domingo, 30 de junho de 2013

Audition (Ôdishon, Takashi Miike, 1999) - Alguns cupidos caçam com flechas; outros, com armadilhas.


Encorajado pelo filho de dezessete anos, Aoyama (Ryo Ishibashi) resolve reconstruir a vida emocional e se abrir sentimentalmente para a possibilidade de uma nova companheira. Viúvo há sete anos, Aoyama sempre foi um pai dedicado ao filho, com quem passou por maus bocados em razão da traumática perda da mulher, que sucumbiu após fracassada batalha com uma doença terminal. Apesar de relutante, Aoyama sabe que o filho tem razão. Não obstante a confortável situação financeira e a prosperidade profissional, ele se sente profundamente solitário e frustrado, sempre aprisionado ao passado, às recordações de dias mais felizes ao lado da falecida esposa. O melhor amigo de Aoyama, Yoshikawa, produtor de cinema, propõe uma excelente maneira para que encontrem a parceira ideal. Yoshikawa produzirá um filme, e já que precisará escalar o elenco principal, sua ideia revolve organizar uma audição, um processo seletivo de jovens atrizes para um determinado papel, com Aoyama presente. Aoyama concorda com o plano, e aparece na audição para ajudar o amigo com as entrevistas. Eles conhecem várias atrizes, porém é uma misteriosa e tímida garota chamada Asami quem encanta Aoyama. Algo na tristeza de seu olhar e na vulnerabilidade de seus gestos desperta um sentimento muito nobre no viúvo, que a partir de então a escolhe como futura companheira. Apesar de a produção do filme não ir adiante, as audições serviram para que Aoyama e Asami se encontrassem, e os dois começam um ingênuo, doce processo de conhecimento e flertes.

Algum tempo se passa, Aoyama está apaixonado por essa garota. Até que Yoshikawa procura o amigo com más notícias. O produtor tem um mau pressentimento quanto a Asami. Ele explica que procurou investigar todos os dados fornecidos pela moça na entrevista, rastreou o pessoal do departamento de música em Tóquio, onde Asami afirmara ter estudado, mas as informações não batem. Até aí, nada muito grave. Aoyama crê que talvez a moça tenha inventando uma mentirinha boba aqui ou acolá para impressioná-los, o que, muito embora incorreto, parece compreensível e perdoável. Talvez, encantada, e procurando causar uma boa impressão, tenha inventado algumas outras fantasias menores. Lamentavelmente, tanto mentiras grandes quanto menores tendem a se tornar uma avalanche. Aoyama conclui, todavia, que o melhor a fazer é contornar o constrangimento. Assim, decide relevar a questão. Yoshikawa não se conforma, e frisa ao amigo que não se trata exclusivamente da questão de mentirinhas. Se o problema se resumisse a uma ou outra informação fantasiosa, seria mesmo de pouca importância, porém algo na jovem lhe dá arrepios. Yoshikawa avisa ao viúvo que está abaixando demais a guarda. Aoyama não dá muita atenção às recomendações e, fascinado, segue com os encontros com Asami. 

Curiosamente, essa primeira metade do filme se assemelha aos típicos açucarados filmes românticos protagonizados por Rachel McAdams, estilo Para Sempre e Te Amarei Para Sempre. O diretor Takashi Miike nos mostra os seus personagens transitando entre jantares românticos em restaurantes, flertando inocentemente à mesa, despedindo-se nas calçadas em tardes chuvosas, trocando olhares cheios de desejo, como que, quanto mais esperassem para extravasar a paixão, maior fosse a promessa do prazer e da realização suprema. A ingenuidade e doçura dos primeiros amores são o foco da primeira metade. Vez ou outra, Yoshikawa, a voz da razão, procura trazer o amigo Aoyama de volta à realidade, já que, apaixonado, parece não querer enxergar as evidências contra Asami. Em um diálogo casual na cobertura do prédio onde trabalham, Aoyama conta a Yoshikawa que “encontrou a garota da sua vida”. O produtor insiste para que tenha cautela. Não se apegue muito, Aoyama, Yoshikawa suplica, A vida não pode ser tão fácil assim. Ela é bonita, sofisticada, inteligente e de boa natureza, uma garota desse tipo cairia por você tão facilmente?Yoshikawa vai mais além Tentei checar o seu passado, não sabemos onde trabalha, não conhecemos ninguém que a conheça. Aoyama se recusa a processar a realidade Eu não sou criança, confio no meu próprio julgamento e não no dos outros, se ela me causar problemas, saberei como lidar com os mesmos, responde. Yoshikawa rebate Aoyama, prometa-me uma coisa: não ligue para ela, ao menos por um tempo. Posso estar errado, mas é a sua vida que está em jogo. Não se apegue.  

Após os primeiro quarenta minutos de projeção, o filme sofre uma impressionante guinada. O que começa como um drama romântico se torna um filme de horror misterioso e esquizofrênico. Aoyama escuta o conselho de Yoshikawa, e se abstem de ligar para a garota, ao menos por alguns dias. Na cena seguinte, o diretor nos mostra Asami sentada no assoalho de seu apartamento, sozinha, chorando silenciosamente ao lado do telefone, aguardando pela ligação que não chega. Próximo ao telefone, há um enorme saco volumoso amarrado. Depois do breve sumiço, Aoyama chega ao ponto onde, vulnerabilizado pela paixão, não resiste manter o gelo, e resolve contactá-la. Quando o telefone toca, no apartamento de Asami, nós a vemos na mesma posição de antes, ainda ajoelhada, aguardando pela ligação de seu amor. Ela sorri quando o telefone chama, e então subitamente o enorme saco se move. Há uma pessoa amarrada dentro do saco. Essa cena brutal é o ponto de partida para a segunda metade do filme, onde todo o romantismo e os flertes iniciais deixam de importar, e só sobram perguntas sem respostas, cenas surreais, e o mais implacável horror.

Asami e Aoyama se encontram para a reconciliação, e ela basicamente se abre para o viúvo, contando o quanto sentiu sua falta e aguardou, em tensão, pela sua ligação, por todo esse tempo. Aoyama fica feliz, e os dois iniciam o relacionamento amoroso. O casal vai passar um fim de semana em uma pousada na praia, para comemorar o namoro. Asami se despe, deita-se na cama e pede que o namorado se junte a ela. Aoyama vê terríveis cicatrizes entre as coxas. Emocionada, Asami lhe explica que sua traumática infância é uma das razões pelas quais se sente tão alienada de pretendentes, e que a atenção e o carinho de Aoyama significam o mundo. Asami e Aoyama fazem amor, mas na manhã seguinte, ao acordar, ele não a encontra mais ao lado. O pessoal da pousada lhe diz que a moça deixou o lugar mais cedo. Aoyama não sabe o que fez de errado para afugentá-la. Ele retorna para Tóquio, e conta tudo para Yoshikawa. Fazendo uso da ficha que Asami preencheu quando das entrevistas, Aoyama procura localizá-la, porém, conforme o amigo produtor avisara anteriormente, todas as informações só levam a becos sem saída. O bar onde ela alegou ter trabalhado foi fechado há anos. Um morador conta a Aoyama que o lugar foi abandonado após um terrível crime ocorrido nas dependências, onde o dono teve o corpo desmembrado. Curiosamente, na época do homicídio, a polícia, que jamais identificou o culpado, encontrou três dedos extras e uma língua na cena. Esse detalhe é importante. Bastante perturbado por todo o desdobramento do caso com Asami, o viúvo, impressionado com a descrição, tem uma horrorosa visão, e alucina com a inesquecível cena do assassinato. Sua vida começa a sair dos trilhos, e a cada nova descoberta, os questionamentos apenas se aprofundam.

