quarta-feira, 30 de outubro de 2013

Pulse ("Kairo", 2001, Japão, Kiyoshi Kurosawa) um contundente suspense onde a maior ameaça é a solidão de nossos tempos.

Neste impressionante e atmosférico filme de horror japonês, espíritos estão "transbordando" para o nosso mundo pela mais inesperada via: a internet. Mais do que um filme de horror, "Kairo" (termo que significa Circuito) explora diversos temas bastante atuais, e a cada nova exibição, detalhes desapercebidos surgem para nos convidar a profundas reflexões. Para contar a sua história, o cineasta Kiyoshi Kurosawa fez uso do recurso de tramas paralelas. Uma vez somadas as suas diferentes perspectivas, as tramas compõem um rico painel sobre a solidão e a alienação preponderantes na virada do século. "Kairo" inicia com a imagem de uma mulher encostada ao deck de um navio, os olhos perdidos na linha do horizonte, um céu sombrio, cor de chumbo logo acima. Aprendemos que a mulher, assim como as demais pessoas a bordo, é sobrevivente de uma misteriosa catástrofe que se abateu sobre o mundo e dizimou mais da metade da população. O filme, então, volta no tempo para nos contar como os sobreviventes foram parar naquele navio e para onde estão indo.

O primeiro drama envolve Michi, Junco, Yabe e Taguchi, quatro jovens amigos que trabalham em uma floricultura de Tóquio. Faz algum tempo, Taguchi não se apresenta ao trabalho. Ele tinha dito que estaria ocupado com um trabalho de informática, todavia quando uma semana se passa sem que dê sinal, os amigos decidem procurá-lo. É Michi quem presta uma visita ao apartamento de Taguchi, e o encontra ocupado com afazeres, no gabinete. Ele parece distraído, mas bem humorado. Ao ser perguntado se se sente bem, Taguchi responde laconicamente que sim, e conta que tem estado ocupado com o programa de computador. Ele diz que concluiu o trabalho, e que Michi pode pegá-lo da pilha de discos, logo sobre a mesa. Michi começa a arrumar o quarto bagunçado, porém ao ir se despedir de Taguchi, depara-se com o amigo enforcado. Enquanto Michi esteve arrumando o escritório, Taguchi discretamente deu cabo da própria vida, em plena sala de estar.

Em um café, os amigos trocam impressões sobre o ocorrido. Nenhum dos três pode se recordar de Taguchi deprimido, e até onde sabem, não havia razão aparente para tão tresloucada atitude. Só o disquete em que trabalhou pode oferecer alguma pista, e portanto o trio escolhe investigar o conteúdo. Quando o abrem, encontram uma imagem misteriosa, basicamente uma foto de Taguchi de costas, de pé diante do monitor. O zoom revela que, no monitor, a mesma imagem é reproduzida infinitamente. Os três também conseguem enxergar muito bem o que parece ser o rosto fantasmagórico de uma outra pessoa refletido. Produto da cultura que o concebeu, "Kairo" traz uma trama pontuada por momentos aparentemente aleatórios, peças que parecem não se encaixar, mas que dão ao filme um perturbador ar de impenetrável mistério. Naquela noite, uma das meninas se encontra a sós no apartamento, preparando o jantar e assistindo ao telejornal, quando entra uma matéria sobre uma mensagem na garrafa, jogada ao mar dez anos antes por um garotinho de uma ilha japonesa, que finalmente havia sido descoberta em uma praia da Malásia, mais de quatro mil quilômetros de onde a garrafa fora arremessada. Enquanto escuta a tudo, a moça prepara um café. Ao fundo, na televisão, o rapaz que tinha atirado a garrafa quando criança aparece dizendo que jamais imaginou que a mensagem alcançaria outro país, tampouco que receberia resposta. O sinal da televisão começa a sofrer interferência, até congelar na imagem do repórter. Algo nesta cena parece prenunciar toda a confusão por vir - fantasmas transbordando em nosso mundo através da internet - e a maneira incomodada e tensa com que a mulher reage ao incidente dá à cena um ar de antecipação, algo que se provará uma constante ao longo do filme.

