domingo, 20 de janeiro de 2013

V/H/S - Um passeio pelas alamedas da recordação.

Olá, pessoal. É com muita satisfação que venho tecer considerações sobre um dos filmes de horror mais interessantes de 2012 – e que pode ser facilmente conseguido em sítios de hospedagem de vídeos, cortesia de algum cinéfilo generoso que o disponibilizou. Refiro-me a uma contribuição entre os nomes mais pronunciados do cinema do horror desta década – entre eles Ti West, o diretor do aclamado House of the Devil – chamada V/H/S, coletânea de pequenas estórias de terror amarradas pela trama principal, que envolve um grupo de rapazes que invade uma residência para realizar um assalto, encontram o morador morto e uma caixa de tapes. As estórias são justamente os tapes que os invasores começam a assistir, ao todo cinco segmentos, cada qual melhor que o outro!Se os amigos preferem assistir a filmes sem conhecer as estórias, recomendo que parem de ler por aqui – ao longo desta resenha, farei revelações sobre as mesmas, porém quero ser categórico ao afirmar que jamais me diverti tanto quanto no passado, - em 1994 por exemplo, quando tinha 14 anos e assistia a Gêmeos Mórbida Semelhança, os filmes de David Cronenberg ou os de Burt Reynolds, que passavam na Sessão da Tarde, ou mesmo os de Jennifer Connelly - como quando hoje, ao descobrir V/H/S. Foi tão bom assim!Um passeio nostálgico pelas alamedas da recordação, cortesia de diretores que assim como a gente vivenciaram aqueles tempos, apaixonaram-se por filmes do gênero, e finalmente tiveram a oportunidade de homenageá-los com um trabalho diferenciado e encantador.

O que apreciei neste filme foi que fugiu à regra, e se distanciou o máximo possível de efeitos especiais bobocas e clichês do gênero. Ao contrário, a abordagem refrescante apenas favorece a atmosfera retrô que permeia todo o filme. Os diretores souberam adicionar elementos realmente inesperados – e incômodos, tétricos – a cada segmento, de modo que a obra, como um conjunto, acabou mais forte do que as partes. Há violência, mas a mesma não é mais evocativa do que as estórias. O diferencial de V/H/S é o clima mórbido que consegue impor, o que se deve ao amor que os cineastas devotam a este tipo de material. Assim como o cineasta Quentin Tarantino fez anteriormente, o fato de procurarem imprimir ao celuloide os detalhes, os pontos fortes de todos estes clássicos do passado – os de Dario Argento, David Cronenberg, os de Wes Craven – deu à produção uma roupagem nostálgica que, curiosamente, parece inédita, vez que reinventada.

O primeiro segmento envolve um trio de jovens na balada. Um dos rapazes, aquele que parece o mais inexperiente e ingênuo, veste óculos que documentam toda a farra. É que os amigos querem pegar as meninas mais bonitas, levá-las a um motel qualquer, fazer amor e documentar a conquista para se exibirem depois. Entram em um bar, conhecem algumas garotas, rapidamente o mais experiente dá um jeitinho de embebedá-las, para preparar terreno e, mais tarde, abater a caça. O mais inocente conhece uma moça estranha, que parece simpatizar com sua pessoa de imediato. Eu gosto de você, ela sussurra no ouvido do cara. Os desdobramentos horrorosos da noite são o fio narrativo do primeiro conto, que envolve a lenda do Sucubus, um espírito demoníaco feminino que eventualmente desce à Terra para levar nas suas asas a alma de algum incauto que caia pelo seu poder de sedução. Este segmento angustiante oferece breve nudez frontal, violência explícita (um pulso com fratura exposta e uma castração gráfica) e muitos arrepios. A cena em que a moça chega para o rapaz e diz, em sussurro, I like you (eu gosto de você) é de gelar... Principalmente, levando-se em conta no pesadelo em que estes três rapazes estão se metendo do momento em que resolvem levá-la para um quarto de motel de beira de estrada.