Uma tarde, enquanto Aoyama não está em casa, Asami habilidosamente invade o lugar, e ao descobrir fotos e cartas da falecida esposa, e vislumbrar o incondicional amor que o homem ainda nutre pela muher, fica tomada pelo ciúme e pela vingança. Aoyama retorna sem de coisa alguma suspeitar, e prepara um drinque para relaxar. Depois de beber, se sente muito mal. Foi Asami quem o drogou. O filme nos mostra, então, um flashback, que nos explica o bizarro saco na sala de estar do apartamento de Asami. O saco contém uma pessoa, ex-amante da garota, que o inutilizou e o deixou inválido, tendo decepado os pés, a língua e três dedos. Asami também o cegou e o tornou completamente dependente de seus cuidados. Isso nos leva a crer que na tal cena do homicídio, no bar onde afirmou ter dançado, foi a própria Asami quem matou o proprietário, provavelmente um amante que não a quisera mais, bem como deixou no lugar partes de um namorado anterior, mantido em cativeiro.

Dopado, Aoyama cai pesadamente na sala de estar. Ele enxerga Asami, vestida em uma bizarra e justa fantasia escura, adornada por peças de couro. Ela compensou a pouca força física e a fragilidade colocando droga na bebida, para incapacitá-lo. Não há a necessidade de usar os próprios braços para segurá-lo, o que teria sido muito improvável. Ela lhe explica que assim como todos os homens que matou, Aoyama falhou por não oferecer exclusivo e incondicional amor. Ela conta que não toleraria perdê-lo. Sem se deixar se sensibilizar pelas súplicas do homem, Asami usa um fio de aço para lhe amputar os pés. No meio da confusão, o filho de Aoyama chega, e os dois começam a lutar, ela se esforçando para dominar o garoto nas escadas. O menino consegue acertar um chute na assassina, e Asami rola escada abaixo. Com a queda, ela quebra o pescoço. Aoyama pede ao menino que chame a polícia imediatamente, e mesmo após perder os pés e ter perdido muito sangue, procura socorrê-la. Mortalmente ferida, Asami ainda consegue balbuciar algumas palavras, sobre o quanto o amou e o quanto lamenta pelo ocorrido.

Eleito um dos cem filmes mais apavorantes de todos os tempos (número onze na lista do Bravo Channel), este assombroso suspense baseado no romance original de Ryu Murakami desconcertou pessoas, dividiu opiniões, e por pouco não alcançou a perfeição que em certos momentos chega a ensaiar. Rodado em 1999, um ano após o lançamento de “Ringu”, Audition ajudou a consolidar um produtivo período para o cinema de horror japonês, quando os fãs foram agraciados com obras muito distintas e especiais. Prova do valor desses filmes, o cinema norte-americano passou a comprar os direitos sobre as estórias para adaptá-las para o mercado ocidental, sendo “O Chamado”, refilmagem de “Ringu”, o mais notório exemplar da tendência. Curiosamente, foi justamente um dos melhores dessa safra do cinema nipônico, Audition, que jamais ganhou uma refilmagem. Ao contrário do que se pensa, se tivesse sido realizada da maneira correta, conforme explanarei mais abaixo, teria sido uma excelente oportunidade para a concepção de um suspense realmente extraordinário. 

Quando disse que por pouco Takashi Miike não alcançou a perfeição, foi porque justamente durante a segunda metade pareceu insistir em cenas extremamente agressivas e violentas para passar o recado. Para ilustrar a minha explicação, os amigos podem tomar a primeira metade como o início de um passeio na montanha-russa: o carrinho vai subindo, você se vê cada vez mais distante do chão, apavorado, preso a aquele espaço da cabine sem ter para onde fugir, esperando o momento do “martelo descer sobre a sua cabeça”, o instante da queda. Só a expectativa do que está por vir e as pistas jogadas aqui e acolá bastam para lhe roubar o fôlego. A segunda metade, a descida pelos trilhos, o carrinho despencando da curva mais alta como um trem fumegante, não honra a expectativa criada na hora antecedente, por mais angustiante e bem executada que pareça. A segunda metade, portanto, não chega a ser flácida, fraca ou ineficiente, apenas não corresponde `a absoluta perfeição da primeira metade. O resultado é um filme assombroso que fará os fãs de horror se apaixonarem, porém simultaneamente considerarem que um pouco menos de sangue e violência teria gerado a absoluta perfeição. Eu sempre acreditei que os realizadores dos melhores filmes de horror jamais precisaram de excessos ou violência explícita para criarem obras memoráveis. Ao contrário, os mais eficientes filmes de horror pareceram substituir violência por atmosfera, excelência narrativa e magistral direção. Enquanto o instante em que o “martelo desce sobre a sua cabeça” é o de menos, a expectativa é tudo. Se os amigos lerem “The Hellbound Heart”, o romance de Clive Barker que deu origem ao filme “Hellraiser”, se surpreenderão com o fato de que por mais angustiante e tensa que toda a experiência pareça, os momentos onde você espera pela violência são surpreendentemente sublimados, ou tocados de maneira bastante discreta. No início de “The Hellbound Heart”, as mais eletrizantes páginas do romance, quando Frank invoca os cenobitas após a resolução da configuração da lamentação, há pouca ou quase nenhuma violência. São as bizarrices e a atmosfera tensa e angustiante de toda a situação que elevam o instante ao panteão dos mais memoráveis momentos da literatura de horror. Se os amigos assistirem ao recente The Tall Man, do francês Pascal Laugier, concluirão que muito embora o filme não traga sequer uma gota de sangue, o teor da estória, que envolve a abdução de crianças humildes de uma cidadezinha para um complexo esquema de adoção ilegal e a melodia assombrosa e triste que perdura por toda a projeção foram suficientes para o tornarem um inesquecível, incômodo exercício no horror, que perdura na memória por semanas a fio.

Durante os momentos finais de Audition, depois que Asami consegue imobilizar Aoyama e começa a trucidá-lo, Miike desafia as convenções do bom senso, e lamentavelmente, ao invés de sugerir por vias mais sutis o que está se sucedendo com os dois personagens, prefere colocar as lentes sobre a ferida. O que aos olhos provoca terrível impacto visual também enfraquece o conjunto. É como se nesse instante, toda a classe, elegância, mistério e beleza que Miike conseguiu estabelecer tão bem na primeira hora perdesse valor, graças a mais desnecessária exploração de escatologia e violência. Não é o suficiente para prejudicar substancialmente o filme de Miike, mas sem dúvidas o impede de decolar como o suspense impecável que a primeira hora prometera. A gratuidade da violência gerou protestos e afastou pessoas deste suspense que ironicamente e em sua maior parte veste elegância, mistério e eletricidade.

A cena mais arrepiante do filme, que aliás não precisou de exposição alguma, te fará pular no sofá. Quando Asami está aguardando, deprimida e chorosa, pela ligação de Aoyama, o telefone toca e ela sorri aliviada. Nesse ínterim, o saco amarrado que está em um canto da sala subitamente se mexe e faz um horroroso barulho, semelhante a um grunhido. Não enxergamos o quê se encontra dentro do saco – saberemos mais tarde que se trata de um ex-namorado de Asami – mas o horror provocado pelo súbito movimento do saco e o grunhido que o segue são dignos de fazer os cabelos eriçarem. O mesmo ocorre quando, ao encontrar o bar onde Asami afirmou ter trabalhado e ocorreu um homicídio, Aoyama alucina com o terrível cenário do assassinato, abalado pela força da narração do estranho que aparecera por ali e lhe contara o segredo. Mais sutilmente, e baseado exclusivamente em performances e direção, também nos traz muita inquietude, muito desconforto, o momento em que Yoshikawa procura colocar algum senso no apressado Aoyama, avisando-lhe que está entrando de cabeça em uma situação onde há muitas informações desencontradas e perguntas sem respostas. Sentimo-nos como observadores, naquela cobertura, testemunhas silenciosas da troca de impressões entre os amigos.