A segunda trama oferece como referencial Ryosuke, um estudante de Economia que recentemente resolveu plugar no mundo da internet. Ele compra o pacote de um provedor, e do momento em que loga na rede, passa a acessar involuntariamente um website onde lhe são exibidas imagens ao vivo de pessoas solitárias, enclausuradas em quartos muito escuros. Elas ou não estão fazendo nada, ou caminham lentamente dentro de seus cômodos, em silêncio. Ao final da exibição, a tela escurece e o texto "Você gostaria de conhecer um fantasma?" surge. Ryosuke fica extremamente perturbado e imediatamente desliga o PC. Mais tarde, já adormecido, o computador se inicia sozinho e o modem conecta novamente a internet, retornando ao website. Ryosuke toma um susto ao ver as imagens de uma mulher com um saco preto na cabeça, sentada de frente para a câmera, como que esperando comunicar-se. Ryosuke arranca o fio do computador. Na manhã seguinte, no laboratório de informática, conta o ocorrido a um colega, que sugere que aquilo parece coisa de "hacker". Uma moça chamada Harue escuta a conversa, e se oferece para ajudar. Ela lhe dá instruções para que, da próxima vez que o incidente ocorrer, imprima a página, ou mesmo a adicione à pasta Favoritos, para que possam investigar a origem do website.

Voltando à primeira história, Yabe recebe um telefonema, cujo número identifica como o do apartamento do falecido Taguchi. Do outro lado da linha, uma voz metálica e sem emoção limita-se a repetir "Ajude-me, ajude-me". Yabe decide visitar o apartamento do amigo e verificar se seu computador foi deixado ligado. Aqui, cabe registrar que mesmo os momentos de quietude de "Kairo" são extremamente eficientes na propriedade de incomodar. O diretor Kiyoshi Kurosawa consegue perfilar o trabalho com sacadas sutilmente arrepiantes, fazendo uso para máximo efeito de elementos que potencializam a expectativa: fotografia e trilha são seus pontos altos, os maiores aliados. Assim como Tom Shankland fez com w Delta z, onde a fotografia melancólica do talentoso Morten Soborg, a esbanjar borrados neon verdes e vermelhos, literalmente se torna um personagem a parte de seu maravilhoso filme, Kurosawa soube fortalecer "Kairo" em tecnicidades e criatividade narrativa, sustentando a proposta de mistério. Os filmes de horror japoneses funcionam muito bem porque parece perdurar em suas atmosferas a sensação de convívio entre velhas lendas e novos valores. Enquanto o Japão é uma das potências econômicas mais modernas, os mitos e valores milenares convivem em uma base diária com a correria e a impessoalidade de Tóquio, onde suas enormes vias, atravessadas por milhares, transmitem uma poderosíssima sensação de transitoriedade e energia. Na estação de Shibuya, a rodoviária que suporta uma das maiores demandas de tráfego diário do mundo, a arquitetura de terminais moderníssimos é pontuada por ícones seculares de épocas distantes, tais como o cachorro Hachiko, imortalizado em uma estátua erguida em uma das cinco entradas. Bem em meio à agitação do século XXI, cidadãos encontram tempo para se encontrar e conversar neste ponto, símbolo de amizade e fidelidade incondicionais. O Japão parece um lugar especial, um mundo a parte, onde o que há de mágico, belo e milenar encontra a maneira de perdurar, tanto em espaços grandes quanto pequenos. Kurosawa soube fazer bom uso desta característica essencialmente nipônica.