A segunda estória, a melhor de todas, foi dirigida pelo talentoso Ti West, responsável por House of the Devil e Hotel do Terror. Trata de um jovem casal em lua de mel viajando pelas rodovias interestaduais dos Estados Unidos. Este segmento é o único que não envolve forças sobrenaturais ou alienígenas, todavia o impacto da revelação final é tão chocante quanto os mais arrepiantes fenômenos paranormais que você consiga imaginar. O jovem casal documenta a jornada pelas estradas, o amplo horizonte norte-americano a se perder de vista. Os dois param em uma cidadezinha que recria os tempos do Velho Oeste. A moça põe uma nota na máquina do boneco que prevê o futuro. O aviso não poderia soar mais profético. Para o rapaz, mais tarde, fará completo sentido o trecho que afirma que “Você confia excessivamente nas pessoas e está disposto a fazer favores sem desconfiar que os outros usam isso como vantagem”; e para a moça, “Um acontecimento inédito está se aproximando, você se reunirá a um grande amor do passado e a vida será tudo aquilo que sempre desejou”. É claro que não há nada que leve o rapaz a suspeitar que existe algo de errado na relação, até porque a moça parece sempre amável e compreensível. Na noite em que param em um hotel de beira de estrada, uma menina bate à porta, e o rapaz vai atender. Mais tarde, explica `a esposa que a estranha pediu uma carona para o dia seguinte. Parecia uma moça comum, normal, no entanto, havia algo em seus modos que lhe causou arrepios. Ele considera reportar o caso para a polícia, porém compreende que a estranha não fez nada de errado, afinal de contas. Em um tom sombrio, ele lembra à esposa que estão metidos nas brenhas dos Estados Unidos, e aquela região é notória pelo alto índice de criminalidade. Os dois vão dormir, tensos, e durante a madrugada, a estranha consegue entrar no quarto. Ela acaricia as coxas da mulher, que não acorda, mexe com o rapaz, que também segue alheio, vira os pertences do casal, afana algum dinheiro da carteira do cara, e depois, vai embora, sem fazer mal algum a nenhum dos dois. É durante a retomada da viagem, no dia seguinte, que ao mexer na carteira, o rapaz se dá pela falta de uma certa quantia de dinheiro. Pergunta à esposa a respeito, ela responde que não pegou, e a questão morre por aí mesmo. A esta altura, o homem deveria estar no mínimo intrigado, afinal se a mulher diz que não mexeu na carteira e o dinheiro sumiu da noite para o dia, alguém deve ter passado no quarto, mas ele não dá atenção ao mistério, e a partir daí seu destino trágico é selado, porque a menina que esteve na noite anterior pedindo carona e mais tarde entrou no quarto enquanto o casal dormia é, na verdade, a namorada da esposa – isso mesmo, a esposa é bissexual – e as duas estão fazendo joguinhos psicológicos com a cabeça do Romeu apaixonado. Na segunda noite, a visitante regressa ao quarto do próximo motel onde o casal se hospeda, e esfaqueia o rapaz, que está dormindo, na garganta, seguidas vezes, sem lhe dar chance de defesa. Depois, você vê as duas no banheiro, a assassina lavando a lâmina, a esposa do rapaz filmando tudo, as duas se beijando apaixonadamente na boca, e mais tarde apanhando a estrada, para fugir e viver o caso de amor que tanto desejavam. Atmosférico e de imagens poderosas, este foi o segmento mais vívido e impressionante de V/H/S, aflitivo e misterioso do começo ao fim, com a fuga na autoestrada deserta, à noite, o vento batendo forte, e as duas amantes realizadas após o homicídio do insuspeito marido.

