são atraídos por nós". Ele prossegue "Os orientais têm vocação para a submissão. Se os Estados Unidos invadirem, eventualmente os aceitarão como uma união de mútuos benefícios".

Na cena a seguir, descobrimos a verdadeira natureza de Song Liling. Ela está na cama, distraindo-se com um livro, quando revistas americanas são subitamente arremessadas contra as suas costas. Trata-se de Camarada Chin, uma mulher do Partido Comunista, furiosa com os novos prazeres de Liling. Chin abomina tudo ocidental, e quando vê aquelas revistas, com valores que antagonizam tudo o que foi apregoado por Mao, rotula o material como "lixo". Camarada Chin puxa um caderninho, e Liling revela que Gallimard começou a se abrir sobre as intenções dos norte-americanos para o Vietnã. Song Liling é uma espiã do Partido Comunista, não uma artista da Ópera. Ela usava as performances como disfarce, artifício, para capturar o coração de algum ocidental trouxa que pudesse se abrir quanto aos segredos dos franceses. Os norte-americanos pretendem incrementar a força de suas tropas no Oriente, e Song passa para Camarada Chin todos os números. Chin não consegue esquecer os modos "modernos" de Song, que se justifica "Camarada, para melhor servir o Estado, preciso exercitar a arte do disfarce". Na verdade, parece evidente que Song também está se apaixonando por Gallimard e a sua cultura arrojada e "proibida".

Enquanto mantém seu romance extraconjugal, Gallimard segue frequentando as noites de festas sem fim, em homenagem aos europeus entediados. Em uma dessas festas, Frau Baden o convida para a cama, e Gallimard, em um torpor alcoólico, aceita. O encontro é frio e sem resquícios de paixão. Somente em Liling, Gallimard encontra o mistério que mantém acesa a chama da paixão. Song conta a René que está grávida, e o amante se emociona, jurando amá-la e protegê-la. Song despede-se de René, e pega o trem para a província natal, onde espera dar à luz o bebê. Antes de deixar, promete retornar para a vida de Gallimard com a criança. Camarada Chin e Song Liling encontram-se em algum lugar distante de Pequim. A espiã enumera para a Camarada tudo de que precisa para manter a sua farsa. Para justificar aos olhos de René a história da gravidez, pede por uma criança chinesa, com traços europeus. Ao final do encontro, uma fala enigmática, que terá significado mais tarde. Liling declara "Por que na ópera de Pequim, os papéis femininos são tradicionalmente vividos por homens?É porque somente um homem sabe como uma mulher deve agir para seduzir".

Eclode a Revolução Cultural Chinesa, e as ruas são tomadas por partidários simpatizantes de Mao. Soldados da Guarda Vermelha são hostis com funcionários de embaixadas, ou intelectuais em geral. Livros tidos como "nocivos" à causa chinesa são queimados em praça pública. Pequim vive uma atmosfera de caça às bruxas. A ópera, epicentro da cultura, é saqueada pela Guarda Vermelha, as fantasias destruídas, arremessas à fogueira. O Embaixador Toulon lê um memorando sobre a atual situação do país, onde o governo só precisa dos motivos mais insignificantes para expulsar qualquer estrangeiro de suas terras. A regra agora, consoante Toulon, é a discrição. Uma noite, ao voltar para o apartamento, René encontra Song Liling com um bebezinho, nas escadas. Ela lhe apresenta o filho, e René fica tocado por reencontrá-la. Ele suplica para que não parta mais, e se casem. Ele se divorciará de Jeanne. Song explica que não pode casar, e dois guardas subitamente aparecem para escoltá-la. Liling explica que artistas são vistos como figuras nocivas à revolução cultural, e que precisou insistir com os guardas para que tivesse a oportunidade de conversar. Antes de partir, Song Liling desabafa e declara que foi somente com Gallimard que ela "realmente existiu". Gallimard é arrastado a um espiral de culpa e depressão. Toulon não tem escolha, a não ser enviá-lo de volta à casa, Paris. Antes de voltar para casa, retorna para a vila onde Liling morou, e encontra o lugar habitado por uma nova família. Ela agora está em um campo de trabalho forçado, onde escritores, artistas e intelectuais são "recuperados" pelo Governo, para contribuir à nova sociedade de uma maneira produtiva.

Paris, 1968. Gallimard retornou para a Europa, mas jamais esqueceu o seu grande amor. Assistindo a uma versão da ópera de Puccini, lágrimas correm pela sua face, ao se recordar de sua "borboleta". Afogando as mágoas em um bar, Gallimard desabafa com um estranho sobre o quanto foi feliz com Song Liling, na China. Eles escutam o rumor vindo de fora, e pela janela, veem estudantes esquerdistas exibindo exemplares do livro vermelho de Mao, fazendo arruaça e balbúrdia. Uma grande confusão se inicia, quando tropas de choque chegam para abafar o movimento. Morando sozinho em um apartamento de acomodações franciscanas, Gallimard um dia é surpreendido pela visita de Song Liling, tantos anos depois, de mala em mãos. Ela diz que se sente péssima por voltar depois de tanto tempo. "E a sua esposa?", Song Liling pergunta. "Ela está aqui. Está aqui nos meus braços!", é a resposta de Gallimard, que a segura disposto a não deixá-la partir nunca mais.


O casal retoma a vida amorosa de onde havia deixado. Gallimard assume uma nova posição no Governo francês, como courier, transportando documentos sigilosos de Estado. Um dia, é acostado por três agentes da Inteligência, e acusado formalmente por espionagem. Levado a julgamento, a principal testemunha é conduzida ao estande, e vemos um jovem bem aparentado, metido em um elegante terno - Song Liling (John Lone). A "borboleta" de René, a sua "mulher ideal", era o tempo todo um homem, um habilidoso espião chinês. Ao subir no estande, Song conta toda a história de seu envolvimento com Gallimard, e que foi ele quem o convenceu a trabalhar como courier, pois assim ganharia acesso a documentos de Estado que de outra forma jamais teria como obter. Como trunfo, Liling utilizou o artifício do suposto filho do casal, chantageando René com a mentira de que o Partido Comunista estava cuidando da criança, e caso não repassassem tais documentos importantes, os camaradas dariam sumiço no bebê. A promotoria fica chocada com a capacidade de Song de manter toda a farsa, manipulando um homem obviamente inteligente por quase uma década. "O Senhor Gallimard não sabia que você era homem?". Song responde algo nas linhas de que René era apaixonado por uma fantasia, uma invenção que Song criou e a que René se apegou, sem questionamentos.