Yabe está investigando os computadores no apartamento do amigo, quando ao ir buscar alguma coisa na sala, depara-se com Taguchi de pé, observando-o silenciosamente, bem no lugar onde foi encontrado morto por Michi. Yabe procura se comunicar, mas o amigo desaparece e tudo o que resta na parede é uma mancha com a forma de silhueta humana, semelhante a borrão de café. Entre os papéis de Taguchi, encontra uma folha com a palavra "O Quarto Proibido", o que não faz sentido. Yabe regressa para casa, caminhando solitariamente pelas calçadas do bloco, quando a porta de um apartamento lhe chama a atenção. A porta teve as bordas cobertas por fitas adesivas vermelhas, como que o autor da arte tivesse procurado isolar o espaço, manter "algo" dentro. Yabe rompe as fitas vermelhas e entra, quando encontra o fantasma de uma moça, que assim como ocorreu com Taguchi, materializa-se inicialmente como um borrão na parede e então adquire mais nítida forma. O fantasma começa a caminhar em sua direção, sem pressa alguma, marchando decisiva e vagarosamente, quase como um sinal de TV mal sintonizado. No dia seguinte, Yabe vai trabalhar, deprimido e calado, e quando as meninas perguntam como foi a sua visita ao apartamento, ele as ignora. Por todos os cantos de Tóquio, coisas parecidas começam a acontecer com frequência.

No trabalho, Yabe continua introspectivo. Michi insiste em descobrir o que está acontecendo com o amigo. Ela o encontra sentado no chão, no depósito das caixas, e insiste para que conversem. Yabe murmura que viu um fantasma, e balbucia qualquer coisa sobre "O Quarto Proibido". Pede para que Michi não entre nos quartos proibidos. Voltando para casa, em um distrito de fábricas, Michi vê uma moça subir as escadas de uma torre, e saltar para a morte, sem hesitar.

Em um outro lugar da cidade, Ryosuke continua a experimentar estranhos incidentes com a internet. Novamente, o modem conecta-se sozinho à rede, e volta `a moça com o saco plástico preto na cabeça, sentada em um quarto escuro. Ryosuke segue as instruções de Harue, e procura adicionar o website a Favoritos, sem sucesso. A imagem o deixa transtornado: quando o fantasma está para tirar o saco da cabeça, Ryosuke desliga o computador e arranca os fios. Ao retornar para o laboratório de informática, não encontra os colegas. De uma estranha maneira, as ruas e calçadas parecem mais vazias. Ryosuke acaba por reencontrar Harue no departamento de informática, e lhe conta que continua com problemas.Ela se oferece para acompanhá-lo e verificar pessoalmente o que está acontecendo. Enquanto espera que Harue arrume as coisas, um programa chama a sua atenção: uma série de pontinhos brancos, em perpétuo movimento, que ora se aproxima, ora se afastam, porém dificilmente se encontram - e, quando se encontram, "morrem". Harue lhe conta que o estudante que projetou o programa quis "reproduzir" a dinâmica de relacionamentos. Quando as pessoas começam a se aproximar, uma força parece momentaneamente repeli-las; quando se afastam em demasia, a força as aproxima, porém quase sempre impede que se conectem, e fatalmente quando os "pontos", ou pessoas, o fazem, destroem-se. Harue visita o apartamento do rapaz, e os dois começam a se conhecer melhor.

Na biblioteca da faculdade, Ryosuke volta a encontrá-la. Ela está folheando as páginas de um livro sobre fantasmas, e o rapaz pergunta se o tema traz relação com o seu trabalho no laboratório de informática. Harue o convida a visitar o departamento. Desde que haviam se encontrado pela última vez, o programa dos pontos brancos que ora se aproximam, ora se afastam, apresenta novos e misteriosos pontos, que parecem "engolir" os demais. Ela diz que as anomalias são como fantasmas, e acredita que o fenômeno está relacionado com o website de que Ryosuke tanto fala. Antes de deixar o laboratório, Harue lhe dá o seu número, e pede para que não hesite em procurá-la. 