A terceira estória adiciona ao conjunto a bizarra ficção científica dos filmes de alienígenas, que voltará a ser abordado em outro segmento de V/H/S. É como uma inesperada, incomum versão de Predador. Dois garotos e duas garotas organizam uma viagem para acampar em uma região muito bonita nas montanhas, a convite de uma delas. Quando já se encontram por lá, a menina revela que esteve por ali algum tempo atrás, e que seus amigos foram misteriosamente assassinados por uma força inexplicável. O grupo reage com incredulidade. A outra menina se afasta do grupo, com um dos rapazes. Subitamente, é atingida por um objeto pontiagudo que atravessa o crânio, arremessado por um ser invisível, bastante semelhante ao monstro do filme Predador. O rapaz é morto em seguida. A verdade é que a menina que os convidou procurava usá-los como isca, para atrair o alienígena a uma de suas muitas armadilhas previamente preparadas. Os seus amigos são assassinados, mas ela consegue apanhar o caçador alienígena invisível com uma armadilha de facas. Quando acha que tudo está ganho, descobre tarde demais que não há apenas um, mas muitos outros predadores invisíveis nas montanhas. Estes surgem da mata escura para trucidá-la de uma maneira horrorosa. Deste segmento, apreciei a ideia de utilizar a premissa de Predador, e experimentá-lo com uma estória típica de adolescentes perdidos na floresta. A moça que os convida para o piquenique também dá um grande desempenho. Desconheço o seu nome, mas chamou a minha atenção. É uma atriz muito bonita e talentosa, que veste muito bem a aura de mistério e perigo.

A quarta estória se dá inteiramente no espaço do Skype, o programinha que permite que duas pessoas conversem em tempo real, via vídeo, através do computador. O seu formato é interessante, e aqui os diretores continuaram a adicionar à mistura o tempero da temática alienígena. Uma moça e um rapaz, amigos desde a infância, moram em estados diferentes, e matam a saudade conversando todos os dias no skype. A menina explica que seu novo apartamento é mal assombrado, contudo, o amigo pensa pouco sobre os temores da garota, até que durante uma conversa online, testemunha fenômenos inexplicáveis, tais como um menininho entrando no quarto e disparando em carreira pelo corredor, para em seguida desaparecer. A jovem se queixa de um caroço no braço, que não consegue explicar. Encorajada pelo amigo, ela resolve filmar a sala de estar, à noite, para que veja se consegue identificar alguma manifestação. E em uma certa noite, ao investigar, a moça filma os invasores, estranhas crianças que subitamente aparecem e a fazem desmaiar ao emitir um facho de luz. Os visitantes são criaturas extraterrestres, e o caroço em seu braço nada mais é do que um sinalizador que lhes permitia segui-la ao longo de todos aqueles anos. Para completar, quando a moça desfalece, o amigo aparece na sala. Ele apenas afirmava que estava em outro estado, mas durante o tempo todo estivera morando ao lado, e fazia parte do esquema dos alienígenas para estudá-la. Ele realiza uma pequena cirurgia enquanto a menina está desmaiada, retira o que parece ser uma pequena criatura de dentro da jovem e então a entrega para os alienígenas. Algum tempo depois, ao conversar com o amigo no skype, a moça parece não se recordar de coisa alguma, e conta que os médicos a diagnosticaram com esquizofrenia paranoide. O amigo finge surpreso e procura ser atencioso, mas sabe que a verdade é muito pior. Este é o segmento mais bizarro, nonsense, inquietante em suas ideias sinistras, onde os realizadores procuraram homenagear os antigos filmes de horror sobre OVNIS e invasores de outros planetas, na verve do que o segmento anterior começara a propor pela via de Predador.

A última estória, a quinta, fecha V/H/S com chave de ouro. O diretor deste segmento fez bom uso de câmera e efeitos especiais, remetendo-nos à nostalgia do primeiro Poltergeist. É dia das bruxas, ano de 1998, quando quatro amigos se reúnem para ir ao que pensam que será uma divertida festa à fantasia, do outro lado da cidade. De carro, seguem pelas vias de um bairro afastado, atravessam os trilhos e finalmente conseguem chegar ao endereço combinado. Ao ali chegar, porém, não encontram a turma. Cheios de energia e virando latas de cerveja após latas de cerveja, os quatro parecem não se importar. Investigando a elegante casa abandonada, dão pela presença de uma figura feminina imersa nas sombras, que desaparece misteriosamente. Levados ao último andar, os amigos escutam gritos vindo do sótão, e ao entrarem, presenciam uma cerimônia de exorcismo, uma moça amarrada e alguns homens realizando o ritual. Não levam a sério e começam a fazer brincadeiras, no entanto, quando os homens são atacados por uma força invisível, veem que não se trata de festa ou exorcismo de mentirinha. Aterrorizados, desamarram a menina e tratam de correr. É neste instante que o segmento homenageia Poltergeist, jogando manifestações apavorantes por todos os lados – jarros que flutuam e são atirados contra os visitantes, mesas levitando, braços fantasmagóricos que saem das paredes para tentar pegá-los. Os quatro rapazes e a menina conseguem fugir, mas quando já se encontram no cruzamento dos trilhos, o carro inexplicavelmente dá o prego. Eles cometeram um grave erro ao resgatar a mulher, pois ela está possuída pelo demônio, o mesmo que os aprisiona aos trilhos para que o trem que se aproxima os apanhe em cheio.