Durante o julgamento, os dois são transportados juntos. René e Song estão sentados frente a frente, Song caracterizado como homem. Constrangido pelo severo olhar de Gallimard, pergunta o que quer. René pergunta "Você é a minha borboleta?". "Você ainda me adora, não?", é a resposta de Song. "Ainda me quer. Mesmo eu estando dentro de um terno e gravata".René meneia negativamente com a cabeça, enojado, e responde a própria questão "Você não é a minha borboleta. Você não é nada". "Tem tanta certeza assim?", Song provoca, e sutilmente volta a encarnar a "borboleta" por quem Gallimard se apaixonou. "Venha a mim, pequenino", ele diz, enquanto vai se despindo. "O que está fazendo?", ele pergunta, revoltado. "Quero que veja através de minha fantasia". René se afasta e abaixa a cabeça, desolado. Song suplica a René que olhe para seu corpo, e Gallimard começa a chorar. "Você não é a minha borboleta", diz, pela última vez. Certo de que o seu domínio psicológico sobre René não existe mais, Song recolhe-se a um canto, humilhado, e também derrama lágrimas. Esta é a sequência mais marcante do filme, desempenhada com perfeição pelos seus dois astros. Jamais vulgar, Cronenberg lida com o delicadíssimo acerto de contas com o mesmo distanciamento e frieza com que lidou com a exposição da atriz Deborah Unger em "Estranhos Prazeres". Tanto com Unger quanto com Lone, Cronenberg foi bruto, cru e seco, mas jamais vulgar.


Gallimard é condenado por espionagem e cumpre pena em um presídio onde se torna artista, desempenhando ocasionalmente os papéis da peça de Puccini em precárias apresentações teatrais. No final, caracterizado como uma gueixa, René dá a sua melhor performance como a trágica heroína da história original, a mulher virtuosa abandonada sem explicações pelo amado. Durante a cena do suicídio, os presos aplaudem-no pela excelente performance, desatentos ao fato de que René não apenas encenou, como efetivamente cortou o próprio pescoço com um pedaço de vidro, fechando o círculo de sua trágica história de amor com Song Liling. No começo, fomos levados a crer que Gallimard seria o europeu desapegado, e Liling a frágil dama abandonada. Ao final, é Liling quem parte, e René, efeminado e vestido como gueixa, a "borboleta" devastada que abre mão da própria vida por um amor impossível. Aqui, é importante destacar que o nome do filme de Cronenberg jamais foi "Madame Butterfly", mas sim "M. Butterfly", talvez pelo fato de "M" referir-se não a "Madame", mas sim a "Monsieur", a verdadeira natureza de Song Liling, como viemos a aprender ao final.

Excelente mas desprezado filme do diretor David Cronenberg, projeto de "consolação" do cineasta que, à época, início dos anos 90, pretendia rodar a sua adaptação para o romance de Brett Easton Ellis, "American Psycho", sem sucesso. Cronenberg voltou a sua atenção a esta história, que lhe deu a oportunidade de experimentar com os temas com que ao longo de sua filmografia sempre gostou de brincar. Reunindo-se ao artista principal de seu mais elogiado filme, "Gêmeos Mórbida Semelhança", Cronenberg nos traz, ao lado de Jeremy Irons, uma nova história sobre a absoluta destruição que somente o apego pode provocar. Pouco visto, "M. Butterfly" sofreu o mesmo destino que outro excitante thriller de Cronenberg, "ExistenZ": ambos os filmes foram lançados no pior momento possível, batendo de frente com produções de maior apelo comercial que exploravam temáticas semelhantes e que caíram na graça da crítica especializada com maior facilidade. "M. Butterfly" chegou aos cinemas um pouco depois de "The Crying Game", o thriller de Neil Jordan sobre um terrorista do IRA com consciência, que se torna amigo de seu refém, um soldado britânico, e depois de sua morte acidental, procura a namorada do rapaz, vindo a apaixonar-se, apenas para descobrir que se trata de um homem travestido de mulher. "ExistenZ", rodado em 1998, com Jennifer Jason Leigh, falava sobre uma designer de jogos virtuais envolvida em um mistério, onde era caçada por um culto, e lançava os pilares que seriam em seguida explorados em escala maior com "Matrix". Enquanto o filme dos Wachowski esbanjava ação e efeitos especiais, o de Cronenberg optava por um caminho mais lento e cerebral. Apesar destes dois excelentes filmes de Cronenberg terem recebido o reconhecimento justo da crítica, tal respeito não traduziu sucesso de bilheteria, e mesmo hoje, ambos permanecem largamente desconhecidos.

Não bastasse o fato de ter sido amplamente ignorado, o filme de Cronenberg também foi malignamente apedrejado por parte daqueles que o procuraram esperando por um novo "The Crying Game". As pessoas não conseguiam compreender, "Como esse sujeito passa todo um filme vivendo uma história de amor que só existe em sua cabeça, apaixonado por uma mulher que na verdade é um homem, e ainda convicto de que era o pai de um bebê?". Parte das pessoas que conhece "M. Butterfly" e o enxerga sob este prisma parece se esquecer dos temas mais recorrentes de sua carreira, e que nesta adaptação da obra de David Henry Hwang só veste novas roupagens, figurada e literalmente. "M. Butterfly" não pode ser analisado sob a ótica pragmática, baseada em conclusões que as aparências levam a crer. O seu cerne é pura e exclusivamente o de um thriller psicológico sobre a devastadora força do apego e como a carência embaralha o julgamento, e deforma o conceito do que é ou não Real. A batalha psicológica desenrola-se em um campo onde impressões só levam a pistas falsas, e só se ganha quem consegue ler sorrisos e olhares, interpretar as entrelinhas. Se três anos mais tarde, com "Estranhos Prazeres", Cronenberg revisitaria o fascinante tema, cinco anos antes de "M. Butterfly" já havia feito o mesmo, com "Gêmeos Mórbida Semelhança". Não apenas em razão de terem sido vividos pelo mesmo ator, os personagens dos dois filmes são praticamente os mesmos. Tanto Beverly Mantle ("Gêmeos Mórbida Semelhança") quanto René Gallimard ("M. Butterfly") são homens emocionalmente "mortos" para sentimentos, profissionais de sucesso, acima de qualquer suspeita, que escolheram afastar-se das fortes emoções, de encontros e escolhas que viessem a ameaçar o "status quo". Quando um elemento estranho à equação é adicionado a suas vidas e desperta sentimentos de paixão e apego que sequer poderiam antever, o próprio apego os lança em uma rota inexorável de colisão onde a única catarse virá com a auto destruição absoluta, as suas percepções e conceitos outrora sacramentados e inamovíveis finalmente reformados pelo fogo da submissão, humilhação, dor e masoquismo. As vilãs também se assemelham. Claire Niveau, interpretada por Geneviève Bujold, e Song Liling, por John Lone, não guardam a força física para destruir as suas presas, Beverly e Gallimard, respectivamente. Para machucar, as duas precisam da arma que só as suas vítimas têm como lhes entregar: o coração. Com a sua fleuma britânica, Jeremy Irons voltou a emprestar a sua elegância a personagens atormentados em distintos momentos de sua carreira. Ao se falar no protagonista emocionalmente frígido que ao tomar contato com as emoções humanas negligenciadas joga-se à destruição, seria injusto não citar o seu filme "Damage", de Louis Malle, onde praticamente revisita os mesmos heróis atribulados das suas contribuições com Cronenberg.