Miike é um cineasta cujo conturbado olhar cria imagens memoráveis e marcantes, mais eficientes do que qualquer violência gratuita posta na tela. Há um momento prova disto, muito contundente, mostra de sua criatividade melancólica, quando Aoyama, dividido pela culpa, vez que está se apaixonando novamente, sonha com a falecida esposa o observando detrás de uma árvore em um vasto campo, com o olhar cheio de dor e decepção. Esse breve momento perdura na memória, dada a incomum tristeza. A criatividade tétrica do diretor encontra absoluto suporte no provocante roteiro, que presenteia Miike com personagens psicologicamente aprofundados e difíceis com que possa trabalhar. É o caso dos protagonistas e, significantemente, de uma personagem periférica menor, que contribui para enriquecer a honestidade psicológica dessa trágica estória. Trata-se da secretaria de Aoyama, uma bonita jovem que inicialmente parece apenas mais uma personagem desimportante. Posteriormente, ao longo do filme, deduzimos que nutre sentimentos românticos secretos que jamais serão correspondidos pelo chefe. Em um momento bastante revelador, a garota aparece na porta do escritório para avisar que já está indo, e Aoyama, concentrado nos afazeres, levanta os olhos por sobre o monitor, para a moça, diz algo nas linhas de Oh está tudo bem, Senhorita Fulana de Tal, pode ir e volta a seus afazeres. Ela permanece na porta, silente, os olhos tomados pela amargura, tendo caído na real de que Aoyama sequer a enxerga sob a ótica da possibilidade de envolvimento amoroso. Essa menina foi “friendzonada” tão definitivamente que não apenas nesse instante como nos demais em que aparece mais para a frente, toda a dor da rejeição segue emanando de sua performance, cortesia do excelente desempenho da atriz.

Audition é um dos poucos filmes japoneses de horror que não recebeu o tratamento da refilmagem. Parte das produções refeitas nos Estados Unidos padecem quando comparadas aos originais. Se Audition tivesse sido refilmado da maneira correta, haveria muito a se agregar ao trabalho original de Takashi Miike. Uma considerável barreira que atrapalhou a tradução do material por um cineasta ocidental deveu-se ao cerne essencialmente nipônico. Na cultura patriarcal japonesa, as mulheres parecem lidar com maior repressão, com amarras mais apertadas que as prendem a valores machistas seculares e as mantêm sob o jugo dos homens. Se encararmos a questão por esse viés, o trabalho de Miike parece a catártica resposta feminista a questionamentos difíceis de serem respondidos, mas experimentados nas vidas individuais das pessoas que compõem a referida sociedade. O mesmo não se observa na sociedade ocidental, onde as mulheres obtiveram avanços que as colocaram em posição de “igualdade” com os homens, muito embora, particularmente,  acredite que tais conquistas tenham sido desvirtuadas, e que suposta igualdade represente em última análise enganosa deturpação, que mais têm arruinado famílias do que as formado, que mais têm alienado do que unido, que mais têm gerado homens sensibilizados, fracotes, românticos, apologéticos e vulneráveis do que homens fortes, decididos, orgulhosos, corretos, honrados, que não aceitam ser capacho de mulher, e estão preparados para os desafios da vida. Pessoalmente, acredito que o equilíbrio está em algum lugar no meio. 

Vencida a questão cultural, o que somente poderia ser alcançado através de um roteiro cuidadoso, a escolha de diretor e elenco principal viria em seguida. Se a problemática da violência foi o que impediu o original de decolar como o suspense perfeito, e o que se busca, para aperfeiçoar a ideia original é a sustentação da atmosfera e eletricidade por meio de estilo, Brian De Palma seria o homem certo para dirigir o projeto. Em 1999/2000, a época certa para que Audition tivesse sido refilmado, De Palma estava no auge estilístico, tendo sido o seu último trabalho Mission to Mars, uma extravagância visual enriquecida pela trilha sonora de Ennio Morricone que encapsulava tudo o que o tornava um artista apaixonado. Eu não tenho dúvidas de que sob sua batuta o projeto teria dado certo. As suas técnicas de split screen, por exemplo, aperfeiçoadas em Snake Eyes, dariam personalidade, vibração e alma ao imaginário do remake. A escolha do elenco para um filme tão arriscado deveria recair sobre atores que você jamais esperaria ver em algo do tipo. Ao mesmo tempo, seria o talento dessas escolhas surpreendentes que traria vida aos personagens, e o resultado da perigosa aposta vingaria em magnéticos dividendos. O que não se deveria buscar, quanto a escolha de protagonistas, seria o lugar comum, “astros do momento”. A meu ver, em 1999/2000, dois anos após o renascimento artístico obtido com Boogie Nights Prazer sem Limites, e ainda na faixa etária para o personagem de Aoyama (ou seja lá qual fosse o nome no remake), Burt Reynolds teria sido a melhor escolha de De Palma para o papel do publicitário viúvo. Quem viu a sua performance como o diretor de filmes eróticos e “pai substituto” de uma trupe de atores pornôs na contundente, violenta e triste obra de Paul Thomas Anderson, sabe que não haveria melhor escolha. No filme de Miike, a primeira vez que Asami chama a atenção de Aoyama acontece depois que ele e o seu amigo dão uma pausa nas entrevistas, e Aoyama vai lavar as mãos no banheiro. No caminho para o toalete, Aoyama passa pela sala de espera, onde as moças que atenderam ao chamado para teste aguardam sua vez, e enxerga essa garota sentada de costas, solitariamente, tão destoante de todas as outras barulhentas, e de alguma forma, já naquele momento, vê-se sob o domínio de seu poder e fascínio. Quando penso em termos de remake, em uma atriz norte-americana para interpretar uma personagem capaz de mover tão profundamente com a cabeça de um homem a partir de sua mera presença, e de deixá-lo ainda mais perdido pela posterior ausência, somente consigo pensar em Jennifer Connelly. O time frame do remake teria permitido a escolha, pois em 1999/2000, ela estava entrando na casa dos trinta anos. Ela havia feito esse filme chamado Amor Maior que a Vida, e o que me impressionou neste e em todos os outros que fizera e os em que veio a atuar depois foi o seu olhar singularmente triste e misterioso. Você assiste a Jennifer Connelly, e mesmo nos momentos de silêncio, um caleidoscópio de emoções contraditórias, indecifráveis e perigosas está se passando no universo que são os olhos. Alguns dizem que os olhos são o espelho da alma. Quando Jennifer Connelly os combina com a força de seu sorriso ilegível, ela é o epítome da mesma força que permitiu a Asami desmontar a racionalidade e a cabeça do ponderado e experiente Aoyama, e arrastá-lo sem tréguas para um pesadelo onde não havia esperança de salvação. Para o pivotal papel da secretária arremessada a “friendzone”, que no filme de Miike tornou a experiência ainda mais psicologicamente desgastante, penso na atriz Selma Blair, a “Jean Lerner” de w Delta z. Ela vestiria muito bem a dor de uma mulher frustrada pelo fato de o homem a quem ama não conseguir enxergá-la como parceira sexual. Essa trágica e patética personagem pode parecer desimportante para a estória, mas sua evocativa e fantasmagórica presença, sempre de pé pelos cantos, fora do campo de visão do chefe, observando-o silenciosamente com um olhar pidão e arrasador, nos leva a crer que o liame que separa fantasias de amor das de horror não passa de uma zona cinzenta e indefinida que pode ser desrespeitada a qualquer segundo. Finalmente, exatamente porque creio que uma reimaginação do original produziria um filme capaz de se sustentar sozinho, proporia a mudança de título. Não sei por quê, mas ao considerar a questão e imaginar o projeto, veio-me a mente algo com os nomes “Nenhum Passo em Falso” ou "Uma Valsa na Escuridão". Evidentemente, essa é a minha ideia de remake, que só teria funcionado lá atrás, em 1999. Se eu fosse o cineasta Brian De Palma, ou mesmo diretor de filmes, o remake descrito acima teria acontecido. Se não saiu do papel na referida época, propícia para as propostas apresentadas, é melhor que jamais tenha ocorrido mesmo. Acho que, se me permitem a ilação, o remake de Audition foi o melhor filme de Brian De Palma que Brian De Palma jamais dirigiu.