Para os amantes do cinema, que cresceram nos anos 80, assustando-se com os filmes que a nova geração apenas conhece por causa das refilmagens ruins, V/H/S os presenteará com uma viagem no túnel do tempo, quando vocês poderão se recordar de quando os filmes de horror eram realmente espetaculares, e não havia nada melhor do que lhes assistir com as luzes do quarto desligadas, sob os lençóis. Procurem prestigiar e aproveitar V/H/S, pois joias assim são bastante raras de se encontrar.

Todos os direitos autorais reservados a Magnolia Pictures. O uso do trailer é para efeito meramente ilustrativo da resenha.

terça-feira, 15 de janeiro de 2013

Catfish - Os estranhos que enxugam as nossas lágrimas.


Olá, pessoal. Nesta oportunidade, tenho a satisfação de discorrer sobre um filme realmente extraordinário, que me parece bastante válido neste cenário de relacionamentos virtuais, ao propor os seguintes questionamentos: será que verdadeiramente conhecemos as pessoas com quem confidenciamos a nossa vida e os nossos segredos, online?Há uma distinção clara entre a vida real e a realidade que construímos no meio virtual?Será que as fotos de momentos felizes postadas em perfis de facebook representam honestamente a vida da pessoa cujos instantes restam imortalizados nos retratos?Inicialmente, eu gostaria de destacar que Catfish não é um filme de horror, muito embora o marketing da produção o venda como tal. Quando do lançamento, quem se permitisse levar pelo trailer pensaria se tratar de um suspense psicológico nas linhas de Atividade Paranormal, ou algo igualmente sinistro. Curiosamente, dado o sucesso de Catfish, os seus diretores foram convidados a dirigir os filmes da referida franquia, tendo comandado as partes 3 & 4.

Catfish não é, porém, um filme de horror. Ao contrário de Atividade Paranormal, é um documentário autêntico onde não há atores interpretando personagens, mas gente genuína que passou pela experiência e documentou os momentos mais importantes da jornada. Neste caso que se deu ao longo do ano de 2007 e início de 2008, as crenças e os princípios das pessoas diretamente envolvidas foram profundamente transformados. Cheio de reviravoltas, o documentário nos brinda, inicialmente, com momentos bem-humorados e românticos, subitamente se torna uma aventura misteriosa e atmosférica, e finalmente termina de modo agridoce e revelador, assertivo sobre a condição humana e até onde algumas pessoas estão dispostas a chegar para compensar a dor que a vida lhes infligiu. A execução perfeita se deve à magistral perícia de como os diretores cobriram a trama, e as reviravoltas que os vão lançando em suspense o tempo inteiro e nos arrastam com a mesma urgência. Nós somos companheiros de jornada do trio, e o saldo da jornada – aquilo que os rapazes aprendem sobre si e os semelhantes – é igualmente compartilhado, pois também reavaliamos conceitos e posicionamentos de vida no que importa a pessoas mais carentes as quais parecemos não enxergar no dia a dia.