Ryosuke dá pela presença de uma menina observando-o de um dos corredores da biblioteca. Um colega chamado Yoshizaki senta-se à mesa de Ryosuke e lhe diz que também enxerga a menina. Ryosuke acha que estão pregando uma peça, porém ao correr em direção à visitante, a mesma parece deslizar por entre os corredores, e desaparece. Ryosuke pergunta a Yoshizaki se sabe o que está acontecendo, e o colega o convida a tomar um chá. Yoshizaki conta que o que Ryosuke viu foi realmente um fantasma, e que agora os visitantes estão por todas as partes de Tóquio. Ele crê que quando morremos, nossos espíritos vão para "outro lugar". Ocorre que mesmo esse "outro lugar" tem espaço limitado, e que aparentemente atingiu a sua capacidade. Por não existir mais espaço para acomodar o volume de almas, elas encontraram o jeito de "transbordar" para o nosso mundo, através da tecnologia, das conexões da rede. Aparentemente, tudo começou de forma muito discreta, quando o primeiro fantasma apareceu em um cômodo de um prédio qualquer. Alguém deve ter dado pela sua presença, e selado o apartamento com fitas adesivas vermelhas nas portas e janelas, porém quando as obras de uma construção puseram o lugar abaixo, libertando o espírito, o efeito avalanche começou, e várias aparições passaram a "transbordar" por todos os lugares de Tóquio onde existem circuitos de internet. Segundo Yoshizaki, a passagem foi aberta, e não há como fechá-la. 

Michi e Junco estão assustadas, atônitas com o sumiço de amigos e familiares. A situação parece apocalíptica, mas surpreendentemente discreta, é como se o fim do mundo tivesse chegado sem muito alarde, mas com as suas consequências expostas por todos os lados. Michi atende uma ligação telefônica, e do outro lado uma voz metálica e monótona insiste "Ajude-me, ajude-me". Ali no trabalho, ela reencontra Yabe, mas para a sua surpresa o mesmo não passa de um fantasma, que se reduz `a mancha preta na parede. Junco faz a má escolha de abrir uma das portas seladas por tape vermelho, e Michi a encontra bem a tempo de salvá-la. Ambas enxergam muito claramente um fantasma, uma silhueta sombria muito alta e que se move vagarosa e espalhafatosamente. Junco é quem tem maior contato com o espírito, quem o encara, mas Michi consegue arrancá-la da sala, e as duas fogem.  

As pessoas que entram em contato com as aparições perdem toda a energia vital. É como se os espíritos lhes passassem uma doença terminal, na verdade uma profunda angústia existencial, que as impede de seguir vivendo, e as arrasta a um poço de solidão e amargura, do qual a única salvação parece ser a própria morte. Da mesma maneira que parecem condenadas à eterna solidão, as aparições também forçam as pessoas a enxergar o terrível vazio de suas vidas, e com isso aleijá-las de qualquer vontade de continuar existindo. Junco é transformada pelo encontro, e por mais que Michi tente resgatar a amiga, nada consegue fazer de significante para salvá-la do profundo desespero. Junco literalmente se transforma em um borrão escuro bem diante dos olhos de Michi, e quando o vento bate, as cinzas são carregadas como se nada fossem.

Ryosuke liga para Harue, mas não consegue contatá-la. Na faculdade, encontra o laboratório de informática abandonado, e cadeiras deslizando pela sala, como que gentilmente empurradas por mãos invisíveis. Ryosuke finalmente a reencontra ao visitar o seu apartamento, e ela parece muito mal. O rapaz procura animá-la, mas Harue insiste em falar sobre morte, e diz que hoje compreende por que sempre a temeu: porque, para ela, a morte significa a solidão eterna. Neste sentido, eles, os vivos, não difeririam tanto dos fantasmas, afinal de contas jamais conseguiam fazer uma genuína conexão em toda a vida. À essa altura, Tóquio se tornou uma cidade fantasma. O rapaz visita o shopping onde costumava jogar nas máquinas de videogame, e apesar de os aparelhos continuarem funcionando, não há sinal de pessoas. Uma aparição cruza sossegadamente o caminho de Ryosuke, vagando pelo salão de jogos sem rumo certo. Ryosuke propõe a Harue que ambos fujam da cidade fazendo uso do metrô. Eles sobem em uma das linhas, com a esperança de deixar Tóquio, mas depois de algum tempo de viagem, o trem estaciona em algum ponto dentro do túnel. Ryosuke corre para a cabine do maquinista para verificar o que se sucedeu, e Harue aproveita para saltar do vagão. Ela regressa ao apartamento, e finalmente tem um encontro com um visitante. Ao ligar o monitor, enxerga a si, como se houvesse uma câmera direcionada às suas costas, de algum cômodo do apartamento. Apesar de não haver presença física alguma, ela caminha diretamente ao ponto de onde o sinal é enviado, e sussurra emocionada que "não está mais sozinha", abraçando o fantasma que a observa.