Audition é uma saborosa "anomalia" do horror: desde quando, afinal de contas, os amigos já assistiram a um filme de terror que inicialmente se assemelha aos dramas românticos estrelados por Rachel McAdams, só que simultaneamente envolto por eletrizante atmosfera de suspeitas e expectativas, e que depois se torna um suspense surreal sem tréguas nos moldes de um pesadelo imaginado por David Cronenberg ou Clive Barker, com uma vilã metida em bizarra fantasia de couro sadomasoquista, que nos remete aos mesmos trajes a adornarem os cenobitas de "Hellraiser"?Ainda, quais foram os filmes, que não raríssimos casos, que apresentaram personagens tão psicologicamente densos e imprevisíveis como os que conhecemos nessa estória?Ou um roteiro que envolvesse um leque tão variado de contradições da psique humana?O debate a que esse filme convida jamais oferecerá respostas definitivas. No perigoso campo minado dos relacionamentos, as perguntas em aberto estão aí para serem resolvidas desde que o mundo é mundo, e é a busca por respostas que nos instiga adiante. A compreensão do que se passa na mente humana parece mais intrincada do que a do universo que nos rodeia. Como Shakespeare melhor diria, Alguns cupidos caçam com flechas; outros, com armadilhas.
O uso do trailer & imagens é para efeito meramente ilustrativo da resenha. Todos os direitos autorais reservados a Arrow Video.

domingo, 16 de junho de 2013

O Mestre das Ilusões ("Lord of Illusions", Clive Barker, 1995) - Em um mundo onde a magia é real, a morte é a derradeira ilusão.

Em 1982, no deserto do Mojave, um homem chamado Nix é o líder espiritual de uma reclusa comunidade. Ele se auto-entitula “O Puritano”, e parece dotado de poderes sobrenaturais. Na abertura do filme, vemos que os seguidores de Nix sequestraram uma garota, e estão prontos para sacrificá-la. Enquanto Nix prega aos seus discípulos, um grupo de ex-participantes da seita, liderados por Swann, o seu melhor e mais íntimo discípulo, está a caminho da comunidade para dar cabo da mesma. Durante o confronto com os membros do culto, Swann e seus companheiros conseguem impedir que a menina seja morta. Durante a confusão, a garota atira no feiticeiro. Swann e os amigos aprisionam o “Puritano” com uma máscara de ferro e o enterram no deserto escaldante. Os membros da seita que permaneceram fiéis ao feiticeiro prometem retaliação.

Treze anos mais tarde, o detetive Harry D'Amour está investigando um caso de fraude a seguros em Los Angeles. O detetive aproveitou a oportunidade para se distanciar do escritório e se recuperar emocionalmente – a sua última investigação, que acabou no apavorante exorcismo de uma criança, em Nova York, o deixou profundamente abalado, e tudo o que Harry quer agora é algo trivial e simples. Durante o trabalho de vigilância ao fraudador de seguros, D'Amour acaba em uma loja para “leitura de sorte”, que calha de pertencer a um homem que no passado foi um dos companheiros de Swann durante o confronto com o “Puritano”, no deserto do Mojave. O homem está amarrado à cadeira e perfurado por lâminas. Ao seu lado, um estranho de modos afeminados, metido em roupas apertadas e extravagantes, manipula as lâminas. Chocado diante da surpreendente cena, D'Amour é apanhado de surpresa pelo comparsa do estranho, um sujeito enorme de incomum força. Durante a luta, o estranho das facas escapa habilidosamente, e o homem enorme é arremessado pela janela por D'Amour, caindo de uma considerável altura. D'Amour procura socorrer o vidente, mas antes deste morrer, consegue apenas reunir forças para alertá-lo “O Puritano está retornando”. Harry reporta o incidente para a polícia, e para sua surpresa não encontra o corpo do homem arremessado da janela ao estacionamento.

Swann, hoje um famoso ilusionista nos moldes de “David Copperfield”, mora em Beverly Hills com a esposa, a bela Dorothea (Famke Janssen). Depois de tomar conhecimento da morte de seu antigo colega pelos jornais, o ilusionista alega à esposa que os prováveis responsáveis pela execução do homem foram os membros do culto do deserto do Mojave, e que ele pode ser o próximo. Harry é procurado por Valentim, assistente pessoal do ilusionista, que o sonda para um trabalho. Durante o enterro de Quaid, o vidente assassinado, Valentim apresenta D'Amour a Dorothea, que expressa a intenção de contratá-lo, para possíveis investigações quanto as circunstâncias da morte do antigo colega do marido. Encantado pela beleza e charme de Dorothea, D'Amour aceita o convite, e os dois comparecem juntos ao novo grande espetáculo do ilusionista. Durante o espetáculo, o mais arriscado truque de Swann, que envolve a queda de espadas afiadas enquanto precisa se libertar de amarras a tempo, dá errado, e, na frente de sua plateia, o ilusionista tem uma morte terrível. Durante a confusão que segue a tragédia, D'Amour avista a dupla que vira na cena da morte de Quaid. O homem de trejeitos afeminados, que parece o líder, chama-se Butterfield. Certo de que a dupla está igualmente envolvida na morte do ilusionista, D'Amour os persegue pelos bastidores do show, e volta a lutar com o mais forte, desta vez o matando, empalando-o em uma peça pontiaguda da cenografia do espetáculo.

Certo de que Dorothea e Valentim não estão lhe contando toda a verdade, D'Amour procura se socializar no Magic Castle, um lugar reservado ao reservadíssimo círculo de mágicos e ilusionistas, que se reúnem para confraternizar. D'Amour conhece um ilusionista veterano mais acessível, que confidencia impressões a respeito de Swann. Segundo o senhor, Swann parecia usar verdadeira mágica, e teria herdado o poder de um feiticeiro chamado “Nix”. D'Amour rastreia o paradeiro de Jennifer Desiderio, outra ex-colega da Swann que participara da execução do “Puritano” no deserto do Mojave, treze anos antes. Ela está internada em uma casa para repouso. Quando Harry menciona o nome “Nix”, Desiderio reage com confusão e diz que o Puritano pode encontrá-los onde estiverem. Ela sai correndo e infelizmente acaba colhida por um carro. D'Amour traz à tona o nome de Nix para Dorothea. Ela parece hesitar, mas finalmente lhe revela que é a garota que no passado foi salva por Swann. Ela lhe explica que se casou com o ilusionista por gratidão, pois sempre sentiu que lhe devia tudo. D'Amour e Dorothea fazem amor. Naquela noite, D'Amour e Dorothea são atacados por uma presença sobrenatural que se materializa em chamas. O detetive acha que a ilusão parece algo que somente alguém como Swann poderia reproduzir, e suspeita que a "morte" do mágico não passou de uma grande encenação. D'Amour crê que foi o ilusionista quem enviou as chamas, enciumado com o fato de o detetive estar se envolvendo romanticamente com a "viúva". De fato, ao examinar o caixão onde o mágico está sendo velado, descobre um boneco. O ilusionista apenas forjara a própria morte, com a ajuda de Valentim. O seu temor a Nix era tamanho que acreditou que se forjasse a própria morte, Butterfield e o restante da seita acreditariam no seu trágico destino e deixariam Dorothea em paz. Durante o funeral do ilusionista, D'Amour enxerga Swann à distância, acompanhando anonimamente a cerimônia, e o persegue, até alcançá-lo em um túnel abandonado. Lá, testemunha o poder do ilusionista, que chega a fazer um automóvel levitar sobre suas cabeças. O detetive o convence a ajudá-lo a pôr um fim ao “Puritano” e aos perigosos membros remanescentes do culto.