O ano é 2007. Nev e Ariel Schulman, irmãos, vivem uma existência movimentada e invejável em Nova York. Os dois trabalham com fotografia e filmagens, em um estúdio que dividem com Henry Joost, o melhor amigo. Estes caras não têm mais do que vinte e cinco anos, todavia são os senhores absolutos de suas vidas. Independentes, solteiros e ambiciosos, o destino está a favor do trio, e os rapazes não têm do que se queixar. Uma fotografia muito encantadora de Nev ganha a primeira página de um grande jornal. Algum tempo depois, o rapaz recebe uma encomenda, uma pintura que reproduz a imagem fotográfica. O que o surpreende é a idade da autora da tela – uma menininha chamada Abby, de oito anos de idade, criança prodígio, que vive uma existência diametralmente oposta `a de Nev e seus parceiros. Nev é um garoto de Manhattan – agitações, trabalhos, amigos aos borbotões, uma realidade sofisticada – já Abby mora em Ishpeming, em Michigan, com os dois irmãos, a mãe e o pai, em seu mundo pacífico, interiorano e simplório, existência longínqua de todo o glamour e as luzes da cidade que jamais dorme. Ariel & Henry tomam como doce e admirável a relação entre Nev e Abby, e começam a registrar o progresso do relacionamento. Não custa a Nev ser introduzido virtualmente `a Ângela, a dedicada mãe de Abby, a Vince, o pai, e `a Megan Faccio, a irmã sedutora e misteriosa cujos olhos tristes fazem com que o pobre rapaz se apaixone de cara. Os e-mails se tornam ligações telefônicas, e bate-papo no facebook vira uma constante no dia a dia de Nev. Não custa ao rapaz se envolver emocionalmente com a interessante Megan, a linda moça que é a cara da atriz Elizabeth Berkley, e que diz sonhar morar em um rancho onde poderá criar cavalos e viver uma linda história de amor.

Megan envia uma música especialmente dedicada a Nev, por e-mail, de sua autoria, supostamente cantada pela própria, porém Nev, que até então vinha aceitando as informações que o pessoal de Michigan lhe fornecia sem nada questionar, resolve fazer uma pesquisa online. É o que o leva a descobrir a primeira mentira – a música não é de autoria de Megan Faccio, tampouco trata-se da voz de Megan: foi baixada de um seriado chamado One Three Hill. A descoberta desta primeira mentira desperta em Nev o senso de cautela, e o rapaz passa a ter o cuidado de cruzar as informações com dados sólidos. Descobre que as pinturas sensacionais de Abby, que consoante a mãe haviam sido exibidas e arrematadas em diversos leilões em Ishpeming, jamais foram de fato expostas em galerias, as pesquisas online não retornam informações concretas e substanciais.

É quando o trio vai fazer um trabalho de filmagem em um festival de música que se dará em uma cidade próxima a Ishpeming que a verdade começa a aparecer, já que os rapazes resolvem passar, na volta, pela cidadezinha, para descobrir o que há por trás das personagens do facebook, por trás da garota em quem Nev tanto se investiu emocionalmente, ao longo daquele quase um ano de vida.

A primeira metade do filme é leve e ingênuo, chega a ser prazeroso assistir a Nev e Megan se apaixonando, trocando mensagens que começam compungidas, e com o tempo adquirem nuance de declarações de amor e promessas de uma vida a dois no futuro próximo. Fotos vêm e vão por e-mail, as ligações se tornam mais frequentes. Nev chega a fazer uma doce homenagem, onde coloca, em uma mesma imagem, a sua própria figura e a Megan, lado a lado, como uma dupla. A última metade do filme, que vai do início das suspeitas até a descoberta da verdade, deixa os filmes de suspense de Hollywood no chinelo. A viagem dos amigos pelo interior de Michigan acontece em meio a muitas dúvidas, investigações e descobertas escabrosas. Em face de se tratar de um documentário, eu me senti como uma quarta pessoa, ali no carro com os rapazes, cruzando as estradas do interior de Michigan, pela madrugada, visitando cada ponto que marcou o namoro virtual de Nev (lugares para onde mandou cartões postais e cartas apaixonadas), na realidade endereços abandonados por onde ninguém realmente passou. A atmosfera tensa chega a ser palpável. A última parte da jornada destes garotos assume uma triste tonalidade existencial, e completa o arco de Catfish, como uma montanha russa que passou por todas as voltas, todas as emoções humanas existentes.