Sobre a fantasia que Gallimard cria para si e passa a habitar, Cronenberg ofereceu a sua visão da problemática. Ao rodar o filme, compreendeu melhor o dilema ao conhecer as pessoas envolvidas nos eventos que inspiraram "M. Butterfly", principalmente Bernard Boursicot, o diplomata francês a quem Jeremy Irons interpreta (no filme, o personagem se suicida com o espelho quebrado, mas na vida real, cumpriu toda a sua pena e deixou a prisão). Cronenberg diz que do momento em que o filme começa e vemos o nome de "John Lone", sabemos de antemão que Song Liling é um homem, e eis o ponto: todos sabem, platéia e personagens, que na verdade a sedutora artista é um homem, menos o personagem de Irons, ou Bernard Boursicot, se preferirem. Em síntese, Boursicot era um homem que se apaixonou por outro homem, todavia incapaz de aceitar os seus sentimentos, apegou-se a frágil fantasia de que o objeto de seu amor era "a sua borboleta", e até o último momento não acreditou no que as pistas levavam a crer. De muitas formas, esta interpretação nos faz pensar em "Session 9", em que o personagem vivido pelo magnífico Peter Mullan comete todos os assassinatos, porém custa a entender os seus atos, em razão da dissociação de personalidade engatilhada pelo esgotamento emocional.

Curiosamente, Cronenberg não foi o diretor que o produtor de "M. Butterfly", David Geffen, tinha originalmente na cabeça para o projeto. Peter Weir, o cineasta australiano que rodou o seminal "Picnic at Hanging Rock", em 1974, esteve por um tempo associado `a produção, até Cronenberg "subir a bordo". Na reunião com Geffen, em que se candidatou ao trabalho, Cronenberg diz que Geffen confidenciou que jamais considerou o seu nome para a empreitada. Via-o mais como um diretor de filmes de horror, associando o seu nome a trabalhos como "Scanners" e "Videodrome". Cronenberg explicou que, de uma forma ou de outra, todos os seus filmes, em especial "Gêmeos Mórbida Semelhança", falavam sobre o horror da transformação, e mesmo que de maneira mais natural e menos extravagante, menos fantástica, "M. Butterfly" sublinhava ansiedades parecidas. O seu discurso teve um efeito positivo sobre Geffen, e Cronenberg conseguiu ocupar a vaga.

Cronenberg recorda-se das filmagens na China com muito carinho. A sua equipe rodou as cenas externas no período da noite, em uma época do ano onde a temperatura ia às alturas. Às vezes, conta Cronenberg, ficavam filmando até as 03:00. Em especial, em suas reminiscências, ao discorrer sobre a receptividade do povo chinês, revela que certa feita estava a dirigir uma cena externa, em uma vila na periferia que foi usada como a casa de Song Liling, quando uma curiosa criancinha local sentou-se espontaneamente em seu colo para observar, com Cronenberg, pelo monitor, o resultado da cena filmada.Os interiores foram rodados em sets de Toronto, mas a transposição de takes externos para internos parece tão suave, cortesia da cenografia de Carol Spier (colaboradora habitual de Cronenberg), que você não se aperceberia. Lançado nos cinemas em outubro de 1993, a performance de "M. Butterfly" foi paupérrima: o filme não fez mais do que parcos um milhão e meio de dólares na bilheteria. Cronenberg ficou alguns anos sem dirigir, até voltar com força total com o tétrico "Estranhos Prazeres", que lhe valeu a Palma de Ouro em Cannes. Com o tempo, as pessoas que deixaram passar a oportunidade de conferir este maravilhoso suspense nos cinemas descobriram-no em VHS, e muito recentemente, em 2009, a Warner Brothers concedeu ao filme um caprichoso lançamento em DVD, onde a fotografia de Peter Suschitzky transluz cores pulsantes, um amálgama de sensações, um instante de uma época que não volta mais, preservado em celuloide.

As atuações estão fantásticas, Irons e Lone superando-se a cada embate, sendo o grande destaque o britânico sir Ian Richardson, um dos talentos mais brilhantes da era de ouro do teatro inglês, aqui no papel do Embaixador Toulon. Mesmo com pouco tempo em cena, Richardson incrementa o valor de "M. Butterfly", assim como Barbara Sukowa, no papel da mimada e desagradável Jeanne Gallimard. David Cronenberg é um cineasta disputadíssimo por atores, e Holly Hunter, prova disso: ela praticamente deu um ultimato a seu agente e disse "Trate de me colocar no próximo filme de Cronenberg, seja qual for!", e o resultado foi a médica ninfomaníaca com fetiche por carros, de "Estranhos Prazeres". Análise cuidadosa das trágicas almas que compõem histórias tipicamente "cronenberguianas" expõe uma série de recantos muito desconhecidos e assustadores da mente humana, que artistas ousados se voluntariam a explorar, tornando justificável a atração. 

"M. Butterfly", um estranho conto sobre os desconhecidos caminhos da mente, nos lembra que para as pequenas e grandes armadilhas de nossas vidas, somos nós quem voluntariamente caminhamos em direção `as gaiolas onde experimentamos os infernos emocionais. Ao final da experiência, permanecem as perguntas, mas não há respostas fáceis, ou talvez, as que existam sejam tão indecifráveis quanto a ópera de Puccini, ou impenetráveis quanto os caminhos do coração. Gallimard desejava a paixão que justificava o seu fascínio pela ópera "Madame Butterfly"... E conseguiu. Aqui, vale o ditado: cuidado com aquilo que você toma como o seu maior desejo. Ele pode acabar sendo atendido.

Todos os direitos autorais reservados a Warner Brothers. O uso do trailer é para efeito meramente ilustrativo da resenha.

Sentença de Morte ("Death Sentence", 2007) Senhor absoluto do horror, James Wan demonstra a mesma maestria no comando deste absorvente thriller que poucas pessoas tiveram o prazer de conferir!Não Percam!