Agora que quase todos morreram e o êxodo em massa terminou, os dois dramas se cruzam, quando Ryosuke casualmente encontra Michi, depois que seu carro dá o prego. Ele se oferece para consertar o veículo, e logo os dois se unem para tentar compreender o que aconteceu. Michi aceita ajudar o rapaz a procurar por Harue, e mais tarde a encontram em uma fábrica abandonada, vestindo o saco preto na cabeça, exatamente como as imagens do website. Antes que Ryosuke possa agir, Harue, que parece "contaminada" pela tristeza das aparições, puxa uma pistola e se suicida. Nada lhes resta, que não abandonar a cidade de vez, custe o que custar. Logo, a gasolina acaba, e o casal precisa parar em um posto. Ao se aventurar no estabelecimento para encher o tanque, Ryosuke depara-se com um fantasma. Decidido a não ceder `a presença das aparições, o rapaz a enfrenta, certo de que não passa de imaginação, mas logo percebe que a entidade a sua frente é muito real. Abismado, Ryosuke encara o misterioso visitante, que com uma voz robótica e indiferente lhe diz que "Morte é eterna solidão". Após o encontro, o rapaz perde qualquer vontade de continuar fugindo, e Michi tem de arrastá-lo de volta ao carro. O casal dirige por uma metrópole vazia e desolada, subtraída de qualquer sinal de vida ou normalidade. Agora, pretendem deixar a cidade pelo mar. Enquanto auxilia Ryosuke a descer o píer e se acomodar na lancha, Michi testemunha um grande avião descender dos céus com as asas em chamas. A aeronave se choca com a marina. Já lançado ao mar, o casal tem uma visão mais ampla do apocalipse que se abateu sobre Tóquio. Eventualmente, os dois são avistados por um enorme navio, tripulado por outros sobreviventes, e resgatados. Segundo os tripulantes, o fenômeno está sendo reportado em outros países, e aparentemente, o único lugar seguro parece ser a América Central, para onde o navio está indo. Uma vez a bordo, Ryosuke sucumbe à infecção e se desintegra em cinzas, deixando Michi sozinha para continuar sua jornada por um mundo incerto.

Um dos grandes filmes de horror do criativo cinema japonês, "Kairo" ainda é desconhecido pelo grande público, muito embora tenha ganhado até mesmo uma refilmagem americana em 2006, chamada "Pulse". Oriundo do profícuo período em que o gênero floresceu, está entre os mais memoráveis exemplares, ao lado de "Audition" e "Ringu". Consequência da cultura que o gerou, quando do lançamento, "Kairo" dividiu opiniões, e enquanto parte da crítica foi extremamente severa, outra o enalteceu pelo que representa, por mais que suas surpresas pareçam impenetráveis para o grande público ocidental. Revisitando o filme, ainda saltam aos olhos os pequenos elementos que soam inexplicáveis e aleatórios, mas que funcionam surpreendentemente muito bem, criando um tipo de expectativa eletrizante, alheia aos filmes ocidentais modernos. "Nada em suas duas longas horas faz o menor sentido", foi o que disse a Entertainment Weekly, a que fez coro o Village Voice, ao escrever "Ao menos, meia hora longo demais". Tempo de duração e muitas pontas soltas representam a fraqueza pela qual parte da crítica o repudiou, mas, ironicamente, também a força pela qual aqueles que o amam o enalteceram.