O título do filme é bastante emblemático do cerne moral dessa jornada. Catfish, um tipo de peixe, costuma ser adicionado aos tanques de pesqueiros, junto ao bacalhau. É que em razão da longa viagem dos Estados Unidos à China, o bacalhau tende a morrer nos tanques, de cansaço, de desinteresse talvez. Mas então, os pesqueiros adicionam ao tanque este tipo de peixe, catfish, que parece exigir algo a mais do outro, o bacalhau, mantê-los alertas, em movimento, vivos, ativos, aptos a sobreviver as agruras da viagem. E há pessoas assim, na vida. Pessoas que mesmo em um contexto platônico, permitem que enxuguemos lágrimas do rosto e sigamos em frente, mesmo diante das dores que a vida arremessa em nossos rostos a cada volta. Sylvester Stallone disse, uma vez, em uma entrevista a James Lipton, no programa Inside the Actor's Studios, Há duas coisas que nós passamos todas as nossas vidas fazendo. Nós passamos todas as nossas vidas lutando – por um objetivo, por um sonho, por nosso espaço no mundo – e nós passamos todas as nossas vidas correndo – correndo atrás de alguém, estendendo as nossas mãos para alcançar a alguém a quem amamos, a quem ainda não conquistamos.

A observação do artista tem tudo a ver com a essência deste documentário triste e sombrio, porque o que os rapazes descobrem em Ishpeming – uma dona de casa de meia-idade acima do peso, que cuida de dois rapazes que sofrem de problemas mentais, e que criou toda uma nova existência online para suportar a desilusão de todos os planos não realizados que um dia alimentou, quando jovem – é que, de certa forma, Nev foi o “catfish” da  “verdadeira Megan”. O rapaz bonito, enérgico, bem humorado, que vivia uma vida movimentada em Nova York, permitiu que Ângela, a dona de casa, suportasse a tristeza, e despertasse as manhãs, baseada exclusivamente na força que este amor platônico lhe gerava de dividendos, pelo simples fato de, mesmo através de uma mentira, sentir-se parte daquela vida diferente e sofisticada, onde lhe era possível voltar a ser jovem sem cometer os mesmos erros.

Claro que para a maioria, felizmente, nós perseguimos os nossos sonhos, e com um pouco de boa sorte, uma pitada de bons conselhos, e bastante trabalho, alcançamos este alguém e ocupamos o nosso espaço no mundo. Ocorre que para outras pessoas, aquelas que por um motivo ou outro jamais realizaram o seu maravilhoso potencial e se sentiram às margens da vida, o escapismo para a dor é o amor ingênuo e platônico que se nutre por algo ou alguém inatingíveis. Acontece que ainda assim, o amor incondicional permite que estas pessoas amenizem a dor e a solidão. Isso é o que os garotos descobrem, ao final: embora Nev se sinta traído ao descobrir todas as mentiras, desenvolve uma nova consciência e se redime, vez que conhece uma inesperada compaixão pela simplória estranha. Se há algo que Catfish faz, é promover a discussão sobre a solidão nestes dias de internet e cruzamento de informações velozes, e nos levar a refletir – dada a mesma situação, descobriríamos dentro de nós mesmos a mesma compaixão e compreensão em face de nossos semelhantes mais vulneráveis?

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Todos os direitos autorais referentes ao trailer acima pertencem a Rogue-Universal Pictures. O uso do vídeo é para efeito meramente ilustrativo desta resenha.

segunda-feira, 14 de janeiro de 2013

Pontypool - O seu mundo seguro vai cair por terra.


Olá, pessoal. Nesta oportunidade, abordarei um filme de horror muito especial que lamentavelmente não recebeu a merecida guarida no Brasil, mas que pode vir a ser descoberto na internet ou DVD pelos fãs do gênero. Pontypool é uma produção independente canadense, brilhantemente executada, cujo charme reside no elenco afinado e no esmero com que o diretor do filme tratou a premissa, à primeira vista absurda (um vírus propagado... através da inflexão de palavras!). O filme oferece uma abordagem alternativa para os filmes de zumbis, já tão brilhantemente representados por produções como Madrugada dos Mortos e Extermínio. A proposta inovadora dividiu opiniões. As pessoas que preferem filmes de horror movimentados odiaram Pontypool, contudo os fãs abertos a novas experiências acolheram-no como uma das surpresas mais agradáveis de 2008, ano de lançamento do original.