Por meio de vídeos caseiros, assistimos à família Hume, nos dias em que a vida parecia ser só sorrisos, alegrias e expectativas. Nick & Helen (Kevin Bacon & Kelly Preston) são amorosos pais para seus dois filhos Lucas & Brendan, cujo crescimento acompanhamos por meio desta doce sequência introdutória. Nick os ensina a jogar hóquei e passear de bicicletas, e ao longo dos anos, nós os vemos tornando-se rapazes de muito valor. Uma família unida e feliz, a harmonia está para ser rompida por conta de uma imprevisível e horrorosa tragédia. Nick é executivo de alto cargo em uma seguradora, e no começo do filme, decide a favor do pagamento de pensão à família de um ex-empregado da empresa, que morreu recentemente, deixando mulher e filho desamparados. Apesar da posição privilegiada na hierarquia da empresa, Nick é um homem decente que jamais se desapegou de seus princípios ou desconsiderou os sentimentos dos outros. Ele acredita no valor inestimável da unidade familiar, prova disso quando apanha uma folha onde a seguradora fez um levantamento sobre expectativa de vida “Pessoas com filhos vivem mais do que pessoas sem filhos, pessoas que vivem juntas vivem mais do que uma solitariamente. É um alívio saber que tudo isso ainda é verdade”. À mesa durante o jantar, Brendan pede ao pai que lhe dê uma carona para um jogo de hóquei que vai acontecer logo mais. O restante da família não poderá atender, pois na mesma noite Lucas também terá prática de futebol, então Nick fica de levar Brendan ao jogo de Hóquei, e Helen, Lucas ao treino de futebol.


Brendan marca o gol da vitória, e Nick  está presente na arquibancada para prestigiá-lo. Os dois estão voltando de carro, tarde da noite, desfrutando de um típico momento de bate papo entre pai e filho. Brendan explica a Nick que alguns de seus colegas estão conversando sobre estudar no Canadá. O pai percebe que o filho sonha com uma carreira no hóquei profissional, mas super protetor que o é, mostra-se inicialmente relutante quanto a ideia. Conhecedor do valor de Brendan, todavia, Nick acaba cedendo, e concorda que ao menos comecem a pesquisar por universidades no Canadá, onde o rapaz estaria mais próximo de seu sonho. Durante a conversa, os Hume veem dois vindos na mão contrária, à toda velocidade, com as luzes apagadas. Eles se dão conta de que estão em uma redondeza barra pesada. Os carros subitamente fazem o retorno, pareiam por alguns segundos com o de Nick, e arrancam em direção a uma curva, desaparecendo em seguida. Nick começa a ficar preocupado, "Onde diabos podemos voltar para a highway?", ele se pergunta, ao mesmo tempo em que o carro começa a sinalizar que o combustível está acabando. Pai e filho param em um decadente posto de gasolina. Nick fica um pouco aliviado. Ele vai encher o tanque, enquanto o filho pede licença para comprar algo para comer na loja de conveniência.Neste meio tempo, Nick liga para casa e deixa um recado brincalhão na secretária eletrônica "Nosso filho está indo para o Canadá jogar hóquei, e provavelmente não o veremos mais, então estou o deixando no aeroporto". É quando os carros que Nick encontrara na estrada chegam ao posto à toda velocidade. Homens mascarados descem, armados de escopetas, arrebentam a porta da loja de conveniência e anunciam o assalto. O dono do mercado parece deslizar a mão para baixo do contador, quando é morto com um tiro no peito. Brendan fica atônito, assistindo a tudo com os braços levantados. Um dos mascarados ordena ao outro, chamado Joey: "Faça isso, ou não será um dos nossos!". Mais do que um assalto, a situação parece um ritual de inicialização, onde o novato precisa provar o seu valor aos veteranos. O novato puxa uma faca e degola o indefeso Brendan. Desesperado, Nick assiste a tudo do chão, pois quando correu para defender o rapaz, um outro carro, sem intenção, colheu-o de leve, incapacitando-o por um instante, o tempo que leva para os marginais executarem o garoto. Nick se levanta e parte como um trem expresso em direção à loja de conveniência. Na confusão, os delinquentes vão logo se evadindo, tomando os seus carros e arrancando. Ainda abismado com o assassinato, Joey lentamente volta a si, e quando deixa a loja, é apanhado por Nick. Os dois têm uma breve luta, Joey consegue se desvencilhar, mas ao correr para a estrada, é acertado com força por um carro em alta velocidade. Quando Nick chega para socorrer Brendan, encontra o rapaz ainda vivo, mas agonizando. Nick grita com todo o ar dos pulmões por ajuda. Longe dali, os delinquentes estão comemorando e dando gargalhadas quanto a toda a situação. Os carros pareiam. "E quanto a Joey?", um dos marginais pergunta. "Ele é um homem agora, pode pegar o metrô", responde o outro, que parece ser o líder da gangue.


Brendan é carregado pela equipe médica direto para a mesa de cirurgia. Nick tenta ir com o filho, mas é impedido pela staff. Helen e Lucas chegam logo em seguida, desesperados, e o cirurgião surge para explicar que não foi possível salvar a vida de Brendan. Helen cai em inconsolável pranto, nos braços de Nick. Mais tarde, durante o reconhecimento na delegacia, Nick identifica o autor do homicídio, um perdedor chamado Joey Darly, 23 anos de idade. Os Hume enterram Brendan em um dia escuro, sob muita chuva. Com a morte do rapaz, a família perde em definitivo a harmonia, cada parente procurando sublimar a perda da maneira que julga conveniente. Deitados lado a lado, Helen desabafa para o marido, e ele a consola tomando-a nos braços. Lucas é o mais confuso. Mais tarde, à noite, visita o quarto do irmão e, cheio de pesar, observa um porta retrato onde aparece ao lado de Brendan. Ele começa a chorar. De seu quarto, Nick escuta a tudo, o luto e a dor estampados no seu rosto.


Em uma reunião com o promotor do caso, Nick tem as suas expectativas rechaçadas. Ele quer que o assassino do filho pegue prisão perpétua, mas a realidade é injusta, e só pode seguir dois desfechos: ou o Ministério Público faz acordo e consegue uma pena de três a cinco anos, ou empurra para julgamento, objetivando uma pena que na melhor das hipóteses não ultrapassaria dez anos, sob o grande risco de o delinquente sair em liberdade caso o júri entenda que não há indícios suficientes de autoria. O fato de o homicídio ter apenas uma testemunha torna a base da acusação muito frágil, e o prognóstico, conforme o promotor, não parece promissor. O facão, arma do crime, desapareceu, não foi encontrado sangue de Brendan na roupa de Joey Darly, e por um infortúnio do destino, o posto de gasolina não era servido por câmeras de vigilância. Acordo é a saída. Detetive Wallis (Aisha Tyler), a policial que acompanha o caso desde a noite da tragédia, conta a Nick que o acontecimento foi mais do que roubo. De fato, tratou-se de um ritual de iniciação na gangue, onde se mata alguém apenas para se conquistar o respeito dos demais. Nick sai destroçado da reunião, a sua dignidade jogada no lixo.