Butterfield invade a mansão enquanto Swann e D'Amour não se encontram, ataca Valentim e sequestra Dorothea, usando-a como trunfo para coagir Valentim a lhe mostrar onde exatamente o corpo do “Puritano” foi enterrado. Butterfield recupera o corpo e o leva à antiga casa no deserto. Os outros membros da seita, que depois da morte de Nix em 1982 tinham reconstruido as suas vidas e formado famílias, já estão presentes à propriedade para o retorno do “Puritano”. Assim que tinham ouvido falar da notícia do retorno de Nix, os fanáticos deram cabo de suas famílias e deixaram as próprias vidas para trás, tudo para aguardar pelo regresso do mestre. Butterfield remove a máscara de ferro e Nix recobra a consciência. Swann e D'Amour chegam a casa para salvar Dorothea e pôr termo aos planos do “Puritano”. Nix declara que somente Swann é digno de seus conhecimentos e poder, e então o chão sob os pés dos membros do culto adquire a consistência de areia movediça, engolindo todos. Nix abre um buraco no chão, e, segurando Dorothea, fica pairando sobre o abismo. D'Amour chega a tempo de impedir que o “Puritano” jogue Dorothea no abismo. Com a ajuda do poder de Swann, D'Amour consegue derrotar o feiticeiro, e dar o golpe que o desequilibra e o arremessa em direção à fenda, na verdade uma passagem para o inferno. Durante o confronto, Swann é fatalmente ferido, e morre nos braços da esposa. Consolando-a, D'Amour a conduz para fora da propriedade, e os dois deixam o lugar abraçados, caminhando pelo deserto, banhado pela fraca luz do luar, finalmente juntos e livres daquele pesadelo.

Lá se vão quase vinte anos desde a estreia de “Lord of Illusions”, e mesmo assim, a adaptação de Clive Barker para o seu conto permanece um dos filmes de horror mais sólidos de todos os tempos. Para qualquer filme, o tempo é um importante teste de longevidade. Alguns não se saem bem quando lançados ao julgamento do tempo, outras obras permanecem ainda mais atuais e provocantes do que nunca. É o caso não apenas de “Lord of Illusions”, como o de todas as demais obras dirigidas por Clive Barker. Escritor, pintor e diretor, este artista completo e prolífico reinventou o gênero horror em todas as suas mídias: em seus romances, a começar pelos “Livros de Sangue”, coletânea de contos fantásticos, e em seus filmes, a começar pelo primeiro “Hellraiser”, de 1986. Se o termo “artista” cabe como uma luva a alguém, este é Barker. Em todas as manifestações da expressão artística, exibiu incomum maestria, imprimindo a suas obras características muito pessoais, impossíveis de serem reproduzidas. A sua produção literária reminiscente dos trabalhos de Edgar Allan Poe traz a melancolia e o surrealismo das obras do falecido autor a estórias contemporâneas, gerando algo que mais do que aterrorizante parece inovador, diferenciado e, talvez principalmente, elegante. Seus contos ou filmes jamais são previsíveis, e sobre a aparência do ordinário pairam as ideias mais fantásticas e surpreendentes concebíveis. Para os fãs de filmes de horror, não familiarizados à obra deste extraordinário artista, recomendo a leitura de sua obra "Livros de Sangue", dividida em vários volumes, enorme coletânea de contos maravilhosos, onde o termo “horror” parece recuperar todo o significado para o qual foi originalmente cunhado. Deve-se aos “Livros de Sangue” a concepção de “Lord of Illusions”, pois o filme é a adaptação de um dos melhores segmentos da obra, chamado “The Last Illusion”. A leitura da obra literária de Barker nos leva a questionar por que os outro contos igualmente envolventes - tais como Life of Death, In the Hills The Cities e Jacqueline Ess - não foram levados às telas, vez que parecem visualmente encantadores, e a leitura dos mesmos nos investe de um sentimento quase cinematográfico, como se em nossas mentes já estivéssemos enxergando os filmes nas telas.

Além da mão segura de Barker nas rédeas da produção, a visão literária foi transportada para as telas com a mesma riqueza visual que emana das páginas do autor através de uma fotografia realmente encantadora que parece reconstruir em uma época muito atual os principais elementos do clássico film noir. A estória se aventura pela aridez do deserto do Mojave, leva-nos a uma Nova York chuvosa e abafada, dá o pontapé ao suspense ao deslocar o protagonista à ensolarada Las Vegas, onde a fotografia recria o mundo dos ricos e poderosos do entretenimento, com impressionante atenção a detalhes, e chega ao clímax devolvendo a ação ao mesmo deserto onde tudo começou, desta vez não mais em um dia ensolarado, mas na escuridão da noite. Produzido em um grande estúdio, “Lord of Illusions” talvez tenha dado a Barker a oportunidade de “brincar” com generoso orçamento e incondicional suporte técnico, sem a ingerência de terceiros. Quando ocupou a cadeira de diretor para “Lord of Illusions”, Barker havia acabado de sair de uma sofrida experiência com a 20th Century Fox, durante as filmagens de “Nightbreed”, um espetacular filme que, para a surpresa de nós fãs de Clive Barker, não o agradou, pois, conforme o próprio, não representou integralmente a sua visão original. Com “Lord of Illusions”, a Metro-Goldwin Mayer pareceu deixar que Barker satisfizesse a sua visão, e o resultado talvez seja o seu trabalho de direção mais bem acabado.

Quando da pré-produção, escalar a atriz que seria capaz de dar vida à personagem Dorothea prometia uma tarefa dificílima, porém Barker disse que ao passar a vista sobre as pastas com currículos de atrizes que pleiteavam o papel, e apanhar o dossiê de Famke Janssen, declarou, no ato, que aquela seria “a sua Dorothea”, uma escolha importante e acertada, já que uma das características de suas obras são as personagens femininas fortes e interessantes. Em um papel que teria ficado igualmente perfeito nas mãos de Jennifer Connelly, Janssen se conduz alternando vulnerabilidade e força, carência e desapego, compaixão e frieza. Em sua performance, traz à vida a femme-fatale imaginada por Barker para o conto “The Last Illusion”, porém são nos momentos quietos de sua atuação onde por vislumbre enxergamos o processo de pensamento de sua personagem Dorothea, quando compreendemos a maravilhosa atriz que é. Mais importante– e talvez por esta razão eu acredite que a personagem teria ficado perfeita nas mãos de Jennifer ConnellyBarker jamais usa o pretexto de sua ímpar beleza para vulgarizá-la ou expô-la. Sua sensualidade reside justamente na elegância com que mostra, em discretas nuances de performance, a sua classe, uma opção que faz da beleza apenas mais um dos acessórios que chamam a atenção a sua presença, e não o exclusivo.

Um filme de horror é tão eficiente quanto o vilão, e assim como aconteceu com a Julia de “Hellraiser”, Barker cria um outro memorável, na figura de Butterfield. Com o seu traje justo, as calças extravagantes cor de ouro, e os cabelos presos para trás, Butterfield faz parte do fértil e bizarro imaginário de Barker, que injeta o horror com os elementos mais inadequados, inesperados e incomuns possíveis. O ator Barry del Sherman faz um maravilhoso trabalho com o personagem, investindo graciosidade na forma como constrói o papel através de gestos, ilustrando-o com a ameaça elegante de uma suave e letal pantera. Ao mesmo tempo que parece sempre silencioso e quase imperceptível em seus calculados movimentos e modos afeminados, Butterfield é o tipo de vilão que na hora da necessidade saca a lâmina que guarda sob a língua para eliminar as vítimas que se põem em seu caminho. O que torna sua aparição incomum são os gestos muito graciosos na figura de um aterrorizante personagem, antagonista à altura do corajoso e perspicaz detetive interpretado por Scott Bakula.