Filmes modernos têm furtado a nossa capacidade de investir a nossa atenção em histórias. O ritmo cada vez mais frenético e a falta de limites proporcionada pela avançada geração de efeitos especiais tornaram os filmes "menos filmes", e mais "eventos". Hoje, as produções lançadas no verão parecem feitas com o fim de superar umas às outras em termos de grandiosidade, efeitos visuais e sonoros, e emoções sustentadas por inovações tecnológicas. Com isso, o papel do cineasta, com a sua criatividade e visão, fica relegado a segundo plano, e logo mais deixará de existir. É como se os filmes tivessem deixado de ser dirigidos por artistas com paixão, e existisse apenas uma diretoria de executivos, que se reúne para criar um "empreendimento", um grande filme comercial de forte apelo cuja função será primordialmente "fazer uma matança" nas bilheterias, recuperar o investimento e superar o antecessor. A adição de criatividade ao suporte de grande estúdio parece mérito de poucos, pois a maioria dos cineastas modernos de talento precisa rodar os seus trabalhos dentro da escala mais modesta do circuito independente. Há homens geniais que conseguem habitar a fronteira entre o comercial e o artístico, trabalhar dentro do sistema dos grandes estúdios e ainda assim imprimir às suas obras a identidade, como é o caso do extraordinário James Wan, mas estes artistas são raros. Wan é um artista de visão que não "transgrediu", e muito embora crie obras muito pessoais, caiu no gosto dos estúdios mais importantes, pois lhes fez muito dinheiro. A Warner Bros. deu-lhe carta branca para fazer o que quiser após os dividendos colhidos pelo extraordinário "Invocação do Mal". De muitas maneiras, James Wan hoje é o "próximo Steven Spielberg", o "Steven Spielberg dos anos 70", que criou algo maravilhoso e pessoal dentro de um estúdio ("Tubarão"), e depois conseguiu manter a sua voz e a sua visão, mesmo que por vezes tolhido pelas demandas e compromissos de orçamentos milionários. Artistas igualmente especiais, mas cujas obras não traduzem o que os grandes estúdios procuram, correm "por fora", e no circuito de arte conseguem concretizar as suas visões e satisfazer as ambições, mesmo que o resultado não caia na graça do grande público ou tampouco gere dividendos de centenas de milhões em bilheteria. Obras duradouras como "Session 9", "w Delta z", "Hellraiser 01 &02", "Lords of Salem" e "The Tall Man" tomaram o gênero pela mão e o salvaram do lugar comum, reservaram respeito aos fãs e ofereceram algo de original, estimulante e polêmico, jogando mais perguntas do que respostas, levantando mais mistérios do que os elucidando, usando fotografia e trilha para máximo efeito. São "pequenos" filmes, rodados em cima de orçamentos moderados, que estimulam reações que as superproduções jamais sonham reproduzir, vez que financeiramente muito arriscado.

"Kairo" seria um destes filmes que "correm por fora". O filme de Kiyoshi Kurosawa jamais faria centenas de milhões nas bilheterias, ou mesmo atrairia a atenção de um grande estúdio que bancasse as ideias incomuns de seu diretor, sem questionar se as mesmas seriam aceitas pelo público que lota as salas de cinema. O circuito de arte é o seu lugar, foi lá onde colheu merecidos louros, e conquistou as pessoas que tiveram a sorte de esbarrar com esta joia do horror. O charme do filme foi tão inquestionável que mesmo um estúdio de envergadura se interessou em "recontar" a história, atenuando-a para o paladar ocidental. Foi a Dimension que adquiriu os direitos autorais para rodar o remake, cuja concepção iniciou-se no ano posterior ao do lançamento do original. Em 2002, Wes Craven esteve cotado para dirigir, mas foi somente em 2006 que a refilmagem chegou às telas, comandada pelo novato Jim Sonzero.  O resultado foi um bom filme de suspense, nada espetacular, apenas divertido, cujo maior percalço se dá ao desastradamente tirar respostas do chapéu e elucidar as pontas soltas de "Kairo". Em outras palavras, "Pulse" tentou recontar a história original e lhe dar algum sentido, chegando até mesmo a encontrar motivação para as fitas vermelhas utilizadas para bloquear os visitantes, um ponto que no original deixou as pessoas malucas perguntando o que tudo aquilo significava!Na refilmagem, as aparições são altamente estilizadas, extravagantes efeitos especiais que nos são canhoneados em tom azulado e sombrio, o que nos faz sentir saudades do minimalismo de Kurosawa: em seu "Kairo", a representação dos fantasma segue a linha teatral, barroca, simplista, o que me parece muito mais encantador e poético. No processo de adaptação, os seus realizadores se esqueceram de que o grande mérito do primeiro eram os becos sem saída. O motivo pelo qual chamara tanta atenção e merecera uma refilmagem devia-se ao fato de não oferecer respostas a mistérios. Ao procurar racionalizar as partes mais extravagantes de "Kairo" para torná-lo mais "palatável", os realizadores americanos trocaram as marchas e imprimiram uma agilidade que se mostrou incompatível com a gestação das ideias, resultando em um suspense por vezes atropelado, confuso e apenas regular. Seu maior mérito, talvez, tenha sido revelar o talento da adorável Kristen Bell, nas telas sempre cativante e esplendorosa com o seu rostinho lindo e o adorável nariz ligeiramente arrebitado; radiante com seu sorriso, simpatia e acessibilidade fora delas. "Pulse" a colocou no mapa, e desde então tem feito filmes cada vez maiores, tais como "Forgetting Sarah Marshall" e "When in Rome". Kristen ainda sucederá Sandra Bullock no posto de namoradinha da América, e então atriz de renome, podem acreditar. Ela consegue trazer o sol ao dia, basta um mero sorriso, e torço muito pelo seu sucesso.