Na manhã do depoimento como única testemunha, Nick senta-se ao lado de Joey, que parece pouco se importar, e a Nick dirige o sorriso cínico de canalha convicto da impunidade. Durante o testemunho, Nick surpreende a todos, declarando que estava muito escuro, e portanto não tem certeza em afirmar que foi Joey o assassino. Detetive Wallis e o promotor não compreendem a atitude de Nick. Joey sai pela porta da frente, e a gangue aparece para recepcioná-lo e lhe dar as boas vindas ao grupo. De seu carro, do outro lado da calçada, Nick assiste a tudo. É a primeira vez que vê o rosto de Billy Darly (Garrett Hedlund), o líder dos bandidos e irmão de Joey. Ele abraça o irmão e fala sobre o quanto "está orgulhoso".

À distância, Nick segue os dois Mustang por uma vizinhança perigosa. A gangue deixa o novato em uma zona, dá-lhe algum dinheiro, e parte, deixando-o todo animado para "tirar o atraso" com uma prostituta qualquer. Nick volta para casa, e separa uma faca da oficina. Enquanto está separando a arma, Lucas, que não imagina as intenções macabras do pai, aparece para tentar conversar. Ele mal sabe como o irmão morreu, e se sente alienado do pai. Com a desculpa de que tem que pegar um documento importante no escritório, Nick entra no carro e parte. Nick aguarda fora da zona, dentro do carro, e quando vê Joey deixar momentaneamente o quarto para fumar um cigarro, sai do carro com vingança em mente. Quando Joey se vira e vê Nick na sua frente, assusta-se e pergunta o que está fazendo ali. Nick o ataca e só se satisfaz ao cravar uma faca em sua barriga. Ele dirige a um lugar ermo, limpa as digitais do cabo da faca, e a joga em um córrego.

Nick volta para casa e interpreta muito bem que tirando aborrecimentos de trabalho, sente-se bem. Helen e Lucas estão revisitando alguns vídeos caseiros. A esposa nota que o marido parece exausto, e ele atribui o mal estar a um escorregão quando foi apanhar o carro. Ela prepara um banho quente para Nick. No chuveiro, o pai de família parece aperceber-se do significado de se matar um ser humano, na verdade, apenas a gota d'água para todo o stress emocional que está atravessando. A sua devota esposa o vê aos prantos, e o abraça, consolando-o no chuveiro. Billy Darly só vai saber da morte de seu irmão inútil na manhã seguinte. Aprendemos que o seu pai, Bones Darly (John Goodman), é dono de uma oficina, mas também mentor de um comércio paralelo ilegal de armas pesadas. Billy costuma dividir o dinheiro dos roubos com o velho, que sabe que nenhum de seus filhos vale algo. Billy é recebido pelos companheiros no laboratório de drogas da gangue, e todos parecem consternados. Eles lhe contam que Joey Darly está morto. No trabalho, os colegas de Nick estão preocupados com o seu bem estar. A Detetive Wallis presta uma visita para Nick para lhe dizer que Joey Darly foi misteriosamente assassinado na noite anterior. Ela percebe que Nick, visivelmente tenso, fica ainda mais constrangido quando a detetive nota a sua mão enfaixada.

No bar, a gangue está brindando em homenagem ao companheiro morto. Eles estão discutindo quem poderia ter matado o rapaz. Um deles conta que a irmã viu um sujeito de paletó pelas redondezas, aproximadamente no horário que confere com o do homicídio. Cavalheiros "de paletó" não frequentam redondezas tão perigosas, e não custa a concluir-se que Nick Hume foi o responsável. Billy ordena que seu amigo leve `a irmã o jornal que estampou a foto de Nick Hume, na ocasião do assassinato de Brendan, nas capas. Ele diz que se vir a foto, poderia reconhecê-lo, o que não deixaria dúvida alguma quanto a autoria. Como esperavam, a moça confirma que Hume era a pessoa no local do crime.


No trabalho, Nick parece tenso, temeroso de que a morte seja rastreada até a sua pessoa. Ao deixar o escritório, não percebe que está sendo seguido de perto pela gangue. Ele compra curativos e anti inflamatórios em uma farmácia. Quando está voltando para casa, um dos marginais corre em sua direção, de pistola em punho. Nick se vira e o acerta em cheio na cara com a mala. Os demais, do outro lado da rua, sacam as suas armas e começam o tiroteio que deixa o quarteirão em polvorosa. São quase dez homens contra um, quando Nick sai correndo por becos apertadíssimos, os delinquentes em seu encalço, atirando e errando. Naquele ínterim, o cozinheiro de um restaurante sai pela porta dos fundos para deixar o lixo do dia, e Nick aproveita para entrar no edifício comercial. A gangue o persegue pela cozinha do restaurante e depois pelas salas. Subindo as escadas de serviço, Nick vê-se em um típico estacionamento de vários andares, comuns a grandes metrópoles. Perspicaz, ele vai chutando a traseira dos carros para provocar os alarmes, e confundir e atrapalhar os vilões. A sequência do estacionamento é o ponto alto do filme, e para evocar a exaustão proposta, é filmada quase em um take, técnica que deixaria Brian De Palma com inveja. A passagem de câmera por diferentes andares, a forma como vai e vem, dançando por volta de delinquentes e herói, em uma perseguição implacável, é a prova incontestável de que Sr. James Wan é um mestre absoluto em seu ofício. Se Hitchcock estivesse vivo, seria este tipo de sequência que estaria rodando. É realmente impressionante o que o domínio de câmera consegue provocar, sem a necessidade de retoques ou grandes efeitos. Somente câmera e talento.


Nick vai subindo os andares pelas rampas, a gangue não muito distante. Ele finalmente alcança o último andar, no topo do edifício. Um deles também alcança a cobertura, ao mesmo tempo, mas Hume se abaixa e se esconde no instante correto, de modo a não ser visto. Chegando sorrateiramente, ele se joga contra o homem e toma a sua pistola, dando início a uma feroz luta. Nick apanha a cabeça do homem e a arrebenta, usando a porta do automóvel. Ele saca outra arma, mas Nick abre a porta blindada, e os disparos não o atingem. A luta segue dentro de um carro qualquer. Nick puxa o freio de mão, e o automóvel vai descendo de ré, lentamente, cada vez mais perigosamente próximo `a beirada da cobertura. Nick se apercebe do risco, e sai agachado, a tempo de escapar do carro pela janela frontal. No segundo seguinte, o automóvel despenca das alturas, com o marginal dentro. É o segundo homem da gangue que Nick mata. Ele entra no seu automóvel e parte à toda velocidade, descendo as rampas e chegando a rua principal em segurança.