Gostaria de reservar um espaço para discorrer algumas linhas sobre Clive Barker (foto). Quando menino, quando assisti ao primeiro “Hellraiser”, no começo dos anos 90, na época das fitas de vídeo, o filme me deixou uma fortíssima impressão pelo teor da sua trama adulta e psicologicamente devastadora que envolvia temas tão sérios quanto amores não correspondidos e adultério, pelas performances do elenco, em particular a da atriz britânica Clare Higgins no papel de Julia, e pela ousadia do diretor, que investia profundidade `a sua estória, algo incomum em filmes parecidos, se bem que até então nada remotamente semelhante a “Hellraiser” havia agraciado as telas. Mais tarde, conheci “Nightbreed”, o segundo filme de Barker, e depois, parte de sua produção literária. Foi somente depois da chegada da internet, todavia, em meados dos anos 90, que pude conhecer melhor esse artista tão singular, as suas outras obras, ter acesso aos seus principais romances, como “The Hellbound Heart”, a fonte original de “Hellraiser”, e, principalmente, enxergar o ser humano por trás da arte, pois sempre tive curiosidade de saber mais sobre Barker, ouvir o que tinha a dizer. Hoje, o que posso dizer é que Barker é um homem tão artisticamente talentoso quanto humanamente complicado, e muito embora com uma vida pessoal turbulenta e recentes sustos com a saúde (precisou remover nada menos do que vinte e cinco pólipos da garganta, em 2009), mantém-se mais produtivo do que nunca, pintando, escrevendo e desenvolvendo projetos para o cinema. A vida pessoal deste homem difícil e enigmático, que quando mais jovem parecia o ator Hugh Grant, de quem podemos esperar inesperadas e bizarras estórias de horror, não é feita apenas de polêmicas e escândalos, todavia. Lembro-me de um documentário de 1994 sobre as suas origens, quando os pais, autênticos velhinhos britânicos, foram entrevistados. Eles falaram com orgulho sobre o filho artista – não sabiam de onde vinha tanta imaginação, mas fizeram questão de dizer que sempre o haviam apoiado. Um momento doce foi quando Clive se recordou da estreia do primeiro “Hellraiser”, que dirigiu. Levou a mãe para a estreia, e disse que quando o seu nome apareceu na tela, tipo “Dirigido por Clive Barker”, a mãe, que estava sentada ao lado, o abraçou, emocionada de felicidade, orgulhosa do filho, e ele, brincando, sussurrou em seu ouvido “Mamãe, aproveite este momento de alegria, pois a partir de agora, que o filme vai começar, a senhora não vai gostar”. Referia-se, é claro, ao fato de “Hellraiser” ser mesmo um filme muito pesado e apavorante, um programa nada aconselhável para se levar a mãe!Na época, ele era essencialmente um escritor, um romancista, não tinha muita experiência com filmes, “Hellraiser” foi o primeiro. Teve uma coisa que disse, que retrata a grande aventura que foram as filmagens “Eu fui à biblioteca local para encontrar um livro sobre como dirigir filmes, e eles tinham dois, mas estavam todos alugados, e eu pensei 'Cara, eu estou em uma enrascada, nem mesmo livro para isso eu tenho!'”. Desde então, ele tem se consagrado como um nome de peso na indústria, em diferentes mídias, os trabalhos literários têm sido muito bem adaptados para o cinema, quando não pelo próprio, por outros diretores talentosos, principalmente nos últimos anos, como aconteceu com O Último Trem (Midnight Meat Train), de 2008, estrelado por Vinnie Jones, Brooke Shields e Bradley Cooper. No momento, encontra-se em pré-produção a adaptação de um de seus mais intrigantes contos, Pig Blood Blues. Mesmo tantos anos desde a estreia do primeiro “Hellraiser”, mesmo que a voz e a saúde não estejam 100% quanto em 1986, o seu espírito está, e isso é o mais importante. Para mim, foi muito importante ler mais sobre o homem por trás de todo aquele poderoso imaginário, e descobrir que, afinal de contas, por mais talentoso que fosse, era justamente isso, apenas um homem, tão falível e complicado quanto qualquer outro ser humano, com todas as limitações e defeitos compensados pelas qualidades.

Lançado em 1995, “Lord of Illusions” é um dos filmes daquele período em particular, 1994/1995, que mais me deixaram um sabor nostálgico. Assim como acontece com “Showgirls”, “Falando de Amor”, “A Força em Alerta 2”, “Fervura Máxima” e “Enquanto Você Dormia”, assistir a “Lord of Illusions”, ao menos para mim, funciona como uma pequena janela pela qual posso enxergar um momento saudoso de minha vida, quando tinha 15 anos de idade, quando assistir a filmes na tela grande do cinema realmente estava imbuído de charme e de fascínio. Com o passar dos anos e a maturidade, perdemos um pouco da ingenuidade que faz deste período em particular uma época tão especial, e de toda boa manifestação de arte uma experiência nada menos do que intrigante. A magia talvez resida nos olhos de quem lhe assiste e, mais importante, no momento da vida em que se assiste. O que parece intrigante é que, mesmo hoje tantos anos mais tarde filmes como os mencionados consigam conservar o impacto de vinte anos desde os seus lançamentos, em parte pelo mérito dos talentos envolvidos em suas concepções, em outra pelo carinho com que os conservamos em nossas lembranças, ao longo de todo esse tempo.  
 Todos os direitos autorais reservados a United Artists. O uso do trailer é para efeito meramente ilustrativo da resenha.

domingo, 2 de junho de 2013

Os Escolhidos ("Dark Skies", 2013) - "Se formos apenas nós, será um tremendo desperdício de espaço".


Os Barrett – a mãe Lacy (Keri Russell), o pai Daniel (Josh Hamilton), o irmão mais velho Jesse (Dakota Goyo) e o mais novo Sammy (Kadan Rockett) – são uma típica família norte-americana de classe média, com os dramas e desafios inerentes a todas as outras. Daniel está fora do mercado de trabalho há algum tempo, e o seu desemprego adiciona uma carga de stress a mais à dinâmica da família, que está com o pagamento da hipoteca atrasado. Lacy divide o tempo entre o trabalho como corretora de imóveis, mãe e esposa, e mesmo em face das dificuldades, mantém-se otimista, dedicada ao marido, e devota aos meninos. Uma noite, ao despertar para checar os filhos, Lacy desce para a cozinha, onde se assusta ao encontrar a geladeira aberta e as coisas atiradas ao chão. Ela também encontra a passagem da cozinha para a área de serviço aberta. Na manhã seguinte, durante o café da manhã, a família conversa sobre o ocorrido, e Daniel não leva a questão adiante, responsabilizando a invasão a algum animal selvagem faminto que depois de devorar o que encontrou na geladeira, deixou a casa pela mesma porta.

Na noite seguinte, o que começou de maneira curiosa adquire contornos mais intrigantes. Lacy desperta à noite, como de costume, para checar os meninos e descer à cozinha, e desta vez encontra pacotes e latas empilhados em surpreendente precisão. Ademais, os arranjos interferem com a luz do lustre, de modo a projetar esquisitas formas concêntricas no teto. Quando a polícia é convidada a examinar a casa, os policiais levantam a suspeita de as crianças estarem pregando peças, ou mesmo de um dos meninos vir sofrendo de episódios de pesadelo noturno. Os fenômenos se sucedem: na próxima noite, o alarme de invasão é acionado, acordando a vizinhança, muito embora todas as janelas e portas encontrem-se bem fechadas. Técnicos da empresa de segurança examinam o sistema, e declaram que não houve invasão. Eles simplesmente não conseguem compreender o deflagramento do alarme, e o atribuem a algum mau funcionamento.

Em uma manhã, distraída com suas atividades diárias, Lacy se assusta quando um pássaro se choca à janela. Para seu horror, outros pássaros surgem, investindo com toda a força contra as demais janelas, como em um suicídio coletivo. Não há razões para o incomum comportamento das aves. Os cientistas que investigam o incidente explicam aos Barrett que os pássaros pertenciam a três correntes migratórias muito distintas, e que parecem ter sido “guiados” à casa, atraídos por algo que não sabem precisar o quê. Naquela noite, durante a visita aos quartos dos meninos, a mãe é surpreendida pela sombra de um visitante alto e magérrimo, parado ao lado da cama de Sammy. Quando Lacy grita, o “visitante” também se assusta e sai correndo. Daniel instala câmeras de segurança nos pontos que oferecem os ângulos mais abertos. Enquanto os inexplicáveis eventos seguem se somando, a família tem de lidar com a tensão extra do desemprego de Daniel, que persiste comparecendo a entrevistas de trabalho em companhias diferentes, mas não consegue convite para ocupar uma das vagas.