"Kairo" agradará a pessoas abertas a novas experiências, que mais do que um sentido para a arte, buscam as emoções mais primitivas que um filme, um quadro, um romance conseguem evocar. Para aqueles que gostam de ter todas as suas perguntas esclarecidas, que fique claro: "Kairo" mais incitará o debate do que propriamente explicará o que se passou diante de seus olhos. Pessoalmente, compreendo que o filme funciona como uma meditação pessimista sobre a era das conexões e redes sociais, quando talvez ao invés de estarmos nos aproximando, estejamos projetando a imagem pela qual gostaríamos de ser vistos. Neste sentido, diferente de aproximar, a internet só estaria segregando, ou no mínimo criando a ilusão de uma "vida perfeita" que mascara a realidade, mais complicada do que perfis sociais possam levar a crer. Evidentemente, a internet é uma ferramenta importantíssima que permitiu que velhos amigos se reconectassem, e que compartilhassem com pessoas queridas miscelâneas de suas vidas, todavia também nos deixou acomodados à existência virtual, quando substituímos a convivência e o afeto humano por postagens e mensagens instantâneas. Sabemos que há mais envolvido em verdadeiras amizades do que meramente pertencer ou não à lista de contato uns dos outros, e de alguma forma, as redes sociais nos anestesiaram para o essencial. Talvez seja preciso tempo para enxergarmos a questão sob esta ótica, mas me parece que eventualmente temos que cair na real.

Claro que a interpretação acima é particular, e as pessoas poderão vislumbrar diferentes mensagens, ou mesmo mensagem alguma. Um colega me disse, "rapaz, li a sua resenha sobre Hellraiser, e nunca mais pensei sobre o filme da mesma maneira". Disse que eu devo ter "uma imaginação e tanto". Eu gosto de filmes que me movem a ponto de enxergar algo além do que meramente se passa na tela. Por outro lado, se vocês não querem pensar muito, mas apenas roer as unhas e curtir um filme de horror lento mas bastante enriquecido, sem sustos inesperados, porém permeado de imagens surreais e memoráveis, sem violência, contudo psicologicamente devastador, nas mesmas linhas de "Lords of Salem", por exemplo, "Kairo" é o seu filme. Agora que já me aprofundei o suficiente em "Kairo", deixem-me concluir a resenha com uma afirmação mais clara e direta, para os amigos que apreciam a praticidade: se vocês acham que conhece horror e não viram "Kairo", não sabem de nada ainda.

Todos os direitos autorais reservados a Magnólia Pictures. O uso do trailer é para efeito meramente ilustrativo desta resenha.