Nick recebe uma ligação de Helen, que se diz preocupada pois foi buscar Lucas no futebol mas não o encontrou. Nick diz imaginar onde o filho se meteu, desliga e arranca com o carro. No estacionamento, Detetive Wallis está periciando a cena do crime. Ela está começando a suspeitar que Nick está metido até o pescoço na situação. Em outro lugar da cidade, conforme o pai imaginara, Nick encontra Lucas na estação abandonada, às lágrimas. Ele está aos prantos, realmente perdido. Ao chegarem, Helen o toma nos braços, emocionada, aliviada por vê-lo bem. De posse da carteira que Nick deixou cair, Billy passa a vista por fotos de sua família e colhe dados sobre a vida do executivo, enquanto arquiteta a sua mais nova maldade.

Um dos marginais aparece no edifício da seguradora, com uma "encomenda" para Nick. Ele chega ao andar da firma, anunciando "Nicholas Hume!". Quando o encontra, atira-lhe um pacote. Ele é arrastado para fora do edifício, e Nick vê que se trata de sua maleta, que deixou cair na manhã em que o perseguiram, para conseguir despistá-los mais rápido. Dentro, fotos da família Hume, com os seus membros marcados por tinta de caneta porosa vermelha. No verso, um número de telefone. Nick liga, e Darly atende. Eles trocam insultos, e agora a guerra está declarada, onde um dos lados só parará quando o inimigo estiver liquidado. Nick contata Helen e pede para que não saia de casa, até que a polícia chegue. Ele então liga para Detetive Wallis, que imediatamente envia viaturas para a casa dos Hume. Ao chegar a casa, Nick fecha todas as portas e janelas.


Wallis diz a Nick que a polícia permanecerá fazendo a vigilância por toda a noite, e que um juiz expediu mandado para pôr os membros da gangue de de Billy Darly atrás das grades. Na mesma noite, Nick acorda com o barulho da buzina do carro de polícia. Quando olha pela janela, vê os oficiais executados. A gangue já está dentro da casa. Um deles persegue Nick com tiros de escopeta, escada acima. Ele o encurrala no banheiro, mas Nick se esquiva do tiro ao puxar o tapete sob os seus pés, fazendo o bandido cair. Chega mais um delinquente, que faz mira para atirar. Nick dá um pontapé na porta, que bate com força em seu braço, fazendo-o errar o disparo, e acertar o amigo ao chão, estourando-lhe o joelho. Nick voa contra o homem, e os dois saem voando, arrebentando com o peso de seus corpos o corrimão, despencando de uma altura de dois andares. Lucas e Helen são trazidos para a sala pelos demais bandidos, e levados `a presença de Billy Darly, que os fuzila friamente. Nick enlouquece e avança contra o inimigo, disposto a matá-lo com as próprias mãos. Darly acerta um tiro em Hume, e certo de que destruiu a família, vai embora com os seus asseclas.

Nick acaba sobrevivendo. Quando acorda da sedação, recorda-se da esposa e do filho, alvejados por Darly. Ele precisa ser novamente sedado. Wallis aparece no hospital e avisa a Nick que a guerra acabou. Se for atrás de retribuição, só vai conseguir ou ir para a cadeia ou morrer mais cedo. Cheio de remorso, Nick diz que sente que matou a própria família, e Wallis lhe conta que Lucas escapou com vida. Com a esperança renovada, ele se levanta da cama, afasta os médicos e só se acalma ao chegar ao lado de seu leito. Mesmo com o filho adormecido, Nick diz ao menino que sabe que o filho sempre acreditou que ele nunca se importou com Lucas tanto quanto se importou com Brendan. Quando Brendan, o primeiro filho, nasceu, aos olhos de Nick e Helen, foi como um milagre. Fascinados em assistir ao primogênito crescer, quando chegou a vez de Lucas, explica que o seu erro foi ter esperado um "segundo Brendan", quando na verdade Lucas tinha o seu próprio jeito de ser, e `a sua própria maneira, era um menino igualmente fantástico. `As lágrimas, Nick diz ao filho que a sua mãe significava o mundo, assim como Lucas, e que só quer que não tenha dúvidas de que o ama muito. Ele se desculpa por não ter sido um pai melhor, e o protegido mais. Nick beija a sua testa e deixa o hospital, determinado a completar a sua vingança. Ele foge pela janela, e assim que Wallis dá pelo sumiço, imagina que Nick está para se meter em confusão.

O executivo retorna para a casa, isolada por aquelas fitas amarelas usadas em cenas de crime, mas não se importa, e vai entrando. Ele troca os curativos, veste um boné, e vai ao banco sacar todo o dinheiro da conta. Nick pede para que um amigo descubra de onde partiu o número de telefone fornecido anteriormente por Billy Darly no verso da foto. O número do telefone o leva ao bar onde a gangue de Billy Darly costuma beber. Nick aparece por lá em busca de respostas. O sujeito tenta dar uma de engraçadinho, até que Nick o segura pela nuca e enfia a sua cara no balcão. O vagabundo compreende que Hume está falando muito sério, e fornece a localização de um prédio abandonado onde eles costumam virar a noite para festejar e usar drogas. Ele ainda lhe indica um excelente lugar para adquirir armas.


Nick aparece na oficina de Bones Darly, com uma sacola cheia de dinheiro, e diz que quer comprar armas. Bones lhe apresenta uma série de armas pesadíssimas, apropriadas para a envergadura da matança que pretende causar. Nick fica encantado com uma escopeta, uma pistola e um revólver. O valor da compra é de três mil dólares, mas Nick fica tão feliz, ansioso para começar a carnificina, dá cinco mil a Bones. Quando está saindo com a sacola de armas, escuta-o engatilhando uma arma. Nick descobre que Bones é pai de Billy Darly ("Você é o maluco que tá atrás do meu filho?", Bones pergunta, fazendo mira). Nick não tem receio algum de confirmar que sim, está realmente determinado a destruir Billy Darly. Para a sua surpresa, Bones abaixa a arma e diz entender os seus motivos. Bones o deixa partir, e Nick vai embora com um sorriso e a sacola cheia de armas e balas. Na oficina, ele prepara o revólver, a pistola automática e a escopeta para o confronto. Ele se livra do curativo, raspa o cabelo, veste a jaqueta de couro de Brendan, e parte para a batalha de vida ou morte.

O seu primeiro ponto é o prédio abandonado indicado pelo sujeito do bar. Nick dá um tiro de escopeta na porta, e encontra um dos homens na companhia de uma prostituta. Quando o rapaz faz menção de que vai apanhar a pistola na mesinha, toma um tiro na perna. Sob a mira do revólver, o bandido conta direitinho que Billy e os demais estão no hospital psiquiátrico abandonado, na verdade a central de operações da gangue, onde costumam preparar as drogas para comercialização. Nick coage o homem a ligar para Billy. Quando Darly atende o celular, Heco, o marginal, grita que "O filho da mãe não morreu!". Nick estoura os miolos do rapaz para que Billy escute a tudo do celular e sinta o gostinho do que está por vir. O bandido fica abismado. Naquele mesmo instante, Bones chega enraivecido, contando para o filho que há pouco Nick esteve na oficina, comprando armas, e que está a caminho para pegá-lo. Billy mata o pai, e fica com o carro. Nick, por sua vez, toma as chaves do homem que acabou de executar, e fica com o Mustang, o mesmo que no começo do filme foi usado no assalto que custou a vida de BrendanUma curiosidade: nesta cena, fica visível em um muro a pintura do famoso bonequinho ventríloquo de "Jogos Mortais", também de James Wan, uma justa homenagem do cineasta ao filme que o tornou requisitado. 