Para o horror de Lacy, durante a visita de uma família a uma das propriedades à venda, ela momentaneamente perde o controle sobre o corpo, e como que regida por uma força superior, vai à janela e a golpeia com a testa, até trincar o vidro. Depois, acorda na sua cama, sem se recordar de como parou ali. Lacy procura por respostas na internet, e em diferentes artigos sobre OVNIs, encontra semelhanças entre o seu caso e as histórias de famílias de pessoas abduzidas. Gravuras exibidas nos artigos conferem com as figuras que o filho menor costuma desenhar, e que afirma serem os visitantes. Daniel consegue uma concorrida vaga, e a notícia do emprego meio que recupera a moral dos Barrett, que ao menos julgam finalmente ter encontrado o rumo certo e parte das respostas, por mais inverossímeis que pareçam. Enquanto enfrentam os fenômenos misteriosos, os Barrett se veem cada vez mais isolados da comunidade. Durante o banho na piscina da comunidade, quando Sammy tira a camisa, os vizinhos ficam chocados ao encontrar terríveis manchas roxas no corpo do garoto, como se tivesse sido agredido por uma surra de cinto.

Lacy e Daniel encontram compreensão e suporte na pessoa de Edwin Pollard (J.K. Simmons, que dá a performance excepcional do filme), um especialista em OVNIs, no passado alvo do implacável assédio dos extraterrestres a quem chama de Os Cinzas. Pollard lhes explica que não há uma razão para o fato de terem sido escolhidos pelos Cinzas, apenas que, uma vez marcados, as criaturas perdurarão os visitando, até que levem o primeiro membro da família que deu pela sua presença. Daniel questiona Pollard se não há nada que possa ser feito, e ele lhes responde que a única linha de ação é resistir e lutar com tudo o que têm. Se a família impuser dificuldades aos planos dos Cinzas, Pollard lhes conta, talvez os visitantes percam o interesse e partam para a próxima. Depois da consulta ao especialista, os Barrett se preparam para a próxima visita dos Cinzas, adquirindo uma arma de fogo pesada, um cachorro, e barricando a casa. Daniel e Lacy não tiram a atenção de Sammy, a criança que já vinha dando sinais de enxergar Os Cinzas mesmo quando as manifestações se limitavam a traquinagens aparentemente inocentes e desconexas. Se as explicações de Pollard fazem sentido, então é o garotinho quem corre perigo.

Os Cinzas regressam no feriado de 04 de julho, a família albergada dentro de casa, preparada para lutar e se defender. À mesa, trocam comoventes reminiscências de dias mais felizes, quando Os Cinzas finalmente anunciam a sua chegada: a transmissão da TV, que até aquele momento exibia as explosões de fogos de artifício em diferentes pontos da América do Norte em comemoração ao 04 de Julho, é cortada, as luzes começam a oscilar, o cachorro a ladrar. Unida, a família procura resistir à avalanche de horrores do assalto dos Cinzas, porém quando menos esperam, veem-se cercados por muitos deles, figuras altas, e muito magras. Ao invés de Sammy, o filho menor, os Cinzas escolhem o irmão mais velho e o levam consigo para o desespero dos Barrett. Três meses se passam, e Lacy e Daniel já conseguem pensar mais claramente, a ponto de terem aceito o que aconteceu. Agora, se concentram em reavê-lo. A terrível experiência colocou o seu amor à prova, porém os Barrett saíram do confronto como uma família mais unida. Lacy não consegue compreender por que os Cinzas levaram Jesse, e não Sammy, já que pensa que foi o menorzinho quem os viu primeiro, até que, um dia, rememorando o filho mais velho, mexendo nas caixas com as suas coisas, descobre um caderno de desenhos do garoto, de muitos anos atrás. É quando descobre os desenhos que Jesse fez quando tinha a mesma idade de Sammy (ou quiçá mais jovem), onde aparece de mãos dadas a três figuras altas e magras semelhantes aos Cinzas. Lacy e Daniel compreendem, então, que os visitantes estão entre os Barrett há mais tempo do que imaginavam, e que, de fato, a explicação de Pollard provava-se correta. Os Cinzas levaram consigo o primeiro membro da família que os vira, sendo que não fora Sammy, como tinham anteriormente imaginado, e sim Jesse, muitos anos antes de o assédio dos Cinzas ter escalado a ponto de os Barrett terem dado pela sua presença. Lacy, Daniel e Sammy então escutam a voz de Jesse em uma frequência do rádio, como que vinda de muito longe. Eles acreditam que, um dia, reencontrarão o filho perdido.

Dos mesmos produtores de Insidious – Sobrenatural e Atividade Paranormal, chega mais um novo interessante e sólido filme, parte do recente renascimento do gênero horror. Nos mesmos moldes de Sobrenatural, em Dark Skies, uma família comum e unida é novamente o alvo de forças além da compreensão humana, a diferença sendo que, naquele, a natureza do mal se devia a um demônio cismado com um garoto capaz de fazer viagens extracorporais, e neste, são visitantes extraterrestres os algozes que levarão a família Barrett a um passeio pelo horror e insanidade. A fórmula dos filmes de casa assombrada, que sempre funcionou muito bem e gerou ótimos suspenses, é acolhida e de certa forma reinventada pelo diretor Scott Stewart, que adicionou à consagrada receita um novo ingrediente, na figura dos “Cinzas” e do conhecido fascínio do ser humano, sempre que dirige o olhar ao céu para imaginar se está sozinho no universo. Lembro-me da frase em um dos cartazes do filme Contato, quando de seu lançamento, uma bonita frase, que traduz o milenar encantamento da humanidade desde que aprendeu a olhar para as estrelas “Se houver apenas nós, será um tremendo desperdício de espaço”.

Tecnicamente caprichoso e artisticamente inventivo, Dark Skies é uma excelente pedida para os fãs de filmes de extraterrestres, em parte conservador no que toca a ideias que funcionaram muito bem em filmes similares no passado (tais como Sinais), em parte inovador ao romper com alguns clichês cansativos, fugindo de efeitos e se concentrando em desenvolvimento de personagens. Obviamente, o diretor teve ao seu dispor um orçamento apropriado para atender a demanda, e, talvez mais importante, o elenco certo para dar vida aos personagens bem escritos. Protagonizado por jovens artistas talentosos (Keri Russell e Josh Hamilton), Dark Skies também se beneficia da participação do competente ator veterano J.K. Simmons, em um pequeno e memorável papel. Cabe a Simmons a melhor cena do filme, mas isso será discutido alguns parágrafos abaixo. Josh Hamilton e Keri Russell se saem muito bem não apenas em suas performances individuais, mas também, e talvez mais significante, na maneira como interagem e se complementam. De muitas formas, atores principais em filmes de horror cuja temática revolve a união familiar precisam trabalhar como um time. A forma como alavancam um ao outro apenas enaltece as performances individuais, e as tornam mais interessantes. Foi o caso de Insidious – Sobrenatural, com Rose Byrne e Patrick Wilson, e Cemitério Maldito, com Denise Crosby e Dale Midkiff. Sentimos a dor destes personagens, pois os enxergamos pelos olhos do outro cônjuge que o ama. A dignidade e o suporte de Lacy compensam a autoestima sabotada de Daniel; a coragem e a autoridade de Daniel anulam a vulnerabilidade feminina de Lacy quando o perigo finalmente bate à porta.

O desempenho de Josh Hamilton, sutil e contido, permite-nos compreender a delicada posição deste chefe de família. Fora do mercado de trabalho há algum tempo, Daniel tem encontrado obstáculos para a reinserção. O impasse evidentemente mexe com seus brios, e no silêncio de alguns momentos enxergamos o conflito interno que se dá em sua mente, a autoconfiança sob a pressão da realidade amarga dos fatos. A sua performance muito equilibrada e honesta me fez pensar na atuação de Burt Reynolds em Starting Over, a comédia romântica de Alan J. Pakula indicada ao Oscar de Melhor Filme, em 1979, sobre um introspectivo professor recém-divorciado que procura refazer a vida sentimental, frequentando reuniões de homens recentemente separados, e se aproximando de uma tímida moça, traumatizada por relacionamentos amorosos fracassados, interpretada por Jill Clayburgh. Neste filme de Alan J. Pakula, Burt Reynolds exibia um lado vulnerável seu jamais visto nas comédias que protagonizou ao longo da década de 70, provando-se um excelente ator, não apenas um astro de ação. O personagem relutante de Josh Hamilton em Dark Skies revelou muitas semelhanças com o de Burt Reynolds em Starting Over, até mesmo, curiosamente, em termos de aparência física. Daniel é um pai de família aos seus quarenta e poucos anos, tentando fazer a coisa certa, procurando respostas e oferecendo incondicional apoio à família, mesmo que sua crença em si esteja abalada em face de seu desemprego; já Phil, o personagem de Burt Reynolds em Starting Over, é um professor aos seus quarenta e poucos anos tentando reencontrar a confiança em si para se reconstruir emocionalmente, mesmo que a sua autoestima tenha sido sabotada por uma ex-mulher ardilosa que primeiro o traiu e depois o deixou.  