Eu me lembro de um outro filme que assisti, chamado “Countdown to Looking Glass”, onde o possível cenário para a eclosão da Terceira Guerra Mundial nuclear era apresentado através de uma série de intervenções jornalísticas transmitidas do Oriente Médio. A estória se desenrolava pelo ponto de vista do âncora do jornal, em tempo real, que seguia fornecendo notícias cada vez mais perturbadoras oriundas do estreito de Ormuz, onde forças apoiadas pela União Soviética proibiam a passagem de petroleiros, e um porta-aviões norte-americano seguia à espreita no Golfo Pérsico, determinado a romper a barreira soviética. Submarinos nucleares por todos os lados, a tensão crescente cada vez mais grave, e o mundo inteiro em suspense, orando para que nenhuma das duas partes use mísseis nucleares primeiro... O filme apresentava um cenário muito real a toda a crise, quero dizer, você assistia a “Countdown to Looking Glass” e achava que aquela situação estava realmente se desenrolando. Era impossível não roer as unhas. Um dos filmes mais tensos que assisti, não há uma única cena de efeitos especiais - “Countdown to Looking Glass” apoiava-se exclusivamente em sua abordagem “Cinema Verdade” e na narrativa enxuta e seca. Neste sentido, causava o medo que as grandes produções fantásticas de Hollywood não conseguem reproduzir. Agora que não existe mais a União Soviética, e a Guerra Fria ficou para trás, é apavorante constatar o quão perto estivemos do confronto nuclear em grande escala. Quando Chernobyl aconteceu, em 1986, com a explosão do reator 04 e a disseminação de Césio-137 e Iodo radioativo por toda a Europa, pessoas morrendo de câncer na tireoide, foi como uma “palinha” do que poderia vir a a acontecer com o mundo, no caso de uma trocação nuclear com mísseis intercontinentais com ogivas nucleares nas pontas.

Pois bem. No caso deste filme, Pontypool, o cineasta Bruce McDonald resolveu oferecer uma abordagem semelhante à possibilidade de uma crise que trará o fim do mundo. O diretor esmiuça a trama através dos olhos de uma pequena equipe de uma estação de rádio na gélida cidadezinha canadense de Pontypool, em Ontário, Canadá, quando o que seria apenas um dia comum e entendiante se torna um surreal pesadelo, sugerido pelas informações cada vez mais contraditórias que chegam à estação pelas ondas retransmissoras, sobre essa epidemia de violência que parece ter acometido os cidadãos ordinários da cidade. Grant Mazzy (Stephen McHattie) é um disc jockey em fim de carreira, que queimou todas as pontes que tinha com os aliados, cortesia de seu comportamento irreverente, e agora se vê relegado a comandar a staff de uma simplória estação em Pontypool. A sua staff é composta por Sydney (Lisa Houle), a sua agente, e Laurel-ann (Georgina Reilly), a charmosa novata que adora flertar com Grant, o ex-astro.

É em uma madrugada de trabalho insuspeita que começam a chegar à estação relatos de pessoas desesperadas, com testemunhos sobre o comportamento bizarro disseminado entre os cidadãos de Pontypool. Inicialmente, fala-se em saque a comércios, mas logo se torna claro que os agressores parecem possessos e irracionais. Grant se recorda de que naquele dia, antes de chegar à estação, a caminho de Pontypool, pela vazia estrada deserta, durante a madrugada, quando teve de estacionar no acostamento por um momento para atender ao celular, uma estranha mulher subitamente bateu à janela do automóvel, balbuciando nonsense. Assustado com a aparição da mulher, Grant ainda baixou o vidro para procurar escutá-la melhor, porém a estranha desapareceu em seguida, engolida pela escuridão da noite, à beira da autoestrada gelada. O disc-jockey enxerga paralelos entre o inusitado comportamento da estranha e os relatos subsequentes que começam a se somar pelas ondas retransmissoras para compor um quadro aterrorizante: pessoas comuns subitamente cedendo à loucura, de um momento para o outro.