A gangue está no hospital psiquiátrico abandonado, um furgão estacionado bem na entrada. Nick pisa fundo, e enfia o Mustang no furgão, partindo-o ao meio. Nick está caminhando pelos corredores, quando um membro de gangue o vê. Nick lhe dá um tiro arrancando-lhe a perna, do joelho para baixo. Termina o serviço com outro disparo, que faz um rombo no peito. O corpo do homem voa corredor adentro, o que deixa o seu colega espantado. O bandido saca a automática e descarrega os pentes, Nick se protegendo dos disparos atrás de uma parede, aproveitando para municiar a escopeta. Nick dá dois poderosos tiros que acabam por feri-lo na perna. Desesperado, o homem sai mancando, enquanto Nick o persegue calmamente. Vez ou outra, o exasperado bandido vira-se e tenta acertá-lo com algo, apenas para errar miseravelmente. Nick o encurrala, quando o delinquente está para abrir a janela de um banheiro para saltar. O tiro de sua escopeta abre um buraco na altura do peito, arremessando-o através da janela. Hume quase é acertado por um tiro: dois marginais chegam no andar para tentar derrubá-lo. Desta vez, Nick puxa a automática, e descarrega o pente nos bandidos. Eles conseguem escapar dos disparos, mas o laboratório de drogas é completamente destruído. Nick sobe as escadas, e um dos rapazes tenta acertá-lo. Nick não hesita, detém-se momentaneamente na subida e vira-se para retornar fogo. Ele não deixa um tiro sequer sem resposta. É pura guerra!


De um dos lanços de escada, Nick põe-se de peito para fora no corrimão, apontando para baixo, e mandando um tiro vertical. Ele não fere o homem mortalmente, mas o acerta de raspão e o incapacita. Billy está chegando ao prédio naquele momento. O hospital psiquiátrico é um emaranhado de corredores decadentes, salas com paredes muito frágeis, luzes que vêm e vão. Nick escuta o seu inimigo caminhando rente a ele, do outro lado da parede, e dispara. O tiro rompe a parede e acerta o vilão no peito. Nick joga fora a escopeta, agora que a munição acabou, e empunha a pistola. Ele chega a um lugar semelhante a um palco, quando Billy Darly o apanha com disparos nas costas. Nick não desiste: ele se vira e aperta o gatilho, acertando Billy nas axilas e arrancando os seus dedos. O último comparsa de Billy chega por trás e atira no pescoço de Nick. Hume explode os seus miolos com um tiro certeiro na cabeça. Exausto, Nick senta-se em um banco de madeira, de frente ao palco. Também ensanguentado, Billy senta-se a seu lado. Os dois se olham, estupefatos com a que ponto foram capazes de chegar em suas respectivas vinganças pessoais. Nick exibe a Billy o revólver municiado e pergunta se o rapaz finalmente está preparado para morrer. Billy fecha os olhos, e lágrimas escorrem pelo seu rosto.

O diretor corta para carros de polícia parando na entrada da casa dos Hume. A Detetive Wallis encontra Nick `a beira da morte, sentado na sala, assistindo aos vídeos de família, lembranças de dias mais felizes, antes de toda a loucura. Ela lhe conta que Lucas se recuperou e já não corre mais risco de vida. Um agonizante sorriso de gratidão passa pelo rosto do agonizante Nick, e o filme acaba.


Sombrio e pesado suspense rodado `a moda antiga, momento incomum na carreira do talentosíssimo James Wan, que nos anos seguintes viria a se tornar um dos cineastas mais respeitados e importantes do gênero Horror. Com uma filmografia invejável, onde impera filmes envolvendo assombrações e demônios, foi com "Sentença de Morte" em que James Wan pôde tentar algo diferente, e o veículo escolhido foi um enredo nostálgico, vagamente baseado em romance de Brian Garfield. Mesmo aqui, poucos anos após a estreia com "Jogos Mortais", e antes da consagração com "Sobrenatural" e "Invocação do Mal", Wan já ensaiava características que viriam a se tornar uma constante ao longo de sua carreira. Em seus trabalhos, a parte visual sempre encontra uma forma de se destacar. O colaborador habitual de Wan, John R. Leonetti, dá a este angustiante suspense uma tonalidade granulada, borrada, maltratada, como se alguém tivesse derramado café sobre os rolos de filme, resgatando uma atmosfera setentista que torna a experiência ainda mais sufocante e especial. As cores fortes e o roteiro seco e direto fazem com que momentos como o da perseguição nos andares do estacionamento arranquem efetivamente o oxigênio da plateia.


Sempre fiel a seus atores, Wan trouxe o seu amigo Leigh Whannell, participação constante de seus filmes, para compor um dos membros da gangue de Billy Darly (Whannell interpreta o bandido esmagado quando Nick arremessa o Mustang contra o furgão, durante o clímax). A veterana Judith Roberts também causa forte impressão, em seu papel muito breve, praticamente uma participação especial. As pessoas familiarizadas com a filmografia de Wan se recordarão de Roberts em "Dead Silence", no papel de Mary Shaw, uma ventriloquista que, dizia-se, tinha uma coleção de bonecos bizarros que, mais do que ventríloquos, possuíam vida própria e obedeciam a seus comandos. Shaw é morta pelos habitantes da cidadezinha, mas seu espírito passa a assombrar o lugar através dos bonecos macabros. Apavorante em "Dead Silence", aqui a atriz habita uma personagem mais comum, mas nem por isso menos memorável.