Keri Russell se sai muito bem como a mãe Lacy. Ela constrói uma personagem sólida e forte, que por vezes precisa tomar as decisões racionais e fazer as melhores escolhas para o bem da família, vez que o mau momento de Daniel lhe furta a iniciativa e segurança para tanto. Nesta fase do renascimento dos filmes de horror, a sua “mãe coragem” honra a tradição de mulheres fortes e honradas, que vimos recentemente em Insidious – Sobrenatural, por exemplo, na forma do corajoso desempenho de Rose Byrne. Essa homenagem a personagens femininas honradas e fortes perdurará, a tocha passada para as mãos da atriz britânica Lena Headey, que protagonizará um filme de horror em vias de lançamento, chamado The Purge. Retomarei The Purge ao final da resenha.

O diretor Scott Stewart não é um autor como Brian De Palma ou David Cronenberg, não há peculiaridades em sua filmografia que nos permitam vislumbrar um estilo definitivo, no entanto é um ótimo cineasta que, embora não tão ousado quando os grandes nomes do suspense, sabe contar a estória, escolher bons takes, criar imagens visualmente bonitas, sustentar o ritmo e encorajar os atores a darem excelentes performances. Para isso, contou com o suporte do diretor de fotografia David Boyd, que previamente emprestara o seu rico olhar a “12 Rounds”, de Renny Harlin. Aqui, a fotografia de Boyd recria um típico bairro de classe média norte-americano, com as suas sossegadas ruas largas, as belas casas, as palmeiras nas calçadas arejadas. É um filme “gostoso” de se assistir. Não apenas de encantamento Boyd se encarrega, criando momentos de suspense igualmente atmosféricos. A sacada de filmar Jesse voltando de bicicleta à noite, para casa, pedalando em uma estrada erma, enquanto as luzes dos postes vão se desligando quando de sua passagem, prenunciando a chegada dos Cinzas, foi uma escolha visual muito interessante e charmosa.

A melhor sacada do filme, todavia, foi convidar o talentoso ator veterano J.K. Simmons para um importante papel, que tem se tornado recorrente em filmes do gênero. Em Sobrenatural, foi a atriz Barbara Hershey como a mãe do protagonista quem interpretou tal importante papel, em Atividade Paranormal, foi um senhor parapsicólogo que visita a casa para diagnosticar a natureza do problema. O papel importante a que me refiro refere-se aos personagens chaves que surgem aproximadamente após dois terços de filme para melhor explicar a natureza dos fenômenos que assolam os protagonistas. No filme do diretor James Wan, Sobrenatural, a personagem de Hershey tem as melhores falas, a melhor cena, quando explica ao filho e `a nora que a aversão do rapaz a fotos se deve à infância, quando em retratos que batia do menino, a mãe notara a presença, inicialmente distante, e com o passar dos anos cada vez mais próxima, de uma estranha mulher, na verdade um espírito que por alguma razão cismara com o garoto. Em Atividade Paranormal, o senhor parapsicólogo revela ao casal que eles estão lidando com um demônio, ligado à garota, e que quanto mais antagonizarem a entidade, mais tornarão tudo pior para suas vidas. Em Dark Skies, o personagem de Simmons, um senhor chamado Edwin Pollard, arremessa a dura realidade no colo dos protagonistas, que finalmente entendem a profundidade do problema em que se veem metidos. A cena é regida com perfeição pelo diretor Scott Stewart, mas quem comanda o momento é J.K. Simmons, com uma performance sutil, quieta e firme que causa arrepios pela melancólica resignação. Ele lhes explica que as pessoas guardam uma ideia equivocada sobre visitantes de outros planetas, que associam os extraterrestres a naves espaciais, invasões, destruição de grandes monumentos norte-americanos, entre outras bobagens. Pollard lhes conta que a questão se dá em um nível imperceptível, que a famigerada "grande" invasão já aconteceu, há centenas de anos, realmente, e que os Cinzas já representam um fato certo da vida, “assim como impostos e a morte”, ele complementa, brincando. Segundo Pollard, milhares de pessoas reportaram ter visto os Cinzas, a família Barrett não é a única que enfrenta o drama. Dar conta da presença dos Cinzas requer tempo, pois antes de se mostrarem, começam a testar as vítimas de forma incipiente. Primeiro, utensílios da cozinha desaparecem, e quando menos espera, uma família está dando o passo direto para um completo pesadelo. Questionado pelas razões de terem sido escolhidos, Pollard lhes diz que não existem motivos. Conforme o especialista, torturar-se sobre as razões da escolha dos Cinzas é como ratos de laboratório perguntando-se por que foram selecionados como cobaias. A explicação que Pollard dá ao casal, em seu apartamento, cujas paredes estão cobertas por recortes de jornais referentes a abduções, é o grande momento atmosférico, onde pouca movimentação acontece, porém o poder concentra-se na força das atuações e do horror de tudo o que se expõe.

Anteriormente, fiz menção a um filme chamado The Purge. Previsto para chegar aos cinemas no dia 07 de junho deste ano, The Purge é mais um exemplar da nova leva do cinema de horror, produzido pelas mesmas forças criativas por trás de Insidious – Sobrenatural, Atividade Paranormal, A Entidade e Dark Skies. O trailer já se encontra disponibilizado online, e o filme parece intrigante. Em razão dos níveis alarmantes de desemprego e crimes, o governo norte-americano sancionou uma lei pela qual uma vez ao ano e dentro de um período de doze horas toda atividade criminosa está liberada – saques, estupros, assassinatos. A polícia não aceita chamadas, os hospitais fecham as portas pela noite. A medida foi feita para permitir que pelo período de doze horas, as pessoas “encontrem uma válvula de escape”, e, uma vez terminada a "festa", não voltem a incorrer em crimes, vez que tiveram a chance de "acertar as contas". No filme, a medida parece funcionar, pois os índices de desemprego e violência decrescem acentuadamente. Neste contexto, The Purge foca em uma família encabeçada pelos personagens interpretados por Lena Headey e Ethan Hawke, duas pessoas comuns que aprenderam a enxergar a “noite do crime” como um mal necessário. Durante a "festa", eles se albergam em sua casa protegida e segura, e aguardam pelo término do feriado para que possam abrir as portas e retomar suas vidas normais. Ocorre que na “noite” deste ano em particular, um estranho aparece implorando por guarida. O filho mais novo assiste aos pedidos do estranho pelas câmeras e desliga momentaneamente o sistema de segurança, permitindo a entrada do visitante, um terrível erro, pois a pessoa em questão foge de uma apavorante gangue que veste máscaras sorridentes, e que não demora a aparecer por ali para exigir que a família entregue o estranho, sob pena de invadirem a casa para matá-los também. Recomendo aos amigos que procurem pelo trailer online, é realmente sensacional, o filme tem tudo para ser um dos grandes suspenses do ano. Considerando que além de The Purge há mais dois filmes do diretor James Wan para serem lançados, Invocação do Mal e Sobrenatural 2, os fãs de horror têm bons motivos para comemorar. Como alguém já disse, o melhor da festa é esperar por ela.


Todos os direitos autorais do trailer acima reservados a Universal Filmes. O uso do trailer é para efeito meramente ilustrativo da resenha.