O drama é contado a partir do ponto de vista da staff da estação. Nós, espectadores, sabemos sobre o surto de loucura tanto quanto Grant e as duas colegas, e assim como o trio, nos sentimos igualmente dentro daquela estação escura enquanto a nevasca ruge do lado de fora. Neste sentido, Pontypool provoca o mesmo calafrio que “Countdown to Looking Glass”. Para os protagonistas, todo o mundo se resume ao espaço da estação, claustrofóbica, um tanto quanto sombria, aparentemente segura e isolada, dissociada do “mundo lá fora”, a verdade filtrada por relatos de terceiros. Simultaneamente, com as intromissões cada vez mais desesperadoras, e após a intervenção do Exército canadense sobre a cidadezinha, fica cada vez mais evidente que mesmo escondidos em um mundo à parte, logo mais, o horror e a loucura estarão batendo à porta, e não haverá escapatória.

O ponto mais forte de Pontypool consiste na atmosfera. Este não é um filme sobre zumbis, e sim uma obra sobre como um grupo de pessoas reage quando os pilares que regem a sociedade caem por terra. Os zumbis de Pontypool fazem apenas uma participação especial, pois quando chegam a aparecer, o fazem por um momento muito breve. Há ainda uma outra cena, apavorante, envolvendo uma pessoa tomada pela loucura, dentro da estação, arremessando-se contra o vidro à prova de som da cabine da rádio, espirrando sangue contra o vidro a cada investida, tentando chegar a Grant e a Sydney sem sucesso. Desconsiderando-se estas cenas pontuais, todavia, se o que você espera de Pontypool é o mesmo ritmo frenético de Madrugada dos Mortos e Extermínio, procure em outro lugar. Pontypool funciona mais como um filme de arte estilístico que oferece algo de refrescante ao gênero, nas linha de Orson Welles tocando o terror ao ler Guerra dos Mundos.

O elenco é sensacional. Apreciei o trabalho do ator principal, que constrói um personagem fácil de simpatizar. Grant é o tipo de cara cuja personalidade é maior do que a própria vida, irônico, descompromissadamente engraçado com as tiradas geniais. O ator nos brinda com uma dose adequada de irreverência, que parece balancear a tensão e a claustrofobia que permeia a estória. Sydney é o balanço perfeito à personalidade esfuziante de Grant – durona, mas ao mesmo tempo assertiva e sensível. Os dois parecem feitos um para o outro, muito embora briguem feito gata e rato!A performance excepcional de Pontypool cabe, porém, a Georgina Reilly. Não conhecia esta extraordinária atriz, mas posso afirmar que por todas as vezes em que esteve em cena, a sua presença fortaleceu o conjunto, levando o filme às alturas. De seus flertes inocentes com Grant, passando pelos instantes em que o contempla com olhares vagos e misteriosos, até o final, quando cede à loucura, e, tomada pelo vírus, tenta arrebentar o vidro da cabine para chegar a Grant e a Sydney, as sequências de Pontypool que restaram mais frescas em minha memória foram aquelas que a envolveram, direta ou indiretamente.

A direção é precisa, a fotografia deslumbrante. A cena inicial - Grant cruzando uma gélida, vazia autoestrada em Ontário, parando no acostamento, e a visão da mulher saindo da margem da estrada para abordá-lo à janela – dá o tom correto ao que está por vir, e após a brilhante introdução, o diretor Bruce McDonald, adaptando o romance original de Tony Burgess, Pontypool Changes Everything, não deixa a peteca cair. Pontypool o convidará a passar um dia misterioso e gelado dentro de uma escura, apertada estação de rádio, enquanto o mundo como você conhece é destruído e rearranjado por hordas de vítimas enlouquecidas. Apenas lembre-se que, por mais que pareça alheio ao mundo lá fora, por mais que se sinta seguro em seu microcosmo que é a estação, mais cedo ou mais tarde o perigo baterá na sua porta, e o horror externo, ameaçador e gigantesco, esmagará o seu frágil mundinho isolado.
Todos os direitos autorais reservados a IFC Filmes. O uso do trailer é para efeito meramente ilustrativo da resenha.