As atuações estão fantásticas. O talento de seu diretor parece tão incontestável a esta altura que conseguiu atrair grandes nomes, como John Goodman, uma maravilhosa adição, mesmo em seu pequeno papel. Parece claro que Goodman topou participar do filme pela oportunidade de trabalhar sob a batuta de um diretor tão habilidoso, e em um papel que teria ficado ordinário e pouco impressionante nas mãos de outro artista menos experiente, Goodman traz algo `a mais com a sua ótima performance. Kevin Bacon interpreta o protagonista, e dá o tipo de desempenho que o papel pede, não o de herói de filmes de ação, mas o do homem comum, em consonância com as linhas de Brian Garfield, ao criar a história original. É uma atriz sobre quem nunca pensei a respeito, porém, que se sobressai como o "porto seguro" da família Hume. Kelly Preston interpreta Helen Hume, e a sua interação com filhos e marido sintetiza a ideia da importância da unidade familiar que o diretor procura passar. Assim como John Goodman traz algo de especial a seu papel aparentemente menor, foi por causa do talento de Kelly Preston que muitas cenas importantes, como quando conforta o marido no chuveiro, trouxeram maior ressonância, maior impacto. Ela foi a grande surpresa entre os colegas de elenco, com uma personagem que prova que por trás de uma família unida, há uma mulher honrada que sabe o seu papel na dinâmica de tudo. Pelos bons e maus momentos, permanece fiel a seu marido e filhos, até o trágico fim. Depois que ela se vai, não há como ignorar que é hora da retribuição. É impossível não torcer pelo herói. Preston foi um triunfo, a sua melhor performance em anos!

Em um tema que seria recorrente em sua filmografia, novamente, o cerne de "Death Sentence" é o da unidade familiar sob ataque: em "Invocação do Mal" e "Sobrenatural 1 & 2", sob o ataque de forças sobrenaturais, aqui, sob o assédio de uma gangue. "Death Sentence" é o seu filme mais triste, mais sombrio. Se na maioria dos outros o bem triunfa, neste, a vingança só atrai surpresas cada vez menos recompensadoras para ambos os lados em conflito, e o seu final é um dos poucos onde não há resolução satisfatória alguma. Possivelmente, o olhar mais pessimista não seja exclusividade de Wan, mas da fonte original, o romance de Brian Garfield. Talvez os amigos não saibam, mas a fonte de "Sentença de Morte" é a mesma do clássico de 1974 "Desejo de Matar", com Charles Bronson.


No filme de 1974, o personagem principal era o arquiteto vivido por Charles Bronson, um homem pacifista que inclusive ao servir os Estados Unidos na Guerra da Coreia, fê-lo como médico de pelotão, tudo por causa de sua aversão a armas e `a violência. A mulher e a filha são barbaramente estupradas, a mulher morre e a filha fica louca, e aquilo parece provocar uma profunda transformação em suas convicções. É quando faz uma viagem a trabalho ao Arizona que conhece um magnata que vem a se tornar seu amigo. Quando o homem o leva a um daqueles shows de Velho Oeste, onde heróis e bandidos encenam um tiroteio para divertir os visitantes, começa a alimentar a ideia de vingança. Na despedida, o magnata lhe empurra um "presentinho": um raro e letal revólver Colt belíssimo e prateado. Quando o protagonista regressa para Nova York, começa a ensaiar na vida real o que antes guardava só na fantasia. Ele passa a apanhar os metrôs nas horas mais perigosas, a meter-se nas mais descuidadas situações, como se quisesse ser abordado pelos vagabundos. Quando os delinquentes acham que o apanharam de calças curtas, ele saca o revólver e os executa sem dó. Não custa a se tornar o "Vigilante" da cidade, ao mesmo tempo que um veterano detetive, que intimamente é simpático a sua causa, tenta detê-lo. 

Em razão das continuações que o filme gerou, as pessoas associam "Desejo de Matar" ao gênero ação, mas se esquecem do que tornou o primeiro tão fantástico. Em primeiro lugar, é importante frisar que o personagem principal jamais consegue satisfazer o desejo de vingança, pois jamais consegue encontrar os marginais que estupraram a mulher e a filha. Tudo o que faz é exteriorizar o ódio sobre outros delinquentes. Neste sentido, um estranho e triste sentimento de injustiça, frustração e dor acompanha o anti herói, que jamais encontra alguma coisa semelhante `a paz. Em segundo, "Desejo de Matar" não é um filme de ação, mas um drama. A ação, ou melhor, as sequências de tiroteio, ficam lá para o final, e não dizem respeito ao herói enfrentando um super adversário, um grande traficante, por exemplo, mas sim a delinquentes e bandidos desavisados acostumados a tocar o terror, que têm a infelicidade de mexer com um cara louco para lhes dar alguma retribuição. Se os amigos revisitarem o primeiro "Desejo de Matar", e depois conferirem "Sentença de Morte", perceberão que ambos os filmes parecem "tirar o fôlego" pelos mesmos expedientes, com histórias muito difíceis, ou mesmo a fotografia granulada e berrante do filme de Wan, propositalmente imposta para evocar a impressão de se estar assistindo a algo produzido nos anos 70, uma homenagem a seus inesquecíveis thrillers tais como o primeiro "Desejo de Matar", e "Straw Dogs", de Sam Peckinpah. Ao mesmo tempo em que rende a justa homenagem `a engajada década de 70, James Wan propõe um ritmo mais ágil e acelerado `a sua versão modernizada, focando na sangrenta guerra sem tréguas entre o homem comum e os delinquentes de gangue. O resultado é um thriller original e empolgante, superior `a maioria de similares contemporâneos, tudo porque, por trás da câmera, há um verdadeiro artista, que a cada filme parece lapidar ainda mais o seu absoluto comando sobre o cinema de horror inteligente e com personalidade. Em um ponto, porém, o filme de James Wan não bate o original: o quesito do desfecho. No original, o detetive encarregado de apanhar o vigilante acaba sumindo com a arma do crime, a única prova que liga o personagem de Bronson `as execuções. Ele o visita no hospital e diz que apesar de entender o que fez, não pode permitir que um justiceiro armado continue pelas ruas julgando e condenando conforme critérios pessoais. Eles fazem um rápido acerto, e Bronson concorda em deixar Nova York. Ao final, o vemos chegando `a estação de trem de uma grande cidade, a serviço de um novo escritório de arquitetura. Bronson vê uma garota sendo hostilizada, quando vagabundos vandalizam as suas malas, jogando-as no chão e saindo rindo. Ele se agacha para juntar as coisas da menina, enquanto os marginais deixam a estação, rindo de toda a situação e fazendo sinais obscenos para os dois. Bronson devolve o sorriso, aponta o indicador para os marginais, sinalizando um revólver, e a tela subitamente fica escura, para entrarem os créditos acompanhados pela melodia de Herbie Hancock. Se os amigos não viram, procurem assistir, é um dos finais mais memoráveis já colocados em celuloide. "Sentença de Morte" foi disponibilizado em DVD pela Paris Filmes, e tanto para saudosistas quanto entusiastas de filmes de horror, é uma experiência obrigatória, um valoroso substituto ao espaço deixado pela morte de Bronson, em 2003, o epítome do herói de ação de um tempo cada vez mais longínquo e que deixou saudades, época quando a diferença entre certo e errado parecia mais clara, e homens eram Homens.
Todos os direitos autorais reservados a Twentieth Century Fox. O uso do trailer é para efeito meramente ilustrativo da resenha.